1. O articulado de reclamação de créditos deve ser deduzido em termos similares aos exigidos para o requerimento executivo, devendo o reclamante ali individualizar, a título de causa de pedir, o crédito reclamado, quanto à sua origem, natureza e montante, bem como especificar a garantia real de que goze aquele crédito.
2. Se o título executivo apresentado em sede de reclamação de créditos consistir num documento de mero reconhecimento de dívida do qual não conste a fonte da obrigação, incumbe ao reclamante expor, sucintamente, os factos de que emerge o seu crédito, em termos análogos aos exigidos ao exequente pelo artigo 810.º, n.º 1, alínea e), do CPC.
3. Tal ónus de alegação, que não se confunde com a falta de título executivo, é postulado por razões que se prendem com o exercício esclarecido do contraditório, por parte dos eventuais impugnantes, e com a necessidade de, mais tarde, se saber a que título foi satisfeita a obrigação em causa, já que o crédito reclamado fica exposto à impugnação dos demais reclamantes e é objecto de reconhecimento judicial, o qual jamais poderá prescindir da identificação da respectiva relação causal, de modo a permitir a delimitação objectiva do caso julgado material, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, e 673.º do CPC.
4. No caso de uma declaração de reconhecimento de dívida, sem indicação da respectiva relação causal, invocada aquela pelo credor perante o devedor confitente, incumbirá então a este provar que não existe tal relação causal, o que se traduz numa inversão do ónus da prova sobre o facto constitutivo dessa dívida, em detrimento do preceituado no art.º 342.º, n.º 1, do CC, mas que só opera no domínio estrito da relação entre esse credor e respectivo devedor, não se estendendo em relação a terceiros.
5. Não tendo sido alegado nos articulados nem tão pouco decorrido da instrução da causa factos que permitam identificar, com a mínima segurança, quais as prestações de renda não pagas à reclamante, objecto da confissão de dívida constante do título executivo, não restará senão, em conformidade com o preceituado no artigo 346.º do CC, julgar a pretensão reclamada contra a própria reclamante.
(Sumário do Relator)
I – Relatório
1. A sociedade “AM, Ld.ª”, veio, por apenso a uma execução comum para pagamento da quantia de € 78.858,20, instaurada com base em duas livranças pelo BE, S.A., contra AM e MM e outros, reclamar um crédito de € 150.000,00 e respectivos juros, que alegadamente detém sobre estes executados, resultante de uma confissão de dívida, no montante de € 87.000,00 e da constituição dos mesmos executados como fiadores e principais pagadores da sociedade “TR, Unipessoal, Ld.ª”, até ao montante de € 63.000,00, nos termos do documento de fls. 8 e 9, alegando que:
- A referida empresa “TR, Unipessoal, Ld.ª”, foi inquilina da reclamante no locado sito na Rua …, ficando a dever as rendas respeitantes ao pe-ríodo de 1 de Janeiro de 2010 a 31 de Dezembro de 2011, no valor global de € 72.000,00;
- Porém, a responsabilidade dos executados ficou limitada ao valor de € 63.000,00, o qual se encontra garantido por hipoteca constituída em 21/10/2009 e registada a favor da ora reclamante sobre o bem dos executados penhorado nos autos.
Pediu a reclamante que o seu crédito fosse verificado e graduado para ser pago pelo produto da venda do referido bem.
2. O exequente BE, S.A., impugnou o crédito reclamado, alegando que:
- Do documento apresentado pela reclamante não resulta que os executados tenham sido fiadores nos supostos contratos de arrendamento firmados entre a reclamante, na qualidade de locadora e as sociedades “MR, Ld.ª”, e “TR, Unipessoal, Ld.ª”, contratos estes que nem tão pouco foram juntos e que nem se sabem se existiram, não se descortinando de que dívidas se trata;
- O fiador AM foi sócio quer da sociedade AM, Ld.ª, quer da “MR, Ld.ª”, até final do ano de 2009, tratando-se de um grupo de empresas de natureza familiar constituídas por pais, filhos e noras;
- O suposto crédito de € 87.000,00 relativo a rendas da sociedade MR, Ld.ª, não existe e nem sequer foi reclamado pela sociedade AM, Ld.ª, no processo de insolvência daquela sociedade;
- Não se sabe quem é ou era proprietário do imóvel arrendado que produziu tais rendas nem a que período de tempo tais rendas dizem respeito;
- O mesmo se passa em relação ao suposto arrendamento alegadamente celebrado entre a empresa “TR, Unipessoal, Ld.ª”;
- Não foi junto nenhum documento comprovativo da sobredita dívida, não bastando a apresentação do contrato da hipoteca, sabendo-se apenas que a “TR, Unipessoal, Ld.ª”, ocupou o espaço cerca de dois anos, deixando uma dívida de € 72.000,00, e que a MR, Ld.ª, terá deixado uma dívida de € 87.000,00, desconhecendo-se o tempo a que se reporta, o que somado constitui um valor excessivo em termos de rendas de um imóvel sito no Seixal.
Concluiu que a reclamada não tem título executivo que legitime a reclamação de créditos deduzida.
3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador em que foi considerado não ocorrer a alegada falta de título executivo, dispensando-se a selecção da matéria de facto em causa.
4. Procedeu-se à realização da audiência final, com gravação da prova, sendo julgada a matéria de facto pela forma constante do despacho de fls. 181 a 184.
5. Por fim, foi proferida sentença (fls. 185-190), em 18/02/2013, a reconhecer apenas o crédito reclamado no valor de € 87.000,00 e a graduá-lo com prioridade sobre o crédito exequendo para ser pago pelo produto da venda do bem penhorado.
6. Inconformado o Banco exequente veio apelar daquela decisão, for-mulando as seguintes conclusões:
1.ª – O BES moveu, em 14-07-2010, execução, com base em duas livranças, nos valores de € 53.388,68 e € 25.388,71, contra a subscritora das mesmas MR, Ld.ª, e seus avalistas AM, MM, BM e MAM.
2.ª - Em 08/10/2010, o agente de execução penhorou, o prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial da …, sob o n.º … e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. … da freguesia de …, propriedade, dos executados AM e MM.
3.ª - No dia 14/03/2012, o agente de execução deu cumprimento ao disposto no art.° 864.° do CPC e citou os credores inscritos, tendo a firma AM, Ld.ª, em 10/04/2012, apresentado reclamação de créditos, no valor de € 150.000,00, a qual vinha acompanhada de um documento particular denominado “Contrato de Hipoteca”, datado de 21/10/2009.
4.ª - Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 866.° do CPC, o exequente B…pugnou o crédito reclamado por AM, Ld.ª, foram juntos documentos por ambas as partes, cumprido o disposto no art.º 512.° do CPC, tendo o Tribunal “a quo” conhecido da excepção de falta de título exequível, deduzida pelo B, julgando-a improcedente.
5.ª - Realizado o julgamento, no dia 11/02/2013, o Tribunal “a quo” viria a proferir a sentença recorrida, no dia 18/02/2013, a qual reconheceu, ainda que par-cialmente, o crédito reclamado por AM, Ld.ª, decisão com a qual o BE não se conforma.
6.ª - A sentença recorrida reconheceu o crédito reclamado por AM, Ld.ª, no valor de € 87.000,00, por considerar que cabia ao BE fazer prova da inexistência, daquele crédito.
7.ª - O princípio do ónus da prova consagrado no art.° 342.º do CC obrigava a reclamante, que passou a assumir a posição de A., a provar o direito de crédito de que se arroga e não o impugnante.
8.ª - Era à reclamante e não ao impugnante que cabia fazer prova da existência do seu direito, dado que aquela, a partir do momento em que o seu crédito foi impugnado, assumiu a posição de A., tendo em conta o disposto no art.° 868.° do CPC, o qual nos remete para os termos do processo sumário de declaração.
9.ª - Na reclamação de créditos apresentada pela reclamante AM, Ld.ª, a respeito do crédito que foi parcialmente reconhecido na sentença recorrida, foi alegado o seguinte: “A ora reclamante é titular de um crédito vencido e não pago contra os executados no valor de € 150.000,00, resultantes de uma confissão de dívida no montante de € 87.000,00 ...” e nada mais.
10.ª - A reclamação de créditos vinha acompanhada de um documento particular denominado “Contrato de Hipoteca”, e ali pode ler-se, no que ao crédito reconhecido na sentença recorrida diz respeito, o seguinte: “1. Os Primeiros Contraentes, na qualidade de fiadores e principais pagadores da sociedade MR, Ld.ª, confessam-se devedores solidários à representada do Segundo da quantia de oitenta e sete mil euros referentes a rendas vencidas e indemnização prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do CC;
11.ª - O BE impugnou o crédito reclamado por AM, Ld.ª, pondo em causa a existência do mesmo, impugnando também o documento junto pela reclamante, denominado de “Contrato de Hipoteca”, por entender que as declarações ali prestadas, são falsas e não correspondem à realidade (artigos 372.° e 376.° do CC).
12.ª - O Tribunal ordenou, por despacho proferido em 06/07/2012, que a reclamante juntasse aos autos os contratos de arrendamento, o que esta veio a fazer em 06/01/2013, juntando, apenas um contrato de arrendamento, celebrado em 15 /01/2002, donde consta como senhoria a AM, Ld.ª, como inquilina a “MR, Ld.ª” e como fiadores desta última, os executados AM e MM.
13.ª - Em 09/08/2012, a AM, Ld.ª, juntou aos autos, no cumprimento do disposto no art.° 512.º do CPC, diversos papéis/documentos, tendo os mesmos sido todos impugnados pelo exequente/impugnante, entre os quais um extracto histórico elaborado, ao que parece, pelo contabilista de nome FR, testemunha no processo.
14.ª - Foi ainda junta uma certidão emitida pelo serviço de Finanças do …, onde se pode verificar pagamentos anuais de rendas desde o ano de 2002, os quais importavam em cerca de 049.000,00 /ano, sendo que, em relação ao ano de 2009, foram declarados € 19.840,14.
15.ª - A propósito da prova documental, vem referido na sentença recorrida o que passamos a transcrever: “Também a testemunha FR explicou, sempre dentro de um depoimento objectivo, desinteressado, sereno, que a AM, Ld.ª, tinha e tem um extracto histórico computorizado relativo ao contrato de arrendamento existente entre ela a MR, Ld.ª, e que está junto a fls. 39 e sgs., explicando que nele foram lançados quer os débitos (o que a MR devia pagar) quer os créditos (o que a MR devia ter pago,), e que, tal como aí se observa, a MR, a dada altura, deixou de pagar as rendas ...”
16.ª - O Tribunal “a quo” não se pode limitar a dizer só que “a MR a dada altura deixou de pagar as rendas” tem de precisar temporalmente quando é que deixou de pagar e quais os valores efectivos que estão em causa e ainda conciliar a data com os demais documentos, e isso não foi feito!
17.ª - Analisando a CERTIDÃO EMITIDA PELO SERVIÇO DE FINANÇAS DO …, concluímos que foram pagas todas as rendas que precederam o ano de 2009, no valor de cerca de 049.000,00, em cada ano, e neste em particular (2009) foram ainda pagas rendas no valor de € 19.840,14, pelo que não era possível que, em 21 de Outubro de 2009, como declararam as partes no Contrato de Hipoteca, fossem devidos € 87.000,00 de rendas em atraso e respectiva indemnização.
18.ª - Confrontada com esta realidade, pelo próprio Tribunal, a testemunha FR, contabilista de todas as empresas do grupo, teve a ousadia de dizer em tribunal que apesar de não receberem as rendas, pasme-se, as declaravam e pagavam o respectivo imposto!
19.ª - A certidão fiscal tem declarado, expressamente, que foram pagas todas as rendas do ano de 2002 e seguintes, incluindo, € 19.840,14, que foram pagas no ano de 2009, e a testemunha não pode vir agora alegar o contrário, a menos que resultasse do próprio documento e que o fisco tivesse sido informado que, efectivamente, aquelas rendas não foram recebidas.
20.ª - A contabilidade é uma coisa séria e tem de espelhar a realidade, caso contrário, há crime! A ser verdade o que alega a testemunha, estamos perante um crime de falsas declarações, fraude fiscal, etc..., pelo menos!
21.ª - O contabilista confessou, perante o Tribunal, que declarou ao Estado rendimentos que nunca foram recebidos e o Tribunal “a quo” não só não manda extrair certidão para efeitos de procedimento criminal, como até considera, que o mesmo prestou um depoimento “ objectivo, desinteressado, sereno...”.
22.ª - A testemunha acaba por entrar em contradição e fugindo-lhe “a boca para a verdade”, dizendo ao Tribunal “a quo” que não sabe quando cessou o contrato de arrendamento, mas seguramente foi no ano de 2009, conforme se constata do depoimento que se encontra gravado.
23.ª - Se a testemunha disse ao Tribunal que o contrato cessou em 2009, e a certidão fiscal comprova isso mesmo, rendas recebidas ainda no ano de 2009, é por demais evidente que a declaração confessória de dívida constante no Contrato de Hipoteca, celebrado em Outubro/2009, é uma farsa, inexistindo, qualquer dívida, resultante de rendas vencidas e não pagas, muito menos no valor de € 87.000,00.
24.ª - A "trapalhada" é de tal forma que o contabilista, testemunha no processo, não soube sequer precisar no Tribunal o valor das rendas, quando afirma “ ... eu penso que são cerca de 3000 e tal euros mensais, a dividir em duas ... eram duas partes, era uma de armazém e outra de lojas, eram cerca de 3000 euros, 3 mil e tal euros...”, quando no contrato de arrendamento vem declarado na cláusula segunda, que o valor mensal da renda é de € 4.090,14.
25.ª - O Tribunal “a quo” serviu-se do documento, valorando-o - certidão emitida pelo Serviço de Finanças ….para considerar provada a existência do contrato de arrendamento, entre a MR e a AM, mas ignorou o mesmo documento - certidão fiscal - que atesta que no ano de 2009, ainda foram declaradas rendas no valor de € 19.840,14, sendo, assim, completamente falso que, em Outubro de 2009, fossem devidas rendas em atraso no valor de € 87.000,00.
26.ª - Se o crédito reclamado diz respeito ao não pagamento de rendas em atraso, e tendo a sua existência sido posta em causa pelo BE, revelava-se de primordial importância saber se existiam rendas em atraso e a que período temporal se referiam as mesmas e essa prova não foi feita.
27.ª - Dos autos não consta um único documento de interpelação/denúncia, do contrato de arrendamento, onde se possa ver que a AM, Ld.ª, tenha pedido à MR, Ld.ª, para lhe pagar as rendas em atraso, com a discriminação dos meses e anos a que diziam respeito, e os respectivos valores, etc..
28.ª - Também não foi intentada nenhuma acção para o efeito, o que não deixa de ser estranho.
29.ª - No “Contrato de Hipoteca”, não foi estabelecido qualquer prazo para pagamento da dívida, nem tão pouco o vencimento de juros, o que também não deixa de ser estranho.
30.ª - O Tribunal não podia, com base nos factos que resultaram provados, ter reconhecido o crédito da AM, Ld.ª, de € 87.000,00.
31.ª - Não ficou provado - prova que cabia à reclamante - a existência de uma dívida real e efectiva, para que a mesma se apresentasse a reclamar créditos com base nas rendas em atraso, ou seja, a dívida reclamada, não existe.
32.ª - Tendo ficado provado que as rendas não foram reclamadas no processo de insolvência da MR, Ld.ª, significa isso que, apesar de impossibilitada de cumprir as suas obrigações, sempre pagou as rendas à AM, Ld.ª, pelo que o Tribunal “a quo” retirou a conclusão contrária do que seria lógico concluir, ao dizer que: “... ou melhor, oferecendo prova de que foi a MR declarada insolvente em 2011, o que efectivamente quer dizer que estava impossibilitada de cumprir as suas obrigações, entre os quais o pagamento da renda.”
33.ª - Dos documentos juntos aos autos não resulta a existência de qualquer dívida relativas a rendas em atraso, mas, a existirem algumas rendas em atraso, cabia à reclamante discriminar e provar, o ano, os meses e os valores efectivos das rendas não pagas, para justificar os € 87.000,00, e isso não foi feito.
34.ª - A decisão do Tribunal “a quo” não tem suporte na matéria de facto provada.
35.ª - Ao artigo 15.° da impugnação “O suposto crédito de € 87.000,00, rela-tivos a supostas rendas da MR, não existe, pura e simplesmente, como é bom de ver”, deveria o Tribunal “a quo” ter respondido: Provado.
36.ª - Dada a obrigação da análise crítica da prova imposta ao julgador pelo n.º 2 do art.º 653.º do CPC, o dever de fundamentar e convencer extraprocessualmente falando, os destinatários da decisão que a fundamentação dada a matéria de facto supra mencionada, a sentença recorrida padece de um vício de erro de julgamento na medida em que a decisão do Tribunal relativamente à matéria de facto vai contra o que é razoável extrair dos citados documentos e vai contra o que foi em audiência contraditória, e sempre sob juramento afirmado pela testemunha, e vai ainda contra as próprias regras da experiência comum, o que está ao alcance desse Tribunal corrigir, por se mostrarem reunidos os requisitos do art.° 712.º do CPC.
37.ª - A reclamante AM, não tem título exequível, por o mesmo enfermar de falsidade material, dado que a declaração confessória de dívida dos executados perante AM, Ld.ª, enxertada no documento intitulado “Contrato de Hipoteca”, que se reconduz à previsão do art.º 46.º/1/c) do CPC, não corresponde à realidade, tendo as partes ali assumido uma dívida sem que alguma vez tenha existido, o que foi demonstrado em sede de julgamento.
38.ª - Assim, deveria o Tribunal ter julgado a impugnação não parcial mas totalmente procedente e, consequentemente, ter indeferido o crédito reclamado por AM, Ld.ª, por o mesmo inexistir, com todas as demais consequências legais.
39.ª - É assim nula a sentença recorrida, tendo em conta o disposto no art.° 668.°/c) do CPC, dado que, a matéria de facto provada, impunha ao Tribunal “a quo”, o não reconhecimento do crédito reclamado.
40.ª - Violou, assim, a sentença recorrida, o disposto, designadamente nos artigos 46.°, 515.°, 653.°, 659.°, 665.° do CPC e 342.° e 376.° do CC.
Pede o apelante que a sentença recorrida seja revogada e substituída por decisão que julgue procedente a impugnação do Banco exequente, com todas as demais consequências legais.
7. A reclamante apresentou contra-alegações a pugnar pela confir-mação do julgado, rematando com a seguinte síntese conclusiva:
1.ª - A sentença não merece o mínimo reparo, já que à sua elaboração presidiu o rigor e o respeito pelas normas jurídicas em vigor.
2.ª - Bem andou o Mm.º Juiz “a quo”, ao reconhecer o crédito de € 87.000,00 da reclamante AM, Ld.a, sobre os executados AM e mulher MM.
3.ª - O Mm.º Juiz não inverteu o ónus da prova, pois que o que afirma na decisão é que, por um lado, a Reclamante provou a existência do crédito e que, por outro lado, o exequente não provou a sua inexistência.
4.ª - A declaração confessória tem a força probatória que lhe é conferida pelo artigo 358.º, n.º 2, do CC.
5.ª - Apesar de o documento ter sido impugnado, a reclamante fez a prova da sua genuinidade, estando por isso provado o respectivo conteúdo.
6.ª - Apesar de a MR, Ld.a, enquanto arrendatária da firma AM, Ld.ª, ter efectuado as retenções na fonte e de ter entregue esses valores ao fisco, a verdade é que não pagou rendas e respectiva indemnização, no montante de € 87.000,00.
7.ª - Embora tenha havido contabilização do rendimento, as rendas não foram efectivamente recebidas, já que o que não era pago ia sendo lançado pela firma AM, Ld.ª, na conta-corrente da inquilina MR, Ld.ª.
8.ª - Não tem qualquer relevância o facto de a firma AM, Ld.ª, não ter reclamado créditos na insolvência da MR, Ld.ª, o que até é compreensível precisamente pelo facto de o credor considerar garantido o seu crédito pela hipoteca voluntária celebrada muito antes com os executados.
9.ª - A certidão fiscal só aparentemente é que prova a inexistência do crédito de rendas, porque rendimento para efeitos fiscais não coincide necessariamente com recebimento.
10.ª - O valor de rendas não pagas, apesar de ser considerado como ren-dimento na declaração fiscal anual da AM, Ld.ª, foi sendo lançado como dívida na conta-corrente da MR, Ld.ª, para posterior pagamento, pagamento esse que não se verificou.
11.ª - Em termos fiscais rendimento e recebimento são conceitos diversos, que podem ou não coincidir, bastando para tanto lembrar que uma mercadoria facturada constitui rendimento, obriga à liquidação de 1VA e entra nos proveitos do vendedor, independentemente de ter sido ou não cobrado o preço.
12.ª - Ao longo do seu depoimento gravado, que pode ser melhor analisado, nomeadamente nas passagens transcritas, a testemunha FR depôs com clareza e isenção, mostrou ter conhecimento directo dos factos, confirmou a veracidade da declaração confessória e da conta corrente denominada “Extracto Histórico”.
13.ª - A Reclamante AM, Ld.a, provou que tem um crédito no montante de € 87.000,00 sobre os executados AM, e mulher MM, pelo que outra solução não resta senão confirmar a decisão proferida pelo Tribunal "a quo".
14.ª - Improcedem, assim, as conclusões do Recorrente.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
Como é sabido, o objecto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3, 684.º, n.º 2, e 685.º-A, n.º 1, do CPC, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.
Dentro desses parâmetros, as questões suscitadas no presente recurso são as seguintes:
a) – a nulidade da sentença por violação do disposto no art.º 668.º, n.º 1, alínea c), do CPC;
b) - a questão do ónus da prova sobre a existência do crédito reclamado;
c) – o erro de valoração da prova no âmbito da resposta à matéria alegada sob o art.º 15.º do articulado de impugnação;
d) – a insuficiência dos factos dados como provados para se con-cluir pelo reconhecimento do crédito reclamado.
III – Fundamentação
1. Factualidade dada como assente pela 1.ª Instância
Vem dada como provada pela 1.ª Instância a seguinte factualidade:
1.1. No documento junto a fls. 8 e 9, datado de 21 de Outubro de 2009, intitulado Contrato de Hipoteca AM e MM declararam perante a sociedade AM, Ld.ª, que, “na qualidade de fiadores e principais pagadores da sociedade MR, Ld.ª, confessam-se devedores solidários à representada do segundo (AM, Ld.ª) da quantia de oitenta e sete mil euros referentes a rendas vencidas e indemnização prevista no n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil”, que “na qualidade de fiadores e principais pagadores da sociedade “TR, Unipessoal, Ld.ª” garantem à representada do segundo Contraente o pagamento de rendas até ao limite máximo de sessenta e três mil euros” e que “constituem a favor da representada do segundo contraente, que a aceita, hipoteca sobre o prédio urbano, sito … (...) descrito na Conservatória do Registo Predial … sob o n.º … até ao limite máximo de cento e cinquenta mil euros” – resposta à matéria dos artigos 1.º e 3.º do requerimento de reclamação;
1.2. Encontra-se registada a hipoteca referida em 1.1 a favor de “AM, Ld.ª”, pela inscrição de 26 de Outubro de 2009 – resposta à matéria do art.º 4.º da reclamação.
1.3. A executada MR, Ld.ª, foi declarada insolvente por sentença proferida em 15 de Julho de 2011, em processo que corre termos sob o n.º … no 2.º Juízo de … de Lisboa – resposta à matéria do art.º 12.º da impugnação;
1.4. O executado AM foi sócio da sociedade “AM, Ld.ª”, até 19 de Agosto de 2009 e foi (é) sócio da sociedade MR, Ld.ª – resposta à matéria do art.º 13.º da impugnação;
1.5. O crédito das rendas não foi reclamado pela sociedade “AM, Ld.ª” no processo de insolvência da sociedade MR, Ld.ª – resposta à matéria do art.º 16.º da impugnação.
Apesar de não incluída na sentença recorrida, importa ainda consignar a seguinte factualidade provada resultante dos elementos juntos nos autos de execução e de que foi agora junta cópia certificada:
1.6. O exequente BE, S.A, é portador das duas livranças dadas à execução, ambas subscritas pela MR, Ld.ª, das quais constam os avales prestados à subscritora pelos executados AM e MM:
a) – uma livrança emitida em 2/12/2006, no valor de € 53.3888,68, com vencimento em 05-07-2010;
b) – outra emitida em 26-04-2007, no valor de € 25.388,71, com vencimento em 05-07-2010;
1.7. Nos autos de execução, foi penhorado o prédio urbano, sito na freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art.º …, no valor patrimonial de € 11.540,00, cuja aquisição por compra se encontra inscrita, desde 15/05/1987, na titularidade do executado AM, casado, sob regime de comunhão de adquiridos, com a executada MM;
1.8. A referida penhora foi registada a favor do exequente BE, S.A., em 08 de Outubro de 2010.
2. Do mérito do recurso
2.1. Quanto à nulidade da sentença
O apelante arguiu a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, na redacção anterior à Reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, por considerar que a matéria de facto provada, impunha ao Tribunal “a quo” o não reconhecimento do cré-dito reclamado.
Segundo o mencionado normativo:
É nula a sentença quando:
c) – Os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Trata-se, portanto, de uma sanção estabelecida para a inobservância grave de um requisito formal que afecte a estrutura lógica da sentença.
Com efeito, segundo o artigo 659.º, n.º 2, do CPC, o juiz na sentença deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre: uma premissa maior delineada na base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável; uma premissa menor integrada pelo universo factual dado como provado; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir, portanto, um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de recíproca exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar do seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, consistente em erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.
No caso vertente, não se verifica tal contradição formal.
Na própria tese do apelante, o que ocorrerá é antes uma incorrecta aplicação do critério de repartição do ónus da prova e erro de julgamento na apreciação da prova, o que se reconduz, em ambas as hipóteses, a ques-tões de mérito, que em nada afectam a validade formal da sentença.
Termos em que improcede a arguida nulidade da sentença.
2.2. Do ónus de alegação e prova da existência do crédito reclamado
De acordo com os n.º 1 e 2 do artigo 865.º do CPC, ressalvadas as hipóteses previstas no n.º 4, o credor que goze de um direito de garantia real sobre os bens penhorados, numa execução para pagamento de quantia certa, pode reclamar o seu crédito com base num título executivo, para ser pago pelo produto da venda desses bens, segundo a prioridade da respectiva garantia, em conformidade com o genericamente preconizado no art.º 604.º do CC.
Para tanto, as reclamações de créditos deduzidas pelos credores privilegiados dão lugar ao designado concurso de credores, o qual constitui um procedimento declarativo, de natureza contraditória, destinado à verificação e subsequente graduação de tais créditos entre si e com o crédito do exequente, procedimento esse que é tramitado por apenso ao processo de execução, nos termos regulados nos artigos 865.º, n.º 8, e 866.º a 868.º do CPC.
Assim, o mecanismo da reclamação de créditos traduz-se, ao fim e ao cabo, numa espécie de coligação superveniente, conjunta, dos credores reclamantes com o exequente, mas sujeita à condição específica de o crédito reclamado ser provido de garantia real sobre o bem penhorado para satisfação do crédito exequendo.
Nessa medida, o articulado de reclamação de créditos deve ser deduzido em termos similares aos exigidos para o requerimento executivo, devendo o reclamante ali individualizar, a título de causa de pedir, o crédito reclamado, quanto à sua origem, natureza e montante, bem como especificar a garantia real de que goze aquele crédito[1]. Deverá ainda apresentar o respectivo título executivo, nos termos do n.º 2 do artigo 865.º, ressalvados os casos previstos no art.º 869.º, n.º 1, do CPC, em função do qual se afere a origem, natureza e montante do crédito reclamado, e também os documentos comprovativos da constituição e registo da garantia real indicada, quando a tal sujeitos.
O crédito reclamado será admitido mesmo que não se encontre vencido (art.º 865.º, n.º 7, 1.ª parte, CPC), mas se não reunir os requisitos de certeza e liquidez, o reclamante terá de desencadear os mecanismos preliminares de que dispõe o exequente para tornar a obrigação certa e líquida, previstos nos artigos 803.º e 805.º, ex vi do art.º 865.º, n.º 7, 2.ª parte, do CPC.
Ademais, se o título executivo apresentado em sede de reclamação de créditos consistir num documento de mero reconhecimento de dívida do qual não conste a fonte da obrigação, incumbe ao reclamante expor, sucintamente, os factos de que emerge o seu crédito, em termos análogos aos exigidos ao exequente pelo artigo 810.º, n.º 1, alínea e), do CPC.
Com efeito, tal ónus de alegação é postulado por razões que se prendem com o exercício esclarecido do contraditório, por parte dos eventuais impugnantes, e até com a necessidade de, mais tarde, se saber a que título foi satisfeita a obrigação em causa.
De resto, se é assim em relação ao exequente, por maioria de razão o deverá ser quanto ao credor reclamante, tendo em conta que o crédito reclamado fica exposto também à impugnação dos demais reclamantes e é ainda objecto de reconhecimento judicial, o qual jamais poderá prescindir da identificação da respectiva relação causal, de modo a permitir a delimitação objectiva do caso julgado material, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, e 673.º do CPC.
No entanto, não se deve confundir a falta de alegação, por parte do exequente ou do reclamante, do fundamento do seu crédito com a falta de título executivo.
Com efeito, o documento que importe o reconhecimento de uma obrigação patrimonial, sem indicação da relação causal, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, é por si só dotado de exequibilidade extrínseca.
Por seu turno, a falta da alegação da relação causal do crédito exequendo constitui já um requisito para cuja inobservância a lei comina a imediata recusa do requerimento executivo pelo agente de execução, nos termos do 811.º, n.º 1, alínea a), com referência ao art.º 810.º, n.º 1, alínea e), do CPC. Passado que seja o momento liminar, essa falta pode reconduzir-se ao vício de ineptidão do requerimento executivo, por falta de causa de pedir, determinativa, quando insuprível[2], de indeferimento liminar ou de absolvição da instância, consoante o momento em que for verificada, de harmonia com o disposto nos artigos 812.º-E, n.º 1, alínea b), 814.º, n.º 1, alínea c), e 820.º, com referência aos artigos 193.º, n.º 1 e 2, alínea a), 288.º, n.º 1, alínea b), 493.º, n.º 2, e 494, alínea b) e 495.º do CPC.
A mesma consequência deverá ser estendida, com as devidas adaptações ao procedimento declarativo da reclamação de créditos, à falta de alegação, por parte do reclamante, do fundamento do crédito reclamado, quando tal fundamento não conste do título apresentado. Mal se compreenderia que pudesse ser reconhecido, graduado e mais tarde satisfeito um crédito sem a mínima identificação da relação causal em que se estriba, o que não permitiria sequer invocar mais tarde a excepção de caso julgado.
Sucede que, no caso vertente, no que tange ao crédito de € 87.000,00, o reclamante apenas se referiu à confissão de dívida constante do documento de fls. 8/9, datado de 21/10/2009, no qual se alude, genericamente, a “rendas vencidas e indemnização prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do CC”, sem que se mostre ali indicado o contrato de arrendamento de que emergiam e o período de tempo a que respeitavam.
Porém, em sede de despacho saneador, o Mm.º Juiz a quo apenas se centrou na invocada questão de falta do título executivo, que julgou – e bem – improcedente, não curando de providenciar, no entanto, como então se impunha, pelo aperfeiçoamento da reclamação no sentido de a reclamante identificar, com a precisão adequada, nos termos aplicáveis do artigo 810.º, n.º 1, alínea e), do CPC, as rendas não pagas à reclamante porventura cobertas pela confissão constante do título apresentado, até para proporcionar ao impugnante, como já foi dito, o exercício esclarecido do contraditório.
É certo que, já em sede de determinação das medidas instrutórias, o Mm.º Juiz a quo convidou a reclamante a juntar o contrato de arrendamento participado às finanças, mas tal junção não se mostra, por si só, suficiente para a identificação das rendas em dívida, na medida em que as prestações aqui em causa respeitariam a cada uma das obrigações singulares periódicas de pagamento da renda estipulada nesse contrato.
E foi assim que adveio a confusão sobre essa matéria no decurso do julgamento, a ponto de, da matéria de facto dada como provada, nem sequer se colher quais as concretas rendas em dívida, acabando, estranhamente, por se reconhecer e graduar um crédito de € 87.000,00, em relação ao qual se desconhece a que prestações de renda respeita.
Outra questão suscitada é a que concerne à repartição do ónus da prova.
Em primeiro lugar, importa ter presente que a exequibilidade de um documento não tem, por si mesma, a virtualidade de alterar as regras do ónus da prova, aplicando-se, nesta matéria, as regras gerais e especificas pertinentes.
Estamos, pois, perante um título executivo, consistente num documento autenticado de confissão de dívida, do qual não consta a indicação específica das prestações obrigacionais a que respeitam, ou seja, a especificação das rendas não pagas. Aliás, da cláusula 1.ª de tal documento parece resultar que a referida confissão se reporta a rendas vencidas e indemnização devida nos termos do n.º 1 do artigo 1041.º do CC, à data da outorga do mesmo documento em 21/10/2009, mas daí não se colhe quais as prestações tidas em falta, nem tão pouco a parte correspondente às próprias prestações e a relativa à indemnização.
Sucede que a confissão extrajudicial exarada em documento particular autenticado não é dotada de força probatória plena, em relação a terceiros, como decorre do artigo 358.º, n.º 2, a contrario sensu, do CC.
Por outro lado, segundo o artigo 458.º, n.º 1, do CPC:
Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Daqui se extrai que, no caso de uma declaração de reconhecimento de dívida, sem indicação da respectiva relação causal, invocada aquela pelo credor perante o devedor confitente, incumbirá então a este provar que não existe tal relação causal, o que se traduz numa inversão do ónus da prova sobre o facto constitutivo dessa dívida, em detrimento do preceituado no art.º 342.º, n.º 1, do CC, mas que só opera no domínio estrito da relação entre esse credor e respectivo devedor, não se estendendo, obviamente, em relação a terceiros.
No caso vertente, o Banco exequente é um terceiro em relação à dívida reclamada, nestes autos, contra os executados pela sociedade “AM, Ld.ª”, pelo que, tendo aquele impugnado essa dívida, recai sobre a própria reclamante o ónus de provar o facto constitutivo da mesma, nos termos do citado artigo 342.º, n.º 1. Nem se descortina, neste contexto, qual a razoabilidade de impor a um terceiro o ónus de provar a inexistência de uma dívida alheia.
Assim, procedem inteiramente as razões do apelante neste particular.
Importa agora apreciar os fundamentos da impugnação da decisão de facto.
2.3. Da impugnação da resposta negativa à matéria do art.º 15.º da impugnação
A apelante invoca o erro de apreciação da prova no âmbito da resposta negativa à matéria alegada sob o art.º 15.º da impugnação por si apresentada, donde consta, no que aqui releva, o seguinte:
O suposto crédito de € 87.000,00, relativo a supostas rendas da MR, não existe …
O tribunal a quo considerou esta matéria não provada, tendo consignado a seguinte fundamentação:
Artigo 15° - resultou não provado, antes de mais, pela completa ausência de prova sobre a inexistência do crédito reclamado. Mas não só. A reclamante alegou a existência de dois contratos de arrendamento celebrados com a MR e a TR. Perante a razoabilidade de a exequente pôr em crise a existência de tais contratos mas a impossibilidade de fazer a prova da sua inexistência, o Tribunal proferiu despacho a ordenar à reclamante que juntasse os dois contratos e, para evitar documentos falsos, participados às Finanças – fls. 31 e 83. A reclamante não juntou o suposto contrato celebrado com a Teorias Renovadas. Mas, juntou o contrato celebrado com a MR – fls. 158 e 159. Juntou igualmente alguns recibos de rendas – fls. 160, 161, 165, 166 e 167. E, mais que isso, juntou mesmo certidão fiscal da declaração feita por AM, Ld.ª, dos rendimentos percebidos com essas rendas – fls. 154 a 156 – tendo a testemunha FR, técnico oficial de contas que prestou serviços junto da AM, Ld.ª, explicado de forma muito pormenorizada que os rendimentos aí indicados com a letra F referem-se a rendas e que o NIF da MR nessas declarações é o 505010046, o que efectivamente o próprio contrato de arrendamento o confirma. Ainda contra a objecção levantada pela exequente de que a renda negociada era muito elevada – 4.090,14 euros – a testemunha FR esclareceu que o imóvel locado compõe-se de vários espaços, de grandes áreas, não estranhando por isso o valor da renda. E note-se de resto: naquela certidão fiscal constam rendas declaradas recebidas da MR desde 2002, ou seja, a mesma data do contrato de arrendamento, o que bate certo, e quando foi celebrado o primeiro contrato com o BE fundamento da dívida exequenda (ver o requerimento executivo), ou seja, quando ainda não havia a presente acção. Portanto, como ponto de partida que julgamos que ninguém poderá questionar, foi efectivamente celebrado o contrato de arrendamento junto aos autos entre a AM, L.ª e a MR, Ld.ª e esse contrato verdadeiramente implicou o pagamento de rendas.
Também a testemunha FR explicou, sempre dentro de um depoimento objectivo, desinteressado, sereno, que a AM, Ld.ª tinha e tem um extracto histórico computorizado relativo ao contrato de arrendamento existente entre ela a MR, Ld.ª e que está junto a fls. 39 e sgs. explicando que nele foram lançados quer os débitos (o que a MR devia pagar) quer os créditos (o que a MR devia ter pago), e que, tal como aí se observa, a MR, a dada altura, deixou de pagar as rendas, o que a exequente nega mas sem oferecer prova alguma, ou melhor, oferecendo prova de que foi a MR declarada insolvente em 2011, o que efectivamente quer dizer que estava impossibilitada de cumprir as suas obrigações, entre as quais a do pagamento da renda.
Portanto, de acordo com toda esta prova, não apenas entendemos que resultou não provado a negação da dívida reclamada como até a confirmação da sua existência.
E, porque os executados AM e MM garantiram o pagamento da dívida das rendas da MR, Ld.ª, a AM, Ld.ª, através da constituição de hipoteca sobre imóvel seu, não tem a exequente que estranhar o facto de não ter sido reclamado o crédito por AM, Lda. no processo de insolvência da MR nem o facto de a AM, Lda. não ter proposto acção alguma para pagamento das rendas: perante tal garantia hipotecária e declaração confessória da dívida, não necessitava ...
Por seu lado, o apelante argumenta que, cabendo à reclamante provar quais as rendas em dívida, dos documentos juntos aos autos e do depoimento da testemunha FR, contabilista do grupo de empresas em referência, não se pode concluir pela existência do reclamado crédito de € 87.000,00, salientando que o tribunal a quo não se podia ter limitado a dizer só que a “MR, Ld.ª”, a dada altura, deixou de pagar as rendas”, tendo de precisar, temporalmente, quando é que deixou de pagar e quais os valores efectivos que estão em causa. Nesse domínio, o apelante aponta contradições naquele depoimento e entre o mesmo e a documentação junta.
Vejamos
A primeira observação crítica a fazer é a de que toda a fundamentação do juízo probatório em apreço, salvo o decido respeito, parte do pressuposto, quanto a nós errado, de que incumbia ao exequente/impugnante o ónus de prova da inexistência da relação causal subjacente à confissão de dívida, quando, como já se deixou exposto, é sobre a reclamante que recai o ónus de provar a referida relação, ou seja, a existência das rendas não pagas.
Mas mesmo que se entendesse que tal ónus competia ao impugnante, ainda assim seria exigível à reclamante que especificasse, previamente, tais rendas, de modo a permitir ao impugnante um exercício esclarecido do contraditório.
Ora, do documento de fls. 158/159 consta um contrato de arrendamento comercial celebrado, em 15/01/2002, entre a ora reclamante AM, Ld.ª, e a sociedade MR, Ld.ª, nos termos do qual aquela sociedade deu de arrendamento a esta, pelo prazo de uma ano, com início em 01/01/2002, renovável por períodos sucessivos de igual duração, quatro caves dos prédios sitos na Rua …, e seis lojas, que constituem o rés-do-chão dos mesmos prédios, pela renda mensal de € 4.090,14, com vencimento no dia um do mês a que respeita, destinando-se tal arrendamento ao exercício da actividade comercial da inquilina no ramo do comércio de materiais de construção civil.
Na 5.ª cláusula desse contrato, os ora executados AM e MM assumiram-se como fiadores solidários da inquilina, renunciando ao benefício da excussão prévia, pelo cumprimento de todas as cláusulas contratuais e seus aditamentos e renovações até efectiva restituição do arrendado.
Além disso, através do documento particular autenticado reproduzido a fls. 8/9, datado de 21/10/2009, intitulado “Contrato de Hipoteca”, AM e MM, na qualidade de fiadores e principais pagadores da sociedade MR, Ld.ª, declararam perante a sociedade AM, Ld.ª, ora reclamante, confessar-se devedores solidários desta pela quantia de € 87.000,00 referente a rendas vencidas e indemnização prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do CC, tendo constituído a favor desta mesma sociedade hipoteca sobre o prédio urbano, sito na … (...) descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, para garantia, além do mais, do crédito assumido.
Conforme se consignou na motivação da decisão de facto, foram também juntos alguns recibos de rendas (fls. 160, 161 e 165 a 1679), bem como uma certidão fiscal da declaração feita por AM, Ld.ª, dos rendimentos percebidos com essas rendas (fls. 154 a 156).
Por sua vez, a testemunha FR, na sua qualidade de técnico de contas, tanto da reclamante como da sociedade MR, Ld.ª, revelou estar informada, de algum modo, da existência dos sobreditos contratos, apesar de não ter participado na sua feitura ou celebração, esclarecendo que o valor mensal da renda era dividido em duas verbas, uma relativa às lojas e outra a um armazém. Disse também que os rendimentos da sociedade AM, Ld.ª, participados às Finanças sob a letra F se referem às referidas rendas e que chegaram a ser declarados retidas na fonte importâncias de rendas não pagas pela MR, Ld.ª.
Questionado sobre as rendas que estariam em dívida, cobertas pela confissão constante do documento de fls. 8/9, a testemunha FR disse que tais importâncias constavam da conta corrente de fls. 39 a 45, respeitante ao período entre 01/01/2007 a 30/09/2009, a qual apresenta um saldo final acumulado no valor de € 24.418,45, a que acresceriam ainda as rendas dos anos de 2008 e 2009, que ali não foram sequer lançadas a débito, não tendo chegado a ser emitidos os respectivos recibos.
No entanto, a mesma testemunha, ao ser instada pelo Exm.º Advogado do impugnante, não conseguiu precisar a data em que cessou o mencionado contrato de arrendamento, dizendo saber apenas que cessara no ano de 2009, não explicando também como é que, desconhecendo a data da cessação desse contrato, chegara ao apuramento da cifra de € 87.000,00, que consta do documento de fls. 8/9. Neste particular, a referida testemunha acabou por afirmar que reunia com os gerentes das sociedades a quem prestava o seu serviço e que lhe “foi dito que o valor era o mesmo…”
De resto, também se mostra bastante estranho que o crédito de rendas aqui em causa não tenha sido sequer reclamado pela sociedade “AM, Ld.ª”, no processo de insolvência da sociedade MR, Ld.ª, como consta do descrito no ponto 1.5, sendo que a testemunha FR não deu explicação credível para tal omissão.
Também da decisão recorrida não se alcança como se chegou ao referido montante de € 87.000,00 nem a que rendas não pagas o mesmo respeita, o que se deve, porém, à circunstância de se ter partido do pressuposto de que era sobre o impugnante que recaía a prova da inexistência dessa dívida.
Seja como for, a resposta negativa ao art.º 15.º do articulado de impugnação torna-se irrelevante, para efeitos do reconhecimento do crédito reclamado, na medida em que, como já ficou dito, não cabia ao impugnante o ónus de prova dessa matéria.
2.4. Quanto à insuficiência da factualidade alegada e provada para o reconhecimento do crédito reclamado
Aqui chegados, muito embora não tenha sido produzida pelo impugnante contraprova para, nos termos do art.º 346.º do CC, lançar dúvida séria sobre a existência do contrato de arrendamento reproduzido a fls. 158/159 nem sobre a confissão de dívida de fls. 8/9, o certo é que a reclamante não alegou nem, muito menos, logrou provar quais as prestações de renda que, em concreto, deixaram de lhe ser pagas pela sociedade MR, Ld.ª, e que se encontrariam compreendidas na declaração confessória de fls, 8/9.
Em suma, significa isto que nem do alegado nos articulados nem da instrução da causa resultam factos que permitam identificar, com a mínima segurança, quais as prestações de renda não pagas pela sociedade MR, L.ª, à reclamante AM, Ld.ª, relativas ao contrato de arrendamento em referência, que constituíram objecto da confissão feita pelos executados AM e MM no doc. de fls. 8 e 9, não se podendo assim concluir pelo reconhecimento do alegado crédito de € 87.000,00.
Nestas circunstâncias, não resta senão em conformidade com o preceituado no artigo 346.º do CC, julgar a pretensão da reclamante contra a parte onerada com a prova desse crédito, ou seja, contra a própria reclamante.
IV - Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição, julga-se improcedente a pretensão de reconhecimento e graduação do crédito de € 87.000,00 aqui em causa.
As custas da reclamação e do recurso ficam a cargo da reclamante.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2013
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho
[1] A este propósito, vide Salvador da Costa, O Concurso de Credores, Almedina, 1998, pp.246-247, e Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 13.ª Edição, 2010, p. 334.
[2] Não obstante o vício de ineptidão da petição inicial ser, em regra, insuprível, afigura-se mais curial que, em caso de falta de exposição sucinta dos fundamentos da obrigação exequenda, quando exigida nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 810.º do CPC, não tendo ocorrido recusa imediata do requerimento executivo, o juiz de execução deva convidar o exequente a suprir aquela falta.