OPOSIÇÃO À PENHORA
IMPENHORABILIDADE
COISA DE UTILIDADE PÚBLICA
RECEITA FISCAL
Sumário

I - Só são impenhoráveis, à luz do disposto no nº 1 do art 823º CPC, os bens que se encontrem especialmente afectos à realização de fins de utilidade pública e não os apenas genericamente afectos a tais fins, pois, e de uma maneira geral, todos os bens do Estado se encontram afectos a esses fins, o que tornaria inútil a norma em causa.
II - Porque a executada oponente não alegou e não provou que a receita do imposto de selo que foi objecto da penhora se encontrasse especialmente afecta a fins de utilidade pública – o que só poderia suceder através da respectiva consignação orçamental – há que concluir que essa receita fiscal é substancialmente penhorável.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Na execução que o Banco “A” SA, move à Região Autónoma da Madeira – Governo Regional da Madeira, e em que foi penhorado o crédito proveniente da transferência do Estado para a Região Autónoma da Madeira efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 20/12/2012, com a referência –DGCI SELO RAM, até ao montante de € 715.716,92, veio a executada opor-se a tal penhora, alegando, entre o mais aqui já não relevante, que não foi penhorado um crédito do Estado sobre a Região, mas sim transferências de receita fiscal própria da Região, uma vez que a Região Autónoma da Madeira não prestou nenhum serviço ao Estado para obter as suas receitas, e que as receitas fiscais da Região estão afectas à realização de fins de utilidade pública, constituindo uma das principais fontes de financiamento do Orçamento da Região e, consequentemente, de todo o funcionamento da Administração Pública Regional, pelo que a sua penhora impede a Região de utilizá-las para pagamento de salários e outras despesas correntes.
A exequente pronunciou-se pela improcedência da pretensão do oponente, referindo que cabia à oponente provar que o bem penhorado está especialmente  afectado a fins de utilidade pública, não bastando que esteja apenas afecto a tais fins.
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Tendo sido entendido que a questão suscitada era meramente jurídica, foi de imediato proferido despacho, nos seguintes termos:
«O instituto da oposição à penhora está previsto nos artigos 863º-A e B do CPC. Pode o executado opor-se à penhora quando são penhorados bens que lhe pertencem, verificando-se um dos condicionalismos previstos no nº1 do art. 863º-A do CPC. Estipula o art. 863º-A nº1 do CPC que sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos: a) inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; c) incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.
No caso concreto, a executada invoca a inadmissibilidade da penhora que foi levada a cabo pelo agente de execução. Vejamos.
Resulta de fls. 21 que foi penhorado, nos presentes autos, um crédito proveniente da transferência do Estado para a Região Autónoma da Madeira, efectuada pela AT – Autoridade Tributária e Aduaneira em 20.12.2012, com a referência –DGCI I SELO RAM Transferência no valor total de € 715.716,92.
Estipula o art. 823º do CPC que estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
 Compulsados os autos, verifica-se que a dívida exequenda não beneficia de garantia real, pelo que o segmento normativo aplicável ao caso é aquele que estipula que estão isentos de penhora os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública. Verifica-se, assim, que o legislador não se limitou a isentar de penhora os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas. Para que tais bens estejam isentos de penhora é necessário que as referidas pessoas colectivas aleguem e provem que os aludidos bens se encontram especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública. Assim, não está isento de penhora todo e qualquer bem do Estado e das restantes pessoas colectivas, mas apenas aqueles que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
Embora a executada alegue, vagamente, que as receitas fiscais da Região estão afectas à realização de fins de utilidade pública, constituindo uma das principais fontes de financiamento do Orçamento da Região e, consequentemente, de todo o funcionamento da Administração Pública Regional, e que a sua penhora impede a Região de utilizá-las para pagamento de salários e outras despesas correntes, a verdade é que a executada não prova o que alega. Com efeito, o facto da executada ser titular da quantia penhorada não implica que tal quantia se destine a fins de utilidade pública, se sempre assim fosse, então seria inútil a estatuição do art. 823º do CPC – neste sentido o Ac do TRL proferido no Proc. nº 4399/2005- 8, em 13-07-2005, que considerou penhoráveis os saldos bancários de que era titular uma câmara municipal e que está publicado em www.dqsi.pt Não basta que os bens sejam instrumentais de aplicação de outros bens à utilidade pública para que o Estado, ou as outras pessoas colectivas públicas, possam beneficiar da prerrogativa da impenhorabilidade, cabendo ao próprio executado a prova de tal afectação especial dos bens – neste sentido o Ac do TRP proferido no Proc. 0651458, em 22-05-2006 e publicado em www.dgsi.pt.
 Por outro lado, o art. 863º-B nº 2 do CPC dispõe que quando não se cumule com a oposição à execução, nos termos do nº 2 do art. 813º, o incidente de oposição à penhora segue os termos dos artigos 303º e 304º (…). A aplicabilidade dos citados preceitos implica que no requerimento que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova.
Ora, apesar de a executada alegar que a referida receita penhorada visa um fim de utilidade pública, a verdade é que nada provou, sendo certo que lhe cabia o ónus de tal prova.
 Pelo exposto, julga-se improcedente o aludido incidente».

II – Do assim decidido, apelou a executada, concluindo as respectivas alegações, nos seguintes termos:
1 - Tratando-se de receitas fiscais de que é titular a RAM vigora uma presunção judicial ou natural de que estas são afectas à satisfação do interesse público, justificando-se por isso, com base nos princípios gerais, a inversão do ónus da prova de tal maneira que, perante a específica natureza das receitas aqui consideradas é devolvido ao exequente o ónus de demonstrar que, no caso em concreto, tais receitas não estão especialmente afectas à realização de fins de utilidade pública.
2 - Sem prejuízo do referido em 1. é notório que tas receitas penhoradas estão afectas a fins de utilidade pública, é evidente de per se, e tem guarida na Constituição, no Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira (cfr. nomeadamente o n.º 1 do artº 109), na Lei de Finanças regionais e no próprio orçamento da Região Autónoma da Madeira que, por ser aprovado por lei, tem de ser necessariamente tido em conta pelo tribunal e não o foi, não sendo de exigir á recorrente a prova do que é notória e resulta da Lei.
3 - O sistema jurídico entende que, neste caso concreto, o interesse público da RAM deve sobrepor-se ao interesse privado do Banco “A”, S.A., o credor exequente.
4 - É o interesse público em salvaguardar a permanência no património do executado dos bens afetos à satisfação dos fins do ente jurídico considerado que justifica que esses mesmos bens, independentemente da sua natureza, sejam subtraídos da execução.
5 - A lei não exige que a finalidade de interesse público seja pré-determinada, apenas exige que ela exista em termos necessários. É isso que acontece no presente caso. As receitas fiscais são, nos termos da lei, necessariamente afetas à realização de fins de interesse público. Só isso justifica, de resto, a grave ablação da propriedade privada que os mesmos representam.
6 - Sendo os impostos tributos coercivos, precisamente justificados pelo fim de interesse público que visam realizar, não é a falta de equivalência numa concreta prestação (como sucede nas taxas) ou a não consignação das receitas que poderá levar a afastar a asserção segundo a qual as transferências correspondentes a receitas fiscais da Região são especialmente afetas à realização do interesse público regional.
7 - O facto de se tratar de dinheiro e da sua posterior concreta aplicação não ser determinável à partida é irrelevante para o caso.
8 - Foram violados, entre outros, os artºs 103, nº1, 105, nº4, 1ª parte da alínea j) do nº1 do art 227º da Constituição; o n.º 1 do artº 109 e o nº 3 do artº 107 do Estatuto Político Administrativo da RAM; o artº 4º da Lei 28/92, de 1 de Setembro (na medida em que a penhora implica que parte da despesa não seja coberta e põe em causa a execução orçamental, o que implicaria admitir que o poder judicial interviesse na função legislativa reservada ao parlamento, violando o princípio da separação de poderes); O Decreto Legislativo Regional nº 42/2012/M, de 31 de Dezembro (na parte em que o Imposto de Selo está previsto como receita para o ano económico e, consequentemente a penhora impede a realização de parte correspondente da despesa orçamentada); o nº 1 do art 344º do Código Civil e o nº 1 do art 823º do Código de Processo Civil.

A exequente contra alegou, defendendo a manutenção do despacho recorrido.

III - Cumpre decidir, tendo presente o circunstancialismo fáctico processual acima referido.

IV – A questão colocada neste recurso resume-se a saber se em face do disposto no art 823º/1 CPC se deve considerar, ao contrário do entendido pelo tribunal a quo, que é impenhorável a transferência correspondente às receitas tributárias que foram objecto da penhora na execução.

            Nos termos do art 823º/1 CPC, «estão isentos de penhora (…) os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos, ou de pessoas colectivas de utilidade pública que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública».
            Este preceito – art 823º - refere-se aos bens relativamente impenhoráveis – aqueles que só podem ser penhorados em determinadas circunstâncias ou para pagamento de certas dívidas.
No caso do nº 1 – que é o que nos interessa - está em causa uma impenhorabilidade substancial.
Diz a seu respeito Amâncio Ferreira: [1] «A primeira parte do preceito, que se refere a bens do Estado e demais pessoas colectivas publicas que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública (a única que já constava da redacção anterior à RPC 95/96) contempla o domínio privado indisponível do Estado e demais pessoas colectivas públicas, por contraposição ao domínio privado disponível, que abrange os bens que se encontram aplicados a fins meramente financeiros. A indisponibilidade dos bens, que caracteriza aquele domínio, não altera a sua natureza de bens do domínio privado».
E acrescenta: «Com a indisponibilidade pretende-se apenas evitar que os bens sejam desviados da afectação ao fim da utilidade pública a que se encontram destinados, sem necessidade de lhes conferir a condição jurídica da inalienabilidade».
Mas o autor em causa não deixa de explicar o que sucede quando um bem integrante do domínio privado disponível do Estado é objecto de penhora, referindo: «Tudo sem prejuízo duma forma alternativa de ressarcimento do credor, através da dotação a inscrever no Orçamento do Estado à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em vista a garantir o pagamento de quantias devidas a título de cumprimento de decisões jurisdicionais, por condenação de entidades responsáveis das Administrações central e indirecta do estado e Administração Autónoma, de harmonia com o disposto no art 172º/3 a 7 do CPTA».

A lei exige para que os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos, ou de pessoas colectivas de utilidade publica fiquem isentos de penhora que tais bens se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.
Não basta que estejam genericamente afectados à realização de fins de utilidade pública, é necessário que estejam especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

A apelante trouxe à colação o princípio da não consignação das receitas fiscais para, por seu intermédio, defender que a receita penhorada não podia estar especialmente afecta à realização de fins de utilidade publica, justamente, em função desse princípio. Acrescentando que, porque as receitas fiscais têm, nos termos da lei, de ser empregues para a satisfação de necessidades públicas, ainda que não previamente determinadas (devido a esse principio da não consignação), se deverá afirmar a existência de uma presunção natural de que os valores correspondentes a essas receitas são empregues na prossecução de fins de interesse público, cabendo ao exequente ilidir tal presunção, provando que, in casu, a receita penhorada não estava afecta à satisfação do interesse público.

Impõe-se explicitar em que consiste a “regra da não consignação”.
Trata-se de uma regra orçamental, segundo a qual, «num orçamento, em princípio, todas as receitas devem servir para cobrir todas as despesas (…) só por excepção – e excepção que deve restringir-se – se consentirão despesas condicionadas para a cobertura de certas receitas, ou que se afectem certas receitas à cobertura de determinados gastos»[2] .
Explica, no entanto, Sousa Franco que, «não geram situação de não consignação as regras sobre cobertura de certos tipos de despesas por certas espécies de receitas, dentro do orçamento geral do Estado. Assim, se as receitas correntes devem em principio cobrir despesas correntes e as receitas de capital se destinarão à cobertura  de despesas de capital, esta exigência do equilíbrio orçamental não constitui uma directa excepção à regra da não consignação: quer porque se não reflecte em qualquer limitação necessária à actuação dos orgãos que executam o orçamento, quer porque estas são meras normas de prudência financeira da elaboração do orçamento, relativas à melhor gestão de certos tipos de grandes massas integrantes do orçamento».
E refere ainda que, apesar do princípio da não consignação constituir hoje a regra na orçamentação – na medida em que o princípio da consignação, característica das administrações financeiras de tipo tradicional, não permite grande eficiência e racionalidade na gestão das disponibilidades monetárias da administração - há excepções a esse princípio.
A consignação orçamental, que sucede por variadas razões - políticas, de regularidade e prudência orçamental, de técnica e organização do orçamento, de directa disposição legal … - traduz-se «na afectação de certas receitas exclusivamente à  cobertura de determinadas despesas; de tal forma que as despesas só poderão efectuar-se se, além de previstas no crédito orçamental (cabimento simples), tiverem receita consignada que as cubra (duplo cabimento). A estas despesas chama-se, com alguma infelicidade, «despesas compensadas».

Do que se veio de reflectir só pode decorrer que o principio da não consignação das receitas fiscais – que já se viu ser, efectivamente, a regra na elaboração dos orçamentos – implica argumento contrário ao defendido pela apelante.
 Só provaria a seu favor se não houvessem excepções a esse princípio.
 Havendo-as, como as há, tal só pode significar que é possível que determinadas receitas fiscais sejam especialmente afectadas à realização de fins de utilidade pública. Quando não exista essa consignação, vale a regra da não consignação, que significa que as receitas fiscais não estão especialmente afectas à realização de fins de utilidade pública, sendo inócuo para o efeito que está em causa, que tais receitas, pela sua própria natureza, só possam ser afectas à realização de fins de utilidade pública.

            Esta conclusão mantém-se na situação dos autos, ainda que a receita penhorada estivesse orçamentada, como refere a apelante ter sucedido (embora o faça apenas em sede de alegações de recurso).
 È indiferente para se concluir pela não isenção da penhora da receita em questão que o Imposto de Selo estivesse inscrito no Orçamento da Região a que se refere o Decreto Legislativo Regional n.º 42/2012M publicado em 31/12/2012, no DR, I Série, n.º 252 que aprovou o Orçamento da Região Autónoma da Madeira para o ano de 2013.
Desde o momento em que tal receita fiscal não surge nesse orçamento consignada ao pagamento especifico de certa(s) despesa(s), não pode dizer-se que esteja especialmente afecto a fins de utilidade pública.

De acordo com o que se vem sustentando, e como é evidente, não tem nenhuma razão de ser a presunção hominis a que a apelante recorre - a de que, tratando-se de receitas fiscais de que é titular a RAM vigora uma presunção judicial ou natural de que estas são afectas à satisfação do interesse público – por  lhe ser  perfeitamente possível provar a especial afectação de uma receita quando ela exista através da referida consignação.

Podendo concluir-se, como o fez o Ac do RP de 22/05/2006 [3],  que «não basta que os bens sejam instrumentais de aplicação de outros bens à utilidade pública para que o Estado, ou as outras pessoas colectivas públicas, possam beneficiar da impenhorabilidade, cabendo ao próprio executado a prova de tal afectação especial dos bens…», e podendo afirmar-se, como o faz o Ac RE de 12-01- 2006[4] que,  «(…)a utilidade pública do bem tem de decorrer do uso directo que dele se fizer e de tal uso concreto,  em certos casos, pode inferir-se da natureza do próprio bem, se devidamente identificado (v.g. Uma escola pública, um posto público…); na maioria dos casos assim não sucederá, porquanto na identificação de bens não é exigível a indicação do uso que lhe é dado».
            Deste modo, porque só são impenhoráveis os bens que se encontrem especialmente afectos à realização de fins de utilidade pública e não apenas afectos a tais fins - pois e de uma maneira geral, todos os bens do Estado se encontram afectos a esses fins, o que tornaria inútil a estatuição do artº 823º do CPC, como é referido no Ac RL de 13-07-2005 [5] – e porque a executada oponente não alegou, e não provou que a receita do imposto de selo que foi objecto da penhora se encontrasse especialmente afecta a fins de utilidade pública – o que só poderia suceder através da respectiva consignação orçamental – há que confirmar a decisão recorrida e julgar improcedente a apelação.

            V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.  

Lisboa, 21 de Novembro de 2013

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1] - «Curso de Processo de Execução», 13ª ed, p 207 e ss
[2] -  Sousa Franco, «Manual de Finanças Públicas e Direito Financeiro», vol I,1974, 670/706
[3] - (Abílio Costa), citado na decisão recorrida, disponível em www.dgsi.pt
[4]- (Bernardo Domingos), também disponível em www.dgsi.pt
[5] (António Valente), também citado na decisão recorrida e disponível em www.dgsi.pt