I) Não sendo alegada matéria de facto para além do teor do documento, não há razão para que a acção prossiga para instrução, já que o tribunal não pode conhecer de factos não alegados, devendo proceder à interpretação do documento e decidir após os articulados.
II) O valor das cartas de conforto depende das declarações feitas por quem as subscreve situando a questão do carácter vinculativo e do âmbito da vinculação no domínio da interpretação ou integração negocial.
III) As cartas de conforto servem genericamente para facilitar o financiamento a entidade pouco conhecida ou com pouco crédito no mercado e podem qualificar-se em vários tipos que se distinguem pelo nível de vinculação do emitente – v.g. cartas de conforto fraco, cartas de conforto médio e cartas de conforto forte.
IV) As cartas de conforto forte surgem como “uma fiança dissimulada” enquanto as cartas de conforto fraco se caracterizam pelo assumir de um dever genérico de diligência e as cartas de conforto médio pela assunção de uma obrigação de meios, isto é, um dever de desenvolver esforços para levar o beneficiário do financiamento a cumprir perante o banco.
V) As “garantias” resultantes dependerão do tipo de “carta conforto” que é emitida, pois se todo o tipo de cartas conforto têm em regra uma parte informativa, em que se dá conta da política geral do grupo económico em causa e da relação de participação existente entre o emitente da carta e a sociedade participada interessada no financiamento, apenas nas cartas de conforto forte é que o emitente assume uma obrigação de resultado.
VI) Recorrendo à origem história (“prática financeira norte-americana”) e à razão de ser (“valor predominante moral ou de confiança”) das cartas de conforto, nomeadamente o seu carácter oculto e as suas frequentes vantagens fiscais, em contraponto com a fiança, sai reforçada a razão de ser e a importância da interpretação da declaração negocial da carta conforto.
VII) A entidade bancária destinatária de uma carta conforto, melhor do que qualquer destinatário médio e normal, tem obrigação de saber que uma carta conforto forte, constitutiva de uma obrigação de resultado, não pode oferecer dúvidas sobre o seu sentido.(AAC)
I- RELATÓRIO
1. O A instaurou contra a R a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário,[1] pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 313.949,83 (€ 250.000,00, correspondentes a capital e € 63.949,83, correspondentes a juros vencidos até 08.02.2013 e outras despesas), acrescida dos juros remuneratórios calculados à taxa de 6,926%%, acrescida de 2% de mora, contados desde 09.02.2013 sobre o capital de € 250.000,00 e até ao efectivo e integral pagamento.
Alega, em resumo, que celebrou com a T…-Agência de Viagens, Lda, em 09.10.2007, por documento escrito, um contrato de abertura de crédito, na sequência do qual esta sociedade pagou a última prestação em 23.05.2010, ficando como capital em dívida emergente do referido empréstimo a quantia de € 250 000,00, ao qual acrescem juros moratórios, que liquida.
Mais alega que a R – hoje com uma firma diferente, mas juridicamente a mesma entidade – entregou ao A., em 22.02.2007, uma “carta de conforto”, na qual declara, além do mais, que detém uma participação directa na T… representativa de 74,55% do respectivo capital social, assegurando ao A “o bom, pronto e pontual pagamento de todas as obrigações pecuniárias que para a sua subsidiária T… resultem do contrato de crédito em causa”, concluindo que a R se tornou assim responsável pelas dívidas da sociedade sua participada.
Contestou a R. pedindo a improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido.
Estriba a sua defesa alegando que a “carta de conforto” em causa não é uma fiança, nem uma assunção de dívida, e apenas obrigava a R a diligenciar dentro do que estivesse ao seu alcance para que a T…, Lda cumprisse as suas obrigações, mas não a pagar quaisquer quantias ao A., caso a T…, Lda as não pagasse.
Conclui que não deve ao A a quantia peticionada.
2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, veio a ser proferido despacho saneador sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.
3. É desta decisão que, inconformado, o A. vem apelar.
Alegando, conclui:
I – Vem o presente recurso interposto do douto saneador sentença que decidiu desde logo o mérito da causa absolvendo a R. G…-SGPS, S.A. do pagamento ao BE… das quantias peticionadas em sede de petição inicial.
II – Sem fixar base instrutória e, por conseguinte, prescindindo da audiência de discussão e julgamento, entendeu e decidiu liminarmente o tribunal a quo que do termo “assegura”, constante da carta de conforto junta aos autos, resultava “que a R. assumiu uma obrigação de meios e não uma obrigação de resultado” dali concluindo pela improcedência do pedido do recorrente.
III – Entende o apelante que, sem realização de prova adicional, concretamente testemunhal, que permitisse apurar o contexto e verdadeiras intenções das partes à data da entrega da carta conforto o tribunal de 1ª instância não dispunha de matéria suficiente para decidir fundamentadamente na fase do saneador.
IV – Efectivamente, são escassas as situações em que tal pode acontecer não sendo o caso sub judice uma delas.
V – Na verdade, não se trata de matéria que possa ser provada por confissão expressa, tácita, por acordo ou exclusivamente por documento nem se enquadra nas situações em que, atendendo às soluções jurídicas possíveis, essa prova seja indiferente.
VI – Dos articulados das partes resultam questões controvertidas cuja ponderação e juízo dependia, absolutamente, de mais prova. Concretamente, deveria ter sido quesitado o constante do facto alegado pelo A no art.º 8º da p.i.: “Tornou-se assim a R responsável pelas dívidas da sociedade sua participada, visto que assumiu o bom, pronto e pontual pagamento do supra referido crédito?”
VII – Tendo em conta o largo espectro de obrigações que, conforme o caso, poderão resultar de uma carta conforto, impunha-se ao tribunal de 1ª instância o apuramento da vontade real das partes do qual, em nossa opinião mal, simplesmente prescindiu.
VIII – Ao decidir, prematuramente, o pleito em sede de saneador o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 236º do C.C. e 415º nº 2 do CPC, padecendo desta forma da nulidade prevista no art.º 615º nº 1 c) e d) do CPC.
IX – Entende, por outro lado, o recorrente, sem prescindir do acima exposto quanto à necessidade de prova adicional, que o tribunal a quo fez uma errada interpretação da natureza e obrigações resultantes da carta de conforto junta aos autos.
X – Salvo o devido respeito, não se compreende qual foi o critério utilizado pelo tribunal de 1ª instância para qualificar como carta de conforto médio a missiva dos autos – até porque, se atendermos exclusivamente ao teor literal da carta, a solução parece apontar num sentido diametralmente oposto ao da decisão recorrida.
XI – Efectivamente, a expressão “assegura ao Banco E… o bom, pronto e pontual pagamento de todas as obrigações pecuniárias que para a sua subsidiária T... resultem do contrato de crédito em causa” traduz, com clareza, usando a terminologia do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, uma “declaração negocial de resultado” e não uma mera obrigação de meios.
XII – Aquela obrigação de facere, diversamente da interpretação do tribunal a quo, é, à contrário, reforçada pelo último parágrafo da carta de conforto: no caso de alienação, alteração ou oneração da participação no capital social da T..., a R. assume a responsabilidade de “pôr à disposição da T... os fundos necessários ao pagamento das responsabilidades desta perante o Banco E…” (alínea a) como, cumulativamente, lhe “prestar (…) uma garantia que assegure o saldo, então em dívida, do crédito concedido à T...” (alínea b).
XIII – Na ponderação/interpretação do verdadeiro alcance da palavra “assegurar”, constante da carta conforto, não deverá também ser esquecida a origem histórica e razão de ser desta figura jurídica autónoma.
XIV – Não se tratando de garantia típica das obrigações, estranho seria que a eficácia e exequibilidade das cartas de conforto dependesse de, na respectiva redacção, serem mencionadas expressões características de outras figuras jurídicas.
XV – Em síntese, atendendo ao caso em apreço, à posição assumida pelas partes nos respectivos articulados (naturalmente controvertida) o tribunal não poderia ter decidido o processo sem fixação de base instrutória e realização de julgamento que lhe permitisse apurar o contexto e vontade real das partes no momento da prestação da carta-conforto.
XVI – São, desta forma, fundamentos específicos do presente recurso a violação dos artigos 236º do C.C. e 415º nº 2 do CPC, os quais determinam a nulidade da sentença recorrida nos termos previstos no art.º 615º nº 1 al. c) e d) do CPC.
4. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais a R. conclui pela improcedência da apelação e confirmação da decisão recorrida.
5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
1. De facto
Na decisão recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade:
1. A S…, SGPS, S.A. subscreveu carta datada de 22 de Fevereiro de 2007, dirigida à A., do seguinte teor:
“A S… - SGPS, S.A., declara pela presente que tem integral e perfeito conhecimento dos termos e condições da operação de financiamento titulada, ou a titular, por contrato de crédito, no montante de € 250.000,00…, celebrado por esse Banco com a nossa subsidiária T... - Agência de Viagens, Lda…
A S… SGPS, S.A. confirma que detém uma participação directa na T... representativa de 74,55% do respectivo capital social, pelo que têm um interesse próprio na realização da operação de financiamento desta sua subsidiária.
A S… - SGPS, S.A. mais confirma que é prática corrente fornecer todo o seu apoio e assistência à T... afim de permitir que a mesma cumpra as suas obrigações e mantenha boa situação financeira, pelo que assegura ao Banco E… o bom, pronto e pontual pagamento de todas as obrigações pecuniárias que para a sua subsidiária T... resultem do contrato de crédito em causa.
A S… - SGPS, S.A. declara ainda que não tenciona alienar, alterar ou onerar, no todo ou em parte, a sua participação no capital social da T..., sendo que, se em qualquer momento o fizer, a S… - SGPS, S.A. assume, desde já, a responsabilidade de, nessa data:
a) pôr à disposição da T... os fundos necessários ao pagamento das responsabilidades desta perante o Banco E…;
b) prestar ao Banco E… uma garantia que assegure o saldo, então em dívida, do crédito concedido à referida T...”.
2 - A S…, SGPS, S.A. alterou a sua firma para G..., SGPS, S.A.
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[2].
Decorre daquelas conclusões que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
1ª: A decisão recorrida, por decidir prematuramente o pleito, padece da nulidade prevista no art.º 615º nº 1 als c) e d)?
2ª: Dos articulados resultam factos controvertidos, impondo-se a produção de prova para apurar do contexto e vontade real das partes, no momento da prestação da carta conforto?
3ª: Uma correcta interpretação da natureza e obrigações resultantes da carta conforto em causa vai no sentido de estarmos perante uma “declaração negocial de resultado” e não uma mera obrigação de meios?
Vejamos pois.
Nas conclusões VIII e XVI das alegações imputa-se à decisão recorrida o vício da nulidade por ter decidido o pleito “prematuramente”, embora no corpo das alegações não se sustentem nem se desenvolvam os fundamentos desta nulidade.
Nos termos do art.º 615º invocado, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c) do nº 1) ou quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (al. d) do nº 1).
Ora, uma simples leitura da decisão recorrida facilmente nos permite concluir que a mesma não padece de qualquer das referidas causas de nulidade.
Não só os fundamentos são coerentes e conduzem logicamente à decisão adoptada, a qual é perfeitamente inteligível, não se vislumbrando nela qualquer ambiguidade ou obscuridade, aliás não apontada ou concretizada pelo recorrente.
Por outro lado, o juiz conheceu do pedido formulado pelo A, não havendo por isso falta de pronunciamento de pretensão ou pretensões formuladas pelas partes, assim como o tribunal a quo não conheceu nem decidiu questões que não lhe era possível decidir, por não lhe terem sido colocadas pelas partes.
A circunstância de, eventualmente, não haver fundamento para conhecer imediatamente do mérito da causa no despacho saneador, como foi feito pelo tribunal a quo, não é causa de nulidade do despacho saneador sentença que venha a ser proferido nessas circunstâncias, nem constitui a nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art.º 615º. Tal circunstância, de que nos ocuparemos no item seguinte, poderá dar lugar à revogação daquela decisão, por não se verificarem ainda os pressupostos para ser proferida decisão final de mérito, mas não é causa de nulidade da decisão.
Continua válida a lição do Prof. José Alberto dos Reis sobre esta causa de nulidade, então prevista no art.º 668º nº 4 do CPC. Como claramente afirmava “a nulidade prevista na 2ª parte do nº 4º do art.º 668º desenha-se assim: A sentença conheceu de questão que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz.”[3]
Manifestamente não é o caso em análise, pois o juiz apenas decidiu questão formulada pelo A, não violando o comando contido no nº 2 do art.º 608º, que lhe veda ocupar-se de questões não suscitadas pelas partes, pelo que é negativa a resposta à primeira questão supra equacionada, improcedendo as conclusões das alegações conexas com a mesma.
O apelante insurge-se contra o facto de a decisão recorrida ter decidido desde logo o mérito da causa, entendendo que o tribunal a quo não dispunha de matéria suficiente para decidir fundamentadamente nessa fase do saneador.
Analisada a decisão recorrida e ponderados os argumentos do apelante, não cremos que lhe assista razão.
Com efeito, nos termos do art.º 595º nº 1 al. b), o despacho saneador tem por fim “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
Não deixando de se mostrar correcta a doutrina invocada pelo apelante, no sentido de interpretar o preceito então vigente sobre esta matéria – art.º 510 nº 1 al. b) do Código de Processo Civil[4] - de forma que “a antecipação do conhecimento de mérito para a fase do saneador deve supor o apuramento de todos os factos que permitam uma solução final segura”[5], a verdade é que tal doutrina não é posta em causa com a decisão recorrida.
O mesmo se diga da jurisprudência invocada pelo apelante, o Ac. do STJ de 19.12.2001[6]. Subscrevemos, sem qualquer dúvida, a jurisprudência aí afirmada de que “o valor e a eficácia jurídica das cartas de conforto dependem do sentido das declarações concretamente feitas por quem as subscreve, ou seja, trata-se fundamentalmente de um problema de interpretação e até de integração negocial”, mas a decisão recorrida insere-se nesta jurisprudência.
Na verdade, na decisão recorrida tomaram-se efectivamente em consideração todos os factos que permitiam adoptar, conscienciosamente, uma decisão segura, nomeadamente o teor da carta de fls 25/26, com base na qual o A pretende a responsabilização da R., cuja autoria não foi colocada em causa por esta, sendo a sua posição apenas a de impugnar a interpretação que dela faz o A. Por outro lado, não foram alegados factos, com vista à interpretação e integração negocial, que fossem relevantes para decidir a pretensão do A e que, por serem controvertidos e necessitarem de ser provados, levassem o tribunal a não decidir, de imediato.
Assim, ao contrário do que pretexta o apelante, não cremos que haja questões controvertidas que sejam relevantes para o sentido da decisão a adoptar e que impliquem a necessidade de produção de prova.
O apelante considera que “deveria ter sido quesitado … o facto alegado pelo autor no art.º 8º da petição inicial”. Neste nº da p.i., depois de se invocar nos quatro números anteriores da p.i. o teor da referida carta de fls 25/26, alegou-se: “Tornou-se assim a R. responsável pelas dívidas da sociedade sua participada, visto que assumiu o bom, pronto e pontual pagamento do supra referido crédito”.
Perante o teor deste art.º 8º não temos dúvida que não assiste razão ao apelante, pois não estamos perante um “facto”, mas antes perante uma conclusão, que é extraída de uma determinada interpretação dos termos adoptados na carta de fls 25/26. Ora, objecto da prova são “os factos” - art.º 513º do CPC1961 – ou, na terminologia actual, “os temas da prova” – art.º 410º do CPC actual – e não as interpretações ou conclusões dos factos, muito menos as conclusões jurídicas, como é a de saber se alguém é “responsável pelas dívidas” de outrem.
Nem se invoque, como o faz o apelante, que podendo resultar de uma carta conforto um vasto campo ou possibilidades de obrigações se impunha ao tribunal de 1ª instância o “apuramento da vontade real das partes” e se impunha a produção de prova testemunhal “que permitisse apurar o contexto e verdadeiras intenções das partes à data da entrega da carta conforto”. E não se invoque tal por uma razão muito simples: os factos sobre qual teria sido a “vontade real das partes”, os factos sobre qual teria sido o “contexto” de entrega da carta conforto, os factos sobre quais teriam sido as “verdadeiras intenções das partes” à data da entrega da carta conforto não se mostram alegados, nomeadamente pelo A., a quem cabia o ónus de alegação, nos termos do estatuído então no art.º 264º nº 1 do CPC1961 e que hoje tem estatuição similar no art.º 5º, embora o ónus esteja agora limitado aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir”.
No fundo percebe-se que agora, nas alegações, pretende o A apelar para a ideia de que a interpretação da declaração negocial constante da “carta conforto” de fls 25/26 deveria ser feita não apenas pelo aí declarado mas em função de determinadas circunstâncias que seriam relevantes para tal, nos termos do art.º 236º do Código Civil[7]. Porém, o tribunal a quo só podia fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, como lhe impunha então o nº 2 do art.º 264º e o art.º 664º, ambos do CPC1961 - não sendo hoje a regra nessa matéria, constante do art.º 5º nº 2, substancialmente diferente pois o que é alargado é a possibilidade de se tomarem em consideração os factos instrumentais que resultem da discussão da causa – e não estando então alegados os factos em causa sobre a “vontade real das partes” e o “contexto” da emissão da carta conforto, não era possível ao tribunal determinar o prosseguimento dos autos, pois isso seria uma inutilidade.
Nesta matéria o caso em análise tem similitude com o que foi objecto de apreciação e decisão no Ac. do STJ de 18.03.2003[8] e a doutrina aí consagrada é aqui inteiramente aplicável: “Não há portanto razão para que a acção prossiga, com despacho condensador da matéria de facto e elaboração de base instrutória, porque, além do documento de fls. 23 – que será interpretado em face dos seus próprios dizeres (designadamente por nada estar alegado sobre a vontade real do declarante, no quadro do art.º 236, nº 2 do CC) – não há outra matéria de facto relevante e controvertida a averiguar”.
Conclui-se, desta forma, por uma resposta negativa à segunda questão supra equacionada, improcedendo as conclusões das alegações do apelante conexas com esta matéria, nomeadamente as conclusões I a VIII e XV, não tendo sido violadas as disposições legais aí citadas.
O apelante discorda ainda da decisão recorrida quanto à interpretação que nesta se fez da carta conforto, nomeadamente quando conclui que a mesma é de qualificar como uma “carta de conforto médio” e que as obrigações dela resultantes para a R são apenas “uma obrigação de meios”, argumentando que, em face dos termos da carta e da origem histórica e razão de ser da figura jurídica da “carta conforto”, estamos perante “uma declaração negocial de resultado”.
Ponderada a argumentação do recorrente, não cremos que lhe assista razão, como a seguir se procura evidenciar, procurando salientar as razões determinantes da falta de fundamento da tese do recorrente.
A decisão recorrida, com recurso à jurisprudência, o citado aresto do STJ de 19.02.2001, e aos ensinamentos do Prof. Meneses Cordeiro[9], traça um quadro do que deve entender-se por “cartas de conforto” e os seus vários tipos, cartas de conforto fraco, cartas de conforto médio e cartas de conforto forte. Esse quadro não é colocado em causa nas alegações do apelante e também nós o subscrevemos, apenas salientando que no outro aresto do STJ já atrás por nós citado, o de 18.03.2003, se chama a atenção para a circunstância de outros autores[10], que aí são citados, falarem em apenas “dois tipos [conforte forte e conforto fraco] porque integram a obrigação de meios, que indicamos como característica do conforto médio, no aqui designado conforto forte”. Não fugindo a essa classificação, num parecer anterior, Calvão da Silva[11] fala em “conforto quente (hot comfort), conforto frio (cold comfort) ou conforto morno”.
Temos assim como certo, acompanhando aqui de perto a jurisprudência e doutrina atrás referidas, que as “cartas conforto” (também designadas de “lettres de confort” ou “lettres de patronage”) veem sendo usadas, no comércio bancário ou, melhor, perante entidades bancárias, como uma forma de, por um lado, servirem para facilitar determinado financiamento por parte da entidade bancária a uma entidade que é pouco conhecida no mercado ou tem pouco crédito, mas pertencente a um grupo ou fazendo parte de uma holding conhecida e credível e, por outro lado, servem para de alguma forma tranquilizar a instituição de crédito, na medida em que o emitente da carta, o grupo ou holding por detrás da empresa que pretende o crédito, de alguma forma dá “garantias” de que o contrato de financiamento será cumprido.
Claro que estas “garantias” dependerão do tipo de “carta conforto” que é emitida pois se todo o tipo de cartas conforto têm em regra uma parte informativa, em que se dá conta da política geral do grupo económico em causa e da relação de participação existente entre o emitente da carta e a sociedade participada interessada no financiamento, apenas nas cartas de conforto forte é que o emitente assume uma obrigação de resultado. Ou seja, apenas nestas o emitente assume o dever de pagar ao banco financiador, caso a empresa financiada não cumpra, daí resultando uma garantia pessoal atípica a qual, em termos típicos, é assumida por uma outra via, a garantia bancária, o aval ou a fiança. Daí se qualificar estas cartas de conforto forte como “uma fiança dissimulada (ou encapotada, segundo outros Autores”)[12]. Já as cartas de conforto fraco se caracterizam pelo assumir de um dever genérico de diligência e, outrossim, as cartas de conforto médio pela assunção de uma obrigação de meios, isto é, um dever de desenvolver esforços para levar o beneficiário do financiamento a cumprir perante o banco.
Mas se assim é, como parece que é, ou seja, funcionando as cartas de conforto como “formas ténues de envolvimento, em que o emitente é suficientemente cauteloso em termos de dar confiança à instituição bancária sem se envolver totalmente. Porque, se quisesse envolver-se totalmente constituía uma garantia típica, que a carta de conforto não é…”[13], ou, nas palavras de Calvão da Silva, constituindo-se assim um «instável e difícil equilíbrio de interesses em que patrocinante e Banco jogam ao “gato e ao rato”, ao “esconde-esconde”»[14], compreende-se muito bem e facilmente a importância da interpretação que é feita da declaração negocial unilateral consubstanciada na carta conforto.
Igualmente, se se preferir a tese do apelante de ir à origem história (“prática financeira norte-americana”) e à razão de ser (“valor predominante moral ou de confiança”) das cartas de conforto, com base na doutrina que invoca de que “em comparação com a fiança, as cartas de conforto têm a vantagem de permanecer ocultas, não tendo de ser evidenciadas no balanço, sendo que, na maioria dos países, a carta de conforto não tem sido alvo da mesma tributação que incide sobre a fiança, o que a torna, desde logo, mais vantajosa no plano fiscal”[15], também facilmente se compreenderá - e até sai reforçada - a razão de ser e a importância da interpretação da declaração negocial da carta conforto.
No citado aresto do STJ de 19.02.2001 dá-se bem nota de que “o valor e a eficácia jurídica das cartas de conforto dependem do sentido das declarações concretamente feitas por quem as subscreve, ou seja, trata-se, fundamentalmente, de um problema de interpretação e até, porventura, de integração negocial”. Também na doutrina Calvão da Silva, sem deixar de salientar a importância das “negociações prévias” ou “contexto da emissão da carta” e os “interesses em jogo” ou “finalidade prosseguida”, considera que importa “determinar … o conteúdo declaracional vertido em cada uma das cartas objecto da consulta, a fim de fixar o sentido com que elas hão-de valer, segundo a conhecida doutrina da impressão do destinatário razoável canonizada no art.º 236º do Código Civil”[16].
Nestas circunstâncias, a entidade bancária que é destinatária de uma carta conforto não pode desconhecer todos estes aspectos subjacentes á emissão de uma carta conforto e aos seus fins. Muito pelo contrário, melhor do que qualquer destinatário médio e normal de uma carta conforto, tem obrigação de saber que, se quer prevalecer-se da carta conforto como uma carta conforto forte, constitutiva de uma obrigação de resultado, deve assegurar-se, na sequência das negociações que normalmente preexistem à emissão da uma carta de conforto, que os termos constantes da mesma não oferecerão dúvidas sobre o seu sentido. Para que não se não se permitam “interrogações acerca da vinculatividade jurídica”[17] da carta conforto.
Feito este enquadramento teórico, quiçá mais extenso do que inicialmente projectado, é altura de analisar e interpretar a declaração unilateral em causa nos autos, a referida carta de fls. 25/26, embora não sendo caso de integrar tal declaração negocial, pelas razões já aduzidas no item antecedente, ou seja, inexistência de alegação de factos nesse sentido.
Ora, debruçando-nos sobre os factos apurados, não podemos deixar de acompanhar a decisão recorrida ao qualificar esta carta como uma carta de conforto médio e ao concluir que, em face da mesma, a R não garantiu a satisfação ou pagamento do direito de crédito da A, caso a devedora não venha a pagar, mas que apenas assumiu uma obrigação de meios.
Não é só a circunstância de o termo “assegura”, usado na frase “assegura ao Banco…o bom, pronto e pontual pagamento de todas as obrigações pecuniárias que para a sua subsidiária ... resultem do contrato de crédito em causa”, não poder ser interpretado, por si só, como uma garantia de a R satisfazer perante o A o seu crédito.
É, acima de tudo, o conjunto da carta[18], pois do seu último parágrafo resulta que, apenas no caso de a emitente da carta conforto vir a alienar, alterar ou onerar a sua participação no capital social da ..., é que então “assume … a responsabilidade de, nessa data” proceder do modo aí descrito. Ou seja, só nessas circunstâncias e nessa data assume “prestar ao Banco … uma garantia que assegure o saldo, então em dívida, do crédito concedido à referida ...” (al. b), com sublinhado da nossa autoria) e “pôr à disposição da ... os fundos necessários ao pagamento das responsabilidades desta perante o Banco…” (al. a), sendo mais uma vez o sublinhado da nossa autoria).
Como resulta desta declaração e os sublinhados procuram realçar, a R ao emitir a referida carta conforto – mesmo naquele caso de deixar de participar no capital social da ... e apenas nesse caso – não se dispõe a pagar ao Banco as responsabilidades à data constituídas/vencidas, ou seja, não assume as dívidas da ... como suas, assim como não assume substituir-se ao devedor e pagar directamente ao credor, antes se obriga apenas a entregar à ... os fundos necessários para esta pagar ao Banco. E, por outro lado, quanto à garantia, para assegurar o saldo do crédito concedido e ainda não vencido, é nessa altura que a emitirá.
Ora, qualquer declaratário médio normal, colocado na posição do real declaratório, não poderia deixar de entender, em face desta declaração do declarante, de emissão posterior de uma “garantia”, que a emissão da carta de fls 25/26 não constituía ela própria uma “garantia”. Com efeito, como bem questiona a apelada nas contra-alegações, que sentido teria emitir uma “garantia” posterior se a carta fosse, já por si, uma “garantia”? Nenhum, como facilmente se intui.
Nestes termos conclui-se que é negativa a resposta à terceira e última questão supra equacionada, improcedendo as demais conclusões das alegações do recurso do apelante, não tendo sido violadas as disposições legais invocadas - a invocação do art.º 415º nº 2 do CPC dever-se-á a mero lapso, pois não está em causa o principio do contraditório quanto às “provas constituendas” ou “pré-constituídas – pelo que se impõe confirmar a sentença recorrida.
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante - cfr. art.º 527º nº 1.
(António Martins)
(Maria Teresa Soares)
(Ana Lucinda Cabral)
[1] Proc. nº 245/13.3TVLSB da 11ª Vara Cível de Lisboa
[2] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos por força do disposto nos art.ºs 5º nº 1 e 7º nº 1, ambos da citada lei, este último interpretado “à contrário sensu”, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora (Reimpressão), 1981, Vol. V., pág. 143.
[4] Aprovado pelo DL 44 129 de 28.12.1961, com sucessivas alterações posteriores, adiante designado abreviadamente de CPC1961.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., Livraria Almedina, 2ª edição revista e ampliada, pág. 137.
[6] Relator Ferreira Ramos, sumariado em www.dgsi.pt sob o nº 01A2509 e publicado na Col. Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano XI, Tomo III, pág. 157 e segs.
[7] Adiante designado abreviadamente de C.C.
[8] Relator Reis Figueira, acessível em www.dgsi.pt sob o nº de documento ST200303180000571
[9] Manual de Direito Bancário, Livraria Almedina, 1998
[10] Calvão da Silva, Direito Bancário, 2001, pág. 410 e Romano Martinez/Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 1994, pág. 63.
[11] Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Livraria Almedina, 1996, pág. 378.
[12] Citámos o referido Acórdão do STJ de 18.03.2003.
[13] Idem
[14] Ob. citada na nota de rodapé nº 11, pág. 373.
[15] Hugo Ramos Alves, Do Mandato de Crédito, Livraria Almedina, 2007, pág. 58
[16] Ob. citada na nota de rodapé nº 11, pág. 377.
[17] Idem, pág. 374.
[18] Calvão da Silva, ob. Citada na nota de rodapé nº 11, pág. 378, faz bem notar que “as mais das vezes uma carta de conforto combina diferentes tipos de cláusulas que podem dar ao todo um valor de conjunto superior à soma das partes, segundo as boas regras hermenêuticas”