ACÇÃO DE ANULAÇÃO
DOAÇÃO
LEGITIMIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
INTERDIÇÃO
Sumário

1. Na acção de anulação de um negócio jurídico por virtude de incapacidade, erro, dolo ou coacção, só terá legitimidade como Autor o titular do direito de anulação (a pessoa a quem a incapacidade se refere, seu representante ou sucessor; o enganado ou o coagido.
2. A herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, mais que meras expectativas de suceder ao vendedor, pelo que não têm legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental da doadora, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.
3. Se for decretada a interdição é possível vir a invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pela (futura) interdita num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida, mas a iniciativa caberá, então, à pessoa que, sendo nomeada tutora, passa a representar o incapaz.
(sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - RELATÓRIO

Mf… instaurou acção declarativa, a seguir a forma ordinária do processo comum, contra Sc… (sua mãe) e Mf… (seu irmão), pedindo ao Tribunal que «seja declarada a nulidade da escritura e doação, bem como as inscrições no registo e eventuais registos subsequentes feitos».

Em fundamento alega, em síntese útil, que é filha da ré S… e irmã do réu M…, a primeira da qual fez ao segundo, em 8 de Agosto de 2012, a doação da fracção que identifica no na petição no artigo 21 da petição.

Mais alega que a referida doadora sofre, em resumo, de maleita, que o donatário sabe existir, consubstanciada em graves deficiências de entendimento, de intelecto e discernimento, assim como, deficiências de vontade e da própria afectividade e sensibilidade (cf. artigo 24 da petição) e que já promoveu a acção de interdição que corre termos 3 Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, com o n. …/12.2TJLSB.

Conclui que a incapacidade da doadora é fundamento de nulidade do negócio de doação praticado, o que requer seja reconhecido e declarado.

       Regularmente citados, contestaram em conjunto ambos os Réus, por excepção e impugnação, conducente à sua absolvição do pedido.

Terminaram, pedindo a condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor, que pedem que seja fixada em quantia não inferior a 5.000,00 Euros para cada um, uma vez que a autora alegou factos que sabia ser falsos, deduzindo pretensão infundamentada, conforme igualmente bem sabe.

       Houve réplica, na qual a autora, veio defender a posição assumida na petição.

Os Réus regressaram aos autos juntando cópia de douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05 de Dezembro de 2012, Maria Domingas Simões.

Foi proferida decisão que, considerando a pendência de acção de interdição contra a 1.ª Ré, a qual corre termos sob o n.º 3368/12.2, no 3.º Juízo Cível de Lisboa, acção essa que, em 5 de Março de 2013, ao abrigo do disposto no art. 279.º, 1, do Código de Processo Civil, ordenou a suspensão da instância até que transite em julgado a sentença que vier a ser proferida nos referidos autos de interdição.

Recorrem os Réus da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:

1) Sempre que o estado do processo o permitir, deve o juiz proferir decisão conhecendo as excepções dilatórias, e absolvendo da instância, ou conhecer de antecipadamente do mérito da causa, e absolver do pedido, nos termos das als. a) e b) do artigo 510º do Código Processo Cível, o que ocorre, nomeadamente, quando seja indiferente, mesmo considerando as várias soluções plausíveis de direito, a prova dos factos que permaneçam controvertidos;

2) O regime da incapacidade acidental consagrado no artigo 257 do Código Civil é também o aplicável aos negócios celebrados por qualquer incapaz de facto, ainda que ferido de incapacidade permanente;

3) A anulabilidade está sujeita ao regime do artigo 287 do Código Processo Civil, sendo interessado para este efeito apenas o incapacitado ou o seu representante, por ser no interesse daquele que foi estabelecida a invalidade do negócio.

4) O legislador não dá a qualquer interessado legitimidade para peticionar a anulação de uma doação, nomeadamente a uma filha da donatária eventualmente prejudicada com a doação.

5) No caso sub judice, a autora por não ser nem a interessada nem a sua representante legal não tem legitimidade para agir.

6) Consequentemente, nos presentes autos o Digníssimo Juiz a quo deveria ter conhecido do mérito da causa e ter produzido uma sentença que absolve-se os réus do pedido e não deveria unicamente ter declarada a suspensão da instância.

7) Pois que a absolvição do pedido é a única decisão possível nos presentes autos, independentemente da prova ou não dos factos controvertidos.

8) A julgar-se de outro modo, o Digníssimo Tribunal a quo fez uma má interpretação e aplicação das normas jurídicas que se extraem dos artigos 149, 150, 257 e 287 do Código Civil e artigos 26, 279, n. 1, 493, n. 2, 496 e 510 do Código Processo Civil.

Termos em que, deve o presente recurso se julgado procedente e provado e a decisão recorrida revogada e substituída por douto acórdão que julgue de mérito a acção e absolva os réus do pedido.

Contra-alegou a Recorrida que, no essencial, concluiu pela manutenção da decisão.

Corridos os Vistos legais,

           Cumpre apreciar e decidir.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

Das conclusões dos Recorrentes, que delimitam o objecto do recurso, resulta, que, no essencial, importa apreciar e decidir se existe fundamento para a suspensão da instância.

            Os factos são os que constam do Relatório.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Na presente acção, a Autora/Recorrida, filha da doadora, pretende seja declarada a nulidade da doação, outorgada pelos Réus por escritura pública de 8 de Agosto de 2012 e o registo da mesma e outros subsequentes, com fundamento na incapacidade da doadora, alegadamente, sofre de maleita, que o donatário sabe existir, consubstanciada em graves deficiências de entendimento, estando a correr termos acção de interdição que, aliás, justificou a prolação do despacho de suspensão da instância, de que os Réus recorrem.

Os Recorrentes colocam a tónica da sua argumentação recursiva na análise do regime da incapacidade acidental consagrado no artigo 257º do Código Civil, aplicável aos negócios celebrados por qualquer incapaz de facto, ainda que ferido de incapacidade permanente, argumentando que a anulabilidade está sujeita ao regime do artigo 287º do Código Civil, sendo interessado para este efeito apenas o incapacitado ou o seu representante, por ser no interesse daquele que foi estabelecida a invalidade do negócio.

No entender dos Recorrentes deveria ter sido proferida decisão de mérito sentença, absolvendo-se os réus do pedido – e não declarada a suspensão da instância - uma vez que a filha da donatária, eventualmente prejudicada com a doação, não tem legitimidade para peticionar a anulação de uma doação.

           
2. Com efeito, do regime aplicável à apreciação da validade de negócios jurídicos praticados por um incapaz de facto, que vem a ser judicialmente declarado interdito, resulta que é decisiva a sentença de interdição.

Procurando encontrar a melhor forma de, por um lado, proteger o incapaz e, por outro, tutelar a confiança no comércio jurídico, dando relevo à possibilidade que os terceiros têm de conhecer a situação de incapacidade, a lei distingue:
– os actos praticados anteriormente à publicidade da acção de interdição (artigo 150º do Código Civil): é-lhes aplicável o disposto no artigo 257º do Código Civil para a incapacidade acidental. São anuláveis se estiverem preenchidos os requisitos ali previstos, assumindo compreensível relevo o conhecimento ou a cognoscibilidade da incapacidade natural;
– os actos praticados após ter sido anunciada a propositura da acção, mas antes do registo da sentença de interdição definitiva (artigo 149º do Código Civil): são anuláveis se a interdição vier a ser decretada e se tiverem causado prejuízo ao incapaz; o prazo da anulação começa a contar “a partir do registo da sentença”;
– os actos posteriores ao registo da sentença de interdição definitiva (artigo 148º do Código Civil): são anuláveis, sem mais exigências.
Verifica-se, assim, que a circunstância de vir ser decretada a interdição permite invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pelo (futuro) interdito num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida; aliás, mesmo antes de a acção de interdição ser proposta e publicitada.
A decisão recorrida de suspensão da instância fundou-se, no essencial na circunstância de, considerando que a sentença de interdição fixará, sempre que possível, a data em que principiou a incapacidade natural, ela terá a maior importância prática para a aplicação do art. 257.º do Código Civil. Aí se refere que sendo o negócio realizado posteriormente a essa data, há uma forte presunção de que o mesmo foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade.

3. Afigura-se, contudo, que, no caso não se justificará a suspensão da instância.

Vejamos porquê.

Como se referiu e decorre do disposto no artigo 257º nº 1 do CCivil, a autora pretende a anulação (não a nulidade) do negócio jurídico de doação celebrado pela ré/doadora com o réu/donatário, com fundamento na incapacidade daquela, conhecida por este.

É sabido que a anulabilidade está sujeita ao regime do nº. 1 do artigo 287º do Código Civil, nos termos do qual só têm legitimidade para arguir a anulabilidade

as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece.

     Como referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[1]:

«Na acção de anulação de um negócio jurídico por virtude de incapacidade, erro, dolo ou coacção, só terá legitimidade como Autor o titular do direito (potestativo) de anulação (a pessoa a quem a incapacidade se refere, seu representante ou sucessor; o enganado ou o coagido)».

Em suma, as anulabilidades só podem ser invocadas por determinadas pessoas e não por quaisquer interessados.

A A. não integra o elenco de pessoas com legitimidade para suscitar a invalidade do negócio, celebrado pela doadora, com fundamento em alegada incapacidade acidental. De facto, ainda que seja herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, ter mais que uma expectativa do direito, não podendo impedir aquela de dispor dos seus bens como melhor lhe aprouver.

Neste sentido o acórdão da Relação do Porto de 5 de Maio de 1988[2], segundo o qual, os detentores de meras expectativas de suceder ao vendedor não têm legitimidade para pedir a anulabilidade do contrato de compra e venda de um prédio, a pretexto de se tratar de negócio usurário ou de incapacidade acidental do vendedor, ainda que tenha sido a mulher, deste a receber o preço do comprador, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.

No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Março de 1992[3], em que se afirma que os herdeiros legitimários não têm o direito de, em vida do doador, impugnarem a validade das doações deste, fora do âmbito do nº 2 do artigo 242º do Código Civil. Esta última disposição tem carácter excepcional, só sendo aplicável aos casos nela contemplados.

Em suma, o disposto no artigo 286º do Código Civil não confere aos herdeiros legitimários, legitimidade para pedirem a declaração de nulidade das doações feitas pelos pais, enquanto vivos forem.

Se for decretada a interdição é possível vir a invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pela (futura) interdita num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida, mas a iniciativa caberá, então, à pessoa que, sendo nomeada tutora, passa a representar o incapaz…

Tudo para concluir que, atendendo à causa de pedir, se afigura que a A./Recorrida não tem legitimidade para intentar a presente acção o que consequenciará a absolvição dos RR./Recorrentes da instância.

Face ao que exposto fica, não existe fundamento para, ao abrigo do disposto no art. 272.º, 1, do NCPC, a suspensão da presente instância, até que transite em julgado a sentença que vier a ser proferida nos autos de interdição n.º …/12.2, a correr os seus termos no 3.º Juízo Cível de Lisboa.

     Concluindo:

1. Na acção de anulação de um negócio jurídico por virtude de incapacidade, erro, dolo ou coacção, só terá legitimidade como Autor o titular do direito de anulação (a pessoa a quem a incapacidade se refere, seu representante ou sucessor; o enganado ou o coagido.

2. A herdeira legitimária não tem, em vida da doadora, mais que meras expectativas de suceder ao vendedor, pelo que não têm legitimidade para pedir a anulabilidade de doação, invocando a incapacidade acidental da doadora, já que a anulabilidade foi instituída para protecção do incapacitado ou daquele que foi explorado pela sua situação de dependência ou estado mental.
3. Se for decretada a interdição é possível vir a invalidar, nessa altura, actos anteriores, praticados pela (futura) interdita num momento em que a sua incapacidade se não encontrava juridicamente reconhecida, mas a iniciativa caberá, então, à pessoa que, sendo nomeada tutora, passa a representar o incapaz.


III – DECISÃO
Termos em que, revogando-se a decisão recorrida de suspensão da instância, deverão os autos prosseguir seus termos e proferido despacho que decida da verificação ou não dos pressupostos processuais.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2013.

(Fátima Galante)

(Gilberto Santos Jorge)

(António Martins)

[1] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 135. No mesmo sentido Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra editora, 1999, pág. 613.

[2] Acórdão do TRP, de 5 de Maio de 1988, Relator, Carlos Matias, CJ 1988-III-211.

[3] Acórdão do TRL, de 6 de Março de 1992, Relator, Joaquim Dias, JTRL00002650, www.dgsi.pt.