PROCURAÇÃO
MANDATO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
ACÇÃO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Sumário

A procuração é formalmente um negócio jurídico unilateral através do qual o “dominus” os aqui AA.) outorgam ao procurador (o aqui Réu), poderes de representação. Nessa sequência, “os actos praticados pelo procurador no exercício desses poderes produzem efeitos jurídicos directamente na esfera jurídica do “dominus” – Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, reimpressão, 2012, págs. 52/53.
Podendo ser múltiplas as relações subjacentes à procuração, no presente caso esta é constituída pelo mandato, figura que se encontra regulada nos artigos 1157.º e seguintes do Código Civil. Este mandato conferido ao Réu pelos AA. é um mandato com representação uma vez que na procuração emitida são expressamente concedidos poderes ao procurador para praticar diversos actos, entre os quais se encontram actos jurídicos, cujos efeitos se repercutem directamente na esfera jurídica dos representados (os ora AA.).

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
J. T… e Z. T… intentam acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra L. T... e R. T…, pedindo a condenação destes a pagarem-lhes a importância de € 71.525,06 acrescida de juros, à taxa legal, desde 24-08-2006 e 29-11-2006, até integral pagamento.
Para o efeito alegaram que, por procuração emitida em 11 de Janeiro de 2005 conferiram ao Réu L… os poderes necessários para reger e gerir os seus bens, nomeadamente depositar, levantar capitais em bancos, para comprar ou vender quaisquer bens ou direitos móveis ou imóveis, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extrajudiciais.
No uso da referida procuração, os RR. venderam a P. M… e este comprou-lhes, por escritura de 24 de Agosto de 20…, o prédio urbano composto por casa de rés do chão, destinada a habitação, sito na Rua , 79, freguesia da …, concelho da R. G…, pelo preço de € 136.800,00, que receberam.
O referido prédio estava descrito na CRP-RG com o n.º …/Matriz a favor do Réu L. A… e do A. J. M…, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela inscrição G-UM e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….
Este negócio feito pelo Réu L. A…, nunca foi acordado com o A., porém aceita-o como consta da referida escritura.
Sendo o A. comproprietário em comum e partes iguais com o Réu L. A…, a sua parte no preço daquela venda é de metade de € 136.800,00 ou seja de € 68.400,00.
No uso da mesma procuração, o Réu recebeu na acção sumária 190/…, em 29 de Novembro de 20…, metade da importância a que o A. teve direito na partilha de um bem comum, direito esse no montante de € 6.250,12 ou seja da importância de € 3.125,06.
Os RR. vivem em economia comum, pelo que devem ser condenados a entregarem aos AA. as referidas importâncias de € 68.400,00 e € 3.125,06, no total de € 71.525,06 acrescida dos juros de mora legais, calculados desde aquelas datas e até ao efectivo pagamento.
Citados, os RR. contestaram, opondo, em síntese, a ilegitimidade passiva da Ré R. T…, que nada teve que ver com os negócios aqui em causa, nem deles beneficiou. A incompetência territorial do tribunal por o prédio que é objecto da contenda estar situado na área da comarca de RG. A existência de erro na forma de processo, que consideram ser fundamento de incompetência relativa, defendendo que no caso é aplicável o processo de inventário.
Além disso, impugnaram os factos alegados, relatando os termos em que, com o acordo dos AA., foi efectuada a compra e venda e foi aplicado o dinheiro recebido no processo judicial. Em reconvenção, pediram que os AA. fossem condenados a pagar-lhes a quantia de € 38.247,84 correspondente a metade do valor estimado das despesas que os reconvintes suportaram com os cuidados prestados aos pais do A. e do Réu, incluindo a despesa de funeral, e ainda e com o imóvel. Pediram, ainda a condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Proferido despacho saneador, ali foi entendido haver erro na forma do processo, por ao caso caber acção de prestação de contas, pelo que, não sendo o processado aproveitável para esse fim, foi declarada a sua nulidade e os RR. foram absolvidos da instância.
Inconformados, os AA. apelaram do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formulam as seguintes conclusões:
1. Entendeu a decisão recorrida que a acção em causa "não é mais do que a prestação de contas por parte do mandatário" e por conseguinte o processo a seguir seria o processo especial de prestação de contas e não a acção declarativa de condenação dos réus. Para o efeito;
2. Defende a sentença recorrida que os autores terão «mandatado o réu L.T. no sentido deste executar várias operações sobre o seu património». Porém;
3. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida confunde procuração e mandato. Na verdade;
4. A procuração constitui um acto unilateral mediante o qual se concedem poderes de representação voluntária (artigo 262° do CC) sendo diversa do mandato, contrato a partir do qual uma das partes (o mandatário) se obriga a praticar actos jurídicos por conta de outrém (o mandante) - artigo 1157° do CC.
5. A procuração ao invés do mandato, é um negócio formal, mediante o qual se concedem poderes de representação voluntária (artigo 262º, n° 2 e 875° do CC), pelo que a sua interpretação está sujeita às regras definidas pelo artigo 238º do CC.
6. Na verdade, não é seguramente por constar da procuração que foram conferidos ao réu «os poderes necessários para reger e gerir os seus bens» que se pode concluir, sem mais (nem os AA. alegam) que tenham acordado que este se obrigava a praticar actos de gestão e administração do património dos autores, o que (aí sim) configurava um contrato de mandato e obrigava o Réu a prestar contas (Cfr. neste preciso sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.06.2011, proferido 1013/01. TPDL.L1, na esteira de jurisprudência uniforme de que se cita, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.09.2009). Ora;
7. No caso «sub judice» nem o teor da procuração permite concluir que os poderes tivessem sido concedidos como forma de permitir a execução de um mandato, nem da mesma resulta a obrigação de prestar contas, nem tão pouco tais factos foram alegados pelos AA. Pelo exposto;
8. A decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação dos artigos 262º e 1157º e seguintes do CC, ao considerar que em causa nos autos estava a prestação de contas resultante da execução de um contrato de mandato e tal levou a considerar, também erradamente, que os presentes autos deviam seguir a forma de processo especial de prestação de contas, com a consequente declaração de nulidade da petição inicial e, decisão, de absolvição dos RR. da instância.
Concluem, assim, pela revogação da sentença recorrida e pela sua substituição por outra que julgue válida a petição inicial e mais actos praticados pelas partes, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. FACTOS PROVADOS
1. No dia 11 de Janeiro de 20, os AA. compareceram no Consulado de Portugal em P…, …, tendo emitido uma procuração a favor do Réu L. T…, com os seguintes termos:
“-- No dia onze de Janeiro de dois mil e …, nesta Chancelaria do Consulado de Portugal em…, perante mim, R. C…, Cônsul, compareceram como outorgantes:***
--J.T…, natural da freguesia de …., concelho de RG, e sua mulher, Z. T…, natural da freguesia de sao …., concelho de PD, ambos residentes em…, …, casados no regime de Comunhão de Adquiridos, segundo declararam.***
--- Verifiquei a identidade dos outorgantes pela exibição de, documentos bastantes e pela sua inscrição consular. ***
E por eles foi dito que constituem seu bastante procurador o Senhor L. T…, casado, natural da freguesia de , concelho de RG e residente em Estrada …., Açores, a quem conferem os poderes necessários para, com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens deles, outorgantes c, outrossim, para dar ou tomar de arrendamento quaisquer prédios de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas, passar e assinar recibos, despedir inquilinos, renovar, prorrogar ou rescindir os respectivos contratos; para receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer aos outorgantes por qualquer via ou titulo, passando recibos e dando quitações; depositar o levantar capitais em Bancos, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito, incluindo na C.G.D., assinando recibos ou cheques; usar ou desistir do direito de preferência que assistam aos outorgantes em qualquer acto ou contrato ; representá-los junto de quaisquer repartições públicas; liquidar impostos ou contribuições, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e as suas correspondentes importâncias; requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los; apresentar relações de bens ou mapas de inquilinos, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares; comprar ou vender quaisquer bens ou direitos móveis ou imóveis, outorgar e assinar as respectivas escrituras e contratos promessa de compra e venda, fazer ou aceitar confissões de dividas, ao juro, condições, obrigações e garantias que entender convenientes ; fazer ou aceitar cessões de créditos e dá-los por notificados naquelas em que eles, representados, sejam interessados; aceitar, sacar e endossar letras representativas de operações bancárias ou de empréstimos de capitais entre particulares; -distratar contratos de mútuo, recebendo os capitais mutuados e deles prestar as correspondentes quitações, podendo autorizar o cancelamento parcial ou total de quaisquer inscrições hipotecárias que hajam sido feitas a favor dos outorgantes; para com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extra judicias, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações, Podendo ainda receber citações e quaisquer necessárias notificações; aceitar doações puras, condicionais ou onerosas, com ou sem encargos; proceder a quaisquer actos de registo predial ou de propriedade automóvel, provisórios ou definitivos, averbamentos e cancelamentos; representá-los em Juízo, usando para o efeito de todos os poderes forenses em Direito permitidos, os quais deverá substabelecer em advogado ou procurador habilitado, requerendo, praticando, outorgando e assinando tudo quanto necessário se torne aos fins mencionados.***
--- Fiz aos outorgantes, em voz alta e na presença de ambos, a leitura e explicação do conteúdo deste instrumento. ***
----- Os Outorgantes:” - seguindo-se as correspondentes assinaturas destes.
2. No uso dessa procuração, no dia 24 de Agosto de 20…, o Réu celebrou um contrato de compra e venda de um imóvel pelo preço de € 136.800,00 - valor esse que recebeu.
3. Esse imóvel encontrava-se inscrito em comum e sem determinação de parte ou direito, em nome do A. e do Réu.
4. Os AA. aceitam a validade desse negócio.
5. No uso dessa mesma procuração, o Réu recebeu a importância de € 3.125,00 correspondente à parte que ao A. cabia na partilha de um bem comum.
6. O Réu não procedeu á entrega aos AA. de quaisquer importâncias resultantes dos actos que praticou ao abrigo da procuração mencionada no anterior Ponto 1 e referidos, respectivamente, nos Pontos 2 e 5.
III. FUNDAMENTAÇÃO
A única questão em discussão nos presentes autos prende-se com a qualificação dos actos praticados pelo Réu ao abrigo da procuração emitida a seu favor pelos AA. e que irá determinar a acção a propor por estes contra os RR. para obtenção de parte do dinheiro recebido por estes últimos ao abrigo dessa mesma procuração.
Sendo indiscutível que os AA. aceitam como válidos os actos praticados pelo Réu ao abrigo da procuração em causa, ou seja, entendem que o Réu não extravasou os limites de representação contidos na procuração conferida, nem impugnam o tipo de negócios efectuados ao abrigo da procuração, resta apenas apurar se o pedido que formulam de pagamento da parte correspondente ao preço recebido pelo Réu marido, ao abrigo daquela procuração e na celebração de tais negócios, deve ou não ser objecto de apreciação no âmbito de um processo comum ou se, como o entendeu o senhor Juiz de 1.ª Instância, no âmbito de uma acção especial de prestação de contas.
A procuração é formalmente um negócio jurídico unilateral através do qual o “dominus” os aqui AA.) outorgam ao procurador (o aqui Réu), poderes de representação. Nessa sequência, “os actos praticados pelo procurador no exercício desses poderes produzem efeitos jurídicos directamente na esfera jurídica do “dominus” – Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, reimpressão, 2012, págs. 52/53.
Podendo ser múltiplas as relações subjacentes à procuração, no presente caso esta é constituída pelo mandato, figura que se encontra regulada nos artigos 1157.º e seguintes do Código Civil. Este mandato conferido ao Réu pelos AA. é um mandato com representação uma vez que na procuração emitida são expressamente concedidos poderes ao procurador para praticar diversos actos, entre os quais se encontram actos jurídicos, cujos efeitos se repercutem directamente na esfera jurídica dos representados (os ora AA.).
Entre as obrigações do mandatário perante o mandante encontra-se a de ter de “prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir” – artigo 1161.º, alínea d) do Código Civil.
E decorre do citado artigo 1161.º, alínea d) a obrigatoriedade de o mandatário prestar contas da sua actuação, dispondo também o já citado artigo 1014.º que essa obrigatoriedade deve ter lugar no âmbito de uma acção específica, no caso, a de prestação de contas. A essa conclusão não obsta o facto de o mandante ser comproprietário em alguns dos bens alienados uma vez que, pelo menos em relação à quota-parte alheia, sempre teriam de ser prestadas as respectivas contas, mais que não fosse, por respeito ao princípio geral da boa fé.
Esse prestar contas, porém, não se traduz directamente no tipo de acção a propor, ou seja, prestar contas não é sinónimo de pedir contas através de uma acção especial de prestação de contas.
No presente caso, os AA. não configuraram a acção proposta, quer em termos de pedido, quer de causa de pedir, como sendo de uma prestação de contas, nem os RR. praticaram actos de administração em relação aos quais fosse necessário exigir a prestação das mesmas. Bem pelo contrário, o que os AA. fizeram foi limitarem-se a pedir a entrega do dinheiro correspondente a metade daquele que foi recebido pelos RR., na venda de um imóvel e o recebimento de tornas de bens, em ambos os casos em situações de compropriedade, ou seja, estamos perante uma acção de dívida e não de averiguação de actos de administração.
Nesta acção comum podem também os RR. deduzir pedido reconvencional, como o fizeram, assim apresentando as despesas tidas com o exercício desse mandato.
Assim sendo, e salvo o devido respeito, não podemos concordar com a posição sustentada pelo Tribunal de 1.ª Instância quando afirma que a prestação dessas contas deve realizar-se no âmbito da acção especial de prestação de contas, prevista pelos artigos 1014.º a 1018.º do Código de Processo Civil.
E se nos parece indiscutível que “sempre que existe administração de bens ou valores alheios, há obrigação de prestar contas por parte do respectivo administrador ou gerente desses bens ou valores, independentemente da fonte dessa administração” (Ac. da Relação de Évora de 24.Abril1997, no BMJ 466/607 e seguindo idêntico entendimento os Acs. do STJ de 11.Janeiro de 2000 e de 24.Fevereiro de 2000), certo é que, no presente caso, e como já acima referimos, não estamos perante actos de administração do património, mas sim, de disposição, concentrados no recebimento, por parte dos RR., de valores correspondentes a dois actos pelos mesmos praticados, na qualidade de mandatário e reportados ao património dos AA.
Assim sendo, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância deve ser objecto de revogação e de substituição por outra que determine o regular prosseguimento dos autos e que no caso se traduzem na apreciação das demais questões que devem ser objecto de análise no despacho saneador.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, julga-se procedente a Apelação, revogando-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância que deve ser substituída por outra que aprecie as demais questões a analisar no âmbito do despacho saneador, prosseguindo os autos os demais termos do processo.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Junho de 2013
Dina Maria Monteiro
Luís Espírito Santo
José Gouveia Barros