PRESTAÇÃO DE CONTAS
CONTRATO DE MANDATO
PROCURAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I) A obrigação de prestar contas é uma obrigação de informação; existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.
II) A procuração é um negócio unilateral, que confere poderes de representação, distinto do mandato, contrato mediante o qual uma das partes se obriga à prática de actos jurídicos por conta da outra; o mandatário pode ou não ser representante do mandante.
IV) Quem administra bens de outrem, mesmo munido de procuração irrevogável, está obrigado a prestar contas da administração: não releva a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas, importa o facto dessa administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte.
VI) A lei consagra um efectivo duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, cabendo à Relação formar a sua própria convicção, verificados que estejam os requisitos de validade da impugnação e nos limites desta.

Texto Integral

Acordam, no Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório.

1. A… e B… intentaram acção especial de prestação de contas contra C… e condenação do mesmo no saldo a apurar, decorrente da administração (ao abrigo de procurações outorgadas para o efeito) de vários imóveis registados a seu favor, designadamente de vendas realizadas, do recebimento de quantias no âmbito de contratos-promessa de compra e venda e de mútuo, do recebimento de rendas, tendo ainda em conta empréstimos que contraiu em nome dos mesmos e obrigações fiscais resultantes dos negócios celebrados.

O Réu contestou a obrigação de prestar contas alegando que os prédios identificados, com excepção do que constitui a casa morada de família dos autores, não pertencem, nem nunca pertenceram àqueles, sendo antes bens de sua propriedade; que os Autores serviram, apenas, de “testas de ferro” como tinham combinado.

Foi proferida sentença a considerar a existência daquela obrigação pelo Réu aos Autores referente “à administração do património imobiliário registado em nome destes, e ao abrigo das procurações outorgadas pelos mesmos em 18 de Dezembro de 1996, 29 de Junho de 1998 e 23 de Maio de 2003.”

O Réu apelou.

Alegou concluindo que:

- Alegava o R., nos artigos 1.º e 8.º da sua contestação, que os prédios identificados nos autos, com excepção do que constitui a casa de morada de família dos AA., eram sua propriedade (real), pese embora estivessem registados em nomes dos AA. (proprietários presumidos pelo registo).

- Considerou, o Tribunal a quo, provado que os imóveis pertencem aos autores e ao réu em partes iguais (20 da matéria de facto provada).

- Salvo o devido respeito, que é muito, não andou bem o Tribunal a quo, ao assim considerar, por entendermos que do depoimento do A. marido – pessoa que, a par do Réu, melhor tem conhecimento, dos termos do acordo celebrado entre ambos, conjugado com o teor dos documentos, a fls.123, e documento de fls. 155 a 159 – que parece não terem sido levados em apreciação pelo mesmo Juiz a quo –, e do teor das procurações passadas a favor do R. (cujos termos sofrem notoriamente evolução), resultar exactamente o contrário, ou seja, que aqueles imóveis são propriedade (real) exclusiva do R.

- Como facilmente se pode constatar das declarações do A. marido, as quais devem ser apreciadas de uma forma mais abrangente e em conjugação com os demais elementos de prova, designadamente documentais, as diversas posições que adopta no processo, mormente a sua P.I. e declarações em depoimento de parte, mudando a sua versão à medida que era confrontado com elementos de prova, e até essa medida, de acordo com o que fosse mais conveniente para a sua posição, de modo a retirar delas toda a prova favorável à parte contrária.

- Começou por dizer, na sequência da inquirição efectuada pelo Meritíssimo Juiz, quando confrontado com a posição de defesa do R., que os prédios são dele porque estão no seu nome.

- Mais à frente, ainda, no seu depoimento, declarou que os €20.000,00 que recebeu do R. seria para fecharem as contas, acabando por dizer que o R. abriu mais contas e continuou a fazer a sua actividade.

- Este depoimento, que está conforme a prova documental junta aos autos, designadamente o contrato promessa de cessão de quotas e documento em anexo (assinado a 30 de Abril de 2003) e procuração (assinada em 23 de Maio de 2003) claramente demonstram que com aquele pagamento de €20.000,00, se algum negócio conjunto existia, ali terminou, e que os imóveis identificados na sentença eram, ou passaram a ser, propriedade (exclusiva) do R.

- Diga-se, por último, que também o teor das diversas procurações outorgadas deixam claramente transparecer a realidade das coisas – a primeira (de 1996), que foi outorgada para que o R. pudesse construir a casa de morada de família dos AA., constitui uma simples procuração com poderes gerais de administração civil, tendo havido intervenção de tradutor. As outras duas (1998 e 2003), já foram feitas no interesse do mandatário, sendo irrevogáveis, caducando, a última, com a venda dos prédios nela identificados – que são os que constam da declaração anexa ao contrato de promessa de cessão de quotas, e em causa nos presentes autos –, tudo num claro sinal que era o R. o real proprietário dos imóveis.

- Nesta conformidade, devia ter sido dado por provado que os imóveis pertenciam ao réu e não, como decidiu o Meritíssimo Juiz, que os imóveis pertenciam aos autores e réus em partes iguais (20 da matéria de facto), por ser o que resulta das declarações do A. marido conjugado, com a demais prova documental.

-No caso de ser procedente, como cremos, a impugnação da matéria de facto nos termos expostos supra, facilmente se concluirá serem, os imóveis identificados nos autos propriedade exclusiva do R. e, como tal, não haverá obrigação do R. prestar contas aos AA., por a administração não ser de ‘bens ou interesses alheios’, no caso, não serem aqueles bens propriedade (real) dos AA.

- No caso de se vir a entender, o que mui respeitosamente não se concede, que a matéria de facto foi correctamente julgada pelo Tribunal a quo, ainda assim, não andou bem o Tribunal a quo na sua decisão, uma vez que as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão foram, ressalvado o devido respeito, mal interpretadas e aplicadas.

- A obrigação de prestar contas é, como se vê do artigo 1014.º, o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter a definição de um saldo e de determinar, assim, a situação do réu – de quite, de devedor, ou de credor – perante o titular dos interesses geridos, com apuramento do crédito para este eventualmente resultante da actuação daquele. Com o julgamento das contas apresentadas por uma ou por outra parte, visa-se apurar quem deve e o que deve.

- Exigidas contas, mas contestada a obrigatoriedade da sua prestação, a questão prévia e prejudicial de direito substantivo a resolver é a de determinar, antes de mais, se o autor tem, ou não, efectivamente, o direito de as exigir e o réu a correlativa obrigação de as prestar.

- A ser assim, face ao teor das procurações constantes dos autos e à matéria em que o A. baseia a obrigação conclui-se que não existe obrigação de prestação de contas.

- No caso em apreço deve aplicar-se o disposto no artigo 262.º do Código Civil. As procurações de 1998 e 2003, aquelas que estão na base da venda dos imóveis e os AA. identificados na sua P.I., eram irrevogáveis, conferidas no interesse do procurador, incluindo podendo fazer negócio consigo mesmo, tendo a de 2003, sido outorgada depois do contrato promessa de cessão de quotas e documento anexo àquele, no qual os AA. (acompanhados pelo seu advogado, que elaborou o documento) declararam que os prédios ali descritos eram propriedade do réu, tendo por isso recebido os €20.000,00.

- Estamos, pois, perante procurações conferidas no interesse exclusivo do dominus (a este respeito, Pais de Vasconcelos, in a Procuração Irrevogável, Edição Almedina, Agosto de 2005). Neste caso, o interesse a salvaguardar é o do procurador e não os dos AA., pessoas que emitiram as procurações.

- O interesse dos AA., ora apelados, esgotou-se a partir do momento em que emitiram procuração no interesse exclusivo do procurador, ora apelante. Assim, sendo a prestação de contas uma obrigação de quem administra bens alheios, a mesma não se verifica no caso em apreço.

- Ao assim não decidir, o Tribunal a quo violou, pelo menos o disposto nos artigos 262.º, 573.º do Código Civil e 1014.º do Código de Processo Civil.

Os autores/recorridos contra alegaram em defesa do julgado, concluindo que os prédios pertenciam, em partes iguais, a Autores e Réu; os Autores outorgaram uma procuração a favor do Réu; o Réu agiu no seu interesse e no do Autor; nessa medida está o Réu obrigado a prestar contas ao Autor.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Matéria de Facto.

2. Na instância “a quo” foram dados por provados os seguintes factos:
1. Os Autores são cidadãos malteses e pouco falam a língua portuguesa;
2. De passagem por P…, onde pretendiam fixar residência, constituíram seu procurador o R… por procuração pública outorgada na Secretaria Notarial de P… a 18 de Dezembro de 1996, a quem conferiram os poderes para, nos termos e cláusulas que tivesse por convenientes: administrar todos os seus bens; comprar pelo preço e sob as cláusulas que entendesse representar em quaisquer Repartições públicas, para requerer quaisquer actos de registo, averbamentos e cancelamentos; celebrar contratos, efectuar pagamentos; consultar e movimentar, depositar e levantar em quaisquer instituições de crédito, quaisquer contas à ordem ou a prazo em nome dos mandantes, podendo assinar cheques, praticando e assinando tudo o necessário ao indicado fim;
3. Nessa altura, o Réu dedicava-se, entre outras, à actividade de construção civil, e recebeu dos Autores o valor de construção da moradia onde ainda hoje residem, sita em X…;
4. Já com os números de contribuinte definitivamente atribuídos, e titulando os Bilhetes de Identidade emitidos pelos SIC de P…, os Autores outorgaram a favor do Réu, no dia 29 de Junho de 1998, desta feita no Cartório Notarial da X…, procuração irrevogável a favor deste, dela constando ser feita também no interesse do mandatário, conferindo-lhe poderes para comprar ou vender quaisquer prédios rústicos ou urbanos, pagar ou receber o preço, assinar os necessários documentos e escrituras e ainda para movimentar em quaisquer bancos as contas deles mandantes, depositando e levantando quaisquer importâncias;
5. No dia 23 dias de Maio de 2003, os Autores constituíram seu procurador o Réu, por procuração lavrada no Cartório Notarial da X…, na qual lhe conferiam os poderes necessários para vender, a quem entender, podendo-o fazer para si mesmo, pelo preço, cláusulas e condições que julgar convenientes, os prédios nela especificados, receber os preços, outorgar e assinar no sentido exposto os necessários documentos e escrituras, outorgar escrituras de constituição de propriedade horizontal, podendo requerer todos e quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, inclusive, dela constando ser feita também no interesse do mandatário;
6. No âmbito dos poderes conferidos pela procuração de Junho de 1998, o Réu, por escritura de compra e venda de 30 de Setembro de 1998, em nome dos Autores, vendeu a E… o prédio urbano constituído por um lote de terreno destinado a construção urbana, sito ao X…, inscrito na matriz predial urbana sob o registo 2474 e descrito na Conservatória do Registo Predial de X… no número 1518/Y…, pelo preço de 2.500.000$00, declarando já o ter recebido;
7. No âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada em 23 de Maio de 2003, o Réu, como procurador em nome e em representação dos Autores, vendeu:
- No dia 20 de Janeiro de 2004, por escritura de compra e venda, a BF…, com entrada pelo n.º 57 de polícia, do prédio urbano descrito na CRP de X… sob o n.º 1703/20020628-A, pelo preço de €59.855,75, declarando já o ter recebido.
- No dia 7 de Junho de 2004, por escritura de compra e venda, a LA… e mulher EF…, pelo preço de € 124.750,00, a fracção autónoma denominada pela letra B, destinada a habitação, correspondente ao rés-do-chão, do prédio urbano sito à Rua …, descrita na CRP no n.º 1703-B, e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1754-B, declarando já o ter recebido.
- No dia 22 de Janeiro de 2004, por escritura de compra e venda, a CM… e mulher LM…, a fracção C do prédio descrito no n.º 1703/20020628, CRP de X.. e inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo 1754-C, pelo preço de €105.000,00 declarando já o ter recebido.
8. A 4 de Junho de 2004, sempre na invocada qualidade de procurador dos Autores, o Réu vendeu a GG…, o prédio urbano de casa destinada a habitação, sito na Rua …, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1001 e descrito na CRP de P… no n.º 98/F…, pelo preço de € 71.500,00, declarando já o ter recebido;
9. Sucede ainda que o Réu, em negócio consigo mesmo, em 2 de Maio de 2003, comprou para si aos Autores o prédio destinado a construção urbana, medindo 3178 n.º 2 de área, sito à Estrada Regional, da freguesia de W…, concelho de X…, descrito na CRP de X…, no n.º 292 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 1808, pelo preço de € 10.000,00, declarando já o ter recebido;
10.  Em Setembro do mesmo ano, o Réu vendeu o prédio referido no ponto 9 a UO…, pelo preço de € 224.459,05, declarando já ter recebido €99.759,58, e acordando no recebimento no prazo de 180 dias, de €124.699,47;
11.  Mostram-se inscritas em nome dos Autores as seguintes fracções autónomas:

- Designada pela letra A, constituída pelo rés-do-chão esquerdo com o n.º 50 de polícia, da Rua …, destinada a comércio, descrita na CRP de P… no n.º 849-A/FL…, e inscrita na matriz sob o artigo 167-A;

- Designada pela letra B, constituída pelo rés-do-chão direito com entrada e saída para a via pública pelo n.º 48 de polícia, descrita na CRP de P… no n.º 849-B/FLuz…, e inscrita na matriz sob o artigo 167-B;
12. Tais fracções encontram-se penhoradas à ordem de Execução movida pelos Autores pelo Banco…, para pagamento de quantia certa, pelo valor de €55.849,64, referente a empréstimo contraído pelo Réu;
13.  Por contrato promessa de compra e venda de 9 de Julho de 2001, o Réu, em nome e em representação dos Autores, declarou prometer vender a LH…, que declarou prometer comprar, o prédio urbano de casa baixa telhada, para habitação e comércio, sito à rua Direita do …, com o n.º 50 de polícia, freguesia dos FL…, descrito na CRP de P… no n.º 849 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 167, a constituir em propriedade horizontal, pelo preço de PTE 12.500.000$00, dos quais o Réu declarou receber, a título de sinal, a importância de PTE 5.000$00;
14.  Por aditamento de 16 de Novembro de 2001, o Réu, na qualidade de procurador e em nome e representação dos Autores, àquele contrato, acordou um reforço de sinal, tendo o promitente-comprador declarado entregar 1.250.000$00, e ficando o valor remanescente de ser pago no acto da escritura;
15.  Ainda por um segundo aditamento, o Réu e o promitente-comprador acordaram que o valor remanescente do preço seria pago em seis prestações mensais e sucessivas de €5.195,81, com início em 30 de Agosto de 2004 e termo em 30 de Janeiro de 2005;
16.  Sucede também que o Réu celebrou com MJ… e mulher PM…, em Novembro de 2001, um contrato que denominaram de mútuo e penhor mercantil, segundo o qual, o Réu concedia a estes um empréstimo no montante de €87.289,63, que estes destinariam à aquisição de Estabelecimento Comercial de … e respectivo imóvel, sendo que, daquele montante €37.409,84 era o preço do imóvel e €49.879,79 o do Estabelecimento Comercial de … e, para garantia do pagamento da quantia mutuada, juros e encargos com despesas judiciais que o Réu viesse a suportar, os mutuários deram de penhor, àquele, o Estabelecimento comercial instalado no prédio, sendo que o empréstimo venceria juros a taxa convencionada, mas ajustável de 6 em 6 meses de acordo com as taxas em vigor do Banco de Portugal, e seria amortizável em 15 anos, em prestações mensais e sucessivas, iniciais, no valor de €760,38;
17.  O prédio em que se encontrava instalado este estabelecimento comercial e que só mais tarde veio a ser alvo de constituição de propriedade horizontal, é hoje composto pelas fracções autónomas referidas no ponto 11.
18.  O Réu recebeu rendas prediais de imóveis inscritos em nome dos Autores no valor de pelo menos € 4.788,46, tendo os Autores sido notificados pela Direcção Geral dos Impostos, no âmbito do Processo n.º 29…/60…, para efectuar pagamento de coima no valor de € 250,00 em virtude de não haver apresentado o anexo F por rendas recebidas em 2002, nesse valor;
19.  Foi apresentada declaração de IRS, em nome dos Autores, referente a rendimentos de 2004, em que foram declaradas mais-valias, originando uma alteração de rendimento colectável de €113.439,30;
20.  Os imóveis pertenciam aos Autores e ao Réu em partes iguais.

Colhidos os vistos, há que conhecer.

O Direito.

3. O recorrente impugna a matéria de facto em que o Tribunal se baseou.

Fá-lo, designadamente, quanto ao ponto 20 (“os imóveis pertenciam aos Autores e ao Réu em partes iguais”), já que o depoimento do Autor-marido, que na sua óptica era a “pessoa que a par do Réu, melhor tem conhecimento dos termos do acordo celebrado entre ambos”, conjugado com o teor dos documentos de fls. 123 e documento de fls. 155 a 159, “parece não terem sido levados em apreciação”.

Refere, ainda, que esse depoimento, que está conforme a prova documental “designadamente o contrato de promessa de cessão de quotas e documento em anexo (assinado a 30 de Abril de 2003) e procuração (assinada em 23 de Maio de 2003), claramente demonstram que com o pagamento dos referenciados € 20.000,00, se algum negócio existia, ali terminou”, e que os imóveis, identificados na sentença, eram, ou passaram a ser, propriedade exclusiva do Réu.

Vejamos.

A Relação pode reapreciar as provas “em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão” sobre os pontos da matéria de facto impugnados, procedendo à audição ou leitura dos depoimentos indicados pelas partes (artigos 712.º, n.º 2 e 685-B, n.º 4 do Código de Processo Civil).

Considerando esta amplitude dos poderes de reapreciação existe um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição sobre a apreciação e conteúdo da prova produzida.

E como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2012 – Proc. nº 866-P/2001.G1.S1 – “À Relação impõe-se declarar se os pontos de facto impugnados foram bem ou mal julgados e, em conformidade com esse julgamento, manter ou alterar a decisão proferida sobre os mesmos. Nessa medida (…) pode mesmo dizer-se que o tribunal de recurso actua como tribunal de substituição relativamente ao tribunal recorrido, regime que se revela aceitável como decorrência do concurso dos pressupostos a que alude o n.º 1 do artigo 712.º, a colocar a 2.ª instância na posse dos mesmos elementos probatórios de que dispunha a 1.ª.”

Na vigência do depois revogado 690º-A do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 18 de Agosto (artigo 8.º) a alteração da decisão da 1.ª Instância quanto à matéria de facto pressupunha que do processo constassem todos os elementos de prova que tinham servido de base àquela decisão ou se, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, a impugnação tivesse sido feita nos termos daquele preceito.

Julgou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2006 – Proc. nº 06A1838: “Mas também incumbe ao impugnante da matéria de facto indicar ‘os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados’. O n.º 1 do artigo 712.º do diploma adjectivo dispõe a possibilidade de alteração, pela Relação, da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto, se do processo constarem todos os elementos que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido a gravação, tiver havido impugnação de acordo com o citado artigo 690-A. Como refere o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2005 (P.º 3153/05-1.ª) ‘foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do Decreto-Lei n.º 39/95, criar um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, embora temperada pelo ónus imposto ao recorrente de delimitação concreta do objecto do recurso e da respectiva fundamentação, a fim de evitar a impugnação genérica da decisão de facto no seu todo.

“E assim é porque – embora a Relação forme a sua própria convicção dentro do princípio da livre apreciação das provas nos mesmos termos do Tribunal a quo – a ausência da imediação do contacto directo com a prova, a não suficiência, para percepção de detalhes e características idiossincráticas das testemunhas (o que releva para estribar convicções), de sistemas de gravação, não permitem uma perfeita documentação do ocorrido na 1.ª instância. Será uma actividade difícil e penosa, passar várias horas a ouvir gravações, tentando identificar e reconhecer vozes dos depoentes e de outros intervenientes, relacioná-las com o que consta da acta e cotejá-las com as motivações, tantas vezes sem o necessário apuro técnico.”

É diferente o regime aqui aplicável.

E o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2012, proferido no Proc.º nº 10/08.TBVNV.G1.S1, decidiu que a Relação, em sede de matéria de facto, pode, além de determinar a renovação da prova (procedendo ao reenvio); mandar fundamentar o julgado; anular a deliberação ou, mais importante, e é o que aqui releva, alterar o julgado em matéria de facto.
A última das situações está prevista no artigo 712.º do Código de Processo Civil (notando-se que iremos aplicar a redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, considerando a data em que a acção foi proposta).
Do elenco do n.º 1 deste preceito ressalta a alínea a) a dispor, como “conditio”, constarem do processo “todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685-B a decisão com base neles proferida.”
Já a alínea b) da mesma norma exige que “os elementos fornecidos pelo processo imponham decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.”
Finalmente, e de acordo com a alínea c), a superveniência de documento apresentado pelo impetrante “por si só” suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.”

Movemo-nos, para já, no âmbito da alínea a) do n.º 1 do citado artigo 712.º.
No caso vertente, ocorreu a gravação dos depoimentos prestados.
Resta apurar se o recorrente satisfez o ónus do direito de impugnação a que se refere o artigo 685-B do diploma adjectivo.
Tal implica a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do n.º 1): “Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada” (alínea b) do n.º 1), sendo que, neste último caso tem o ónus cujo incumprimento é fulminado com imediata rejeição do recurso, de “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda”, sem prejuízo de as transcrever, transcrição obrigatória se o meio utilizado para a gravação não permitir a “identificação precisa e separada dos depoimentos.” (n.º 4 do mesmo preceito).
Ora, no caso, o recorrente indicou os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados mas, no tocante à prova gravada, não indicou com exactidão as passagens da gravação em que se fundou.
Todavia, como procedeu à respectiva transcrição e, no essencial, fundou a sua discordância na prova documental, têm-se por cumprido o ónus que lhe está legalmente imposto.
A gravação foi por nós ouvida.

Só que os depoimentos gravados e os documentos juntos, não permitem alterar o que a 1.ª Instância concluiu ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, permissivo de fundar a sua convicção.

E a nossa convicção – ora, e de novo, formada, acaba por ser coincidente com a da 1.ª Instância onde, apodicticamente se refere:

“Resultou dos depoimentos de parte dos Autores, pois, uma ‘zona cinzenta’ entre as versões das partes espelhadas nos articulados, coerente com a remanescente prova produzida, mormente o depoimento da filha do casal, D… (que revelou conhecimento, mas apenas genérico – e é natural que assim seja atenta a sua idade, tanto mais considerando que grande parte dos factos ocorreu há dez anos – dos ‘negócios’ do Pai e do Réu, designadamente que a dita empresa chegou a ter sede na casa de morada de família), das testemunhas PM…, LH… e EF…, todos com intervenção directa e pessoal nos negócios firmados com o Réu (e que confirmaram que trataram de todas as questões com este, quer na negociação dos contratos, quer no pagamento das quantias daí decorrentes), conjugado com os documentos a fls. 11-13 (ponto 2), 15-17 (ponto 4), 18-21 (ponto 5), 22-24 (ponto 6), 26-32, 33-38 e 39-48 (ponto 7), 46-51 (ponto 8), 52-54 (ponto 9), 55-58 (ponto 10), 59-62 (pontos 11 e 17), 63-66 (ponto 13), 67-76 (ponto 14), 71-73 (ponto 15), 74-79 (pontos 16 e 17) e, bem assim, da testemunha (arrolada pelo Réu) EH… [à data gerente do Banco…, e que confirmou que o Réu recorria a crédito para o desenvolvimento da referida actividade, em seu nome e, também, em nome do Autor (nas palavras da testemunha, funcionavam como uma ‘sociedade irregular’), sem prejuízo de ser ele quem efectuava os pagamentos].

Todas as testemunhas mereceram credibilidade.

Atendeu-se ainda aos documentos a fls. 81 e 82-91 para a prova do referido nos pontos 18 e 19, conjugado, como se referiu, com o depoimento de D….

Quanto ao mais alegado na petição inicial, não foi produzido qualquer meio de prova.

A matéria constante do ponto 20, corresponde a um minus do que fora alegado na contestação a este propósito (aí se diz que eram exclusivamente bens próprios do Réu, o que, como se viu, não corresponde à verdade). Toda a remanescente matéria é de impugnação motivada, não merecendo resposta autónoma.”

Indefere-se, em consequência, o pedido de alteração da matéria de facto.

4. Inalterada a matéria de facto provada, há que passar, então, à obrigação de prestar contas.

Julgou esta Relação, em Acórdão de 19 de Janeiro de 2006 – proc. nº 10895/2005-6 – relatado pela, ora, 2.ª adjunta, que:

“1. A obrigação de prestar contas é uma obrigação de informação. Esta existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573º do CC).

“2. O fim da acção de prestação de contas é, como se vê do art. 1014º, o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter a definição de um saldo e de determinar, assim, a situação do réu - de quite, de devedor, ou de credor - perante o titular dos interesses geridos, com apuramento do crédito para este eventualmente resultante da actuação daquele. Com o julgamento das contas apresentadas por uma ou por outra parte, visa-se apurar quem deve e o que deve.

“3. A fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva. O que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte.

“4. Entre os legalmente obrigados à prestação de contas figura o mandatário. Nos termos do art. 1161º, d) do CC, o mandatário é obrigado a prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir.”.

Dentro destes princípios é evidente que o Réu deve prestar contas da sua administração/gestão.

E nem se diga que a alínea d) do artigo 1161.º do Código Civil isenta desse dever o mandatário quando o mandato é conferido por procuração irrevogável.

Certo, antes do mais, que procuração e mandato são negócios jurídicos diferentes.

Aquela é um negócio unilateral enquanto este é um contrato.

De outra banda, aqui o mandatário tem o dever de exercer o mandato, enquanto a procuração lhe confere, tão-somente, possibilidade de o exercer.

Em ambos os casos pode pôr-se o problema da irrevogabilidade, só que no mandato a solução passa pela sua natureza contratual, enquanto na procuração há marcada influência da sua unilateralidade.

A definição de procuração consta do n.º 1 do artigo 262.º do Código Civil sendo o instrumento através do qual se confere o mandato.

Como refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (“A Procuração Irrevogável”, p. 126):

“Através da procuração, o dominus outorga ao procurador o poder de representação. A procuração é, por isso, um negócio jurídico unilateral, que afecta a esfera jurídica de alguém que não é parte nesse negócio (…). Para que o dominus possa afectar a esfera jurídica do procurador, é necessário que tenha legitimidade para o fazer. Uma vez que o negócio é unilateral, a legitimidade não resulta do acordo do procurador. Também não pode dizer-se que essa legitimidade resulte de uma permissão contida na relação subjacente, uma vez que a prévia existência da relação subjacente não é essencial para a eficácia da procuração.

“A partir do momento da outorga da procuração, o procurador pode representar o dominus eficazmente ainda que antes da existência de uma relação subjacente, embora não deva ainda propriamente agir no uso dos poderes de representação, incorrendo em abuso de representação se o fizer.”

Acresce que a obrigação de prestar contas é, além do mais, uma obrigação de informar, da previsão do artigo 573.º do Código Civil.

O objectivo desta lide é buscar um saldo em termos de apurar da quitação do réu como devedor ou credor do autor.

Nos termos da alínea d) do artigo 1161.º do Código Civil, o mandatário é obrigado a prestar contas “findo o mandato ou quando o mandante as exigir”, sendo que, e como acima já se insinuou, a procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação (artigo 262.º, n.º 1 do Código Civil), enquanto o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outro (artigo 1157.º do Código Civil) – Vaz Serra, RLJ, 112-222.

O mandatário pode, ou não, ser representante do mandante.

Mas sendo-o, detém poderes e obrigações relativamente ao mandante-representante, nos termos dos artigos 1161.º e 1178.º do diploma citado. (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, II, notas ao artigo 1178.º).

Tratando-se de mandato com representação são aplicáveis as regras de ambos os institutos.

Ora, no caso, administrando o réu bens alheios é obrigado a prestar contas, independentemente do tipo de procuração.

Improcede, desta forma o núcleo central da sua argumentação, merecendo a sentença recorrida confirmação.

Decisão.

5. Termos em que se acorda negar provimento à apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.

           Lisboa, 31 de Outubro de 2013.

       (Maria Manuela B. Santos G. Gomes)

               (Olindo dos Santos Geraldes)

                      ( Fátima Galante )