EXECUÇÃO
PENHORA
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
Sumário

Na execução deduzida tão só contra o devedor, apenas os bens deste podem ser penhorados, não podendo o mesmo opor ao executado a subsistência de garantia que o credor não tenha querido renunciar, nem a necessidade de previamente ser reconhecida, a insuficiência dos bens dados como garantia.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - Relatório
1. M  e B vieram deduzir oposição à penhora nos autos de execução que lhe move BANCO.
2. Alegam que a penhora objeto da oposição por incidir sobre bens de um dos devedores, ora oponente, quando existem bens de terceiros onerados com garantia real da dívida exequenda, sem que o Banco tivesse prescindido dessas garantias é ilegal, porquanto só poderiam ser penhorados os bens pertencentes aos devedores, se o Banco tivesse previamente prescindido da hipoteca que incide sobre bens de terceiro.
Assim o facto de a penhora ter por objeto bens de um devedor de valor inferior ao da dívida exequenda, sem ter prescindido da hipoteca que incide sobre bens de terceiros, que são de valor muito superior ao valor da dívida exequenda, contraria o regime legal previsto no art.º 821, n.º2, e no n.º 7, do art.º 28, do CPC, sendo que pretendendo o Exequente exercer a faculdade de, posteriormente, vir a executar aqueles bens de terceiro, constitui um abuso de direito.
3. A Exequente veio responder.
4. Foi proferida decisão que julgou a oposição à execução à penhora totalmente improcedente.
5. Inconformados vieram os Oponentes interpor recurso de apelação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
· A decisão recorrida, ao considerar lícita e proporcional a penhora efetuada nos autos pelo exequente sobre imóvel de valor muito inferior ao da dívida exequenda, quando a dívida exequenda está provida de hipoteca sobre bens de terceiros, de valor muito superior ao seu valor, viola o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 821º, nº 3 do Código de Processo Civil;
· Viola o princípio da proporcionalidade, consagrado o artigo 821º, nº 3, do Código de Processo Civil, porque, nos termos deste preceito legal, deveria considerar que, face à existência de hipoteca sobre aqueles bens de valor muito superior ao da dívida exequenda e das despesas do processo de execução, os exequentes deveriam ter executado os terceiros proprietários daqueles bens e penhorado os mesmos;
· A decisão recorrida ao considerar que, posteriormente à venda do bem objeto da penhora que se sindica, que incidiu sobre imóvel de valor muito inferior ao da dívida exequenda, poderá haver lugar à execução contra terceiros, proprietários de bens sobre os quais recaem hipoteca que garante a dívida exequenda e que são de valor muito superior a esta, e a penhora destes bens, viola o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 821º, nº 3 do Código de Processo Civil;
· Viola o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 821º, nº 3, do Código de Processo Civil, porque este preceito legal proíbe a penhora de bens de valor superior ao da dívida exequenda, devendo ser interpretado no sentido de que as execuções admissíveis no processo e as respetivas penhoras têm como limite bens de valor que não exceda o valor da dívida exequenda e das despesas da execução;
· A decisão recorrida ao considerar que a penhora efetuada nos autos pelo exequente sobre imóvel de valor muito inferior ao da dívida exequenda, quando a dívida exequenda está provida de hipoteca sobre bens de terceiros, de valor muito superior ao seu valor, que poderão ser posteriormente objeto de penhora em execução movida contra os seus proprietários, viola o artigo 334º do Código Civil, por considerar admissível a realização de execuções e penhoras sucessivas de bens que excedem o valor da dívida exequenda e que, por isso, excedem, também, o fim económico do direito de executar o património do devedor e de terceiros, que é, o do cumprimento da dívida exequenda, conduta esta que é proibida por aquele preceito legal. 
6. Cumpre apreciar e decidir.
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II – Enquadramento facto-jurídico
1. da factualidade
Na decisão sob recurso foram considerados como provados, os seguintes factos.
1. A exequente Banco, SA, moveu a presente ação executiva contra B e M, apresentando como título executivo uma livrança (fls.12) que aqui se dá por reproduzido, subscrita pelos executados a favor do exequente, no valor de € 335.180,51, nela constando como local de emissão Algés e data de vencimento …/2011, a qual foi entregue em branco ao exequente aquando da subscrição do documento aludido em 2).
2. Por documento particular de 22.07.2010, denominado de ‘contrato de reestruturação de créditos’ por intermédio de assinatura reconhecida, o exequente e os executados, acordaram que: (…)
3. Por carta datada de 22.03.2011, a exequente comunicou aos executados (fls. 13 e 15 que aqui se dá por reproduzido) sob o assunto ‘conta empréstimo – RLS n.º …. que:‘Por incumprimento do clausulado constante no referido contrato, comunicamos a V.Exª que, nesta data, foi efetuado o preenchimento da livrança de caução em branco subscrita por V.Exª. Nesta conformidade e nos termos do respetivo pacto de preenchimento constante do aludido contrato, informamos que a mesma se encontra a pagamento, com vencimento fixado para o próximo dia 31 de março de 2011, pelo montante de 335.180,51 euros, assim discriminado: Capital …Eur. 326.302,03; Juros …Eur. 6.925,60; Imposto selo … Eur. 277,02; Selagem do título…Eur. 1.675,86 euros. Caso o pagamento não ocorra na data de vencimento indicada, ver-nos-emos forçados a promover as diligências necessárias à cobrança coerciva do valor em dívida.”.
4. Mostra-se penhorado nos presentes autos, a fração autónoma designada pelas letras NA, correspondente à garagem sita na Cave, do prédio urbano sito no Largo…, e Rua …inscrito na respetiva matriz …(auto de penhora de fls. 36) mostrando-se inscrito: - Pela ap. de …/2011, a penhora a favor do exequente Banco S, para garantia da quantia exequenda de € 17.121,53 euros, no âmbito do proc. n.º … - Pela ap. de …/2011, a penhora a favor do exequente Banco, para garantia da quantia exequenda de € 352.633,77, no âmbito dos presentes autos.
5. Por escritura pública de …/2003, junta como doc. 2 (fls.33 e segs que aqui se dá por reproduzido), J, na qualidade de procurador de B e mulher, declarou que os seus representados são donos e legítimos possuidores da fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 1.º andar Esquerdo, para escritório com entrada pelo número 175, com arrecadação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua, e bem assim, também na qualidade procurador da I, sociedade de locação financeira imobiliária, SA, declaro que a sociedade sua representada é dona e legítima possuidora da fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao 1.º andar direito para escritório com entrada pelo número … com arrecadação, do prédio atrás identificado, e que “pela presente escritura constitui a favor do “Banco SA”, que os segundos outorgantes representam, hipoteca voluntária sobre as frações acima identificadas, livres de quaisquer ónus ou encargos, com todas as suas construções ou benfeitorias, edificadas ou a edificar, para garantia do pagamento pontual.  A) Das responsabilidades assumidas ou a assumir por B, (...) e/ou por sua mulher M, (…), casados sob o regime de separação de bens (…) perante o mesmo Banco até ao limite de trezentos e noventa mil euros, provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar pelo Banco a seus pedidos, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos de qualquer natureza, aberturas de crédito sob a forma de conta corrente, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, débitos devidos em virtude da utilização de quaisquer cartões de pagamento, de crédito ou de débito, e de financiamentos concedidos pela permissão da utilização da descoberto de contas de depósito à ordem, até ao indicado limite. b) Dos juros à taxa Euribor a noventa dias mais (…) Que a presente hipoteca pode ser executada quando vencida qualquer das obrigações cujo cumprimento assegura ou quando não for cumprido qualquer dos deveres pelos representados do primeiro outorgante perante o Banco emergentes do presente instrumento.
6. Sobre a fração descrita como 1.º andar direito na escritura aludida em 5) mostra-se inscrito, cf. cópia de certidão do registo predial junta como doc. 3 (fls.41): Pela ap. 2  de 07.09.1995, o ónus de locação financeira pelo prazo de 10 anos, sendo locador: I sociedade de locação financeira Imobiliária,SA, e locatário: N, Lda. Pela ap. … de …/2003, a hipoteca voluntária, abrangendo duas frações, pelo capital de € 390.000,00 euros e até ao montante máximo assegurado de € 483.291,90 euros, a favor do Banco, para garantia do pagamento e das responsabilidades assumidas ou a assumir por B e/ou por sua mulher M, até ao limite de € 390.000,00 à taxa de juro anual de 5,307 acrescido de 2% em caso de mora, e despesas até ao valor de € 800,00 euros.
7. Sobre a fração descrita como 1.º andar esquerdo na escritura aludida em 5) mostra-se inscrito, cf. cópia de certidão do registo predial junta como doc.4 (fls.43): Pela ap de …/2003, a hipoteca voluntária, abrangendo duas frações, pelo capital de € 390.000,00, e até ao montante máximo assegurado de € 483.291,90, a favor do Banco, SA, para garantia do  pagamento e das responsabilidades assumidas ou a assumir por B e/ou por sua mulher M, até ao limite de € 390.000,00, à taxa de juro anual de 5,307 euros, acrescido de 2% em caso de mora, e despesas no valor de € 7.800,00.
2. do direito
Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 684.º, n.º 3, 660.º, n.º 2, e 713.º, agora 635.º, 608.º e 663.º, do vigente CPC, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 664.º, agora 5.º, n.º 3, também do CPC[1].
No seu necessário atendimento, a saber está, se a decisão que considerou lícita e proporcional a penhora efetuada, relativa a bens dos Executados, ora Recorrentes, e de valor muito inferior à dívida exequenda, não deveria assim ter sido considerada, por tal dívida exequenda estar provida de garantia, hipoteca, sobre bens de terceiros, estes de valor muito superior, bem como admitindo que após a venda do bem possa ainda haver lugar a execução contra terceiros, não entendeu que constituiria um exercício abusivo de direito.
Vejamos.
Tendo presente que a finalidade da ação executiva é o de exigir e obter, de forma coerciva o cumprimento de uma obrigação, sabe-se que a execução tem necessariamente de se basear num documento, o título executivo, que determina o seu fim ou limites, nos termos do art.º 45[2], sendo por ele que se conhece, com precisão, o conteúdo da obrigação do devedor[3], título esse que se entende[4] não se confundir com a causa de pedir da ação executiva, já que esta se traduz na obrigação exequenda, que deverá ela sim, constar do título oferecido à execução.
Sabido é também, que a regra geral da legitimidade se mostra enunciada no art.º 55[5], segundo a qual a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, admitindo-se contudo desvios a essa regra, como decorre do art.º 54[6], nomeadamente e para o caso que nos interessa, no caso de execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, caso em que o exequente goza de um irrestrito direito de escolha sobre quem pretende executar, isto é, apenas o terceiro, titular dos bens, se pretender fazer valer a garantia real, sem prejuízo de demandar, desde o início da execução o devedor, ou requerendo o prosseguimento da execução contra este último na insuficiência dos bens onerados para integral pagamento, ou apenas o devedor, quando não deseje fazer valer a garantia real incidente sobre bens de terceiro, sendo certo, que a observância do disposto no art.º 835[7], apenas se impõe, se os bens onerados pertencerem ao devedor[8].
Em conformidade, na execução deduzida tão só contra o devedor, apenas os bens deste podem ser penhorados, não podendo o mesmo opor ao executado a subsistência da garantia que o credor não tenha querido renunciar, nem a necessidade de previamente ser reconhecido, nos termos do já aludido art.º 835, a insuficiência dos bens dados como garantia, como decorre a contrario do disposto no art.º 697, do CC[9]
Saliente-se, assim, que a propositura da ação executiva apenas contra o devedor não impõe, nem significa a renúncia do exequente à garantia real, sendo certo que tal renúncia, necessariamente expressa, está de modo geral sujeita à forma exigida para a sua constituição.
No desenho breve do quadro legal atendível, releva também a regra geral enunciada no art.º 601, do CC, isto é, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens devedores, dispondo o art.º 821[10], no que respeita à forma coerciva da realização da prestação, que estão sujeitos à execução todos os bens suscetíveis de penhora.
E se neste último âmbito se afirma a natural prevalência dos interesses do exequente, tal não poderá contudo determinar o completo desrespeito pelos interesses do executado, impondo-se assim, a procura do necessário equilíbrio dos interesses contrapostos, que deverá ser obtido na consideração da devida proporcionalidade entre o valor do bem penhorado e a quantia exequenda.
Na realidade, não deve ser esquecido que a penhora constitui uma efetiva agressão a um património alheio, in casu ao do devedor, e assim, desde logo, com as devidas repercussões no direito de propriedade, de consagração constitucional, compreendendo-se, desse modo, que em sede do processo de execução se deva ter presente tal princípio da proporcionalidade, no sentido de apenas serem objeto de penhora os bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas presumidas, não devendo a penhora, consequentemente, abranger os bens em excesso, sem prejuízo do disposto no disposto no n.º 2, do art.º 834[11].
Reportando-nos aos presentes autos, verifica-se que o Recorrido, enquanto exequente, embora detendo uma garantia real sobre bens de terceiro, entendeu deduzir a presente execução apenas contra os devedores, os agora Recorrentes, e desse modo foi realizada a penhora de um bem imóvel, aos mesmos pertencentes.
Constatando-se, perante o exposto, que o exercício de tal direito de ação se mostra configurado com os normativos aplicáveis, não se divisa que a penhora realizada, abrangendo um bem, que os Recorrentes invocam ter um valor insuficiente para a satisfação da quantia exequenda e acréscimos, possa enfermar da não proporcionalidade apontada, independentemente do valor pecuniário dos  bens de terceiros onerados com a garantia real, pois vedada estava, nestes autos, a sua penhora, tendo em conta os termos como foi conformada a execução.
Aqui chegados, afastadas ficando de merecerem aqui atendimento, hipotéticas situações a ocorrer quanto a tais bens de terceiros, pois estranhos ao presente processo executivo, não avulta que o exercício do direito por parte do Apelado, enquanto Exequente, maxime no concerne à concretização da penhora efetuada, tenha excedido, de forma manifesta, os limites impostos, quer pelos bons costumes, quer pelo fim social económico do direito, na observância apontada dos ditames legais, face a uma opção normativamente permitida, arredado ficando o invocado abuso de direito.
Inexistindo quaisquer outras questões que importe conhecer, improcedem, na totalidade, as conclusões formuladas pelos Apelantes.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Lisboa, 19 de dezembro de 2013
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Ana Resende
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Dina Monteiro
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Luís Espírito Santo
[1] Diploma a que se fará referência, se nada mais for dito.
[2] Veja-se do mesmo modo o disposto no art.º 10, n.º 5 e 6, do vigente CPC.
[3] Qual o montante que deve ser pago, qual a coisa que tem de ser entregue - determinada individualmente, ou contida dentro de certo género, quantidade e qualidade - qual a natureza, características e espécie do facto que a prestar.
[4] Cfr. entre outros o Ac. do STJ de 7.5.2005, in www.dgsi.pt.
[5] Agora 53, do vigente CPC.
[6] Agora54, do vigente CPC.
[7] Executando-se dívida como garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução, veja-se o art.º 752, do vigente CPC.
[8][8] Cfr. Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. I, pag. 93, que aqui de perto se seguiu.
[9] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, I vol, pag. 688 e seguintes.
[10] Veja-se o art.º 735, do vigente CPC.
[11] Admitindo, ainda que por excesso não se adeque ao montante do crédito exequendo, a penhora de bens imóveis ou do estabelecimento comercial, em determinadas situações, veja-se o art.º 751, do vigente CPC.