DEPOIMENTO POR ESCRITO
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ROL DE TESTEMUNHAS
ADITAMENTO
Sumário

I) A consagração legal do depoimento por escrito constitui prerrogativa concedida em função do cargo do depoente; não é privilégio ou, menos ainda, vantagem da parte arrolante.
II) O dever de a parte apresentar as testemunhas arroladas em aditamento ao rol inicial, não impede o uso dessa prerrogativa pela testemunha a quem a lei a concede.
III) O depoimento por escrito não obsta ao contraditório vista a faculdade de as partes, dele notificadas, solicitarem esclarecimentos ou a presença da testemunha em audiência.
IV) O depoimento por escrito não tem as mesmas características do presencial, mas não coloca absolutamente em causa a imediação, apesar de esta surgir mitigada, como ocorre com outras situações de inquirição sem a presença física (v.g. telefónica) ou de audição de depoimentos em segunda instância.
V) A admissão do depoimento por escrito tem como pressuposto o estatuto ou condição profissional da testemunha e não a ponderação da concreta intervenção da pessoa em causa no espaço público.(AAC)

Texto Integral

Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

1. Na acção ordinária[1] que o A contra a R, na sequência do requerimento em que o A requer “seja ordenada a remessa ao referido Magistrado, de cópia da base Instrutória, com a menção de que deve o mesmo depor por escrito, em prazo a fixar…” (cfr. fls 14), veio a R., supra identificada e ora apelante, opor-se solicitando seja “indeferido o requerido depoimento por escrito” (cfr. fls 17/20).

 No processamento ulterior dos autos, foi proferido o despacho fotocopiado a fls 11/2, em 23.05.2013, que decidiu admitir “a testemunha a depor por escrito”.

2. É desta decisão que, inconformada, a R vem apelar, pretendendo a revogação do despacho recorrido e que seja ordenado o depoimento presencial da testemunha R… na audiência de julgamento. 

Alegando, conclui:

I – Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 23 de Maio de 2013, que admitiu o depoimento por escrito da testemunha R…, dada a sua qualidade de juiz desembargador, ao abrigo do disposto no art.º 624º nº 1 al. b) do CPC.

II – Tal testemunha porque foi arrolada pela A, nos termos do art.º 512º-A do CPC deveria, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, ser apresentada pela parte em audiência de julgamento, não cabendo ao tribunal notificá-la para qualquer efeito.

III – O depoimento por escrito não permite um contraditório efectivo, criando objectivamente uma situação de desigualdade das partes na produção da prova, seja por passar a constar dos autos um depoimento escrito sem qualquer contraditório efectivo, seja por a lei só permitir, nos termos do nº 4 do art.º 626º do CPC, à parte que tiver indicado a testemunha “solicitar a sua audiência em tribunal”.

IV – Inexistem interesses relevantes que possam justificar a inquirição por escrito da testemunha em causa, face aos princípios da imediação da prova, do contraditório (art.º 3º nºs 2 e 3, 1ª parte do CPC) e da igualdade das partes (art.º 3º-A do CPC), garantias essenciais de um julgamento justo.

V – Tendo a testemunha em causa sido indicada a vasta e relevante matéria em discussão e face à oposição manifestada pela ora recorrente ao seu depoimento por escrito, sempre poderia e deveria o tribunal “a quo” ter aplicado e apreciado em concreto o regime legal em causa, ponderando os interesses em causa e determinando a prestação de depoimento presencial.

VI – Ou, se assim o entendesse, poderia determiná-lo nos termos do art.º 265º-A do CPC.

VII – O regime legal dos depoimentos escritos, consagrado nos art.ºs 624º e 626º do CPC, em concreto no seu nº 4, põe em causa o direito a um julgamento equitativo, violando o disposto no art.º 20º nº 4 da CPR, inconstitucionalidade que expressamente se vem alegar, e no art.º 6º nº 1 da CEDH.

3. Não foram apresentadas contra-alegações. 

4. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto

Para além do que se deixou consignado no relatório supra, importa tomar em consideração, como matéria de facto relevante, documentalmente comprovada, a seguinte:

1. O A apresentou inicialmente o requerimento probatório de fls 23, arrolando 19 testemunhas.

2. Veio posteriormente, face à notificação de “dificuldades encontradas na notificação das suas testemunhas”, substituir a testemunha 12ª pela testemunha “R…, Juiz Desembargador …, a apresentar”.

3. No requerimento de fls 14, posterior ao referido em 2., veio alegar que a testemunha em causa “manifestou ao Autor a vontade de depor por escrito” e nessas circunstâncias requer o supra relatado.          


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2. De direito

Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[2].

Decorre do exposto que a questão essencial que importa dilucidar e resolver pode equacionar-se da seguinte forma:

Não é de admitir o depoimento por escrito, de uma testemunha, pese embora a sua condição de juiz de tribunal superior, por ter sido indicada na sequência de uma alteração ao rol de testemunhas e porque o depoimento por escrito cria uma situação de desigualdade das partes, não existindo interesses relevantes que justifiquem tal depoimento por escrito, além de que o mesmo, nessas circunstâncias, põe em causa o direito a um julgamento equitativo, violando o art.º 20º nº 4 da CRP e o art.º 6º nº 1 da CEDH?  

Vejamos.


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  A tese da recorrente parte de um pressuposto ou fundamento, a circunstância de incumbir às partes o dever de apresentar as testemunhas na sequência de alteração ao rol inicial, ex vi art.º 512º-A nº 2, mas acaba depois por situar a admissibilidade do depoimento por escrito num patamar mais amplo, ou seja, colocando em causa qualquer depoimento por escrito, por considerar, em súmula, que o regime legal que o possibilita viola o direito a um julgamento equitativo.

  Analisados os argumentos da recorrente afigura-se-nos, ressalvada, como sempre, melhor opinião em contrário, que não lhe assiste razão, o que a seguir se procurará evidenciar.

  Com efeito, cremos que a recorrente parte de uma determinada concepção sobre o regime do depoimento escrito, a de que o mesmo cria uma vantagem para a parte que indica a testemunha a depor nessas circunstâncias, que não é a concepção consagrada na lei. Afigura-se-nos que esta tem subjacente à admissibilidade dos depoimentos por escrito a atribuição de uma “prerrogativa”, tal como a qualifica o art.º 624º do Código de Processo Civil[3], a determinadas entidades ou pessoas, em função do cargo que exercem, e não qualquer privilégio ou vantagem à parte que indica uma dessas pessoas com possibilidade de depor por escrito. Aliás, tal “prerrogativa” até se estende, no caso do Presidente da República, a não prestar depoimento se “declarar que não tem conhecimento dos factos sobre que foi pedido o seu depoimento” ou, caso prefira depor sem ser por escrito, a serem os seus serviços a indicar o dia, hora e local, para o seu depoimento ser prestado (cfr. art.º 625º nºs 2 e 5).    

   A esta interpretação chegamos pelo facto de não estar na disponibilidade da parte que arrola a testemunha que esta preste depoimento por escrito, sendo antes tal opção ou “preferência”, como a lei a qualifica, um direito da testemunha, a exercer quando lhe é dado conhecimento dos factos sobre que deve recair o seu depoimento (cfr. nºs 2 e 3 do art.º 626º). A parte apenas pode, quando indica a testemunha, solicitar a sua audiência presencialmente no tribunal, justificando a razão dessa necessidade, sendo certo que o tribunal decidirá sobre tal pretensão sem recurso (cfr. art.º 626º nº 4). Também neste aspecto labora em equívoco a R. quando, referindo este último preceito legal, pretexta que ele cria uma situação de desigualdade ao conceder apenas à parte que arrola a testemunha a possibilidade de requerer a inquirição da mesma em audiência. Assim não é porquanto, prestado o depoimento por escrito, qualquer das partes pode solicitar ao tribunal (justificando naturalmente a razão e o sentido do requerido, nomeadamente para um completo e cabal esclarecimento das declarações ou considerando a relevância do depoimento) e este decidir, ao abrigo do nº 5 do art.º 626º citado (sem necessidade de invocar o art.º 265º-A a que alude a recorrente), que é necessária a presença dessa pessoa em tribunal, para o que será então notificada para depor, ainda que seja um depoimento complementar ou com vista a esclarecimentos sobre o depoimento escrito.

        Nesta medida, a circunstância de no nº 2 do art.º 512º-A se estabelecer que é dever das partes apresentarem em tribunal as testemunhas na sequência de alteração do rol inicial, não pode deixar de interpretar-se como um dever em termos de normalidade, ou seja, tal dever só existe em relação às testemunhas que normalmente seriam a notificar pelo tribunal. Não é possível impor esse dever à parte no caso de não estar na disponibilidade desta essa apresentação, por ser direito da testemunha depor por escrito, como é o caso da testemunha em causa.

        Conclui-se pois que o nº 2 do art.º 512º-A não é impeditivo de ser prestado, por escrito, o depoimento de testemunha que foi indicada na sequência de alteração ao rol inicial e que, atenta a sua qualidade ou condição profissional, é uma daquelas a quem a lei atribui tal direito de depor por escrito.

       Também não é verdade que o depoimento por escrito não permita “qualquer contraditório efectivo”, como argumenta a recorrente, e por isso, crie uma situação de desigualdade das partes na produção de prova. Com efeito, perante uma testemunha que depõe por escrito as partes encontram-se, rigorosamente, na mesma posição, ou seja, ausentes do local e sem poder percepcionar o modo como o depoimento é escrito. Mas qualquer uma delas pode, quando notificada do depoimento, “solicitar esclarecimentos” (cfr. art.º 626º nº 4), sem prejuízo, como já acima se referiu e ao abrigo do nº 5 do mesmo preceito de, também qualquer uma delas, poder solicitar a presença da testemunha em tribunal para aí serem prestados esses esclarecimentos.

         Não se duvida, o que aliás já resulta do que atrás se deixou referido, que o depoimento por escrito é prestado em condições diferentes de um depoimento presencial, não permitindo ao julgador e às partes a percepção sobre todos os aspectos relevantes na apreciação da prova testemunhal, como permite um depoimento presencial em audiência. Mas essa é uma opção do legislador (com ou sem fundamento adiante veremos), o que não invalida que não deixem de se considerar e valorar esses aspectos, da falta de imediação, quando da ponderação da prova produzida.

        Porém, ao contrário do que também pretexta a recorrente, não cremos que tal opção legislativa não tenha subjacentes “interesses relevantes”, como a apelante argumenta, e que a mesma coloque em causa as garantias essenciais do direito a um julgamento justo e equitativo.

        Não viola os princípios do contraditório e da igualdade das partes pelas razões já atrás aduzidas, a que acrescem os seguintes considerandos. Os comandos contidos nos art.ºs 3º e 3º--A, que impõem ao tribunal o dever de observar e cumprir o princípio do contraditório e assegurar uma igualdade substancial das partes, respectivamente, em nada são beliscados. Com efeito, qualquer uma das partes pode pedir esclarecimentos escritos relativamente ao depoimento prestado e até solicitar a presença da testemunha, em audiência, para os mesmos serem prestados presencialmente, assim sendo assegurado o mesmo direito a qualquer das partes de influenciar a decisão, nomeadamente ao nível da valoração da prova. A dialéctica e o confronto das posições divergentes das partes está assegurada no que tange à valoração da prova e a sua igualdade substancial existe quanto à percepção sobre a produção desse meio de prova, o depoimento escrito.

        Igualmente tal opção legislativa não se configura violadora do princípio da imediação, em moldes que o coloquem absolutamente em causa. Se é certo que um depoimento escrito não tem as mesmas características do depoimento presencial em audiência, também não se trata de um depoimento indirecto ou prestado por terceiro. Por outro lado, não é o único depoimento que a lei considera admissível não ser prestado presencialmente em audiência. Além do depoimento por escrito, por acordo das partes (cfr. art.º 639º), também a inquirição por acordo das partes (cfr. art.º 638º-A) não é objecto da imediação por parte do tribunal. Acresce que a audição de testemunha, por telefone, é igualmente possível (cfr. art.º 639º-B) e a imediação também aí fica limitada já que não é possível a percepção directa sobre o comportamento da testemunha. Por outro lado, como sabemos, a reapreciação da prova e o julgamento da matéria de facto, em 2ª instância, também não garante o princípio da imediação, porquanto a prova gravada em 1ª instância é apenas em suporte áudio e não áudio e vídeo. Ora, apesar disso tal não tem constituído argumento para desvalorizar esse julgamento da matéria de facto em 2ª instância. Muito pelo contrário, ainda recentemente, com o CPC2013, o legislador quis “reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada” (citámos o preâmbulo da Proposta de Lei nº 113/XII/2ª, acessível em www.parlamento.pt, que esteve subjacente à Lei nº 41/2013 de 26.06, que aprovou o CPC2013). 

         Quanto ao direito a um julgamento justo e equitativo, não se nos afigura que o mesmo seja colocado em causa, com o depoimento escrito, sendo certo que a apelante limita-se à afirmação dessa violação, sem demonstração. Crê-se, assim, que os normativos processuais em causa, que possibilitam o testemunho por escrito, não são violadores dos citados comandos, constitucional e internacional, este com vigência na ordem jurídica interna.

         Por outro lado na pesquisa realizada sobre a jurisprudência, quer do Tribunal Constitucional, quer do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não encontrámos arestos que tenham considerado haver violação do direito a um julgamento justo e equitativo ao valorar-se um depoimento escrito, nas circunstâncias em que ele é admitido na lei processual civil portuguesa. Sendo certo que a recorrente também não invoca a existência dessa jurisprudência nas suas alegações, o que poderia ser útil para a ponderação deste Tribunal.

         Finalmente diga-se, não poder dar-se acolhimento à tese da recorrente de que o juiz desembargador em concreto, porque “com grande regularidade intervém voluntariamente na arena pública nacional, nomeadamente através dos meios de comunicação social, sujeitando-se a contraditórios de grande violência…” e parece entender-se que com isso não coloca em causa o prestígio das suas funções, então também não seria pelo facto de depor presencialmente que ira “colocar em causa esse “prestígio das funções de juiz desembargador”.

      Tal argumento não é relevante e, por isso, não pode acolher-se.

Desde logo porque não está em causa, para decidir da possibilidade de admitir um depoimento por escrito, a pessoa concreta do depoente, mas antes o estatuto ou condição profissional, em abstracto, da pessoa. Depois porque a questão de saber se com o referido comportamento na “arena pública nacional” é ou não colocado em causa o prestígio das funções não é aspecto de que este Tribunal tenha que cuidar, competindo tal actividade ao órgão de gestão e disciplina dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura.      

      Em suma e em resumo, é de responder negativamente à questão supra equacionada, improcedendo assim as alegações da recorrente, devendo pois confirmar-se o despacho recorrido.      


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III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.

Custas a cargo da R. apelante.


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 Lisboa,

 (António Martins)

(Maria Teresa Soares)

 (Ana Lucinda Cabral)


[1] Proc. nº 1451/08.8TVLSB da 3º Secção da 6ª Vara Cível de Lisboa 
[2] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos no que tange à matéria dos recursos, por força do disposto no art.º 5º nº 1 da citada lei, adiante designado abreviadamente de CPC2013.
[3] Aprovado pelo DL 44 129 de 28.12.1961, com sucessivas alterações posteriores, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação ou também designado por CPC1961, à luz do qual se analisará a questão em causa nos autos, considerando que era o regime em vigor à data em que a pretensão foi formulada e consequentemente o CPC aprovado pela Lei 41/2013 só deve aplicar-se a situações futuras, sendo certo que no caso presente e para a questão concreta nem há diferença de regime pois os art.ºs 503º a 505º do CP2013 correspondem aos art.ºs 624º a 626º do CPC1961