I - Na situação visa-se apreciação da validade de um testamento, efectuado a 4 de Março de 2004, no Consulado Geral de Portugal em S. Francisco por pessoa de nacionalidade portuguesa e cujos bens se encontram em Portugal (art.º 77º, nº2 al. a) do CPC).
II - O art.º 65 do C. Civil manda aplicar uma de quatro leis: a do lugar do acto; a lei pessoal no momento da declaração; a lei pessoal no momento da morte e, por último, a lei do reenvio (a lei para que remeta a norma de conflitos da lei local). Qualquer destas leis pode ser aplicada para saber se o testamento é válido.
III - O art. 2204º estipula que as formas comuns do testamento, são o testamento público e o testamento cerrado.
IV - Segundo a lei da nacionalidade, ou seja, a Lei portuguesa o testamento não tem as características do testamento cerrado e não pode ser tido como testamento público válido pois não tem a assinatura de duas testemunhas (arts. 67, nº1 al. a) e 70º, nº 1 al. d) do Código do Notariado).
V. Quanto à lei do reenvio, a lei do Estado da Califórnia, dispõe a secção 6381 do “California Probate Code” que o testamento é valido se observar a forma e particularidades do lugar onde foi elaborado, do lugar dos bens, ou da nacionalidade, domicílio ou residência do testador. A lei da Califórnia, no que respeita a esta matéria, por seu turno, prevê, em regra, dois tipos de testamentos:- os testamentos escritos à máquina ou em computador, caso em que a validade formal depende de conterem a assinatura de duas testemunhas; e os testamentos escritos à mão, assinados pelo testador, únicos que dispensam testemunhas como requisito de validade. Portanto, também nos termos da lei californiana um testamento celebrado em notário necessita sempre da assinatura de duas testemunhas (Secções 6100-6105, 6110-6113, e 6220-6227).
VI. Assim, quer se aplique a lei do lugar do acto, a lei pessoal no momento da declaração; a lei pessoal no momento da morte para as quais remete o art. 65º do C. Civil ou a as leis para as quais remete a norma de conflitos da Califórnia (do reenvio): do lugar onde foi elaborado, do lugar dos bens, ou da nacionalidade, domicílio ou residência do testador.), o que redunda sempre na aplicação ou da lei portuguesa ou da lei da Califórnia, para que o testamento em causa possa ser válido necessita sempre da intervenção de duas testemunhas, o que não aconteceu no caso.
VII- Também quanto ao testamento internacional regulado pela Lei Uniforme Sobre a Forma de um Testamento Internacional, à qual Portugal e os EUA aderiram, é, no caso, indispensável a intervenção de duas testemunhas.
Dado que a questão objecto da causa reveste simplicidade será julgada em singular, nos termos do disposto nos artºs 700 nº 1 g), 701 nº 2 e 705, ex-vi artº 749º na redacção aplicável.
I - Relatório
Nos presentes autos foi proferido o seguinte despacho:
“A fls. 307, veio Manuel alegar que o testamento junto a fls. 281 não produz quaisquer efeitos em Portugal, porquanto a falecida tinha nacionalidade portuguesa, os bens a partilhar encontram-se em Portugal e, como tal, qualquer disposição de última vontade dos falecidos tem de cumprir as formalidades legais da lei portuguesa.
O referido testamento foi outorgado pela inventariada Ana a 4 de Março de 2004, no Consulado Geral de Portugal em S. Francisco, Califórnia. Cumpre apreciar.
O testamento é um acto unilateral, revogável, pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os bens ou parte deles (artigo 2179°, n° 1 do Código Civil). Constitui um negócio jurídico formal, pois a sua validade depende de, formalmente, obedecer às determinações inscritas na lei (artigos 2204° e seguintes e prescrições do Código do Notariado).
O artigo 2204° do Código Civil estipula que as formas comuns do testamento são o testamento público e o testamento cerrado. É público o testamento escrito (manuscrito com grafia de fácil leitura) por notário no seu livro de notas e cerrado o que é escrito e assinado pelo testador, aprovado pelo notário (artigos 2205° e 2206° do Código Civil).
Conforme resulta do disposto nos artigos 55° a 57° do Decreto-Lei n° 71/2009, de 31 de Março (Regulamento Consular), os cônsules titulares de postos de carreira e os encarregados das secções consulares têm competência para a prática de actos notariais relativos a portugueses que se encontrem no estrangeiro ou que devam produzir os seus efeitos em Portugal.
Daqui resulta, assim, que testamento público feito num consulado português é juridicamente válido, pelo que a alegação do interessado Manuel é, necessariamente, improcedente.
Custas do incidente pelo interessado (artigo 446° n°1 e 2 do Código de Processo Civil), que se fixam em 1 UC (artigo 7°, n° 4 e 8 do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela II anexa).
Manuel e Herculano, interessados, vieram interpor Recurso concluindo:
a) Clara violação do artigo 1335.-°, nº 1 do CPC, isto é ao decidir em sede de inventário a situação prejudicial suscitada;
b) Quando deveria ter remetido as partes para os meios comuns, até porque dos autos não resulta factos para poder decidir-se correctamente a questão;
c) Do testamento não consta a menção, de ter sido lavrado em livro próprio, violando a norma do artigo 2205.º, do CCivil;
d) Do testamento não consta a menção, identificação, e, ou assinatura de testemunhas instrumentais, como exigido no artigo 66.º, do C.Notariado;
e) A falta de tal requisito de forma, em particular assinatura das testemunhas implica a nulidade do testamento, cfr. artigo 70º9, n.2 1, alínea d), do C. Notariado, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.
Termos em que deve ser revogada a decisão de que se recorre e em consequência declarar-se nulo, e sem nenhum efeito o testamento junto aos autos, alegadamente outorgado por Ana, fazendo-se assim a devida justiça.
Nos termos das disposições conjugadas dos artºs 684,º nº 3 e 690,º do CPC, na redacção anterior ao Dec-Lei nº 303/207, de 24/VIII, são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se o testamento em análise é formalmente válido.
II – Fundamentação de facto.
Para a decisão da causa relevam a factualidade e ocorrências processuais supra relatadas e ainda que a autora do testamento faleceu em 13/10/2010 em Ione, Califórnia, Estados Unidos da América, com última residência habitual neste local, tendo testamento o seguinte teor:
“CONSULADO GERAL DE PORTUGAL S. FRANCISCO – CALIFORNIA
TESTAMENTO
No dia quatro de Março de dois mil e quatro, nesta Chancelaria do Consulado Geral de Portugal em San Francisco da California, Estados Unidos da America, perante mim Manuela, Vice-cônsul Gerente, compareceu como outorgante Ana, que tambem usa e assina Ana, contribuinte fiscal numero (...), viúva, natural da freguesia de Santo Antonio, concelho de São Roque do Pico, nascida a dezanove de Outubro de mil novecentos e doze, portadora do Bilhete de Identidade numero (...), emitido em treze de Agosto de mil novecentos e setenta pelos Serviços de Identificação de Lisboa e residente em (...) California, Estados Unidos da America
E por ela foi dito que tem herdeiros legitimários e que faz o seu testamento pela forma seguinte: por conta da quota disponível dos seus bens institui sua herdeira LUCÍLIA, sua filha com ela residente, que também usa e assina LUCÍLIA. -------------------------
E que assim termina esta sua disposição de ultima vontade, sendo o primeiro testamento que faz------------------------------------------------
Assim o disse e outorgou e depois de por mim lido este Testamento em voz alta e explicado o seu conteudo e efeitos ao outorgante, esta vai assinar juntamente comigo, Manuela, Vice Consul Gerente: “---------------------------------------------------------------
Seguem-se as assinaturas de Ana e de Manuela e carimbo do consulado.
III – Fundamentação de direito
A escola anglo-saxónica inclui no ramo do Direito Internacional Privado (DIP) o estudo de três questões:
1. a da jurisdição competente (choice of jurisdiction)
2. a da lei competente (choice of law)
3. e a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.(vide A.Ferrer Correia, Lições de Direito Privado I Vol., Almedina 2002, p. 62).
Com efeito, as normas de conflitos de leis (reguladas pelas normas dos arts. 25º a 65º do C. Civil e cada vez mais em instrumentos internacionais) constituem, a par da competência jurisdicional internacional e a do reconhecimento de sentenças estrangeiras, um complexo de normas que visam prover à disciplina das situações da vida internacional
Estas regras provêm à regularização de situações e relações privadas internacionais através da remissão para uma ou mais leis que estão em contacto com essas relações ou situações, a cujas normas materiais é atribuída competência para as disciplinarem.
Nestas normas a operação de qualificação (que é uma operação necessária à aplicação de a qualquer norma jurídica), tem uma especificidade que resulta da sua estrutura peculiar de regra de conflitos de lei no espaço.
Deve dizer-se que a referência que é feita pela regra de conflitos não pode ser uma referência aberta mas antes selectiva, ou seja, uma referência que compreenda apenas as disposições da lei designada que correspondam, pelo seu conteúdo e pela função que desempenham na ordem jurídica a que pertencem, ao conceito-quadro da regra de conflitos que remetem para essa lei.
Neste desígnio se delineia também o critério da correspondência funcional, no que respeita à qualificação plasmado no art. 15º do C. Civil:” A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos.”
Podemos concluir que a qualificação que o Direito Internacional Português prevê é uma qualificação lege frorum, uma qualificação de acordo com a lei do foro mas operada na base de uma caracterização lege causae, uma qualificação feita de acordo com a lei aplicável à causa, das leis potencialmente aplicáveis.
Na situação visa-se apreciação da validade de um testamento, efectuado a 4 de Março de 2004, no Consulado Geral de Portugal em S. Francisco por pessoa de nacionalidade portuguesa e cujos bens se encontram em Portugal (art. 77º, nº2 al. a) do CPC)..
O artigo 65º do C. Civil estatui; “1. As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local.
2. Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada.”
A lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo (artigo 31º, nº 1 do C. Civil).
O mencionado art. 65º manda aplicar uma de quatro leis: a do lugar do acto; a lei pessoal no momento da declaração; a lei pessoal no momento da morte e, por último a lei do reenvio (a lei para que remeta a norma de conflitos da lei local).
Qualquer destas leis pode ser aplicada para saber se o testamento é válido.
A ratio da norma é o princípio do favor negotii, a conservação e preservação dos negócios jurídicos e também o do respeito pela vontade do testador.
Existe uma ressalva no nº 2 deste preceito, a aplicação da lei da nacionalidade do autor da herança no momento da declaração se esta exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, mesmo que o acto seja praticado no estrangeiro.
Está aqui em causa a protecção da correcta formação da vontade do autor da declaração (nesta lógica está o artigo 2223º do C. Civil).
O testamento é um acto unilateral, revogável, pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os bens ou parte deles (art. 2179º nº 1 do C. Civil.
Constitui o testamento um negócio jurídico formal, pois a sua validade depende de, formalmente, obedecer às determinações inscritas na lei (arts. 2204º e segs. e prescrições notariais).
O art. 2204º estipula que as formas comuns do testamento, são o testamento público e o testamento cerrado.
É público o testamento escrito (manuscrito com grafia de fácil leitura) por notário no seu livro de notas (arts. 2205º e 36º nº 1, 38º nº 1do C. do Notariado).
É cerrado o testamento que é escrito e assinado pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo, ou escrito por outra pessoa a rogo do testador e por este assinado, sendo que o testador só pode deixar de assinar o testamento cerrado quando não saiba ou não possa fazê-lo, ficando consignada no instrumento de aprovação a razão por que o não assina (art. 2206º nºs 1 e 2 e art. 106º nº 1 do C. Notaria do Notariado). Acresce que o testamento cerrado deve ser aprovado por notário, nos termos da lei do notariado, sendo que a violação das determinações referidas nos nºs do art. 2206º implica a nulidade do testamento (nº 5 da disposição).
Existe também, fora das formas comuns de testamentos, o testamento internacional.
Este tipo de testamento terá que ser elaborado, para ser válido, conforme as formalidades prescritas nos arts. 2º a 5º da Lei Uniforme Sobre a Forma de um Testamento Internacional (art. 1º desta Lei), introduzida na ordem interna através do Dec-Lei nº 252/75 de 23/5.
Para o que aqui interessa, o testamento deverá ser escrito em qualquer língua, à mão ou por outros meios, não sendo necessário ser o testador a escrevê-lo (art. 3º da Lei). Deverá, porém, o testador declarar na presença de duas testemunhas e de uma pessoa habilitada a tratar de matérias relativas ao testamento internacional que o documento constitui o seu testamento e que conhece as disposições nele contidas (art. 4º da Lei Uniforme). Deverá, igualmente, o testador assinar o testamento na presença das testemunhas e da pessoa habilitada ou, se já o houver previamente assinado, reconhecer a sua assinatura (art. 5º nº 1 da mesma Lei).
As pessoas habilitadas para tratar dos testamentos internacionais são os notários e os agentes consulares portugueses em serviço no estrangeiro, como estabelece o Dec-Lei 177/79 de 7/6, no seu art. 1º.
No caso trata-se de testamento outorgado pela inventariada Ana, a 4 de Março de 2004, no Consulado Geral de Portugal em S. Francisco, Califórnia, perante a Vice-Cônsul, dactilografado e assinado pela outorgante.
Como resulta do art. 55º e ss do Decreto-Lei n.º 71/2009, de 31 de Março (REGULAMENTO CONSULAR) os cônsules-gerais-adjuntos e cônsules-adjuntos por aqueles expressamente autorizados têm competência para a prática de actos notariais relativos a portugueses que se encontrem no estrangeiro ou que devam produzir os seus efeitos em Portugal.
O exercício de funções consulares no âmbito do notariado rege -se, com as necessárias adaptações, pelas disposições do Código do Notariado (art 57º).
A intervenção de testemunhas instrumentárias tem lugar, nomeadamente nos testamentos públicos, instrumentos de aprovação ou de abertura de testamentos cerrados e internacionais e nas escrituras de revogação de testamentos (artigo 67, nº1 al. a) do Código do Notariado).
E o artigo 70º, nº1 al. d) estipula que o acto notarial é nulo, por vício de forma, quando falte, nomeadamente, algum dos seguintes requisitos: assinatura de qualquer intérprete, perito, leitor, abonador ou testemunha.
Segundo a lei da nacionalidade, ou seja, a Lei portuguesa o testamento não tem as características do testamento cerrado e não pode ser tido como testamento público válido pois, como se viu, não tem a assinatura de duas testemunhas.
Quanto à lei do reenvio, a lei do Estado da Califórnia, dispõe a secção 6381do “California Probate Code” que o testamento é valido se observar a forma e particularidades do lugar onde foi elaborado, do lugar dos bens, ou da nacionalidade, domicílio ou residência do testador.
A lei da Califórnia, no que respeita a esta matéria, por seu turno, prevê, em regra, dois tipos de testamentos:- os testamentos escritos à máquina ou em computador, caso em que a validade formal depende de conterem a assinatura de duas testemunhas; e os testamentos escritos à mão, assinados pelo testador, únicos que dispensam testemunhas como requisito de validade.
Portanto, também nos termos da lei californiana um testamento celebrado em notário necessita sempre da assinatura de duas testemunhas (Secções 6100-6105, 6110-6113, e 6220-6227).
Assim, quer se aplique a lei do lugar do acto, a lei pessoal no momento da declaração; a lei pessoal no momento da morte para as quais remete o art. 65º do C. Civil ou a as leis para as quais remete a norma de conflitos da Califórnia (do reenvio): do lugar onde foi elaborado, do lugar dos bens, ou da nacionalidade, domicílio ou residência do testador.), o que redunda sempre na aplicação ou da lei portuguesa ou da lei da Califórnia, para que o testamento em causa possa ser válido necessita sempre da intervenção de duas testemunhas, o que não aconteceu no caso.
Também quanto ao testamento internacional regulado pela Lei Uniforme Sobre a Forma de um Testamento Internacional, à qual Portugal e os EUA aderiram, é, no caso, indispensável a intervenção de duas testemunhas, como se viu.
Assim, temos de concluir pela invalidade do testamento em apreciação.
Pelo exposto, revoga-se o despacho recorrido e, em substituição declara-se o testamento nulo, por vício de forma.
Sem Custas
Lisboa, 3 de Setembro de 2013
Ana Lucinda Cabral