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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DOLO
NEGLIGÊNCIA
MULTA
Sumário
1. A conclusão da litigância de má-fé é casuística, dependendo das circunstâncias do caso concreto, devendo o tribunal ser prudente na sua apreciação, só devendo condenar a parte, como litigante de má-fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte. 2. Na fixação do montante da multa, deve atender-se à maior ou menor gravidade do dolo ou da negligência grave, à situação económica do litigante, à gravidade das consequências da conduta, sem esquecer os fins de prevenção especial e geral. (Sumário da Relatora
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO.
G intentou contra S, SA, acção com processo comum sumário, pedindo que a) seja considerada nula a cláusula 3.1 do Regulamento dos “Cheques-Prenda”, por violação dos arts. 40º, nº 1 e 762º e ss. do CC, e seja reduzido o negócio jurídico celebrado, mantendo-se os mesmos termos e efeitos, embora com exclusão da cláusula que impõe um prazo de validade/caducidade; b) caso assim não se entenda, seja a R. condenada à devolução da quantia de € 325,00, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo pagamento; c) caso se perfilhe entendimento diverso, deverá ser considerada nula a cláusula referida em a), por violação dos arts. 15º, 19º, al. j) e 21º do DL 446/85 de 25.10, com as consequências previstas nas als. a) e b) supra; d) no caso de não ser julgado procedente o requerido na al. c), deve a R. ser condenada a devolver a quantia de € 325,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, a título de enriquecimento sem causa; e) em qualquer dos casos previstos nas als. anteriores, deve a R. ser condenada a eliminar a cláusula 3.1 do Regulamento relativo a “Cheques-Prenda”, assegurando aos respectivos compradores que a utilização dos mesmos não está sujeita a qualquer prazo.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
A R. dedica-se à actividade de gestão de centros comerciais, gerindo, entre outros, o centro comercial designado “C...”.
Por forma a simplificar a compra e escolha de produtos, a R. emite e vende os designados “cheque-prenda”, os quais são utilizados como meio de pagamento na aquisição de produtos e serviços existentes nas lojas sitas nos centros comerciais geridos pela R.
O adquirente entrega à R. determinada quantia monetária, recebendo em troca o “cheque-prenda” de igual valor, que oferece a familiares e amigos, para que o utilize.
Em datas que não sabe precisar, a A. adquiriu 7 “cheques-prenda” com o valor total de €325, emitidos pela R., destinando-se 4 à realização de compras em qualquer uma das lojas aderentes dos centros comerciais geridos pela R., e 3 a ser utilizados em lojas aderentes do C..., os quais ofereceu a um amigo, J.
Em meados de Dezembro, o referido J tentou utilizar os cheques-prenda em determinadas lojas do C., efectuando compras, no entanto tal não lhe foi permitido em virtude de, alegadamente, os mesmos estarem sujeitos a um “prazo de validade”, que terminava, para uns, em 8.9.2007, e, para outros, em 22.09.2007.
O referido J, bem como a A., desconheciam, em absoluto a existência de qualquer prazo de validade.
A R. comunicou ao referido J que o dinheiro entregue como contrapartida dos referidos cheques não lhe seria devolvido, nem à A.
Regularmente citada, a R. contestou:
- suscitando questão prévia, alegando que em Março de 2008 a R. havia sido citada para contestar uma acção que lhe movia J, com o mesmo pedido, na qual contestou excepcionando a ilegitimidade deste, excepção que veio a ser julgada procedente em sede de saneador-sentença, concluindo que, do teor da P.I., “é manifesto que os sete cheques a que se referia aquela acção são exactamente os mesmos a que se refere a presente”;
- por excepção, alegando a falta de legitimidade e falta de interesse da A. em agir, porquanto alega ter cedido os cheques ao J, pelo que, a ser assim, cedeu gratuitamente os referidos cheques, deixando de ter a posse dos mesmos; ser manifestamente extemporânea a impugnação feita pela A. das cláusulas do contrato alegadamente celebrado com a R., bem como não pode vir alegar, como alega, enriquecimento sem causa, quando manifestamente ofereceu os referidos cheque-oferta àquele já mencionado senhor; a corresponder à verdade que a A. comprou os cheques à R. e os ofereceu ao referido J, manifestamente a A. abriu mão dos mesmos, deixando de estar na sua posse não podendo intentar, nos termos em que intenta, a presente acção.
- por impugnação, e termina pedindo a sua absolvição da instância, por ilegitimidade da A., ou, caso assim não se entenda, a improcedência da acção.
A A. respondeu, propugnando pela improcedência da excepção invocada e alegando litigar a R. com má-fé, pedindo a sua condenação em multa e indemnização à A. a fixar segundo critério do tribunal, mas não inferior a € 10.000,00.
A R. respondeu ao pedido de condenação como litigante de má-fé, sustentando a sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador, que julgou legítimas as partes e improcedente a excepção de ilegitimidade invocada, e seleccionada da matéria de facto e BI, seguindo-se audiência de julgamento [1].
Oportunamente, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, declarou nula a cláusula 3.1. do regulamento dos Cheques–Prenda constante de fls. 22 a 24 dos autos, declarando-a excluída daquele, mantendo-se os contratos celebrados entre a autora e a ré nos seus precisos termos e efeitos, com exclusão da referida cláusula; julgou procedente o pedido de condenação da ré como litigante de má fé, condenando-a como litigante de má fé, em multa que fixou no montante correspondente a 10 (dez) UC’s, e em indemnização a favor da autora, esta a fixar através do incidente a que se reporta o artigo 457º, nº 2, do Código de Processo Civil; absolveu a ré no demais pedido.
Inconformada com esta decisão, dela apelou a R., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem: 1ª A Ré/Recorrente não litiga, nem litigou, neste autos (ou em quaisquer outros) com má fé, não tendo dado a estes autos ou aos do 5º Juízo Cível um qualquer uso reprovável, nem tendo deduzido oposição cuja falta de fundamento não devesse ignorar. 2ª Ao contrário do invocado na sentença recorrida, a Ré não afirmou, nos autos que correram termos no 5º Juízo Cível do Tribunal de Lisboa, a legitimidade da aqui Autora para fundamentar a ilegitimidade do ali Autor, J. 3ª Nos autos do 5º Juízo Cível, a Ré afirmou a ilegitimidade do ali Autor, J, para questionar a validade das cláusulas do contrato de compra e venda, tendo presente que ele não havia celebrado qualquer um dos contratos de compra e venda dos 7 cheques-oferta, cujos originais juntou aos autos. 4ª Ao fazê-lo não afirmou a legitimidade da aqui Autora, até porque naqueles autos não estava identificada nem a Autora, nem qualquer pessoa como tendo sido a/o adquirente e ofertante dos 7 cheques-oferta. 5ª O que naqueles autos do 5º Juízo Cível foi afirmado pela Ré foi, tão somente, que a haver alguém com legitimidade para intentar aquela acção, com aqueles pedidos e causa de pedir, esse alguém teria de ser o terceiro ou os terceiros que adquiriram os cheques. 6ª Sem colocar em causa essa afirmação de princípio que se reafirma, o que a Ré veio alegar, nestes autos, em sede de excepção que denominou de ilegitimidade e falta de interesse em agir, foi que, mercê da análise atenta de tudo quanto se encontrava alegado na p.i., bem como os documentos a ela juntos, aliada ao conhecimento que lhe advinha de que os cheques em presença estariam na posse de J, a quem tinham sido oferecidos, faltaria nos presentes autos a invocação dos factos que, uma vez provados, permitiriam concluir pela legitimidade e interesse em agir da aqui Autora. 7ª A Autora comprou os cheques e ofereceu-os a J que se encontrava na posse deles, sem que destes autos resulte que, em qualquer momento, J os haja devolvido à Autora e que a Autora tivesse junto da Ré, enquanto, sua alegada compradora, tentado convencê-la do que veio alegar e provar em sede judicial. 8ª Para a Ré, faltava na p.i. que subjaz a estes autos – como se crê que continua a faltar mas a que o Tribunal a quo não deu a devida relevância – a junção dos cheques oferta originais e a invocação do interesse em agir da Autora, tendo presente que, ainda que tenha comprado os 7 cheques-oferta, a Autora se encontra deles desapossada, tendo-os ofertado a terceiro. 9ª Em parte alguma dos autos, após esta invocação, a Autora veio afirmar que a doação/oferta efectuada havia sido revogada e que os cheques se encontravam na sua posse e na dos seus Colegas, nem sequer ofereceu a junção aos autos dos originais dos cheques. 10ª Aliás, demonstrando-se nas respostas à matéria de facto que os fundos para a compra dos cheques pertenciam não só à Autora mas a um grupo de Colegas, as dúvidas atinentes a esta mesma ilegitimidade e interesse em agir da Autora são ainda mais prementes. 11ª A excepção de ilegitimidade foi decidida em sede de saneador, conformando-se a Ré com a decisão tomada pelo Tribunal a quo e prosseguindo os autos para a necessária prova dos restantes factos alegados. 12ª Ou seja, para além da invocação que foi feita em sede de contestação, a invocação dessa excepção só deu azo ao articulado de resposta às excepções da Autora onde deduziu o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé, à resposta da Ré a este pedido de condenação e ao saneador. 13ª Em termos processuais, a excepção deduzida pela Ré não causou nos presentes autos qualquer tipo de distúrbio do ponto de vista processual, não determinou que os autos fossem enxameados de documentos, de exames, de provas periciais, de testemunhos, de depoimentos, de meros requerimentos e/ou de quaisquer actos que tenham entorpecido a justiça e a normal morosidade do Tribunal a quo. 14ª A Ré não litigou nos presentes autos de molde a merecer o juízo de censurabilidade que o Tribunal a quo lhe imputa e muito menos nos termos graves e pelos valores exageradamente elevados que estão arbitrados. 15ª A condenação da Ré como litigante de má fé nos presentes autos só poderia ocorrer se se detectasse na conduta da Ré a inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida, pretendendo convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterando a versão dos factos relativos ao litígio ou, fazendo do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável. 16ª Não só a Ré está convencida de que a excepção de falta de interesse em agir da Autora, tendo presente o que alegou na p.i., fazia – como faz – todo o sentido, não vislumbrando como pode o Tribunal a quo concluir nos termos em que concluiu e afirmando o que afirma na sentença recorrida, quando foi a própria Ré quem trouxe a estes autos o conhecimento dos autos que correram termos no 5º Juízo Cível, nada omitindo e tudo revelando. 17ª Não merece, pois, a conduta da Ré a censura que sobre ela recaiu, devendo ser absolvida do juízo de censura e da condenação de que foi alvo. 18ª Por outro lado, atento o disposto no Art. 458º do CPC, não pode a Ré deixar de ser absolvida, sob pena de violação de lei. 19ª Ainda que assim não se entendesse – o que só se concede para efeitos de raciocínio – sempre se verifica que os montantes arbitrados a título de multa e indemnização são manifestamente exagerados, não se podendo conceber que a alegação da excepção de falta de interesse em agir e legitimidade da Autora nestes autos, que só se pode compaginar com uma eventual litigância temerária, possam merecer uma reprovação deste jaez das instâncias, sabendo-se que só o juízo de censurabilidade associado a uma condenação desta natureza é por si só profundamente grave. 20ª Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos Arts. 456º, 457º e 458º do CPC, devendo em consequência ser esse segmento da sentença recorrida ser revogado, sendo a Ré absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé, assim se fazendo Justiça!
A A. contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida. QUESTÕES A DECIDIR.
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC), as questões a decidir são:
a) se a recorrente litigou ou não de má fé;
b) se o disposto no art. 458º do CPC impõe a absolvição da R.;
c) do montante da multa aplicada. Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos relevantes para a decisão são os já supra referidos no relatório, e ainda:
I- Na sentença recorrida deram-se como assentes, no que ora importa, os seguintes factos:
…
10. Nos autos que correram os seus termos sob o n. º …/08.T.., junto do ..º Juízo Cível de Lisboa (.. secção) foi proferida a decisão cujo teor consta de fls. .. a .., o qual se dá por integralmente reproduzido – alínea J) dos Factos assentes;
11. Em datas que a autora não sabe precisar, a autora comprou os sete cheques-prenda cujas cópias se mostram juntas aos autos de fls. 15 a 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com o valor total de 325 € – resposta ao ponto 1.º da base instrutória;
12. A autora ofereceu os cheques-prenda referidos em 11. a um amigo, J – resposta ao ponto 2. º da base instrutória;
13. Em meados de Dezembro de 2007 o mencionado J tentou efectuar compras numa das lojas do C... e realizar o respectivo pagamento com os cheques-prenda referidos em 11. – resposta ao ponto 3. º da base instrutória;
14. Tal não lhe foi permitido em virtude de os mesmos se encontrarem sujeitos a um prazo de validade – resposta ao ponto 4. º da base instrutória;
15. O qual terminava, para uns a 8 de Setembro de 2007 e, para outros, a 22 de Setembro de 2007 – resposta ao ponto 5. º da base instrutória;
16. J e a autora desconheciam a existência de qualquer imposição relativa a um prazo de validade – resposta ao ponto 6. º da base instrutória;
17. A autora nunca aceitou qualquer prazo de validade indicado num carimbo aposto nos versos dos cheques-prenda – resposta ao ponto 7. º da base instrutória; …
II- No P. n º …/0.., que correu junto do ... º Juízo Cível de Lisboa (3ª secção) e a que se alude no ponto 10 supra, no qual era A. J, e R. a ora apelante, esta contestou, por excepção, alegando, para além do mais que, nos exactos termos em que o A. propõe e faz seguir a presente acção, é manifesto que é parte ilegítima, pois não celebrou com a R. qualquer contrato, limitando-se a receber em oferta os cheques-prenda que outrem comprou à R.; “se existe alguém que tem legitimidade para fazer prosseguir a presente acção contra a R. nos termos em que a propõe o Autor, esse alguém é o terceiro ou são os terceiros não identificados que celebraram com a Ré o(s) contrato(s) de compra e venda dos mencionados cheques-prenda que foram oferecidos ao A.”; qualquer pessoa que se dirija à R para proceder à compra dos mesmos é expressamente advertida que têm a validade de seis meses a contar da data de aquisição, devendo proceder à sua troca por bens ou serviços nesse prazo, o que é uma condição essencial para a comercialização pela R. dos cheques-oferta; não tendo o A. comprado os cheques em apreço e tendo-os recebido graciosamente de terceiros, carece de legitimidade para demandar a R., quer tendo por causa de pedir o contrato de compra e venda, quer um qualquer eventual enriquecimento sem causa; e o mesmo se diga quanto à ilegitimidade para o A. arguir a pretensa nulidade de qualquer cláusula do regulamento dos cheques-prenda - fls. 85 e 86 destes autos.
III- No que ora importa, é o seguinte o teor da decisão recorrida: “… Finalmente, impõe-se apreciar o pedido de condenação da ré como litigante de má fé formulado pela autora a fls. 82-87 dos autos. … Analisada a conduta da ré nos autos, constata-se que a mesma veio, na sua contestação, invocar a ilegitimidade ativa da autora, o que justificou com o facto de a autora ter oferecido os cheques oferta a terceiro, não tendo a mesma interesse em agir, nem legitimidade. Por outro lado, resulta dos autos que em acção que correu os seus termos junto do ...º Juízo Cível de Lisboa, proposta por J , precisamente a pessoa a quem a autora havia cedido gratuitamente os cheques dos autos, a ré invocou igualmente em sede de contestação a ilegitimidade ativa deste, afirmando expressamente que se alguém teria legitimidade tal pessoa seria a ora autora, por ter sido quem adquiriu os cheques em causa. Ora, não pode deixar de constatar-se que as posições assumidas pela ré nos dois processos judiciais são contraditórias, revelando efetivamente uma litigância contrária às exigências de correção e lealdade com que as partes devem proceder processualmente. A proceder a conduta da ré, ninguém poderia colocar em crise o contrato dos autos, pois ninguém deteria legitimidade para tal. Ora tinha a ré obrigação de saber, como saberia, que um dos dois era, efetivamente parte legítima numa ação como a dos autos, sendo que ao invocar a ilegitimidade de J..e... nos autos propostos junto do .. º Juízo Cível, afirmando que a aqui autora é que seria legítima, não deveria ter invocado nestes autos, precisamente o oposto, procurando assim, claramente, eximir-se às duas ações contra si propostas. Com o seu comportamento, deduziu assim a ré pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, tendo feito um uso dos meios processuais manifestamente reprovável, pretendendo entorpecer a acção da justiça. Mostram-se, pois, preenchidas pela ré as alíneas a) e d) do n. º 2 do artigo 456. º do Código de Processo Civil, devendo a mesma ser condenada como litigante de má fé. Deve, pois, a autora ser condenada no pagamento de uma multa e em indemnização à autora, já que esta a peticionou (cfr. artigo 456. º, n. º 1, do Código de Processo Civil). No que se refere à multa, compreende-se o valor da mesma entre os montantes correspondentes a 2 (duas) UC’s e a 100 (cem) UC’s, de acordo com o que dispõe o artigo 27. º, n. º 3, do Regulamento das Custas Processuais. Em face da conduta dolosa da ré ao invocar os factos acima referidos, decido condená-la em multa no montante de 10 (dez) UC’s. …”. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. A primeira questão que importa apreciar é a de saber se a recorrente / R. litigou de má fé, como entendeu o tribunal recorrido e a apelada, ou não, como sustenta a apelante.
A litigância de má fé traduz-se na violação do dever de boa fé que o art. 266ºA do CPC impõe às partes.
Dispõe este artigo que “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultante do preceituado no artigo anterior”, ou seja “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litigo” (art. 266º, nº 1 do CPC.
Assim, dispõe o art. 456º, n.º 2 do CPC que “diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Ao contrário do que sucedia antes da reforma processual civil introduzida pelo DL. 329-A/95 de 12.12, é, actualmente, sancionável, a título de má fé, não apenas a lide dolosa, mas também aquela em que são violadas, com culpa grave ou erro grosseiro, as regras de conduta processual conformes com a boa fé.
Refere-se no relatório do referido DL. 329-A/95 de 12.12 que “como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever da boa fé, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos ... ”. Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa In Agendo”, pág. 26, escreve que “no Direito processual – 1995/96 – valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art. 456º/2,d) – apenas relevaria o dolo.... A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesto aos olhos de qualquer um” - referência ao Ac. do STJ de 6.12.01, P. 01A3692, relatado pelo Cons. Afonso de Melo, in www.dgsi.pt. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 62 e 63, escreve que “a infracção do dever do honeste procedere pode resultar de uma má fé subjectiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis”.
Como se escreveu no Ac. da RP de 6.10.05, P. 0534447, rel. Desemb. Fernando Baptista, in www. dgsi.pt, “esta concepção explícita agora de litigância de má fé não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução de oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem conduto a lograr convencer”.
Vem-se entendendo, na jurisprudência, que a conclusão da litigância de má fé é casuística, dependendo das circunstâncias do caso concreto, devendo o tribunal ser prudente na sua apreciação, só devendo condenar a parte, como litigante de má fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Feitas estas considerações preliminares, atentemos na bondade do recurso.
Sustenta a apelante que o Tribunal recorrido errou ao condená-la como litigante de má-fé por não resultar qualquer contradição entre a posição que defendeu no processo que correu termos no 5º Juízo Cível e a que tomou nos presentes autos em sede de contestações, tendo o tribunal recorrido partido de pressupostos errados.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos não assistir razão à apelante.
Desde logo se dirá que resulta claro do texto da decisão recorrida que, quando o tribunal recorrido refere que na acção que correu os seus termos junto do 5. º Juízo Cível de Lisboa, a R., ao invocar em sede de contestação a ilegitimidade activa do então A., J, afirmou expressamente que se alguém tinha legitimidade tal pessoa seria “a ora autora”, não pretendeu significar que a R., naquela contestação, fez referência expressa à A. G, mas tão somente que lhe fez referência por ter sido ela quem adquiriu os cheques em causa, como resulta dos próprios dizeres da sentença.
Não assentou, pois, o tribunal recorrido a sua decisão em pressupostos errados.
E a conduta da R. na referida acção que correu termos no 5º Juízo Cível é ou não contraditória com a assumida nos presentes autos, em termos de evidenciar litigância de má-fé, por contrária ao princípio da boa fé que deve nortear a sua actuação processual ?
Afigura-se-nos que sim.
A referida acção foi intentada pelo mencionado J , que a sustentou na titularidade de cheques-prenda emitidos pela R. e que lhe tinham sido oferecidos, sem referir a identidade do ofertante, sendo a causa de pedir idêntica, apenas nada referindo quanto à compra dos mencionados cheques-prenda.
E os pedidos nessa acção formulados são exactamente os mesmos que foram formulados na presente acção.
Com base nos factos alegados na petição, e exactamente porque não tinha sido o A. J a comprar os cheques-prenda em questão, a R. sustentou a ilegitimidade daquele, por não ter celebrado qualquer contrato com a R., e por os ter obtido graciosamente.
E referiu que “se existe alguém que tem legitimidade para fazer prosseguir a presente acção contra a R. nos termos em que a propõe o Autor[2], esse alguém é o terceiro ou são os terceiros não identificados que celebraram com a Ré o(s) contrato(s) de compra e venda dos mencionados cheques-prenda que foram oferecidos ao Autor” (sublinhados nossos).
Acrescentando “é que, como se compreende, qualquer pessoa que se dirija à Ré para proceder à compra de cheques-prenda é expressamente advertida que os mesmos têm uma validade de 6 (seis) meses a contar da data da sua aquisição, devendo proceder à sua troca por bens ou serviços nesse prazo, o que é uma condição essencial para a comercialização pela Ré de cheques-ofertas”.
E como bem sabe a R., pelo próprio nome que deu aos cheques em causa, e pela forma como se lhes refere (cheque-oferta), os mesmos destinam-se, naturalmente, a ser oferecidos, razão pela qual no seu “Regulamento Cheques-prenda” faz referência à “aquisição” dos cheques e ao “portador” dos mesmos (cfr. fls. 23).
Ao deduzir a excepção de ilegitimidade da forma como o fez, bem sabia a R. que era o J que detinha os cheques em causa [3] - o portador -, mas entendeu que, ainda assim, era ao terceiro que os tinha adquirido que assistia legitimidadepara peticionar o que aquele tinha peticionado.
E repare-se que, ao contrário do que alegou em sede de resposta à peticionada condenação como litigante de má fé e, agora, alega em sede de recurso, não o fez em termos hipotéticos, condicionais ou de raciocínio.
Isto é, não disse que se alguémtivesse esse direito, esse alguém seria a pessoa que havia adquirido os cheques-oferta da R., mas “se existe alguémque tem legitimidade para fazer prosseguir a presente acção contra a R. nos termos em que a propõe o Autor, esse alguém é o terceiro ou são os terceiros não identificados que celebraram com a Ré o(s) contrato(s) de compra e venda dos mencionados cheques-prenda”.
Ou seja, o que a R. alegou foi que quem tinha legitimidade para propor uma acção com aquela causa de pedir e pedidos, não é o portador /detentor / possuidor dos cheques-prenda, mas quem adquiriu os mesmos, ou seja, quem contratou com a R.
E no despacho proferido naquela acção também assim se entendeu, ao escrever-se que “… os termos em que o Autor propõe e faz seguir a presente acção não são no pressuposto de que teria ele próprio contratado com a sociedade Ré; mas a invocação da nulidade da cláusula visada, a pretendida redução do negócio jurídico (…), a requerida devolução da quantia (€325,00), ainda que a título de enriquecimento sem causa, e a invocação do regime das cláusulas contratuais gerais (…), assegurando-se aos respectivos compradores que a utilização dos mesmos não está sujeita a qualquer prazo, são pretensões que pressuporiam uma contratação directa entre Autor e Ré, aquele como comprador dos cheques-prenda, esta como sua vendedora. Não foi o que, confessadamente, sucedeu no caso em apreço, em que o Autor surge como alguém a quem foi oferecido gratuitamente o produto, para ulterior utilização. … No caso dos autos, e partindo da versão do Autor, a Ré não enriqueceu à sua custa, mas sim, eventualmente, à custa da pessoa ou das pessoas (não identificadas) que consigo directamente contratou(aram). Pessoa/pessoas, essa(s) sim, com legitimidade para integrar o lado activo da presente instância, com a necessária preterição do Autor (parte ilegítima). …” (sublinhados nossos) - cfr. fls. 40 e ss.
Nessa sequência [4], intentou a A. a presente acção, em tudo idêntica à intentada por J, apenas tendo sido acrescentados os factos relativamente à identificação da A. como a efectiva compradora dos cheques-prenda oferecidos àquele J.
E ao vir, na presente acção, deduzir, em sede de contestação, a excepção de ilegitimidade da A. nos termos em que o fez, entra, necessariamente, em contradição com a sua postura anterior, visando eximir-se à sua eventual responsabilidade, sabendo que deduzia oposição cuja falta de fundamento não ignorava, atento não só o que tinha alegado na anterior acção, mas também aquilo que o tribunal tinha decidido e respectivos fundamentos, bem sabendo que a sua actuação determinava o aumento de peças processuais [5] e menor celeridade na resolução do litígio.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido, ao concluir pela sua litigância de má-fé, improcedendo, nesta parte, a apelação.
2. Suscita, ainda, a apelante a sua absolvição da condenação de que foi alvo, por manifesta violação do disposto no art. 458º do CPC.
Estabelece este artigo que “quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa”.
Sucede, porém, que a questão ora suscitada é questão nova não submetida à apreciação do tribunal recorrido, como devia e podia ter sido, uma vez que a R. teve oportunidade de se pronunciar sobre a sua requerida condenação como litigante de má fé.
Os recursos visam a reapreciação de decisões proferidas pelos tribunais recorridos (art. 676º, n.º 1 e 685º-A, n.º 1 do CPC), sendo o seu regime o da reponderação ou revisão, tal significando que o tribunal ad quem não pode pronunciar-se sobre matéria não submetida à apreciação do tribunal a quo, não se podendo, com o recurso, obter decisão sobre questão nova.
Questões novas são aquelas que não foram apreciadas pelo tribunal recorrido por aí não terem sido suscitadas, nem serem de conhecimento oficioso.
Escreveu-se no sumário do Ac. do STJ de 4.10.07, P. 07P2433, in www.dgsi.pt, que “… 2- Como é entendimento uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não para obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições. São remédios jurídicos que se destinam sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso.... ”.
Assim sendo, esta questão apenas suscitada em sede de recurso [6] não pode por este tribunal ser apreciada [7], improcedendo, também nesta parte, a apelação.
3. Por último insurge-se a apelante contra o montante da multa aplicada (a correspondente a 10 UCs), por ser manifestamente exagerada, não merecendo, a alegação da referida excepção, uma tal reprovação, tanto mais que foi a própria Ré que, desde logo, trouxe ao conhecimento dos autos o teor do saneador sentença proferido nos autos do 5º Juízo e do qual consta o teor da excepção aí aduzida na sua contestação.
A lei não fixa os critérios para a quantificação da multa a aplicar, deixando ao critério do tribunal a sua fixação, dentro do mínimo e do máximo fixado no Regulamento das Custas Processuais e a que o tribunal recorrido fez referência.
O Prof. Alberto dos Reis, in CPC Anotado, Vol. II, pág. 268 e 269, escrevia, mantendo manifesta pertinência no que ora importa, que “ … é de toda a evidência que, não estando o juiz adstrito a quaisquer critérios legais, nem devendo proceder caprichosa e arbitrariamente, há-de usar do seu prudente arbítrio na fixação do montante da multa. Goza de arbítrio, porque a lei o não submete a qualquer regra pré-determinada; o seu arbítrio tem de ser prudente, porque é inadmissível que fixe a multa a esmo ou sem atenção às circunstâncias. E o § 1º do art. 466º corrobora esta doutrina, pois manda fixar a indemnização com prudente arbítrio. A lei marca um mínimo e um máximo porquê ? Porque parte do pressuposto de que a má fé pode revestir graus diferentes, pode ser mais ou menos intensa e grave. Este deve ser, portanto, o elemento fundamental a que o tribunal há-de atender na graduação da multa. … A multa tem o carácter de pena; a má fé no litígio aparece, aos olhos da lei, como procedimento imoral que carece de sanção. A multa visa a desempenhar a função de qualquer pena: punir o delito cometido (função repressiva), evitar que o mesmo ou outros o pratiquem de futuro (função preventiva). Dentro deste conceito o juiz há-de fixar a multa por maneira que ela desempenhe as duas funções que acabámos de assinalar; e para que a desempenhe, os factores a que tem naturalmente de atender são o grau de má fé, revelado através dos actos concretos, e a situação económica do litigante doloso. Claro que a eficácia repressiva e preventiva das penas pecuniárias está em equação com a capacidade económica e financeira do sujeito passivo” [8].
A jurisprudência vem seguindo na esteira daquele entendimento, considerando que, na fixação do montante da multa, se deve atender à maior ou menor gravidade do dolo ou da negligência grave, à situação económica do litigante, à gravidade das consequências da conduta, sem esquecer os fins de prevenção especial e geral [9].
Ponderado o que se deixa dito, e regressando ao caso em apreço, o montante da multa fixado pelo tribunal recorrido, dentro da moldura legal constante do art. 27º do Regulamento das Custas Processuais, afigura-se-nos proporcional ao desvalor do comportamento da apelante, tendo em conta, nomeadamente, a inequívoca intenção de protelar a resolução do litígio e evitar o resultado que veio a ser declarado.
Improcede a apelação, também nesta parte, o que determina a improcedência total da mesma. DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 2013.06.11
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(Cristina Coelho)
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(Roque Nogueira)
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(Tomé Gomes) [1] Conforme consta do relatório da sentença – fls. 100. [2] Ou seja, pedindo se declare a nulidade de determinada cláusula do Regulamento, eliminando-se aquela deste, a redução do negócio celebrado – de compra e venda dos referidos cheques – ou a restituição da quantia entregue para a sua aquisição. [3] Os da referida acção e que, inquestionavelmente, a R. identificou como sendo os da presente acção. [4] Atente-se que o referido despacho está datado de 2008.07.09, tendo a presente acção, subscrita pela mesma mandatária, dado entrada em juízo em 2008.07.22. [5] Atente-se que nos processos que seguem a forma sumária, como é o caso, a resposta à contestação é restrita – art. 785º do CPC. [6] E que não é de conhecimento oficioso. [7] Não se podendo deixar de referir que, atento o teor da procuração junta aos autos (fls. 37), não se alcança qual seria o representante responsável. [8] No mesmo sentido se pronunciava Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 360. [9] Por todos ver o Ac. da RL de 2.10.2007, P. 7584/07-7, rel. Desemb. Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt.