INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE
INCAPACIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

A incapacidade relevante para determinar a legitimidade para o Ministério requerer a realização de inventário não se restringe às situações em que a falta de capacidade geral para o exercício de direitos se mostra reconhecida e declarada judicialmente, abrangendo também os casos de fundada situação de incapacidade de facto permanente. (Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - Relatório
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO vem interpor recurso da decisão proferida nos presentes autos de inventário, por óbito de C, que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa do requerente, e em consequência indeferiu liminarmente a petição inicial.
2. Nas alegações apresentadas, formulou as seguintes conclusões:
- O Ministério Público tem legitimidade activa para representar os incapazes de facto e, designadamente, instaurando acção de inventário quando estes sejam interessados na partilha;
- Tal legitimidade deriva, desde logo e de forma genérica dos art.º 17, do CPC e art.º 3, n.º1. a) e 5.º. n.º1, c) do respectivo Estatuto.
- E, especificamente, resulta dos artigos 2102, n.º 2 do CC e do 1327, do CPC, uma vez que aquele primeiro artigo determina a instauração de inventário obrigatório, pelo Ministério Público, quando a herança seja deferida a “incapaz de facto permanente”.
- Pelo que é ilegal a exigência de que esteja decretada a interdição para conferir tal ilegitimidade, bastando a mera incapacidade de facto permanente;
- Sendo tal incapacidade suficientemente demonstrada por documento junto aos autos que confere, em Junta Médica, uma incapacidade de facto permanente de 100% ao interessado e por documento que demonstra que até foi instaurada, simultaneamente, acção de interdição.
3. Cumpre apreciar e decidir.
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II – Enquadramento facto-jurídico.    
Como se sabe, o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões[1] nelas colocadas, pelo que no seu necessário atendimento, a saber está se, como pretende o Apelante, não deveria ter sido indeferida liminarmente, como foi, a petição inicial para instauração de inventário judicial.
Para o conhecimento a fazer, relevam as seguintes ocorrências processuais:
à O Ministério Público veio intentar inventário judicial por óbito de C, alegando:
- O de cujus faleceu em 18.12.2009.
- Deixou como herdeiro V, nascido em 23.12.1953, o qual é incapaz de facto, sofrendo de debilidade mental sequela de poliomelite e eventual esquizofrenia, tendo-lhe sido atribuída pela Junta Médica uma incapacidade de 100%, e instaurada na mesma data, acção de interdição.
à Juntou assento de óbito, registo de nascimento, informações clínicas, e atestado médico de incapacidade multiuso, datado de 25.10.2011, conferindo a V uma incapacidade permanente global de 100% (cem por cento).
à Foi proferido o despacho sob recurso no qual se consignou:
(…) No concerne especificamente à legitimidade do Ministério Público, dispõe também o art.º 2102, n.º 2, b) do Código Civil, que se procede à partilha por inventário quando o Ministério Público entenda que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica aceitação beneficiária.
De acordo com a configuração que o requerente dá ao inventário, verifica-se que V não foi declarado incapaz por decisão judicial transitada em julgado (e pode nunca o vir a ser), fundando o Ministério Público a sua pretensão na possibilidade de vir a ser declarada a interdição do mesmo por anomalia psíquica, em acção que propôs na mesma data em que instaurou este inventário.
Assim constata-se que V não é incapaz para os efeitos previstos no art.º 1327, n.º1, b), do Código de Processo Civil, sendo que a demonstração da sua incapacidade não pode depender de prova a produzir nestes autos.
Termos em que se conclui que o Ministério Público não é parte legítima neste processo de inventário, não lhe reconhecendo a lei qualquer interesse para intervir nos mesmos. (…)
Insurge-se o Recorrente contra o entendimento perfilhado, alegando que lhe assiste legitimidade para instaurar acção de inventário relativamente a incapazes de facto que sejam interessados na partilha, como no caso sob análise em que a incapacidade do interessado está, de modo suficiente, demonstrada por documento junto aos autos.
Apreciando.
Conforme resulta do Estatuto do Ministério Público, Lei 47/86, de 15 de Outubro, compete, especialmente, ao Ministério Público representar os incapazes, art.º 3, n.º 1, a), fazendo-o como parte principal, art.º 5, n.º 1, c), isto é, como aquele que pede em seu próprio nome a actuação de uma vontade da lei[2], relevando em tal âmbito a intervenção processual em termos de inventário, como se verteu no art.º 2102, n.º2, do CC, procede-se a inventário judicial quando o Ministério Público o requeira, por entender que o interesse do incapaz a quem a herança é deferida implica a aceitação beneficiária, e ainda nos casos em que algum dos herdeiros não possa, por motivo de ausência em parte incerta ou de incapacidade de facto permanente, outorgar partilha judicial, com expressa referência para a legitimidade para requerer ou intervir no inventário, como parte principal, em todos os actos e termos do processo, quando a herança seja deferida a incapaz, ausentes em parte incerta ou pessoas colectivas, art.º 1327, n.º 1, b), do CPC[3].
Assim, poderá dizer-se, para o que agora nos interessa, que na articulação do quadro legal enunciado, a incapacidade relevante para determinar a legitimidade para o Ministério requerer a realização de inventário não deverá restringir-se às situações em que a falta de capacidade geral para o exercício de direitos se mostra reconhecida e declarada judicialmente, antes abrangendo também os casos de fundada situação de incapacidade de facto permanente.
Na verdade, na hermenêutica da previsão legal contida no preceito em referência do Código de Processo Civil, avulta que tal sentido pode ser retirado, desde logo porque o elemento literal o permite, mas também o lógico, no atendimento do sistema jurídico, na efectiva relevância dada à situação do incapacitado de facto, maxime por ainda não o ser de jure, sobretudo se revestida de carácter permanente e notoriedade, tendo em conta o regime estabelecido no art.º 257, do CC[4], mas sobretudo o já mencionado n.º 2, do art.º 2102, também do CC, sendo ainda o sentido que melhor se coaduna com o elemento teleológico, isto é, a justificação social da lei.
Com efeito, importa salientar que vem de longe a atenção prestada pelo Direito à protecção daqueles que de alguma forma estão afectados na sua capacidade de exercício, no estabelecimento de esquemas diversos que não só os protejam de forma efectiva, mas também dêem cabal suprimento às suas necessidades[5], nesses contornos movendo-se as apontadas atribuições do Ministério Público, que assim não deverá ficar indiferente todas as vezes que tiver notícia de que um interessado, não interdito por sentença, não está no pleno uso das suas faculdades intelectuais, requerendo a instauração de inventário[6], pois a circunstância de alguém não possuir o discernimento próprio é que força a sua defesa através do meio processual adequando e é principalmente quanto aos que não têm interdição regulamentada que o inventário actua como meio de protecção por excelência[7].
Diga-se, por último, que visando o processo de inventário pôr termo à comunhão hereditária, decorrente do fenómeno sucessório, traduzindo-se efectivamente no chamamento de determinadas pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido, permitindo que os bens que àquele pertenciam sejam atribuídos aos interessados, reconhecidos como tal, art.º 1326, n.º1, do CPC, não se esgota o inventário num acto, antes se desenvolve num conjunto articulado dos mesmos, até à partilha, possibilitando a intervenção de todos interessados que em conformidade se possam determinar, munidos que estejam da capacidade para tanto, se tal lhe for reconhecido na respectiva pendência.
 Reportando-nos aos presentes autos, resulta suficientemente demonstrado, pelos documentos juntos, que o identificado herdeiro está incapacitado de facto, permanentemente, afigurando-se, assim que o Ministério Público, no âmbito da competência que lhe é atribuída por lei, tem legitimidade para vir a juízo requerer a instauração de inventário, sem prejuízo de no decurso do respectivo processo se tomar em consideração as possíveis vicissitudes, como será o caso das que afectem a pessoa de cada um dos interessados.
Aqui chegados, conclui-se que não pode manter-se o despacho recorrido, impondo-se, assim, que seja revogado, prosseguindo os autos os seus termos normais.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar procedente a apelação, e em conformidade revogar o despacho sob recurso, ordenando o prosseguimento dos autos, no modo acima indicado.
Sem custas.
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Lisboa, 11 de Junho de 2013
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Ana Resende
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Dina Monteiro
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Luís Espírito Santo
[1] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o mesmo sujeito às razões jurídicas invocadas também pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
[2] Cfr. António da Costa Neves Ribeiro, in O Estado nos Tribunais, Intervenção Cível do Ministério Público em 1.ª Instância, pag. 25
[3] Na redacção aplicável, assim como no caso do Código Civil, no adiamento e consequente inaplicabilidade do novo regime do inventário, nos termos da Lei 29/2009, de 29 de Junho, mantendo-se aplicável aos processos de inventário o regime anterior a esta última Lei, cfr. Ac. Tribunal Constitucional de 6.7.2011, in www.tribunalconstitucional.pt., não estando a situação sob análise abrangida pela Lei 23/2013, de 5 de Março, como decorre do seu art.º 8.
[4] Como regime geral aplicável quer à incapacidade acidental, transitória ou passageira, quer à incapacidade permanente de facto não estabelecida por sentença de interdição ou inabilitação, cfr. Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, I volume, pag. 244 e seguintes.
[5] Cfr. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, parte geral, tomo III, Pessoas, a fls. 409, designando de princípio da tutela dos débeis ou vénia debilium, fortemente ancorado no coração do Direito Civil.
[6] Cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, pag. 100.
[7] Cfr. autor e obra acima mencionada a fls. 97.