PRÉDIO RÚSTICO
NATUREZA JURÍDICA
LOTEAMENTO URBANO
Sumário

As áreas sobrantes de um prédio rústico relativamente ao qual foi aprovado alvará de licenciamento que não incide sobre a totalidade da superfície do imóvel, e, nomeadamente, não abrange essas áreas, mantêm a sua natureza jurídica inicial, independentemente da denominação que lhes tenha sido dada nos registos da competente Conservatória do Registo Predial, e podem, como tal, ser objecto de dação em cumprimento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1. O ESTADO PORTUGUÊS intentou contra as sociedades “SO, LDA” e “B…, SA” os presentes autos de acção declarativa à data designados como processo comum e forma ordinária que, inicialmente sob o n.º … e depois sob o n.º …, foram tramitados pela ..ª Vara Cível (hoje …secção dessa mesma Vara) do Tribunal da comarca de …, e nos quais foi decretado, em 26/03/2003 (fls 349), que, por ter transitado em julgado em 11/11/1994 a decisão que decretou a falência daquela 1ª Ré, “… a presente acção deve continuar contra a massa falida e os que foram sócios da So…” (sic - sendo que a decisão de fls 351, no mesmo sentido, é inútil face ao trânsito em julgado da que consta de fls 349, ditada para a acta), mais tendo sido operada a transformação, por integração, da 2ª Ré inicial na “C…, SA” (pese embora a fls 1184 tenha sido tão só ordenada a “rectificação” do nome da 2ª Ré).
Após realização da audiência de discussão e julgamento, no final da qual foi dada resposta ao quesito 1º e único do Questionário organizado a fls 174 vº e 175, que não mereceu qualquer reclamação (fls 1281 a 1288), foi proferida a sentença de fls 1290 a 1295, cujo decreto judicial tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, e ao abrigo das citadas disposições legais, julgo a presente acção procedente, por provada, e consequentemente,
Declaro a nulidade do contrato de dação em cumprimento outorgado em 10/02/89 no …º Cartório Notarial … no que concerne às verbas nº 42, 47 e 57 do documento complementar da escritura;
Comunique este facto ao referido Cartório para averbamento após trânsito.
Ordeno o cancelamento dos registos de aquisição a favor da 2ª R.
Comunique à C.R.Predial de … após trânsito.
Custas pelas RR. ...” (sic - fls 1295).
Inconformada com essa decisão, a Ré dela recorreu (fls 1297), rematando as suas alegações com o pedido de que seja “…revogada a douta sentença recorrida, e, em consequência, ser a presente acção … julgada improcedente, com as legais consequências…” (sic - fls 1319, mas corrigindo-se o evidente lapso de escrita), e formulando, para tanto, as seguintes 25 conclusões:
“a) Foi dado como provado na douta sentença do Tribunal a quo (ponto n.º 9 da matéria dada como assente, a fls. 1293) que «as verbas 42, 47 e 57 referidas no ponto 1 (A)) não constituem lotes autorizados pela aprovação de loteamentos ou em reajustamentos posteriores efectuados pela Câmara Municipal de A…(1º)».
b) De tal facto não resulta, nem se pode dar como provada, a obrigatoriedade de sujeição de tais terrenos a qualquer a alvará de loteamento, condicionante da sua transmissão, ao invés do decidido na douta sentença recorrida. Com efeito,
c) As referidas verbas 42, 47 e 57 têm a seguinte composição, a qual se mostra confessada nos autos pelas partes, vide escritura de dação outorgada em 10.02.89 junta como Doc. 1, junto a fls. 22 a 79 dos autos:
- Verba 42: - fls 49- da identificada escritura, descrita como: «Parcela de terreno com a área de vinte e cinco mil setecentos e noventa e oito metros quadrados (…) e «constitui a área sobrante da descrição predial sob a ficha …, fls 389 e ss»;
- Verba 47: - fls 50 -: «Parcela de terreno com a área de vinte e cinco mil cento e trinta e oito metros quadrados“ a qual constituí o que resta da citada descrição predial sob a ficha nº …, fls 386 e ss;
- Verba 57: - fls 53- descrita como: «Parcela de terreno com a área de noventa e oito mil metros quadrados, não correspondendo à integralidade física do prédio»;
d) No tocante às verbas 42 e 47, pela escritura de dação objecto dos presentes autos foi transmitida, em 1989, toda sua realidade física não existindo pois qualquer acto de fraccionamento.
e) E, no tocante à verba n.º 57, a verdade é que pela falta de comprovação do seu destino a fins urbanísticos, atenta a área transmitida, sempre poderia como as demais serem transmitidas como terrenos de área superior à unidade de cultura, definida pela Portaria 202/70, de 21 de Abril, para o distrito de …, única condicionante à sua transmissão.
f) A unidade de cultura, tal como estatuído na supra identificada Portaria, dispõe para os terrenos ao sul do Tejo, consoante a sua natureza, para terrenos de regadio 2,50 ha no caso de arvenses, e 0,50 ha hortícolas e terrenos de sequeiro 7,50 ha.
g) Sempre se diga que a ambígua identificação na escritura de «lotes de terreno» em vez de «parcelas rústicas», configurará uma irregularidade que determinará quanto muito a correcção do registo de acordo com a realidade transmitida em ordem a figurar no mesmo a sua inequívoca natureza.
h) Da factualidade constante dos autos resulta que os prédios em questão não foram objecto de qualquer divisão ou fraccionamento, directa ou indirectamente, em resultado e em consequência da identificada escritura e ou de comprovado aproveitamento para fins de construção.
i) Assim tal acto não configura qualquer operação de loteamento ex vi art.º 2º do DL 400/84, e consequentemente não é subsumível ao regime do art.º 57.º o acto notarial de transmissão, pelo que a inexistência de identificação de Alvará em vigor relativamente aos mesmos é inexigível. Com efeito,
j) Estatui o art.º 1º do DL nº 289/73 que para que haja loteamento urbano é necessária a verificação cumulativa de requisitos cumulativos de (i) realização de uma operação urbanística, (ii) divisão de um ou vários prédios e (iii) os lotes devem destinar-se, imediata ou subsequentemente, à construção.
l) Ora, não está provado nos autos que as indicadas parcelas de terreno, verbas nºs 42, 47, e 57, resultem de qualquer divisão ou fraccionamento, em consequência da referida dação em pagamento, ou que por sua vez a sua utilização ou finalidade fosse para fins urbanísticos.
m) Outrossim, está provado pelo teor da sua descrição predial que as transmissões das indicadas verbas nº 42, 47 e 57, que não implicam qualquer divisão ou fraccionamento, tendo sido transmissões in totum do prédio na sua realidade física integral, e a sua área é superior à unidade mínima de cultura fixada pela Portaria nº 202/70, de 21 de Abril, ou seja acima de 7,50 ha.
n) Assim, da resposta dada ao quesito 1 da base instrutória, de que as mesmas não estão incluídas no Alvará 1/77 ou da sua reformulação de 1984, não pode inferir-se, como faz a douta sentença a quo, de qualquer submissão obrigatória a prévio Alvará de Loteamento.
o) Como vem alegado, a legislação do loteamento urbano, continuou a coexistir com o regime do art.º 1377º do Código Civil, que permite tais transmissões desde que respeitadas as unidade mínimas de cultura, como é o caso.
p) Sem conceder ou transigir, a verdade é que a Ré é adquirente a título oneroso e de boa fé, constando o registo de aquisição a seu favor pela AP ….
q) Ora, o registo da presente acção consta da Ap. .., tendo a acção sido instaurada em 2 de Novembro de 1993, pelo que presente situação é subsumível ao regime do art.º 291º do Código Civil, que consigna que a declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, não prejudica os direitos de terceiro, se o registo de aquisição for anterior ao da acção e não tendo sido esta, como não foi, instaurada e ou registada nos 3 anos subsequentes à conclusão de negócio.
r) Por esta razão, também a douta sentença recorrida, ao decidir pela invalidade do negócio e cancelamento dos registos de aquisição a favor da Ré recorrente, enferma de nulidade por, sempre com o devido respeito, enfermar de violação de direito, nos termos do mencionado art.º 291º do Código Civil.
s) Sem conceder, no entendimento que tais parcelas se integrariam na reformulação do Alvará de Loteamento nº 1, a verdade é que não se verificam quaisquer vícios determinantes de nulidade do acto de transmissão.
t) Na elaboração e na reformulação do plano de loteamento em causa nos presentes autos não foi solicitado o parecer da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização.
u) Contudo, qualquer dessas duas operações (elaboração e reformulação), no caso aqui em exame, estava dispensada desse parecer prévio.
v) Admitindo – sem, em todo o caso, conceder – não ser assim, a alteração do quadro legal disciplinador da figura da tutela administrativa, sempre dispensaria esse parecer, porquanto ter-se-ia operado um situação de inconstitucionalidade superveniente.
x) Mas – novamente admitindo, sem, em todo o caso, conceder – que essas formalidades administrativas tinham de ser realizadas a verdade é que a sua não efectivação não gerariam invalidades da ordem da nulidade, mas, quando muito, apenas irregularidades.
z) E estas irregularidades de ordem administrativa, como que se perspective o problema, nunca se repercutiriam na esfera privada dos intervenientes, por esta última ser tutelada pelo direito civil.
aa) De qualquer modo, dado o tempo entretanto decorrido – mais de vinte anos – nada impede, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º do 134.º do Código do Procedimento Administrativo, a aplicação de efeitos jurídicos aos actos praticados sem a apresentação do parecer da DGSU;
bb) Ao decidir em contrário a douta sentença recorrida violou os seguintes preceitos:
*Art.º 1.º do Decreto-lei n.º 560/71 de 17 de Dezembro, as alíneas a), b) e c) do art.º 2 desse mesmo Decreto-lei n.º 560/71 e, ainda, o art.º 3.º do Decreto-lei n.º 560/71;
*Art.º 133.º e alínea c) do art.º 134, ambos do Código de Procedimento Administrativo;
*os princípios de direito civis relativos às irregularidades dos negócios jurídicos;
*Art.º 243.º da Constituição da República se entendido esse preceito no sentido de que o poder de tutela impunha que a DGSU tivesse de intervir nos casos indicados no n.º 1 do art.º 3.º, por referência ao art.º 1.º e às alíneas a), b, e c) do art.º 2.º, todos estes preceitos pertencentes ao Decreto-lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro.” (sic - fls 1314 a 1318, constituindo as alegações, no seu todo, fls 1302 a 1319).
O Autor contra-alegou (fls 1324 a 1336), concluindo essa sua peça processual nos seguintes termos:
“1. Foi instaurada ação de condenação, com processo ordinário, contra S…ld.ª, entretanto falida, e B…, atual C…, SA, pedindo a nulidade de um contrato de dação em cumprimento entre a 1.ª e a 2.ª ré alegando, em síntese que, por escritura pública celebrada no … Cartório Notarial …, em 10/2/89, a 1.ª ré transmitiu à 2.ª vários lotes, parcelas de terreno e o prédio misto identificado nas 164 verbas do documento complementar da escritura, do concelho de A…, deles fazendo parte as verbas n.º 42, 47 e 57.
2. Sucede que as desanexações que constituem as parcelas de terreno correspondente às três verbas (42, 47 e 57), e ao invés do que ficou consignado na escritura, não constam do Alvará de Loteamento n.º…, nem mesmo das alterações ao loteamento denominadas Plano de Reajustamento de 1981 e Plano de Reajustamento de 1983.
3. Com efeito, por decisão do Presidente da Câmara Municipal de …r, foi emitido o alvará de loteamento n…., de 8/9, com parecer favorável da Direção Geral dos Serviços de Urbanização e dos Serviços Técnicos da Junta Distrital de F…, autorizando o loteamento urbano de um prédio no VT, inscrito na matriz predial rústica de A…, sob os arts. …, … e 3..0, e na urbana sob os arts. .., .., .. e …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o n.º ..
4. Autorizando apenas a constituição de .. lotes de moradias, 21 quintas e …prédios de três pavimentos.
5. Só na memória descritiva do reajustamento de 1981, aprovado pela CMA, em 1/7, se alude no “equipamento urbano e turístico” do loteamento à inclusão de dois aldeamentos turístico e um aeródromo, que correspondem às três parcelas de terreno da petição inicial, desde já se concluindo que nunca as parcelas de terreno das verbas 42, 47 e 57 foram objeto de licenciamento do alvará loteamento n.º ….
6. Mesmo posteriormente, com a divisão do loteamento em setores e aprovação camarária dos subsequentes reajustamentos, nada se alterou, dada a ausência de parecer prévio da DGSU, não se verificando qualquer aditamento válido ao alvará n.º…,
7. Sendo questão essencial saber se releva ou não, em termos jurídicos, a nulidade do contrato de dação em cumprimento, e tendo este sido celebrado em 10/2/89, o regime jurídico aplicável é o do DL n.º 400/84, de 31/12.
8. Pretendeu-se com este, ao fim de mais de dez anos de vigência do DL n.º 289/73, de 6/6, melhorar a Administração, enquanto meio promotor do interesse coletivo, de meios eficazes de intervenção prevenindo os loteamentos clandestinos em defesa de compradores menos avisados, evitando a criação de núcleos habitacionais contrários a um desenvolvimento urbano racional, sancionando como nulidade certos atos de fracionamento e a celebração de outros relativos a terrenos compreendidos em loteamentos omissos quanto ao número e à data do alvará.
9. No nosso caso, a 1.ª ré desanexou, ou seja, destacou e separou, de prédios rústicos e da parte rústica da propriedade conhecida por VT, vários lotes e uma parcela de terreno que vieram a constituir as parcelas de terreno correspondentes às verbas 42, 47 e 57, que a 1.ª ré transmitiu à 2.ª para extinção de uma dívida, a título de dação em cumprimento, verificando-se, assim, o fracionamento do prédio, o que foi feito sem licença da CMA,
10. Conclui-se, assim, ter sido outorgada escritura pública de transmissão, em dação em cumprimento, de parcelas de terreno de lotes não legais, sendo a mesma nula, por força do art.º 294.º do CC, com referência aos arts 1.º alínea a), 3.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, 57.º, n.º 1 e 60.º do DL n.º 400/84, de 31/12.
11. Consta ainda da escritura e do registo que foram transmitidas como terrenos para construção, razão pela qual nunca podiam ser vendidas como terrenos com área suficiente para a unidade de cultura, por que transmitidos expressamente como sendo para construção e não para cultura, não estando em causa a alienação de prédios rústicos, reforçando a alegada nulidade.
12. Também não era dispensável o parecer de elaboração e de reformulação do plano de loteamento pela DGSU, uma vez estarmos em presença de um exemplo de típica relação interadministrativa em atribuições partilhadas, como sucede, v.g., com os pareceres e autorizações de aprovação ou localização da Administração Central, mormente em caso de restrições de utilidade pública quanto à autorização ou licenciamento de operações urbanísticas.
13. Havendo amplos setores da atividade administrativa (urbanismo, ordenamento do território, ambiente) em que as autarquias locais são obrigadas a partilhar atribuições com outras pessoas coletivas públicas, como o Estado, onde coexistem áreas de condomínio de atribuições, conducentes à institucionalização de formas de colaboração entre o Estado e as autarquias, como decorre dos arts. 65.º, n.º 2, alínea b) e 66.º, n.º 1, al. e) da CRP, havendo a distinguir entre tutela e coordenação.
14. As autarquias, movendo-se no âmbito da sua autonomia, não o fazem ignorando o Estado e a Administração Central, não sendo a liberdade autárquica uma liberdade natural, ou um resíduo desta, mas uma liberdade derivada do poder central, do Estado, não sendo a autonomia autárquica equiparada a independência absoluta, uma vez inserida num ordenamento mais amplo e por ele condicionada, a começar pela lei constitucional, consagradora de tais princípios, não se vendo, em caso algum, qualquer inconstitucionalidade, muito menos superveniente!
15. Por último, e sem esquecer os arts 227.º, 239.º, 334.º, 437.º, n.º 1e 762.º, n.º 2 do CC, tendo presente o que se provou, temos por líquido que a escritura celebrada não é válida, estando ferida de nulidade, pelo decidiu bem, a tal respeito, a douta sentença recorrida, independentemente de ter sido ou não ultrapassado o prazo de três anos alegado pela apelante, o que poderia eventualmente relevar para efeitos dos arts 291.º e 289.º do CC, mas nunca pondo em causa a validade, por nulidade, da escritura.
16. Razão pela qual deve negar-se procedimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.” (sic – fls 1332 a 1335);
Estes são, pois, os contornos da lide a dirimir.
2. Considerando as conclusões das alegações da ora apelante (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso, impedindo esta Relação de conhecer outras matérias – n.º 3 do art.º 668º do CPC revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (ex vi art.º 7º n.º 1 dessa Lei preambular) e artºs 671º a 673º, 677º, 678º e 684º, maxime nºs 3 e 4 deste último normativo, e 661º n.º 1, todos do mesmo Código) as questões a dirimir nesta instância de recurso são, por ordem lógica e ontológica, as seguintes:
- a sentença recorrida violou ou não o estatuído nos artºs 1.º, 2º a), b) e c) e 3º do Decreto-lei n.º 560/71 de 17 de Dezembro, 133.º e 134º c) do Código de Procedimento Administrativo e vários princípios de direito civis relativos às irregularidades dos negócios jurídicos?
- a sentença recorrida violou ou não o estatuído no art.º 243.º da Constituição da República, se entendido esse preceito no sentido de que o poder de tutela impunha que a DGSU tivesse de intervir nos casos indicados no n.º 1 do art.º 3.º, por referência ao art.º 1.º e às alíneas a), b, e c) do art.º 2.º, todos do Decreto-lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro?
E sendo esta a matéria que compete julgar, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 700º a 720º do CPC revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho - ex vi art.º 7º n.º 1 dessa Lei preambular), tendo sido oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos.
3. Em 1ª instância foram declarados provados os seguintes factos:
1. Em 10/02/89, por escritura pública lavrada no …Cartório Notarial de .. a R. S…, Lda. transmitiu ao B…, a título de dação em cumprimento, diversos lotes e parcelas de terreno identificadas nas 164 verbas do documento complementar de tal escritura, entre as quais as verbas 42, 47 e 57 (A)).
2. Tais lotes foram ali referidos como pertencentes à “HVT”, sita na freguesia e concelho de A…, propriedade da S… (B)).
3. Na referida escritura ficou consignado que a “HVT” foi objecto de loteamento urbano aprovado pela C.M. de A.. em 03/07/71 e 07/09/77 nos termos constantes do Alvará de Loteamento 1…, emitido em 08/09/77 (C))
4. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 22 a 35 (e não 32 como por lapso consta no saneador) – escritura pública de dação em cumprimento outorgada em 10/02/89 (D)).
5. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 36 a 76 – documento complementar a tal escritura (e não 33 como por lapso consta no saneador) (E)).
6. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 84 a 88 – alvará de loteamento …nº de …/…/… (F)).
7. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 104 a 111 – cópia de parte da descrição e inscrição dos referidos lotes na C. R. Predial de A… (G)).
8. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 142 a 147 – certidão do registo comercial de A… referente à 1ª R (H)).
9. As verbas 42, 47 e 57 referidas no ponto 1 (A)) não constituem lotes autorizados pela aprovação de loteamentos ou em reajustamentos posteriores efectuados pela Câmara Municipal de A… (1º).
4. Discussão jurídica da causa.
4.1. A sentença recorrida violou ou não o estatuído nos artºs 1.º, 2º a), b) e c) e 3º do Decreto-lei n.º 560/71 de 17 de Dezembro, 133.º e 134º c) do Código de Procedimento Administrativo e vários princípios de direito civis relativos às irregularidades dos negócios jurídicos?
4.1.1. Ao iniciar o julgamento do mérito da apelação intentada contra a sentença proferida em 1ª instância, importa analisar o conteúdo da conclusão r) das alegações de recurso apresentadas pela Ré, na qual, em termos formais, se invoca que essa decisão enferma de nulidade por, sempre com o devido respeito, enfermar de violação de direito, nos termos do mencionado art.º 291º do Código Civil.
Ora, considerando o estatuído nessa norma jurídica e bem assim no art.º 668º do CPC aplicável (v. ponto 2 do presente acórdão), e até no conteúdo global dessa peça processual, em boa verdade, a recorrente está apenas a insurgir-se contra a subsunção dos factos provados operada pelo Mmo Juiz a quo na sentença criticada.
E tanto assim é que a apelante, a final, apenas pede que a este Tribunal Superior a revogação da decisão recorrida e não que a declare nula – o que, em todo o caso, nunca seria declarado por não se verificar qualquer das situações previstas nas várias alíneas do n.º 1 do supra citado art.º 668º do CPC aplicável.
Deste modo, a aludida conclusão r) será interpretada por esta Relação como constituindo mais um dos argumentos esgrimidos pela recorrente para sustentar o pedido de revogação que formula nesta sede de apelação.
O que se clarifica.
4.1.2. Prosseguindo a análise crítica do sentenciamento proferido em 1ª instância, afigura-se útil transcrever a assaz sintética fundamentação em matéria de Direito inscrita nessa decisão posta em causa pela Ré “C…, SA”, a qual é a seguinte:
“Em 10/02/89 foi outorgada escritura pública de dação em cumprimento nos termos da qual a 1ª R, S…, Lda., enquanto proprietária da “HVT” sita na freguesia e concelho de A…r (propriedade essa que havia sido objecto de loteamento urbano aprovado pela C.M. de A…nas reuniões de 03/07/74 e 07/09/77, nos termos constantes do alvará de loteamento nº … de 08/09, tendo posteriormente, por deliberação da mesma câmara, sido aprovada a alteração da divisão em sectores e a nova numeração do referido loteamento), devedora à 2ª R, …, S.A., actualmente C… S.A., da quantia de Esc. 559.000.000$00, declarou transmitir a esta, para extinção de tal dívida, os lotes e parcelas de terreno e o prédio misto identificado nas 164 verbas do documento complementar. A 2ª R declarou aceitar esta transmissão e declarou extinta a dívida referida.
A dação em cumprimento é uma forma de extinção de uma obrigação prevista nos art. 837º a 839º do C.C. e que consiste na prestação, com o acordo do credor, de coisa diversa da que constitui o objecto da obrigação e deste modo exonerar o devedor da sua obrigação.
Do teor desta escritura resulta que foram transmitidos lotes para construção.
O mesmo resulta da certidão do registo predial dos mesmos.
Nestes autos pede-se apenas a declaração de nulidade do contrato de dação em cumprimento quanto às verbas nº 42, 47 e 57 do documento complementar sendo que, quanto às duas primeiras, aí consta que foram aprovadas para “Aldeamento Turístico”.
Vejamos.
Do teor do alvará de loteamento nº 1/77, cujo pedido de licenciamento do loteamento mereceu parecer favorável da Direcção Geral dos Serviços de Urbanização e dos Serviços Técnicos da Junta Distrital de F…, consta apenas que “É autorizada a constituição de 1.735 lotes de moradias, 21 quintas e 48 prédios de três pavimentos”. Na memória descritiva de Agosto de 1973 referente ao loteamento desta herdade não se alude a aldeamentos turísticos e a aeródromo (fls. 1026 a 1036). Assim, os lotes correspondentes às verbas nº 42, 47 e 57 não foram objecto de licenciamento de loteamento.
Verifica-se posteriormente a divisão do loteamento em sectores, sem a prévia audição da D.G.S.U., o que consubstancia uma irregularidade.
Dos autos consta igualmente que posteriormente a C.M. de A…, em reunião de 01/07/81, deliberou aprovar o reajustamento do loteamento do VT “com dispensa do parecer dos Serviços de Planeamento dado considerar que a Urbanização viria a ficar mais homogeneizada” (fls. 798 a 799/1920 a 1022). Na memória descritiva deste “reajustamento” alude-se à inclusão no “equipamento urbano e turístico” de dois “aldeamentos turísticos” e um “aeródromo”.
Também consta que a C.M. de A…, em reunião de 16/11/83, deliberou aprovar o reajustamento do loteamento do VT (fls. 795 a 797/1923 a 1024). Aí não consta qualquer menção ao obrigatório parecer prévio da D.G.S.U..
Estas duas deliberações são nulas sendo certo que não se verificou qualquer aditamento ao alvará nº ….
Verifica-se que, em face do alvará nº …, a Sra. Notária se devia ter recusado a outorgar a escritura de dação em cumprimento nos termos do art. 60º e 57º do Dec.-Lei nº 400/84 de 31/12 já que o contrato de dação em pagamento em causa implica indirectamente o fraccionamento dos prédios rústicos (tal como resulta do art. 27º do Dec.-Lei nº 289/73).
Com efeito, e sem necessidade de mais considerações conclui-se pela nulidade do contrato de dação em pagamento no que concerne às parcelas nº 42, 47 e 57 do documento complementar à escritura de 10/02/89, o que deve comunicado ao …º Cartório Notarial. Consequentemente ordeno o cancelamento dos registos prediais de aquisição a favor da 2ª R lavrados na C.R. Predial de …r.
Não se atende à argumentação da 2ª R na medida em que não está em causa a alienação de prédios rústicos, mas lotes para construção.” (sic - fls 1292 a 1295).
Atendendo ao que se encontra demonstrado nos autos, a propriedade denominada “HVT” sita na freguesia e concelho de A.. começou por ser um prédio “rústico” (fls 107 – ponto 3.7. do presente acórdão) que foi transformado em “lote de terreno para construção” (idem).
Mais resulta dos documentos juntos ao processo, que essa transformação se operou por via do alvará de loteamento nº 1 de 08/09/77 que constitui fls 84 a 88 - ponto 3.6. do presente acórdão.
Ora, para o Mmo Juiz a quo - e para o Autor, ora recorrido -, todos os actos jurídicos que não se encontram previstos nesse alvará são nulos, tal constatação deveria ter levado a que se configurasse que as parcelas em disputa – que são partes sobrantes do prédio inicial -, por não estarem, como não estão realmente, abrangidas por esse loteamento guardaram para si a qualidade de áreas rústicas, independentemente do nomem que consta da certidão da Conservatória do Registo Civil, Predial e Comercial de A… de fls 104 a 111, uma vez que, como por todos é bem sabido, não são os registos prediais que definem a natureza dos bens.
O que significa que não pode ser descartado com tanta ligeireza o argumento esgrimido pela apelante que se encontra vertido nas conclusões e), f) e g) das alegações de recurso.
4.1.3. Claro que a demandada recorrente não se limita a afirmar que essas três parcelas em disputa constituem “parcelas rústicas”, antes se espraia em considerações acerca da desnecessidade da intervenção da DGSU.
Entende-se a cautela mas, para esta Relação, tal seria dispensável.
Contudo, porque a questão foi abordada, merece a mesma ser objecto de pronúncia por parte deste Tribunal Superior (art.º 660º n.º 2 do CPC aplicável).
Mas essa apreciação será, naturalmente, feita de modo sumário.
Assim, à luz do estatuído no art.º 1º do Decreto-Lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro, “As câmaras municipais de continente e ilhas adjacentes são obrigadas a promover a elaboração de planos gerais de urbanização das sedes dos seus municípios, em ordem a obter a sua transformação e desenvolvimento segundo as exigências da vida económica e social, da estética, da higiene e da viação, com o máximo proveito e comodidade para os seus habitantes”, mais obrigando o art.º 2º desse diploma a elaboração de planos gerais de urbanização quando estejam verificadas as seguintes circunstâncias (e só essas):
“a) Das localidades com mais de 2500 habitantes que entre dois recenseamentos oficiais consecutivos acusem um aumento populacional apreciável;
b) Das localidades e das zonas de interesse turístico, recreativo, climático, terapêutico, espiritual, histórico ou artístico designadas pelos Ministros do Interior e das Obras Públicas;
c) Das áreas territoriais em que a estrutura urbana justifique planos de conjunto abrangendo vários centros urbanos e zonas rurais intermédias ou envolventes”.
Desconhece-se no processo – sem que este Tribunal de Recurso tenha a obrigação de proceder a qualquer indagação oficiosa, que, aliás, sempre consubstanciaria uma perigosa violação do princípio da igualdade de armas na litigância e uma não menos indesejável decisão-surpresa - se, à data do processo de loteamento, a “HVT” fazia ou não parte do perímetro urbano da povoação de A… ou se se verificava ou não alguma das situações referidas no citado art.º 2º do Decreto-Lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro.
E o facto de, relativamente ao processo de aprovação desse alvará de loteamento nº 1 de 08/09/77, ter sido solicitado e obtido parecer da DGSU, não constitui fundamento suficiente para permitir o salto lógico que seria necessário para chegar à conclusão que tais situações estavam mesmo verificadas nessa ocasião.
E pelas regras de repartição do ónus de prova inscritas no Código Civil, era ao Autor que competia a prova desses factos, a qual teria sempre de ser feita para além de qualquer dúvida razoável (artºs 342º n.º 1 e 346º do Código Civil).
O que este não fez.
Em todo o caso, insiste-se, as áreas de terreno transmitidas à Ré apelante, a que este processo se reporta, têm a natureza de parcelas rústicas e às mesmas não pode, sem que seja realizado acto administrativo válido que altere essa sua natureza jurídica, ser dada qualquer outra destinação que não essa.
O que se clarifica.
4.1.4. Mas, nestas circunstâncias, são redundantes, por inúteis já que as mesmas não são aplicáveis à situação sub judice, as referências feitas na sentença recorrida e nas peças processuais apresentadas pelo Autor recorrido, às normas que integram os DL nºs 400/84, de 31 de dezembro, e 448/91, de 29 de novembro.
Efectivamente e não estando nem sequer minimamente demonstrado que nas áreas de terreno correspondentes às três parcelas dos autos foi realizada alguma urbanização ou obra de construção civil (e, uma vez mais, era ao Autor que competia a prova desses factos), a única operação de loteamento que teve lugar foi a consubstanciada no alvará de loteamento nº 1 de 08/09/77, o qual não operou - de todo - relativamente a essas parcelas que, repete-se, sobraram, após esse loteamento, do prédio rústico sobre o qual esse acto administrativo produziu efeitos.
E, deste modo, a transmissão das parcelas dos autos não está viciada por qualquer nulidade que afecte a sua validade, constatação que dispensa este Tribunal Superior de apreciar se, sendo a Ré recorrente, como o é, terceiro relativamente à relação estabelecida entre a sociedade “S…, LDA” e a Câmara Municipal de Al…r (parte final do primeiro período do n.º 2 art.º 660º do CPC aplicável), a existir uma qualquer nulidade de acto administrativo, poderia ver os seus direitos prejudicados tendo em conta que a presente acção foi intentada depois de decorrido o prazo de 3 anos previsto no n.º 2 do art.º 291º do Código Civil – tal como dispensa que se aquilate se essa recorrente é ou não terceiro de boa fé (sendo certo que, também aqui, seria ao Autor que caberia demonstrar, para além de qualquer dúvida razoável, que o adquirente, no momento da aquisição, não desconhecia o vício do negócio nulo ou anulável - idem, n.º 3).
4.1.5. Pelo exposto, por serem, no essencial, procedentes as conclusões a) a o) das alegações de recurso da apelante, revoga-se a sentença recorrida e, em sua substituição, absolvem-se as Rés do pedido, não se decretando a alteração do registo predial relativo às três parcelas dos autos, de “lotes de terreno” para “parcelas rústicas” porque tal pedido não foi formulado neste processo nem compete a este Tribunal determiná-lo oficiosamente.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
4.2. A sentença recorrida violou ou não o estatuído no art.º 243.º da Constituição da República, se entendido esse preceito no sentido de que o poder de tutela impunha que a DGSU tivesse de intervir nos casos indicados no n.º 1 do art.º 3.º, por referência ao art.º 1.º e às alíneas a), b, e c) do art.º 2.º, todos do Decreto-lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro?
Face ao decretado no ponto 4.1. do presente acórdão, torna-se inútil, por razão de prejudicialidade (novamente por aplicação da parte final do primeiro período do n.º 2 art.º 660º do CPC aplicável), apreciar a questão jurídica em epígrafe.
E a prática de actos inúteis consubstancia uma conduta ilícita que é proibida e punível por Lei (art.º 137º do CPC aplicável).
Ainda assim, não pode este Tribunal Superior deixar de manifestar a sua concordância com o Autor quando este afirma que:
“Há que ter presente a existência de um amplo campo de setores da atividade administrativa (v.g., urbanismo, ordenamento do território, ambiente) em que as autarquias locais são obrigadas a partilhar atribuições com outras pessoas coletivas públicas, algumas também de população e território, como o Estado, onde coexistem áreas de condomínio de atribuições, articuladas ou não em procedimentos administrativos próprios e complexos, conducentes à institucionalização de formas de colaboração entre o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, consoante resulta dos arts. 65.º, n.º 2, al. b) e 66.º, n.º 1, al. e da CRP.
Razão pela qual nem todas as intervenções estaduais, mesmo em atribuições predominantemente autárquicas, equivalem a uma ingerência nos poderes dos seus órgãos, importando distinguir entre tutela e coordenação.” (sic - fls 1330).
Mas, em síntese, não tem esta Relação que apreciar a matéria de inconstitucionalidade invocada pela Ré.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
*
5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 4 do presente acórdão, julga-se procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e, em sua substituição, declara-se improcedente a acção e absolvem-se as Rés do pedido.
Sem custas.
Lisboa, 10/09/2013
(Eurico José Marques dos Reis)
(Ana Maria Fernandes Grácio)
(Afonso Henrique Cabral Ferreira)