I) O nº 1 do artigo 26º da CRP consagra um conjunto de direitos que têm de comum o «estarem directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida».
II) A perícia destinada a avaliar o valor do imóvel em que está instalada a residência, não constitui qualquer intromissão na vida privada ou familiar, consistindo apenas numa situação equiparável a muitas outras da vida em sociedade como a de verificação dos contadores, de controlo do estado de manutenção pelos senhorios, de acesso a terraços de cobertura comuns, com acesso necessário por determinadas fracções.
III) Subjacente a essa conduta “invasora” não há qualquer intuito de devassa, ou divulgação de aspectos inerentes a direitos pessoais ou de personalidade, mas apenas objectivos específicos, circunstanciais, inerentes ao imóvel em si mesmo e sem qualquer correlação com as pessoas que nele habitam.
IV) Daí que a diligência pericial determinada não toca, muito menos intolerável ou desproporcionalmente, nesse núcleo da privacidade que a lei constitucional quis preservar em absoluto, antes se integra-se nos ditos “incómodos/contrariedades” da vida quotidiana, não merecedores de particular tutela e que devem ser postergados sempre que razões justificadas se lhe devam sobrepor.
V) Sendo a perícia ordenada a diligência legal e processualmente adequada para a resolução do diferendo posto à apreciação do tribunal, é adequada a ordem dada pelo tribunal à recorrente para facultar o acesso ao imóvel para efeitos de realização da dita perícia.(AAC)
Relatório.
1. Nesta acção declarativa de condenação que EJ… intentou contra DC…, após vicissitudes diversas, veio o réu, por acórdão desta Relação, proferido no dia 22 de Novembro de 2011, a ser condenado na restituição à Autora do montante pecuniário correspondente a metade do valor actualizado do imóvel sito em F… e da parte do imóvel sito em V… (este em regime de compropriedade) a apurar em oportuna liquidação.
Transitada essa decisão, veio a autora, por requerimento apresentado no dia 14.06.2012, deduzir Incidente de Liquidação para determinação do valor que o réu devia pagar-lhe, em conformidade com o decidido.
Invocou que os imóveis a que se reportava o acórdão tinham sido avaliados no decurso do processo, em Junho de 2009, por um perito – Eng. VF… – o qual atribuíra à moradia de F… o valor de € 350 000,00 e ao lote de terreno de V… o valor de € 82 000,00, pelo que dever-se-ia liquidar em € 216 000,00 o valor em que o réu foi condenado, correspondente a metade do valor presumível dos imóveis objecto dos autos.
E requereu que fosse ordenada a realização de perícia singular com vista à determinação do “valor de transacção” dos dois ditos imóveis.
Notificado, o réu deduziu oposição. Invocou o que consta de fls. 785 e seguintes e pediu, além do mais, o indeferimento da perícia tal como fora requerida.
A perícia pedida veio, todavia, a ser deferida por despacho de 10.10.2012, que, não obstante ter sido objecto de recurso, não interferiu no andamento do processo, uma vez que foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 810).
Nomeada perita para a perícia visada, após diversas tentativas desta no sentido de concretizar a diligência para que fora nomeada, dada a oposição do réu e de MC…, veio esta, intitulando-se filha da autora, mulher do réu e residente no imóvel em causa – sito na Rua …, em F… – por requerimento datado de 13.05.2013, “dizer que o tribunal não tem que mandar avaliar a casa sem me pedir licença e que eu não concordo, porque aquela senhora [referindo-se à autora, sua mãe] não tem parte em nada do que lá está” (fls. 828).
E como a Sra. perita nomeada continuasse a dar conta da obstrução levada a cabo pelo réu e pela dita MC… à concretização da vistoria da casa para efeitos da avaliação ordenada, o tribunal proferiu o seguinte despacho:
“1. O impasse da peritagem ao imóvel de F…, ante a oposição de uma tal de MC…, subscritora do requerimento do fls. 828, é resolvido de forma muito simples: a sra, perita deverá indicar o dia, e a hora em que procederá realização da peritagem, com antecedência de quinze dias; após, aquela opositora será notificada pessoalmente através de oficial de justiça, deste despacho, e de que deve cooperar com o tribunal e não se opor à realização dessa mesma peritagem – pois que o direito à reserva da vida privada não é absoluto e consubstanciando-se a sua violação na entrada, por breve tempo, da srª perita no imóvel, ele deve ceder perante o interesse na realização da justiça – ao abrigo do disposto no artigo 519º, n°1 do Código de Processo Civil, sob pena de:
a) ser condenada em multa por falta de cooperação com o tribunal – artigo 519º, n° 2 do Código de Processo Civil;
b) cometer um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1 al. b) do Código Penal, advertência que constará da própria notificação;
c) ser arrombado o imóvel, com auxílio da força policial que será requisitada para o acto e que previamente ao arrombamento deverá novamente advertir a opositora que comete um crime de desobediência previsto e punido pelo o 318°, nº1, al. b) do Código Penal caso não faculte a entrada da srª. perita no interior do imóvel, de tudo lavrando certidão.
2. Certificada a notificação pessoal da requerida, então, e só então, serão as partes notificadas deste despacho bem assim da data da diligência.”.
É deste despacho que recorre MC…, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata e efeito suspensivo do processo.
Alegou e, no final, concluiu que;
1. O imóvel objecto da perícia ordenada, sito na Rua …, F…, concelho do …, constitui a casa de morada de família da Agravante, o que se extrai do requerimento da de 13 de Maio de 2013, e dos requerimentos de A. e R. entrados em juízo, respectivamente, em 29 de Maio e 3 de Junho de 2013;
2. Tanto que foi no imóvel em causa que a Agravante foi notificada pessoalmente do douto despacho recorrido (Cfr. Nota de Notificação de fls.., datada de 27 de Junho de 2013);
3. O despacho em. crise, que ordena a realização coactiva da perícia no interior da habitação da Agravante, conflitua com os seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente o direito à segurança, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito ao sossego, consagrados Lei Fundamental (artigos 26º, 27.°, 65º e 67.° da CRP), que constituem emanação do direito de personalidade, que é um direito fundamental;
4. Isto porque o domicílio é por excelência, um espaço de privacidade e intimidade;
5. A Agravante opôs-se à realização da peritagem no interior da sua habitação invocando o seu direito à reserva e à intimidade da sua vida privada;
6. Sendo certo que a Agravante não é parte nos presentes autos;
7. Acresce que o Tribunal a quo incorreu na violação da norma contida na al. b) do nº3 do art. 519º do CPC ao determinar coactivamente a perícia em causa, contra a vontade expressa e anteriormente manifestada pela Agravante no seu requerimento de fls. 828;
8. É nula, e necessariamente ilícita e proibida, a prova ordenada pelo Tribunal a quo obtida mediante abusiva intromissão na vida privada, face à recusa anteriormente manifestada Agravante;
9. Ou seja, é ilícita a diligência probatória ordenada pelo Tribunal a quo no despacho sob censura face à recusa já manifestada pela aqui Agravante;
10. Ademais, o despacho em crise se afigura-se desproporcionado, porquanto, no balanceamento do direito da A, em liquidar o seu créditos sobre o R., o Tribunal a quo sobrepôs tal liquidação ao direito à reserva e intimidade da vida privada da Agravante, sendo certo que existem outros meios que permitem a avaliação do imóvel sem que, para tanto, a Sra. perita tenha de entrar e examinar a habitação da Agravante;
11. Ou seja, o Tribunal a quo, ao atribuir prevalência ao dever de colaboração e ao interesse da realização da justiça sobre um direito relativo à personalidade incorreu em desproporção, atento os princípios da proporcionalidade e razoabilidade;
12. Sempre se evitaria a compressão do direito da Agravante., salvaguardando-se o "interesse na realização da justiça", se a peritagem em causa se bastasse na análise às plantas do imóvel, existentes nos serviços camarários competentes;
13. O que, de igual modo, realizaria o interesse da A. na avaliação do imóvel sem contender com os direitos de personalidade da Agravante;
14. Existem outros meios de realizar a perícia ordenada menos gravosos para os direitos de personalidade da Agravante, que não prevejam a entrada no imóvel dos autos, dos quais pode a Sra. perita lançar mão, como seja a consulta das plantas de localização e de áreas e o projecto de construção do imóvel serviços camarários competentes, a análise da envolvente urbanística, o apuramento da existência de rede de esgotos domésticos, de água, de. esgotos, electricidade e telefone, entre outros;
15. Ou seja, prevalecendo o direito da Agravante, poderá a perita proceder à avaliação do imóvel recorrendo aos projectos do imóvel existentes na Câmara Municipal do …, através dos quais poderá verificar os materiais utilizados e a tipologia interior do imóvel, como as respectivas áreas;
16 Pelo que o Tribunal a quo comprimiu o direito à segurança, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito ao sossego da Agravante, consagrados na Lei Fundamental (artigos 26.°, 27.°, 65.° e 67.° da C.RP), que constituem emanação do direito de personalidade, que é um direito fundamental, desrazoável e desproporcionalmente;
17. Ou seja, a decisão sob censura é violadora do principio da proporcionalidade, nas vertentes de indispensabilidade e do equilíbrio ou razoabilidade, na medida em que sobrepõe aos interesseis legalmente protegidos dos particulares a realização coactiva de uma perícia com entrada no domicílio da Agravante sem cuidar que a mesma pode ser realizada por outros meios não intrusivos;
18. O despacho sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: artigos 26.°, 27.º, 65.° e 67.° da CRP, Artigo 519º, n.° 3, alínea b) do CPC; Artigo 70.° do CC.
Terminou pedindo a reparação do agravo, revogando-se a decisão em crise e substituindo-se a mesma por outra que ordene a realização da perícia sem intrusão no domicílio da Agravante.
A agravada contra alegou pugnando pela manutenção do decidido.
2. Para a apreciação do presente recurso importa ter em consideração os factos constantes do relatório que antecede e ainda que:
- A autora e o réu viveram em comunhão de mesa, leito e habitação desde 1954 até 16 de Maio de 2003 (ponto 6 dos factos dados como provados no acórdão de fls. 644 e seguintes).
- A agravante MC… é filha da Autora (doc. fls. 829).
- O réu e a agravante casaram no dia 8 de Junho de 2008 (doc. fls. 830);
3. Vistas as conclusões da alegação do recurso, delimitadoras do objecto do mesmo, a questão a decidir prende-se apenas com a legalidade, ou não, do despacho recorrido, no segmento em que determinou a notificação da ora agravante para se não opor à realização da perícia/avaliação da casa de morada daquela, ponderando que o direito à reserva da vida privada não é absoluto e que, no caso, deveria ceder perante o interesse na realização da justiça, ao abrigo do disposto no artigo 519º, n°1 do Código de Processo Civil.
Defende a recorrente que o Tribunal não pode impor-lhe o dever de cooperar, por estar investida do direito à reserva da sua vida e intimidade privada, direito integrador dos denominados “direitos de personalidade”, constitucionalmente garantidos.
Claramente sem razão. Aliás quer os obstáculos levantados à realização da perícia, quer a sua repetitiva argumentação recursória, não passam de um manifesto propósito de impedir ou dificultar o andamento do processo.
Mas vejamos.
Dispõe o nº 1 do artigo 26º da CRP que:
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quais quer formas de discriminação”.
Este preceito consagra, portanto, um conjunto de direitos que, todos eles, têm de comum o «estarem directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., Coimbra, 1984, p. 194) e, no que, especificamente, ao direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar respeita, trata-se do direito de cada um a ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico.
“O homem, sendo embora um ser social, não é, porém, todo ele parte da sociedade civil. Justamente porque é pessoa, o homem tem — como sublinham Javier Hervada e José M. Zumaquero — «um âmbito pessoal em que não têm entrada nem o Estado, nem a sociedade, um âmbito regulado pela consciência e pelo juízo de cada um. Este âmbito privado (íntimo, próprio) não é em si mesmo objecto de regulamentação por parte do Estado, nem de ingerências sociais. É um âmbito de liberdade, de intimidade ou de não publicidade» (cfr. Textos Internationales de Derechos Humanos, EUNSA, Pamplona, 1978, p. 145, citados no Acórdão do TC. nº 128/92, de 1.04.1992).
É neste âmbito privado ou de intimidade que está englobada a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v. g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou domicílio), e bem assim os meios de expressão e de comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.).
“Este direito à intimidade ou à vida privada — este direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular — compreende:
a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade;
b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado (cfr. J. Hervada e J. M. Zumaquero, loc. cit.; cfr., também, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição… citada, p. 196, e A. Garcia-Pablos de Molina, «La proteccion Penal del honor et de la intimidad…», in Libertad de Expression y Derecho Penal, Madrid, Edrosa)” (Acórdão do T. Constitucional citado).
Ora perante este restrito quadro constitucional e doutrinário, é manifesta a falta de razão da recorrente.
De facto, no caso, a perícia, não constitui qualquer intromissão na vida privada ou familiar da agravante; constitui não mais do que uma pequena “invasão” da casa, como acontece com as pessoas que, por força do modo como a sociedade está organizada, podem ter de, casualmente, “invadir” esse reduto familiar, que é a casa de cada um, por razões específicas e justificáveis.
É uma situação equiparável à dos técnicos de verificação dos contadores, à faculdade de que gozam os senhorios relativamente aos imóveis arrendados para habitação de acederem aos locados para controlo do seu estado de manutenção, à derivada da necessidade de aceder por exemplo a terraços de cobertura, comuns, mas cujo acesso só pode ser feito através de determinadas fracções, etc…etc…
Subjacente a essa conduta “invasora” não há qualquer intuito de devassa, ou divulgação de aspectos inerentes a direitos pessoais ou de personalidade, mas apenas objectivos específicos, circunstanciais, inerentes ao imóvel em si mesmo e sem qualquer correlação com as pessoas que nele habitam.
Daí que a diligência pericial determinada, no contexto em que foi judicialmente ordenada – com vista à liquidação de um caso definitivamente julgado, (independentemente dos meios alternativos propostos pela recorrente como substitutivos do exame à casa a realizar pela perita nomeada), não toca, muito menos intolerável ou desproporcionalmente, nesse núcleo da privacidade que a lei constitucional quis preservar em absoluto. Longe disso.
Integra-se nos ditos “incómodos/contrariedades” da vida quotidiana, não merecedores de particular tutela e que devem ser postergados sempre que razões justificadas se lhe devam sobrepor.
É, seguramente, o caso.
E assim, sendo a perícia ordenada a diligência legal e processualmente adequada para a resolução do diferendo posto à apreciação do tribunal e derivando do estatuído no art. 519º do CPC., aplicável, que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, praticando os actos que lhe forem determinados, sob pena de incorrerem nas sanções que enuncia, bem andou o tribunal recorrido ao ordenar a notificação da recorrente para facultar o acesso ao imóvel para efeitos de realização da dita perícia.
Improcede, pelo exposto, a argumentação da mesma.
4. Termos em que se acorda em negar provimento ao presente agravo e manter o despacho recorrido.
Custas pela agravante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2013.
(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Fátima Galante)
(Gilberto Jorge)