VIOLAÇÃO DE PROIBIÇÕES
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
Sumário

I-A conduta do agente que uma vez condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, não entrega a carta de condução no prazo de 10 dias, não integra o crime de “violação de imposições” previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal.
II- O conteúdo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é constituído apenas pela própria proibição de conduzir veículos com motor e apenas a violação desta proibição, traduzida, necessariamente, na acção de conduzir veículo motorizado, preenche o tipo do artº 353º do C.Penal.

Texto Parcial

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 – Em sede de inquérito a fls. 34 e seguintes, o Ministério Público declarou encerrado o inquérito e nos termos do artigo 392.º do Código de Processo Penal requereu a aplicação de pena de multa ao arguido C..., nos seguintes termos:

O Ministério Público requer a aplicação de pena de multa em processo sumaríssimo, nos termos dos artigos 16.º, n.º 2, alínea b), 283.º e 392.º do Código de Processo Penal,( ...) porquanto:

Por douta sentença proferida em 28.02.2012, nos autos de processo sumaríssimo n.º65/11.0GTTVD, que correram termos no 2.º Juízo do Tribunal de Torres Vedras, transitada em julgado em 28.02.2012, o arguido foi condenado como autor de um crime de condução de veículo automóvel sob influência do álcool, p. e p. pelo artigo 292.º n.º1 e 69.º n.º1 alínea a) do Código Penal, na pena de multa de 120 dias de multa à razão diária de 7,5€, no total de 900€ e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 10 (dez) meses.

        Na sentença foi ainda determinado que o arguido entregasse a sua carta de condução, na Secretaria do Tribunal de Torres Vedras ou no posto policial da sua área de residência, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão.

O arguido encontrava-se presente na audiência e tomou conhecimento do teor da decisão proferida pelo tribunal.

          Sucedeu, contudo, que decorrido o aludido prazo para o efeito, o arguido não acatou a ordem que lhe foi imposta, ou seja, não entregou na Secretaria do Tribunal de Torres Vedras ou no posto policial da sua área de residência a carta de condução, de que era titular.

           Agiu como o descrito, deliberada, livre e conscientemente, sabendo estar obrigado a entregar a sua carta de condução, o que fora determinado por sentença, querendo com a sua conduta violar a imposição imposta, o que fez.

O arguido agiu de forma voluntária, bem sabendo que a sua conduta era contrária à lei e criminalmente punida.

Cometeu, assim, como autor material, na forma consumada, um crime de violação de proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.

            (...).                                        


2- Após remessa dos autos à distribuição, a M.ma Juiz proferiu em 24.10.2012 a seguinte decisão ( a fls 39 e segs dos autos):

“I - O Tribunal é competente.

II- A fls. 34 e ss. dos autos o Ministério Público deduziu requerimento, sob a forma de processo sumaríssimo contra o arguido, C..., imputando-lhe a prática como autor material e na forma consumada, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo Art.º 353.º do Código Penal.

Consagra o Art.º 395.º, nº 1, al. b) do supra aludido código que “…O Juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba …b) quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no nº3 do artigo 311.º…”.

E de acordo com o Art.º 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal, recebidos os autos o Tribunal deve pronunciar-se relativamente a nulidades e questões prévias ou incidentais, de que possa logo conhecer, antes de mais, consagrando que o presidente pode proferir despacho a rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, designadamente se os factos não constituírem crime.

Na versão contida na acusação e, em síntese, ao arguido vem imputado ter sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados durante dez meses, tendo sido sentencialmente determinado que o mesmo foi notificado para entregar a carta de condução dez dias após o trânsito em julgado de tal decisão. Mais vem ao arguido imputado que tendo transitado em julgado tal decisão, não ter entregue a carta de condução no prazo conferido para o efeito ou posteriormente, querendo e conseguindo alcançar tal conduta em violação da lei.

Nos termos do disposto no Art. 353.º do Código Penal: “...Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias…”. Com tal normativo visa-se garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuam qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia. Conforme se refere no Comentário Conimbricense, T.III, p. 400, (…) o bem jurídico imediatamente protegido por este crime – refracção, também ele, do bem mais amplo da autonomia intencional do Estado (...) – traduz-se na não frustração de sanções impostas por sentença criminal (…).

Assim, da previsão de tal normativo ficam imediatamente de fora as sanções acessórias do direito de mera ordenação social. Sendo que, relativamente à prática de factos integrantes de contra-ordenações ao disposto no Código da Estrada, nomeadamente quanto à violação da aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, pela prática de contra-ordenações face ao legalmente previsto no supra aludido Código, quer tenham sido aplicadas por decisão administrativa, quer por decisão judicial, tem aplicação o disposto no Art.º 138.º, n.º 2, conjugado com o Art.º 348.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, cominando a lei tal violação com o crime de  desobediência qualificada.

No caso em apreço, está em causa a violação de uma pena acessória aplicada por sentença criminal e na sequência da prática pelo arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo Art.º 292.º, n.º 1 do Código Penal, pela que a violação à pena acessória imposta cabe na previsão do referido Art.º 353.º do Código Penal. Assim, o elemento objectivo do tipo de crime de violação de imposições, proibições ou interdições, no caso sub Judice, é o não acatamento de uma pena acessória imposta por sentença criminal.

Como elemento subjectivo, exige-se o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades, previstas no Art.º 14.º do mesmo Código Penal, devendo integrar o elemento intelectual do dolo não apenas a representação de que a conduta que se adopta viola uma imposição, proibição ou uma interdição, mas também a consciência de que essa proibição ou interdição violadas formam parte de sentença criminal.

Traçado o quadro legal deste tipo incriminador, cumpre analisar se a conduta imputada ao arguido é subsumível à previsão do mesmo tipo legal e se o mesmo consubstancia um crime. Ou seja, se a não entrega da carta de condução, pelo arguido, na secretaria do tribunal ou no posto policial, no prazo de dez dias a contra do trânsito em julgado da sentença é crime.

Desde logo entende-se que pratica tal crime quem violar imposições determinadas a título de pena acessória, não se fazendo qualquer referência a imposições processuais, decorrentes da aplicação de uma pena acessória.

Na verdade e não ignorando a diferente jurisprudência que se vem produzindo sobre esta matéria, desde há longo tempo que subscrevemos o entendimento de que só pratica o crime em apreço quem colocar em causa o conteúdo material da pena acessória, ou seja, conduzir veículo motorizado estando proibido de o fazer durante determinado período e não, quem não respeita meras obrigações processuais, como a entrega do título no prazo de dez dias.

Efectivamente, o Art.º 69.º, nº 3 do Código Penal e a propósito das penas acessórias de proibição de condução, aplicadas inclusivamente por força da condenação pelo Art.º 292.º do Código Penal, consagra que “…No prazo de dez dias a contra do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega … o título de condução…”, sendo a única consequência legalmente prevista para o desrespeito da presente norma a sua apreensão, conforme previsto pelo Art.º 500.º, nº 3 do Código de Processo Penal.

Aliás, execução da pena acessória só tem início com a entrega ou apreensão da carta. E no caso em apreço, entendemos não ser possível estabelecer qualquer paralelismo com o regime previsto no Art.º 138.º do Código da Estrada, uma vez que estamos perante normativos distintos e com diferentes consequências jurídicas. Mais, em sede criminal está vedada a realização de interpretações extensivas ou analógicas, pelo que, o legislador tendo alterado o normativo do tipo criminal em apreço, optou por não instituir qualquer cominação penal para a não entrega do título de condução.

Assim, concordamos integralmente com o plasmado no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-09-2012, in www.dgsi.pt , “…a falta de entrega da carta constitui uma obrigação processual não punível…”. E com similar entendimento v. a título exemplificativo os Acs. TRC de 03-10-2012, 12-05-2012 e 09-11-2012, todos in www.dgsi.pt.

Em sentido contrário v. Acs. TRC de 20-06-2012, 28-03-2012, 8-2-2012 e 5-7-2012, todos in www.dgsi.pt .

Assim, é nosso entendimento que a factualidade descrita na acusação não consubstancia a prática de qualquer crime.

E não obstante o descrito no Art.º 395.º do Código de Processo Penal, mais se entende que pelos fundamentos acima expostos, a rejeição do requerimento apresentado pelo Ministério Público não dá lugar à remessa dos autos para outra forma processual, porque tal acto seria totalmente inútil.

Termos em que, ao abrigo do Art.º 311º, nº3, al. d), aplicável ex vi do Art.º 395.º, nº 1. al b) do Código de Processo Penal rejeita-se o requerimento/acusação em processo sumaríssimo deduzida pelo Ministério Público.

Sem custas.

Notifique e deposite.”

3- Inconformado com tal decisão, dela recorreu o M.P que formula em síntese as seguintes (transcritas) conclusões:

“1 – A factualidade descrita no requerimento de fls. 34 dos autos é susceptível de preencher a prática do crime imputado ao arguido, ou seja, um crime de violação de proibições ou interdições, p.p pelo artigo 353.º do Código Penal.

2 - No âmbito dos autos de processo sumaríssimo n.º65/11.0GTTVD que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal de Torres Vedras foi proferida decisão em 28.02.2012, devidamente transitada em julgado, que condenou o arguido C... pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º n.º1 na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 7,50€, perfazendo a quantia global de 900€ (novecentos euros), na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 10 meses, e nos termos do artigo 69.º n.º1 alínea a) do Código Penal e nos termos do artigo 69.º n.º3 e 500.º n.º2 e n.º3 do Código de Processo Penal determinou que o arguido, após o trânsito em julgado, entregasse no prazo de 10 dias, no tribunal, ou no posto policial da área da sua residência, a sua carta ou licença de condução.

3 – O artigo 353.º do Código Penal após a redacção introduzida pela Lei n.º59/2007 de 4 de Setembro passou a consagrar que: “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

4 - Na proposta de Lei 98-X que teve por fonte os trabalhos da Unidade de Missão para a reforma penal e que deu origem à Lei n.º59/2007 de 4 de Setembro refere-se que: “O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo. Ideia que já constava das atas daquela Unidade de Missão, onde pode ler-se: no artigo 353.º acrescentou-se a violação de imposições, de modo a abranger condutas activas e não apenas omissivas – (acta n.º16 sessão de 27.03.2006) o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo”.

5 - Entre as imposições cuja violação é punível estão inequivocamente as impostas em processo sumaríssimo, sendo que a referência a esta forma de processo foi igualmente aditada ao artigo 353.º do Código Penal. Cfr. Maria João Antunes, “Alteração ao sistema sancionatório” in Revista do Cej, n.º8, especial, pág. 10.

6 - Paulo Pinto de Albuquerque referiu[ii] que o tipo objectivo consiste na violação de imposições (sanções de conteúdo positivo) determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privative da liberdade e, como tal, as sanções incluem as previstas nos artigos 66.º, 69.º, 90.ºA n.º2, 100.º, 101, 179.º, 246.º e 346.º do Código Penal.

7 - Exige-se para o preenchimento do tipo, que seja a imposição determinada por sentença criminal, o que foi no caso.

8 – A entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículo com motor consubstancia uma imposição nos termos e para os efeitos do artigo 353.º do Código Penal.

9 - Paulo Pinto de Albuquerque escreveu[iii]: “Com efeito, a incriminação prevista neste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias. Se o arguido não entregar a carta de condução no prazo fixado, comete o crime do artigo 353.º do Código Penal.

10 -  Caso a conduta do arguido não fosse susceptível de integrar a prática de um crime qual seria o efeito útil do teor da participação imposta pelo legislador aos funcionários que se faz referência no n.º4 do artigo 69.º do Código Penal?

11 - O n.º4 do artigo 69.º Código Penal consagra que quando se verifiquem situações de incumprimento do disposto no n.º3 do mesmo preceito legal (ou seja quando os condenados não procedam à entrega do título de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado) é remetida participação ao Ministério Público a dar conhecimento dessa situação para que se inicie procedimento criminal contra o autor dos factos através da instauração de um processo de inquérito.

12 - O que só se pode justificar como uma concretização da obrigação de denúncia de crime por parte dos funcionários, genericamente, previsto no artigo 242º n.º1 alínea b), do Código de Processo Penal.

13 - Após a revisão do Código Penal levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a situação concreta definida no requerimento de fls. 34 e seguintes constante no ponto II A (falta de entrega, no prazo legalmente fixado, da carta de condução por parte de arguido a quem foi imposta, através de sentença transitada em julgada, pena acessória de proibição de conduzir) consubstancia, a nosso ver, o crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal.

14 - Os factos aí descritos preenchem, assim, os requisitos objectos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto no artigo 353.º do Código Penal.

15 - Nunca poderia ser considerado manifestamente infundado.

16 - Consideramos que a M.ma Juiz a quo não tomou em atenção o teor dos artigos 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), 395.º e 396.º do Código de Processo Penal e ainda artigo 353.º do Código Penal, violando as normas em causa.

17 - In casu,  impunha-se o proferimento de uma decisão sobre o requerimento do Ministério Público de fls. 34 em que se considerassem os autos aptos a prosseguir os seus termos e ordenasse o cumprimento do disposto no artigo 396.º do Código de Processo Penal.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão de fls. 39, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene o cumprimento ao disposto no artigo 396.º do Código de Processo Penal, ordenando-se a notificação ao arguido do requerimento apresentado pelo Ministério Público para querendo, se opor no prazo de 15 dias.

V. Exas, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça!”


4. O arguido veio responder ao recurso do M.P, defendendo a manutenção da decisão recorrida e terminando com as seguintes (transcritas) conclusões:
(...).

5 – Esse recurso foi admitido por despacho de fls. 73.
6 – Neste Tribunal da Relação, o Sr. Procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, não emitiu qualquer parecer (fls 81).
7- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – QUESTÕES a DECIDIR:
Do artº 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente definem as questões a decidir em cada caso (cf. Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal” III edição 2º edição, 2000 pág. 335 e Ac. do S.T.J de 13.5.1998 em B.M.J 477º 263), exceptuando aquelas que sejam do conhecimento oficioso (cf. artº 402º, 403º/1, 410º e 412º todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R I – A série, de 28.12.1995).
A questão colocada pelo M.P recorrente, nas conclusões da sua motivação, as quais delimitam o objecto e poderes cognitivos deste Tribunal ad quem, é apenas a de saber se a não entrega da carta de condução pelo arguido na secretaria do Tribunal ou num posto policial da área da sua residência, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado duma decisão condenatória proferida em 28.2.2012 por um Tribunal Judicial (no caso o 2º Juízo do Tribunal de Torres Vedras), em desrespeito à ordem que lhe fora dada por esse mesmo Tribunal no sentido de proceder a essa entrega, o faz incorrer na prática de um crime, por violar o disposto no artº 353º do C.P

III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Analisando

1.Antes de mais, não pode desde logo deixar de se referir que sobre esta matéria se pronunciou já o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos que se têm por inequivocamente correctos, nomeadamente no âmbito dos processos nº 132/11.OTACDN.C1 (Ac de 7.11.2012) e nº 20/11.0TAANG.C1 (Ac. de 3.10.12) ambos publicados in www.dgsi.pt), com argumentos que merecem a nossa inteira concordância e cuja fundamentação se irá seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade.

Conforme resulta dos elementos supra relatados, ainda que sucintamente, entende o M.P que a não entrega da carta pelo arguido preenche o crime de violação de imposições do artigo 353º do C.P pelo que foi deduzida a respectiva acusação bem como foi interposto o presente recurso.

Ao contrário, a Srª Juíza entendeu em sentido oposto, pelo que não recebeu a acusação exactamente com o entendimento que os factos da acusação não constituem crime.

Quer no despacho judicial recorrido quer nas alegações de recurso do M.P se faz eco da divergência jurisprudencial sobre esta matéria que existia na data em que foi proferida a decisão ora recorrida (24.10.2012), tendo-se formado duas correntes jurisprudenciais de sentido oposto.

No sentido de que uma conduta idêntica à imputada ao aqui arguido preenche o crime do artº 353º do C.P, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007 de 4.9, encontramos entre outros, no Tribunal da Relação de Coimbra, os acórdãos de 24.2.2010 in processo nº 117/09.6TAVNO.C1, de 30.6.2010 in processo nº 149/08.1TAVGS.C1, de 14.7.2010 in processo nº 48/09.OTAVGS.C1, de 25.1.2012 in processo nº 433/11.7TAPBL.C1 e de 20.6.2012 in processo nº 123/10.8TAAGN.C1.

No sentido de que esta será uma conduta penalmente atípica, podem encontrar-se entre outros, os acórdãos de 12.5.2010 in processo nº 1745/08.2TAVIS.C1, de 6.10.2010 in processo nº 24/09.2TAVGS.C1, de 12.7.2011 in processo nº 295/09.4TAVIS.C1, de 9.5.2012 in processo nº 1230/10.2TAVIS.C1, de 30.5.2012 in processo nº 13/11.7TAAGN.C1 e de 26.9.2012 in processo nº 171/11.OTASCD.C1.

Igualmente na doutrina não havia consenso nesta matéria.

Enquanto para o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, o alargamento da previsão do artº 353º do C.Penal, operado pela Lei nº 59/2007 de 4.9, teve o propósito de nele integrar estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias designadamente, a entrega do título de condução, para o Dr. António Tolda Pinto, a situação integrará a prática do crime de desobediência, pois a previsão do tipo do crime do artº 353º do C.P, só se preencherá com a condução do veículo já no decurso do período de execução da pena acessória (cfr “Comentário do Código de Processo Penal” UCE, pág 1278 e “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Vol. 1, UCE, pág. 402

Quid juris?

É com a posição que defende que com tal conduta – de não entrega da carta - não comete o crime do artº 353º do C.P que nos identificamos.

Elucidativo se revela aliás, o já decidido no supra mencionado Ac. do TRC de 12.5.2010 no processo nº 1745/2008.2TAVIS.C1 onde se escreveu:

“ (…) a pena acessória só é executada, por isso cumprida, a partir do momento em que o condenado entrega o título ou este lhe é apreendido em conformidade com o art.º 500/3 do CPP.

Isto porque logo no número seguinte, ou seja, no n.º4 do falado artigo 500º se estatui que a licença de condução ficará retida na secretaria [após a sua entrega ou a sua apreensão] «pelo período de tempo que durar a proibição».

O que significa que o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.

De outro modo poderiam ocorrer situações em que no momento da sua apreensão o arguido pudesse invocar ter já decorrido o tempo do cumprimento da pena.
Daqui poder defender-se que será irrelevante para a integração do tipo [violação de imposições, proibições ou interdições judiciais] o facto do condenado continuar a conduzir até à data da apreensão do título, pois só a partir dela se iniciará o cumprimento ou execução da pena da proibição de conduzir.

Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.
Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória».

Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.

E a pena acessória no caso consubstancia-se na “proibição de conduzir veículos com motor pelo período de …”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições.

O legislador poderia tê-la incluído no tipo ou noutro, v.g., de desobediência, mas não o fez. Para o caso engendrou outro sistema de procedimento que o aplicador da lei até poderá criticar invocando v.g. a desarmonia do sistema face ao que se passa com o sistema contra-ordenacional do Código da Estrada; mas o que não pode é interpretar o tipo de modo a incluir situações nele não previstas, em violação do art.º1 do Código Penal.
Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objectivos do tipo.

Como foi dito pelo ilustre Conselheiro Henriques Gaspar em declaração de voto no Ac. do STJ/ Fixador de Jurisprudência n.º8/2008 [DR I-A de 5/8/2008] – “ O princípio da legalidade (…) significa (…) que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (…)

É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa.

(…)
       Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (cf. Figueiredo Dias, op. cit, p. 168).
O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. (…) A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais - tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia. (…) A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.

A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.

E, como é dos princípios, em direito penal (e sancionatório) não há integração de lacunas (…).”      A actuação em causa não cabe na letra da lei (art.º 353º do CP), sendo imposição do princípio da legalidade em matéria criminal que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de se entrar no domínio proibido da analogia.

A certeza e a previsibilidade exigíveis aos tipos afere-se pelo que é possível extrair directamente da sua letra.

Ora, como refere a sentença, o preceito em causa não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem”.

Exemplificando o enunciado acabado de transcrever, diremos o seguinte:
Também a pena de multa, diz o artigo 489º do CPP, deve ser paga no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da sentença. Do mesmo modo que a carta deve ser entregue pelo arguido condenado na pena acessória de inibição no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, ao abrigo do artigo 69º, nº 3, do CP.
Se porventura o julgador, na sentença, fizer a cominação ao arguido de que, se não pagar a multa, cometerá um crime de desobediência e o arguido efectivamente não pagar, com certeza que será entendimento generalizado que esta cominação é ilegal. Que não pagando o arguido voluntariamente a multa naquele prazo, deverá proceder-se à sua execução – artigo 491º, do CPP. Do mesmo modo que, não entregando o arguido a carta de condução voluntariamente, se procederá à sua apreensão.

Igual analogia se pode fazer quanto ao cumprimento da pena de prisão por dias livres, nos termos do artigo 487, nº 3, do CPP.

Se também neste caso o tribunal ao entregar ao arguido cópia da decisão e da guia de apresentação no estabelecimento lhe fizer a cominação de que, caso não compareça, incorrerá num crime de desobediência e o arguido efectivamente não comparecer, com certeza que será mais uma vez entendido que esta cominação é ilegal. O cumprimento da pena será, nesta situação, feita em regime contínuo, passando-se para o efeito mandados de captura do arguido – como se dispõe no preceito.

Outros exemplos serão possíveis. Mas o que deve ser efectivamente realçado é que não se pode favorecer a criação de um tipo legal de crime com uma ordem que se afigura ilegítima, por exigência dos princípios da legalidade e da tipicidade, transformando a imposição do Juiz numa fonte de responsabilidade criminal numa situação que manifestamente o legislador não regulou nem quis regular”.

Também nós aderimos assim à corrente na jurisprudência e doutrina que entende que o artº 353º não consente a integração nele de comportamentos prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem.

A imposição de entrega do título de condução não integra o conteúdo da pena acessória em causa, nem com ela se confunde.

O conteúdo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é constituído apenas pela própria proibição de conduzir veículos com motor e apenas a violação desta proibição, traduzida necessariamente, na acção de conduzir veículo motorizado, preenche o tipo do artº 353º do C.Penal.

Sucede porém, que posteriormente ao despacho ora recorrido (datado de 24-10.2012), surgiu o Acórdão nº 2/2013 do pleno das secções Criminais do S.T.J para Uniformização de Jurisprudência, Acórdão esse datado de 21.11.2012 e publicado no D.R I série de 8.1.2013, o qual veio sanar a falta de consenso nesta matéria.

Neste Acórdão fixou-se a seguinte jurisprudência: “Em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do artº 292º do C.P e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no artº 69º/1/a) do C.P, a obrigação de entrega do título de condução derivada na lei (artº 69º/3 do C.P e artº 500º/2 do C.P.P) deverá ser reforçada, na sentença com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do artº 348º/1/b) do C.P”.

E na fundamentação deste AUJ refere-se ainda expressamente que segundo o artº 69º/2 do C.P a sanção acessória de proibição de conduzir produz efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença, enquanto que a partir desse trânsito o arguido tem ainda 10 dias para entregar a carta. Diz-se aí que “ A entrega do título, em rigor , não se confunde com a pena acessória” porque a proibição já está a produzir os seus efeitos, numa altura em que a detenção da carta pelo condenado ainda se mostra em vigor, por não terem decorrido 10 dias a partir do trânsito da condenação. E mais adiante refere: “ Por certo que a entrega do título de condução, não sendo em si uma pena, não constitui uma imposição “determinada…a título de sanção acessória” como exige o artº 353º do C.P.

A posição ali tomada vai assim claramente no sentido de a aplicação do artº 353º do C.P estar reservada, no condicionalismo, para o caso do condenado ser encontrado a conduzir. Não para a situação da falta de entrega do título.

Mas essa não entrega, uma vez que tenha havido a cominação na sentença condenatória de que o agente prevaricador ao não entregar a carta de condução no prazo ficado, irá incorrer num crime de desobediência p.p no artº 348º/1 do C.P, acarreta também responsabilidade criminal.

A partir deste AUJ nº 2/2013, sendo embora verdade por um lado que se reforça e mantém o entendimento de que a conduta do agente que uma vez condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, não entrega a carta de condução no prazo de dez dias, não integra o crime do artº 353º do C.P.P, também deixou de ser possível por outro lado, defender a atipicidade criminal de tal conduta, de forma genérica e abstracta em qualquer situação – isto é, deixou de ser possível defender a tese do despacho ora recorrido: de que tal conduta, nunca pode constituir facto criminoso, isto é não integra nunca qualquer crime e tem como única consequência de apreensão da carta de condução ao abrigo do artº 500º/2 do C.P.P, como fez a Srª Juíza no Tribunal a quo  ora recorrido, pois tal entendimento contraria a tese da jurisprudência entretanto fixada (por via deste AUJ nº 2/2013).

Sucede porém que no caso ora em análise neste recurso, resulta expressamente da decisão condenatória proferida pelo 2º Juízo do Tribunal de Torres Vedras, em 28.2.2012 (e junta aos autos a fls 8 e 9), que o arguido C..., ora recorrente, foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 10 meses e na mesma decisão foi ainda advertido nos termos do artº 69º/3 do C.P e artº 500º/2/3 do C.P.P para entregar a carta de condução no prazo de 10 dias nesse Tribunal ou no posto policial da área da sua residência, sob pena de apreensão da mesma.

Assim no caso presente, não foi feita ao arguido C..., qualquer cominação de que a não entrega da carta o faria incorrer na prática de um crime de desobediência (mas tão somente a advertência de que tal conduta levaria à apreensão desse título) e nestes termos não se mostra preenchido pelo arguido o tipo legal do crime de desobediência previsto no artº 348º/1/b) do C.P.

Como tal, não se afigura possível rever ou alterar a decisão recorrida da primeira instância, no sentido de a conformar com a Jurisprudência entretanto fixada pelo S.T.J no referido AUJ.  


*

Concluindo, também nós defendemos a atipicidade criminal da conduta do arguido C... que no caso presente, tendo sido condenado por sentença na pena acessória de conduzir veículos com motor, não entregou a licença de condução na secretaria judicial ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, como lhe fora determinado na sentença, sob cominação de lhe ser apreendida a mesma, por não se mostrarem verificados todos os pressupostos que a referida Jurisprudência do S.T.J considerou necessários para estar preenchido o tipo do crime de desobediência do artº 348º/1/b) do C.P (artº 69º/3, artº 500º/2 do C.P.P, artº 348º/1/b), artº 353º do C.P e A.U.J nº 2/2013 de 21.11.2012).

*

Por tudo a acima exposto e em síntese, entende-se que a conduta do arguido não preenche os elementos objectivos do CRIME de violação de IMPOSIÇÕES p.p no artº 353º do C.P, nem no caso concreto é passível de integrar o crime de desobediência p.p no artº 348º/1/b) do C.P (por inexistência na sentença condenatória da cominação prevista neste tipo legal) pelo que bem andou a Srª Juíza do Tribunal a quo quando decidiu não receber a acusação do M.P por a considerar manifestamente infundada, com base no argumento de que os factos aí relatados não constituem crime (artº 311º/1/2/a) e nº 3/d) do C.P.P)

Improcede assim integralmente o recurso interposto pelo M.P

V – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Negar provimento ao recurso do M.P, julgando-o totalmente improcedente e manter assim, nos seus precisos termos, a decisão recorrida. 
b) Sem Custas.

Lisboa, 11 de Setembro de 2013
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Ana Paula Grandvaux Barbosa
José Reis


[i]
[ii] a pág. 921.
[iii] in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.º Edição actualizada, a pág. 265.