I-A decisão administrativa que aplicou a sanção de admoestação deve ser susceptível de impugnação judicial, pois só assim se harmoniza a faculdade, constitucionalmente garantida, de tutela jurisdicional efectiva dos administrados, relativamente à defesa dos seus direitos e interesses (artº 20º da CRP).
III-Não seria aceitável que a admoestação, não obstante não constar, expressamente, do elenco das decisões condenatórias (art. 58.º do RGCO), não deva ser vista como condenação. A norma do artº59º, nº1 do RGCO, desde logo por força da unidade do sistema jurídico, tem de ser interpretada no sentido de que quando se refere “uma coima” se pretende significar qualquer condenação, devendo também e necessariamente incluir a mera admoestação.
II- Por outro lado, seria uma incongruência admitir-se a impugnação judicial de decisões, despachos e medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo, nos termos do art. 55.º, n.º 1, do RGCO, e isso já não acontecer quando se trate de decisão, final, aplicando admoestação.
(sumário elaborado por Conceição Gonçalves)
Relatório
No âmbito dos autos com o NUIPC nº347/13.6TFLSB, por decisão de 18/04/2013, a Exmª Juiz da 2ª Secção do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa rejeitou o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida C..., S.A., por legalmente inadmissível.
Inconformada com o assim decidido, a recorrente ..., S.A., interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1º O nº1 do art.59º do RGCO tem que ser integrado com as demais normas deste Regime, bem como com os princípios que regem o processo contra-ordenacional.
2º De acordo com o disposto no nº1 do art.55º do RGCO, “As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem.
3º Se o arguido tem direito a recorrer de despachos meramente interlocutórios, deve por maioria de razão ser autorizado a recorrer da decisão final que o condene na pena de admoestação;
Na verdade,
4º Ainda que de pouca gravidade, a admoestação envolve sempre um juízo de culpa e de censurabilidade com o qual o arguido pode não estar de acordo, e pode não se querer conformar.
5º No caso sub judice a infracção imputada à recorrente, e que esta não cometeu, ficará averbada no seu registo junto da Direcção-Geral do Consumidor, funcionando como agravante em eventuais processos futuros;
6º Não é admissível que seja vedado a um particular reagir junto dos Tribunais a uma decisão desfavorável, condenatória, proferida por uma autoridade administrativa;
7º Deve ser facultada à recorrente a possibilidade de impugnar a sanção de admoestação que lhe foi aplicada, sob pena de se violar o disposto no nº1 do art.20º e no nº1 do art.32º ambos da CRP;
Quando assim não se entenda;
8º A norma do nº1 do art.59º do RGCO é materialmente inconstitucional, por violação do preceituado no nº1 do art.20º e no nº1 do art.32º, ambos da CRP, inconstitucionalidade que, para todos os devidos e legais efeitos, aqui se deixa expressamente arguida;
9º O despacho recorrido violou as seguintes normas: nº1 do art.59º e nº1 do art.55º, ambos do RGCO, e nº1 do art.20º e nº1 do art.32º, ambos da CRP.
(...)
(...)
A questão em apreço é saber se autoridade administrativa que aplica uma sanção de admoestação pode ser impugnada judicialmente.
Antes de mais, diremos, que a presente questão reside em saber qual a natureza de uma pena de admoestação, esta não é fácil, e a decisão a que chegarmos depende da posição adoptar.
Se é verdade que o Ministério Público não recorreu do presente despacho, no entanto, não podemos deixar de aderir a posição da recorrente, somente entendemos que existe outros argumentos que o Venerando Tribunal da Relação deverá sopesar.
Assim, diremos, que existiu um despacho de rejeição do presente recurso, nos termos do art.51.º, 58.º, n.º1 e 59.º, n.º1, a contrario sensu, do RGCO, no qual assentou a sua fundamentação no seguinte “art.º59.º, n.º1 do RGCO, segundo o qual “a decisão administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial”.
Em primeiro lugar a dúvida que nos ressalta, é saber se poderia ser proferido uma despacho de rejeição de um recurso, sem o cumprimento do art.º63.º, nº1 do RGCO, que resulta deste preceito normativo O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma.
Ora, aqui chegados, não foi com base em nenhum destes fundamentos em que assentou a recusa de recebimento da impugnação judicial por parte do tribunal a quo.
Apenas, e tão só o tribunal a quo, analisou a sanção aplicada, e concluiu que tratando-se de uma admoestação, e não de uma coima, esta não admite impugnação judicial, e fez “tábua rasa” processado subsequente previsto no art. 64.º do RGCO, ou seja, o de haver de decidir mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho, com observância das formalidades atinentes.
Existe o entendimento, que apenas cabe a rejeição de um recurso de impugnação nas situações do art.º 63.º o RGO, logo, não será admissível a rejeição do recurso com outro fundamento, devendo assim, este preceito normativo ser conjugado com o art.º64.º do RGCO.
Como refere António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 7.ª edição, Almedina, 2007, em anotação ao art. 64.º, a págs. 134 e seg., o legislador atribuiu ao arguido e ao Ministério Público o direito de submeter a acusação pública a julgamento, mesmo que este se afigure como inútil ao juiz.
No mesmo sentido, Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, Vislis, 2006, a pág. 441, Os motivos da rejeição são apenas a intempestividade e a falta de observância dos requisitos de forma. Isto significa que, em todos os outros casos, mesmo que existam excepções dilatórias ou peremptórias, o recurso não poderá ser rejeitado, tendo a questão que ser apreciada em despacho a proferir nos termos do art. 64.º ou por sentença.
Constitui realidade que entronca na especificidade própria do RGCO, que se coaduna com a típica característica de se iniciar como um puro processo administrativo, com a inerente instrução e culminando na decisão que, não sendo impugnada, assume carácter executivo – v. arts. 88.º a 91.º do RGCO -, mas que, sendo impugnada, reveste a vertente de verdadeiro processo judicial, tornando-se a decisão administrativa numa decisão-acusação – cf. art. 62.º, n.º 1, do RGCO e Manuel Ferreira Antunes, in “Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional”, SPB Editores, 1997, a pág. 161.
Pelo que, quando face as especificidades que reveste as decisões administrativas, quando o Ministério Público remete ao juiz (e não propriamente apenas a decisão administrativa) vale esta como uma acusação, nos termos daquele art. 62.º, n.º 1, o que, desde logo, redunda em que não lhe seja aplicável o regime estrito das nulidades da acusação, por referência ao art. 283.º do CPP, conjugado com os arts. 119.º e 120.º do CPP e à luz do art. 41º, n.º 1, do RGCO.
De qualquer modo, ao invés, o regime processual penal das nulidades, previsto nesses preceitos legais do Código, e desde que o contrário não resulte do RGCO, não deixará de ser aplicável à omissão de actos ou à preterição da legalidade em fase de impugnação judicial da decisão administrativa.
Se bem que o art. 64.º, n.º 1, do RGCO, aponte, na sua redacção, para uma “decisão do caso”, o que inculca a ideia de que só visará uma apreciação que seja posterior à própria admissibilidade da impugnação – sendo, esta, a questão que ora se discute -, não se poderá alhear que a rejeição que foi decidida constitui, em si mesma, uma decisão, na medida em que outro sentido não se divisa, ao ter o legislador, no art. 73.º, n.º 1, alínea d), do RGCO, a incluído no elenco das decisões susceptíveis de recurso.
A entender-se de modo diverso, ficaria postergada a possibilidade de recurso do despacho sob censura, a não ser que se configurasse a situação como enquadrável no n.º 2 do art. 63.º do RGCO.
No entanto, entendemos, que o tribunal a quo, não poderia ter rejeitado o recurso, devendo cumprir as formalidades do art.º 64.º, não decidindo, e rejeitando o recurso, existe uma omissão de notificação para oposição ao art.º64.º, padecendo assim, de uma nulidade.
Caso, assim, não se entenda, e centrando-nos sobre a admissibilidade da rejeição do presente recurso, será possível?
Seguindo a posição adoptada no Acórdão da Relação de Évora de 11.11.2010, do relator Carlos Berguete Coelho, que segundo o qual “decisão administrativa que aplicou a sanção de admoestação é susceptível de impugnação judicial”.
Senão vejamos, os argumentos apresentados, ao qual aderimos, em considerar a admoestação como uma sanção autónoma substitutiva de uma coima, estribada no princípio da oportunidade – à luz das garantias constitucionais e penais – na vertente do princípio da legalidade.
No que tange ao art. 59.º, n.º 1, do RGCO, a sua previsão não se alterou relativamente à matéria “sub judice” e perante os diplomas que antecederam a admoestação, sempre tendo constado, nesse âmbito, que a impugnação judicial apenas era susceptível em relação a decisão da autoridade administrativa que aplicasse uma coima (a tal respeito, cfr. arts. 50.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 232/79, e 59.º, n.º 1, do Dec, Lei n.º 433/82), podendo concluir-se, “prima facie”, que o legislador, embora tendo inevitavelmente perspectivado a novidade da sanção, não a pretendeu aí incluir.
Noutro aspecto, reportando-o, sobretudo, aos elementos sistemático e histórico da interpretação, não se logra conclusão propriamente diversa, atendendo a todos os contributos que se deixaram vertidos, que alicerçam, sem prejuízo das dificuldades detectadas, que a admoestação não deva ser vista, propriamente, como sanção condenatória, com os efeitos que à coima são atribuídos.
O regime de impugnação judicial das decisões administrativas (tal como o de recurso das decisões que destas conheçam) contém regras próprias e específicas, o que se harmoniza com a natureza e as características intrínsecas ao ilícito contra-ordenacional, que revestem autonomia e diferenciação do regime penal, desde logo, ao nível sancionatório (e, com isso, inelutavelmente, dos seus efeitos), como se referiu no preâmbulo do Dec. Lei n.º 433/82: A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções.
A autonomia do direito de mera ordenação social, ainda que relativa face ao direito penal, recorrendo a este subsidiariamente (arts. 32.º e 41.º, n.º 1, do RGCO), não deve ser menosprezada, se bem que, conforme Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral”, tomo I, Coimbra, 2004, a pág. 153, se não é direito penal, é em todo o caso direito sancionatório de carácter punitivo.
Acresce que são distintas as garantias constitucionalmente consagradas estritamente ao processo criminal e ao processo contra-ordenacional, conforme resulta do art.32.º, n.ºs 1 e 10, da CRP, sendo, ao primeiro, conferidas todas as garantias de defesa, incluindo a do recurso e, ao segundo, a de que sejam assegurados os direitos de audiência e defesa (que no caso foram respeitados), do que decorre que o legislador, em sede de direito das contra-ordenações, embora tendo previsto a sujeição do processo ao princípio da legalidade (art. 43.º do RGCO) e a submissão das autoridades administrativas aos direitos e deveres das entidades competentes para o processo criminal (art. 41.º, n.º 2, do RGCO), não estava inibido de criar restrições ao nível da impugnação judicial das decisões administrativas (bem como, dos recursos das decisões judiciais que desta conheçam, nos termos do art. 73.º do RGCO).
Assente a diversa natureza dos interesses subjacentes a esses processos – em que, embora, sendo censurados comportamentos ilícitos, a culpa contra-ordenacional é totalmente distinta da culpa penal. Enquanto esta última implica um juízo de censura sobre a atitude manifestada pelo agente perante os valores do direito, a primeira esgota-se num juízo de mera advertência social, razão pela qual pode ser efectuado por autoridades administrativas – Augusto Silva Dias, “Crimes e Contra-ordenações Fiscais”, in “Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários”, vol. II - Problemas Especiais, Coimbra, 1999, a pág. 444 -, igualmente bem diferente é o juízo de censura do comportamento do agente.
As especificidades do processo de contra-ordenação e a peculiar natureza da admoestação e dos seus efeitos justificam, pois, a sua diferenciação da coima, bem como da admoestação penal.
Além do mais, não é de descurar que aquele art. 41.º, em qualquer dos seus números, acentua que o direito subsidiário só se aplicará, com as devidas adaptações, sempre que o contrário não resulte do Regime fixado pelo diploma.
Todavia, afigurando-se que constitui uma sanção e, em nosso entender, na vertente de substituição da coima, não deixa de revestir uma condenação da autoridade administrativa e, como tal, projectando-se nos interesses da pessoa a quem é dirigida, ainda que com o efeito limitado a que se aludiu, dado que pressupõe, desde logo, que a conduta imputada seja uma infracção e cometida com culpa.
Por outro lado, salienta-se a incongruência que resultará de ser admissível a impugnação judicial de decisões, despachos e medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo, nos termos do art. 55.º, n.º 1, do RGCO, e isso já não acontecer quando se trate de decisão, final, aplicando admoestação.
A impossibilidade de impugnação judicial redundaria contrária à faculdade, constitucionalmente garantida, de tutela jurisdicional efectiva dos administrados, relativamente à defesa dos seus direitos e interesses (art. 268.º, n.º 4, da CRP) (negrito nosso).
Aliás, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, previsto no art.20.º da CRP, é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático (art. 2.º da CRP) e de uma Comunidade de Estados (União Europeia) informada pelo respeito dos direitos do homem, das liberdades fundamentais e do Estado de direito, cujo âmbito normativo abrange o direito de acesso ao direito, o direito de acesso aos tribunais, o direito à informação e consulta jurídica, o direito ao patrocínio judiciário, o direito à assistência de advogado, componentes de um direito geral à protecção jurídica (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, volume I, Coimbra, 2007, a pág. 409).
O direito de acção ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo. O processo, para ser equitativo, deve, desde logo, compreender todos os direitos – direito de acção, direito ao processo, direito à decisão, direito à execução da decisão jurisdicional (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., a pág. 415).
A jurisprudência constitucional tem dado, em geral, expressão a tais desideratos (v. g. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 440/94, in D.R. II Série, n.º 202, de 01.09.1994, n.º 473/94, de 28.06.1994, n.º 960/96, de 10.07.1996, e n.º 363/2004, de 19.05.2004, acessíveis em www.dgsi.pt), em sintonia com o princípio consagrado no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13.10, in D.R. I Série, n.º 236), a que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem dado acolhimento, mesmo no caso de matéria contra-ordenacional - v. g. acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987).
Sendo certo que, no caso de decisão judicial, por sentença ou por despacho, que aplique a sanção de admoestação, a mesma não é recorrível para tribunal superior, nos termos do art. 73.º do RGCO, não se mostra, já, compatível com a tutela jurisdicional efectiva, que a decisão administrativa que comine essa sanção, não seja susceptível de impugnação e se torne, por isso, definitiva
A primeira situação configura-se como proporcional à restrição ao direito de recorrer, enquanto que, a segunda, contende com o próprio acesso ao direito e, por isso, com as garantias de defesa, em geral, reconhecidas, não sendo aceitável que, não obstante a admoestação não conste, expressamente, do elenco das decisões condenatórias (art. 58.º do RGCO), não deva ser vista como condenação, por apelo, como se defendeu no acórdão da Relação de Lisboa de 18.01.2007, no proc. n.º 9803/2006-3, sendo relator o Exmo. Desembargador Rodrigues Simão, in www.dgsi.pt, citado pela recorrente, designadamente, à “unidade do sistema jurídico”.
Só a interpretação que equipare, para o efeito de susceptibilidade de impugnação judicial prevista no art. 59.º, n.º 1, do RGCO, a admoestação a uma verdadeira sanção, ainda que substitutiva da coima, tem, a nosso ver, acolhimento, pois só ela se harmoniza com os princípios definidos.
A conjugação e a ponderação de todos os elementos interpretativos, com o inevitável relevo para a “ratio juris” que se adequa ao direito de acesso aos tribunais, suporta a conclusão de que a decisão administrativa que aplicou a sanção de admoestação deve ser susceptível de impugnação judicial, só assim se harmonizando com o sentido que, à norma, logicamente, tem de ser atribuído. – neste sentido Acórdão supra citado.
Também no mesmo sentido, do mesmo relator na Relação de Lisboa de 15/09/2011, processo n.º398/11.5TFLDB.L1, in www.dgsi.pt “caso não ocorra nenhuma das circunstâncias no art.º63 do RGCO, a impugnação judicial (recurso) da decisão da autoridade administrativa que aplicou pena de admoestação não pode deixar de ser recebida”.
Concluindo, diremos, que caberá ao intérprete aplicar as normas jurídicas de acordo com a lei e a constituição, nessa conformidade, garantir o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, previsto no art.20.º da CRP, para tal, só será possível, quando seja admitido a impugnação judicial de uma decisão administrativa que aplique uma admoestação.
Face ao exposto, deverá o presente recurso da recorrente ser procedente, e ser o presente despacho revogado e ser substituído por outro que aprecie o presente recurso da recorrente.
“Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, apresentado pela ..., SA, vem esta impugnar o despacho proferido a fls.55, por via do qual foi rejeitado o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa de fls.32 a 35 que havia aplicado a pena de admoestação à arguida.
Na 1ª instância o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
Ora, aquilo que, se nos oferece dizer, desde logo, é que aderimos, por inteiro à argumentação do recorrente que se encontra devidamente fundamentada.
Com efeito, e perfilhando a tese defendida pelo recorrente, ou seja, mesmo quando a decisão condenatória da autoridade administrativa aplique pena de admoestação e não de coima continua a ser admissível a impugnação judicial.
Acompanhando toda a jurisprudência indicada pela recorrente acrescentaríamos apenas, o recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/02/2013, proferido no Processo nº119/12.5TBVFC.L1-5, http://www.dgsi.pt.
Assim, e sem necessidade de outras considerações emitimos parecer no sentido da procedência do recurso, devendo, em consequência, ser revogado o despacho recorrido.”
Cumpre decidir.
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Fundamentação
-Delimitação do objecto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice a questão suscitada pela recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se é admissível impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou a sanção de admoestação.
“ Porque legal e tempestivo, admito o recurso interposto.
Atento o teor do mesmo, afigura-se-me desnecessário proceder à realização de audiência de julgamento.
Assim e atenta a não oposição do M.P., notifique a arguida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64º, nº2 do Decreto-Lei nº433/82, de 27/10 (na redacção do Decreto-Lei nº244/95, de 14.09).
Prazo: 10 dias.
Mais notifique a recorrente que se entende que não se opõe a decisão por mero despacho o silêncio durante o prazo supra mencionado.”
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E, em 18 de Abril de 2013, foi no mesmo Processo proferido o despacho ora recorrido e cujo teor é o seguinte:
“ Nos presentes autos, a arguida ..., S.A. veio interpor recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferida a fls. 32 a 35 em que lhe foi aplicada uma admoestação, pela prática de uma contra-ordenação, prevista e sancionada pelo artigo 22º, al.a) e b) do Código da Publicidade.
O artigo 59º do Decreto-Lei nº433/82, de 27 de Outubro, alterado pela Declaração de 6 de Janeiro de 1983, pelo Decreto-lei nº356/89, de 17 de Outubro, pela Declaração de 31 de Outubro de 1989, pelo Decreto-Lei nº244/95, de 14 de Setembro, pelo Decreto-Lei nº323/2001, de 17 de Dezembro e pela Lei nº109/2001, de 24 de Dezembro (doravante designado por Regime Geral das Contra-Ordenações –RGCO), prescreve, no seu nº1, que:
“ a decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial”.
Ora, considerando que a decisão proferida pela autoridade administrativa não aplicou qualquer coima, mas tão só uma admoestação, não se afigura admissível o presente recurso de impugnação judicial.
Face ao exposto, por inadmissível à luz das disposições conjugadas dos artigos 51º, 58º, nº1 e 59º, nº1, a contrario sensu, do Regime Geral das Contra-Ordenações, rejeito o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida ..., S.A..
(…)”
Compulsando os autos verifica-se que o despacho de 21 de Março de 2013 admitiu o recurso considerando o estabelecido no artigo 63º, do RGCO.
Atenta a não oposição do Ministério Público, já manifestada a 4 de Março de 2013, como resulta de fls.48, determinou-se a notificação da arguida nos termos e para os efeitos do disposto no art.64º, nº2, do Decreto-Lei nº433/82, de 27/10, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº244/95, de 14/09, tendo ainda sido ordenada a notificação da arguida “que se entende que não se opõe a decisão por mero despacho o silêncio durante o prazo supra mencionado.”
E, por despacho de 18 de Abril de 2013, foi rejeitado o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida ...SA” por inadmissível à luz das disposições conjugadas dos artigos 51º, 58º, nº1 e 59º, nº1, a contrario sensu, do Regime Geral das Contra-Ordenações”.
Ora, dispõe o art. 51.º do RGCO que quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação (nº1); a admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação, dispondo o art.58º, nº1, do mesmo diploma que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão, a coima e as sanções acessórias.
E o art.59º, nº1, do RGCO dispõe que a decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial.
O art.55º do RGCO, que tem como epígrafe “recurso das medidas das autoridades administrativas”, por seu turno, dispõe que as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem (nº1); o disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os direitos ou interesses das pessoas (nº2); é competente para decidir do recurso o tribunal previsto no artigo 61.º que decidirá em última instância.
Impõe-se, assim, saber se da interpretação conjugada dos arts.º 59º e 55º do RGCO, resulta a susceptibilidade de impugnação judicial da sanção administrativa que aplica a sanção de admoestação,
Ora, os direitos fundamentais, seja ao nível dos tratados internacionais, seja ao nível das constituições, não consagram expressamente e através de uma norma específica um direito geral ao recurso em relação a toda e qualquer decisão.
No entanto tem sido comum encontrar esse direito ao recurso a partir do direito fundamental e constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que na nossa Constituição tem uma consagração unívoca, como decorre do seu artigo 20.º
Com efeito, “o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, previsto no art. 20.º da CRP, é uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático (art. 2.º da CRP) e de uma Comunidade de Estados (União Europeia) informada pelo respeito dos direitos do homem, das liberdades fundamentais e do Estado de direito, cujo âmbito normativo abrange o direito de acesso ao direito, o direito de acesso aos tribunais, o direito à informação e consulta jurídica, o direito ao patrocínio judiciário, o direito à assistência de advogado, componentes de um direito geral à protecção jurídica (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, volume I, Coimbra, 2007, a pág. 409)”.
Por sua vez a CEDH, no seu art.6º, consagra o direito a um processo equitativo, conforme é jurisprudência do TEDH.
E a plenitude do acesso ao direito e da obtenção de uma tutela efectiva só tem relevância se esta compreender o direito ao recurso, enquanto uma das manifestações do princípio “pro actione”, não na vertente de acesso à jurisdição (fase inicial), mas de acesso às sucessivas instâncias (fase posterior).
Trata-se, no entanto, de um direito fundamental de configuração legal, na medida em que se deixa para as leis processuais a tramitação do regime de recursos.
As únicas excepções centram-se no direito ao recurso enquanto uma das garantias de defesa em processo penal e quando as restrições ao recurso acabem por representar uma vulnerabilidade ostensiva desse direito, por corresponderem a uma violação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva.
Por isso e caso se trate de uma sentença condenatória já haverá um pleno direito constitucional ao recurso por parte do condenado, por se incorporar no direito a uma tutela efectiva e encontrar reforço nas suas garantias de defesa [32.º, n.º 1 da Constituição; Ac. TC 322/1993; 265/1994; 610/1996; 189/2001; 49/2003].
E a propósito dos processos de contra-ordenação, também se consagra constitucionalmente que “são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa” [32.º, n.º 10 da Constituição].
Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30/05/2012, in www.dgsi.jtrc.pt “(…). O Regime Geral das Contra-Ordenações prevê que a decisão de autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial (artigo 59.º, n.º 1), podendo recorrer-se para o Tribunal da Relação das decisões judiciais que apreciem aquela impugnação nos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 73.º do RGCO. Com este regime fica assegurado o direito à apreciação jurisdicional das decisões sancionatórias administrativas que apliquem coimas pela prática de contra-ordenações, e, nalguns casos, admite-se a existência de um duplo grau de jurisdição na reapreciação dessas decisões. Conforme referiu Eduardo Correia, “a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”( - Direito penal e de mera ordenação-social, no B.F.D.U.C., n.º XLIX (1973), pág. 268.). Na contra-ordenação o substracto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta axiológico-socialmente neutra, sendo a proibição legal da mesma que lhe confere a qualificação de ilícita. Daí que a natureza puramente patrimonial da sanção que lhe é aplicável (a coima) se diferencia claramente, na sua essência e finalidades, das penas criminais, inclusive da multa. Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal. A introdução do n.º 10 no artigo 32.º da C.R.P., efectuada pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação. Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação directa ao processo de contra-ordenação. Conforme se sustentou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 659/06, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa, especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos sancionatórios, no n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P., não se pode incluir o direito a um duplo grau de apreciação jurisdicional( - Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.). Esta norma exige apenas que o arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões. A não inclusão do direito ao recurso, no âmbito mais vasto do direito de defesa constante do n.º 10 do artigo 32.º da C.R.P. ressalta da diferença de redacção dos nºs 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de 1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do artigo 32.º - B, do Projecto de Revisão Constitucional, n.º 4/VII, do PCP, foi rejeitada( - Vide o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág. 3412 a 3466.). Aliás, como é sabido, constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que a Constituição não impõe o duplo grau de recurso em matéria de facto ( - Cfr., entre outros, os Acórdãos 73/2007, 386/2009 e 632/2009, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.)
Ao que a Constituição vincula é que a decisão da autoridade administrativa seja susceptível de impugnação judicial.
Não só por força do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, mas, ainda, por ter assento constitucional a garantia de que «nos processos de contra -ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa», constante actualmente, do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição .
Assim, e nas palavras de Figueiredo Dias, «é uma exigência constitucional do Estado de direito que mesmo uma matéria como a das contra -ordenações e das coimas seja susceptível de controlo judicial e de que sobre ela caiba a um tribunal, não como vimos a primeira mas em todo o caso e sempre a última palavra».
Daí, as normas relativas ao «Recurso e Processo Judiciais», conforme epígrafe do capítulo IV do Decreto –Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, compreendendo os artigos 59.º a 75.º
Ora, como já se disse, dispõe o art.59º, nº1, do RGCO que “a decisão que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial”
E certo é que, no caso, não foi aplicada qualquer coima, mas sim a sanção de admoestação, pelo que fazendo apelo a uma interpretação literal do preceito, a sanção de admoestação seria insusceptível de impugnação.
Porém, como referido no Ac. R. de Évora de 11/11/2010, disponível em www.dgsi.pt. afigurando-se que constitui uma sanção (referindo-se à admoestação) e, em nosso entender, na vertente de substituição da coima, não deixa de revestir uma condenação da autoridade administrativa e, como tal, projectando-se nos interesses da pessoa a quem é dirigida, ainda que com o efeito limitado a que se aludiu, dado que pressupõe, desde logo, que a conduta imputada seja uma infracção e cometida com culpa”.
(…)“por outro lado, salienta-se a incongruência que resultará de ser admissível a impugnação judicial de decisões, despachos e medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo, nos termos do art. 55.º, n.º 1, do RGCO, e isso já não acontecer quando se trate de decisão, final, aplicando admoestação”, pois “a impossibilidade de impugnação judicial redundaria contrária à faculdade, constitucionalmente garantida, de tutela jurisdicional efectiva dos administrados, relativamente à defesa dos seus direitos e interesses (art. 268.º, n.º 4, da CRP)”. Não se mostrando (…) compatível com a tutela jurisdicional efectiva, que a decisão administrativa que comine essa sanção, não seja susceptível de impugnação e se torne, por isso, definitiva” contendendo “com o próprio acesso ao direito e, por isso, com as garantias de defesa, em geral, reconhecidas, não sendo aceitável que, não obstante a admoestação não conste, expressamente, do elenco das decisões condenatórias (art. 58.º do RGCO), não deva ser vista como condenação, por apelo, (…), designadamente, à “unidade do sistema jurídico”.
Assim, se no processo contra-ordenacional o arguido tem direito a recorrer para uma instância judicial de despachos meramente interlocutórios, nos termos do artº55º, nº1 do RGCO por maioria de razão deve poder recorrer da decisão final que o condene em mera admoestação.
Com efeito, por força da unidade do sistema jurídico tem de interpretar-se a norma do artº59º, nº1 do RGCO no sentido de que quando se refere “uma coima” se pretende significar qualquer condenação, devendo pois incluir também e necessariamente a mera admoestação.
Face ao que, cumpre conceder provimento ao recurso e, consequentemente revogar o despacho recorrido, devendo seguir os autos os seus ulteriores termos.
Face ao exposto, acordam os Juízes na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
- Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida ....SA e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo seguir os autos os seus ulteriores termos em conformidade.
- Sem tributação.
Lisboa, 23 de Outubro de 2013
Laura Goulart Maurício
Jorge Langweg