ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
DÍVIDAS À SEGURANÇA SOCIAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

I-O que está em causa não é uma mera cobrança de dívida por parte do Estado ou da Segurança Social, muito menos de natureza civil, mas antes a não entrega à segurança social de montantes deduzidos pela entidade patronal, mas que por lei não lhe pertencem, pelo que inexiste qualquer similitude com a não satisfação ao credor da prestação obrigacionalmente devida, geradora de incumprimento e consequente responsabilidade civil por força da mora ou do incumprimento definitivo.
II-Inexiste, assim, qualquer semelhança da situação jurídica do incumpridor da obrigação civil e do que não entrega à segurança social as prestações legalmente previstas e previamente deduzidas, pelo que não se verifica, neste particular, qualquer situação de igualdade, passível de violação por contradição com o art. 13º da C. R. Port..

III-Importa salientar que o que está em causa não é um dever de restituir, mas antes de entregar à Segurança Social aquilo que lhe pertence – nomeadamente os descontos nos salários dos trabalhadores -, posto que a entidade patronal se limita a praticar uma operação de tesouraria, transferindo verbas dos salários para a segurança social, sendo que em momento algum aquelas ingressaram de direito no seu património.
(Sumário elaborado pelo Relator

Texto Integral

Nos termos do art. 417º, 6, d), C. P. Pen., profere-se na ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa a seguinte decisão sumária:

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No âmbito de Instrução supra id., que correm termos pelo ...º Juízo Criminal de Cascais, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos ... e Pesquisa, Ldª.  e Renato ... ..., com os demais sinais dos autos, os quais vinham acusados da prática , em co-autoria, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 7º, 1 e 107º, 1, do RGIT e 30º, C. Pen..

Inconformado com o teor de tal decisão interpôs o MP o presente recurso pedindo.

Apresentou para tal as seguintes conclusões:

a)Nos presentes autos, findo o inquérito, foi proferido despacho de acusação no qual se imputava aos arguidos “...e Pesquisa, L.da” e Renato ... ... a prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelo disposto no artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, sendo a imputação à sociedade sustentada pela disposição constante do artigo 7.º, nº 1 do mesmo diploma legal.
b)Requerida a abertura da fase instrutória, por parte dos arguidos foram efectuadas as diligências requeridas e realizado debate instrutório, tendo sido, em 15 de Novembro de 2012, proferido despacho de não pronúncia no qual, após análise das questões levantadas pelo arguido no que respeita à prescrição do ilícito, se afirma inexistirem elementos da prática do ilícito e, como tal, se determina o oportuno arquivamento dos autos.
c)É deste despacho, que não pronunciou os arguidos pelo crime imputado em sede de despacho de acusação que ora se recorre, uma vez que o mesmo se mostra violador do constante nos artigos 283.º do Código de Processo Penal, 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e 35.º do Código Penal.
d)Cumpre referir que o ilícito em causa – crime de abuso de confiança contra a Segurança Social -, em contraposição com o seu homónimo simples – crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º do Código Penal –e tendo em consideração o elemento histórico que levou à consagração do texto actual da norma, não impõe a verificação da “apropriação” dos valores, bastando-se o mesmo com a retenção e a não entrega.
e)Ora, de facto, os arguidos retiveram, dos salários auferidos pelos trabalhadores os valores respeitantes às cotizações que os mesmos deveriam entregar à Segurança Social, não tendo efectuado entrega desses valores, como a tal se encontrava obrigado.
f)A retenção é feita do salário do trabalhador – contribuição que deve ser prestada pelo mesmo e que será aliada à própria contribuição que incumbe ao empregador – e visa precisamente permitir-lhe, como a qualquer trabalhador, garantir a expectativa razoável de vir a beneficiar de prestação de protecção de desemprego ou pensão de reforma.
g)Acrescente-se que não deve ser aqui aplicada a causa de exclusão da culpa do estado de necessidade desculpante, uma vez que não se verificam os pressupostos identificados no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal, pelo que, não poderia concluir-se no sentido da sua verificação.
h)Como também não têm aplicação qualquer outra das causas de exclusão previstas – direito de necessidade e conflito de deveres, previstas nos artigos 34.º e 36.º do Código Penal –, em face dos interesses em causa, como tem vindo a ser defendido maioritariamente pela jurisprudência e pela doutrina.
i)O despacho recorrido, o qual deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie os arguidos pela prática do ilícito identificado na acusação, nos termos na mesma enunciados, violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Os arguidos não responderam.

É o seguinte o teor do despacho recorrido, na parte que ora releva:
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Visando a instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, importa apreciar se, face à matéria de facto indiciada, há ou não possibilidade razoável de vir a ser aplicada aos arguidos, em sede de julgamento, uma pena ou medida de segurança (arts. 308°, n.° 1, 286°, n.° 1, 283°, n.° 2, todos do CPP).

Encontram-se os arguidos acusados da autoria material de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada.

Nos termos da acusação deduzida e em breve síntese, o arguido Renato ... ..., na qualidade de sócio e gerente da arguida pessoa colectiva, durante o período de Agosto de 2004 a Outubro de 2008, na sequência de desígnio por si formulado, não entregou as contribuições descontadas aos salários dos trabalhadores que mantinha ao seu serviço e que deveriam ser entregues à Segurança Social, apesar de tais quantias terem sido deduzidas dos vencimentos pagos pela sociedade aos trabalhadores da mesma, passando a dispor desses montantes, que fez seus, utilizando-os em proveito próprio e da sociedade arguida que geria, não obstante saber que tais quantias pertenciam à Segurança Social.

Com a presente instrução, insurgem-se os arguidos contra tal acusação, defendendo, em suma, que por força do cumprimento de obrigações declarativas, sem qualquer correspondência com a realidade dos factos, a sociedade arguida declarou haver retido verbas sem que tivesse as mesmas na sua posse para reter.

Aliás, acrescenta, ao invés da situação descrita na acusação, o arguido tudo fez para não falhar ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, tendo deixado de receber os seus próprios salários como administrador e tendo-se socorrido de todos os seus bens e património pessoal para fazer face aos compromissos financeiros da empresa, pelo que entende não se encontrarem reunidos os pressupostos do crime que lhe vem imputado.

A prova produzida em instrução consistiu na inquirição de duas testemunhas, que trabalhavam na empresa, que entretanto já cessou a actividade em 2005.

A primeira testemunha ouvida, desempenhou as funções de TOC da empresa, durante vários anos até. Mais ou menos 2007, altura em que saiu, por falta de pagamento de salários. Esclareceu esta testemunha que a empresa já não tem actividade e que, no início da actividade, a tendência era o crescimento da empresa, tendo tal tendência começado a inverter-se, o que se começou a reflectir na falta de liquidez. Inicialmente os salários iam sendo mentidos em dia, mas depois deixaram de ser pagos pontualmente, chegando mesmo a deixar de ser pagos.

Mais afirmou esta testemunha que o arguido sabia das dívidas aqui reclamadas e que "sempre deu a cara", tudo fazendo para lutar pela sobrevivência da empresa, para o que foi sempre fazendo acordos, tendo feito entradas de dinheiros próprios para fazer face a pagamentos da empresa na ordem de centenas de milhares de euros, tendo deixado de receber os seus próprios ordenados.

A segunda testemunha, mulher do arguido, embora separada de facto do mesmo, foi Directora Técnica da empresa, tendo chegado a ser sócia, embora sem qualquer intervenção directa na gestão da mesma. Referiu brevemente a sequência dos factos desde a criação da empresa, que tinha como sócia uma empresa brasileira que foi comprada por um grupo alemão, altura em que acabaram por perder vários clientes. Vivenciou, deste modo, as dificuldades económicas que começaram a agravar-se em 2002-2003, afirmando que mesmo os salários dos trabalhadores chegaram a andar significativamente atrasados. O seu marido tinha conhecimento destas dívidas, mas não as podia pagar, tendo sido a família da depoente a sustentá-los durante muitos anos. O arguido injectou na empresa todo o património dos dois, tendo o marido tudo tentado para manter a empresa, coisa que não conseguiu, prejudicando tanto o património do casal, como as próprias relações familiares, que culminaram na separação de ambos.

Esta, em breve resumo, a prova produzida em instrução.

Resta, no entanto, ponderar, se a conduta dos arguidos, ao deixar de pagar as verbas relacionadas na acusação, implicou, para além do mais, comportamento sancionável do ponto de vista criminal, já que a obrigação de pagamento da quantia em dívida sempre se mantém, havendo de ser obtida através dos meios próprios à disposição do Estado.

Neste momento corre termos sob o nº 156/08.4TACSC….no qual foi proferida decisão de não pronúncia, a qual foi objecto de recurso….

Apreciada a prova produzida nos autos, e por uma questão de coerência, conclui-se não se encontrar suficientemente indiciado que, conforme consta da acusação, tenha o arguido formulado um desígnio de não pagar as quantias devidas à Segurança Social e que tenha chegado a reter essas quantias que sabia pertencer à Segurança Social, utilizando-as em seu proveito e da empresa.

Na verdade, neste caso como em tantos outros semelhantes, em circunstâncias de extremas dificuldades económicas das empresas, estas não geram rendimentos suficientes para satisfazer todas as obrigações, tendo os seus responsáveis que optar por aquelas que são mais prementes, em geral, o pagamento dos salários e, eventualmente, os fornecedores de matéria prima que permita a continuação da laboração. Não chegam, por conseguinte, a ser efectivamente retidas as importâncias devidas ao Estado por não chegarem a ser geradas.

Aliás, ficou indiciado durante a instrução, que o arguido terá utilizado património próprio da família, que utilizou em beneficio da empresa; deixou de receber os próprios salários e fez as tentativas que estiveram ao seu alcance para tentar cumprir com os seus deveres para com o Estado.

O crime aqui em causa, como todos os outros, para se consumar exige, para além de uma actuação típica objectiva, o preenchimento dos elementos subjectivos.

Não se indicia aqui uma vontade esclarecida do arguido no sentido do não cumprimento das obrigações para com a Segurança Social para, dessa forma, utilizar essas verbas de forma indevida. O que se indicia, pelo contrário, é uma actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações, o que configura, como vem sendo entendido por alguma doutrina e jurisprudência a que aderimos, um verdadeiro estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa dos agentes.

Tal facto não afasta a obrigação da satisfação para com a Segurança Social dos pagamentos devidos, o que, neste caso, já não será possível em razão da declarada prescrição das prestações devidas.

Porém, não se indicia, pelas razões expostas, conduta susceptível de ser perseguida penalmente.

Entende-se, assim, não se justificar a apresentação da presente causa a julgamento, por não ser previsível uma futura condenação dos arguidos.

Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerandos e remetendo para as razões de facto e de direito enunciadas no requerimento de abertura de instrução, decido não pronunciar os arguidos pelo crime de abuso de confiança à Segurança Social na forma continuada que lhes vinha imputado, determinando o oportuno arquivamento dos autos.

A Digna PGA junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é saber se se mostra suficientemente indiciado o crime imputado aos arguidos pelo MP.
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A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286º, 1, C. P. Pen..

O art. 308º, 1, C. P. Pen., estabelece que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – art. 283º, 2, C. P. Pen..

Os indícios serão, pois, suficientes, quando justificam a realização de um julgamento, ou seja, quando a possibilidade de condenação, em função dos indícios, for razoável.

Porém, o entendimento do que contenha materialmente o conceito de indícios suficientes não tem colhido unanimidade no que toca à extensão que àquele deve ser conferido, que vai desde a consideração de uma probabilidade dominante (que se pode traduzir em que os indícios serão suficientes quando a possibilidade de futura condenação for mais provável do que a possibilidade de absolvição) até ao denominado critério da possibilidade particularmente qualificada (em que os diversos elementos de prova, relacionados e conjugados, fazem nascer uma convicção de alta probabilidade de que o arguido, em julgamento, será condenado).

Assim, para Figueiredo Dias, “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição….Tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pg. 133 -.

Doutro modo, escreve Germano Marques da Silva que (Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pg. 179) “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido. A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação”.

Ora, no que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado (art. 32º, 2, C. R. Port.), que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo indícios suficientes de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a esse conceito de indícios suficientes não pode alhear-se do mencionado princípio da presunção de inocência – neste sentido, cfr. Ac. TC nº 439/2002, de 23-10, DR-II série, nº 276, de 29-11-2002 -.

Assim, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela bitola da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, exibir a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio na fase de julgamento.

O caso vertente repete uma situação em tudo semelhante à observada no Proc. nº 156/08.4TACSC.L1, que correu por esta Secção, desde logo no que se refere aos arguidos, à prova indiciária obtida e à decisão do tribunal a quo e seus fundamentos (divergindo apenas o período em que ocorreram os factos), na qual se decidiu a pronúncia dos arguidos , pelo que, na medida em que aderimos integralmente ao ali explanado (Des. Artur Varges), nos iremos limitar a reproduzir aquele aresto, no que de relevante se repete in casu.

Mostra-se suficientemente indiciado que:
“A representação da sociedade “..., S.A.” à data da prática dos factos era assumida, de forma efectiva, pelo arguido Renato ... ..., sendo sócio e gerente na data dos factos e posteriormente administrador único, obrigando-se a sociedade com a assinatura do mesmo” - ponto 2 da acusação.

“Os salários dos trabalhadores eram pagos pela 1ª arguida pontualmente e dentro do respectivo mês a que respeitavam” – ponto 4.

“No decurso da actividade que exercia, a 1ª arguida encontrava-se obrigada a efectuar a entrega na Segurança Social das folhas de remuneração, a pagar aos trabalhadores que tinha ao seu serviço os salários, retendo as contribuições a eles descontadas, o que cumpriu, e a entregar esses valores à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguintes àquele a que as contribuições respeitavam” – ponto 5.

Mais se tem de considerar suficientemente indiciado, porque no despacho revidendo se não referiu que o não esteja e consta da acusação pública, que desde…… o arguido Renato não entregou na Segurança Social os descontos das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores e que ali deveriam ser entregues, nem na altura em que a sua entrega era obrigatória – até ao dia 15 do mês seguinte a que diziam respeito – nem nos 90 dias subsequentes a esse prazo.

Entendeu-se na decisão recorrida que “conclui-se não se encontrar suficientemente indiciado que, conforme consta da acusação, tenha o arguido formulado um desígnio de não pagar as quantias devidas à Segurança Social e que tenha chegado a reter essas quantias que sabia pertencer à Segurança Social, utilizando-as em seu proveito e da empresa. Na verdade, neste caso como em tantos outros semelhantes, em circunstâncias de extremas dificuldades económicas das empresas, estas não geram rendimentos suficientes para satisfazer todas as obrigações, tendo os seus responsáveis que optar por aquelas que são mais prementes, em geral, o pagamento dos salários e, eventualmente, os fornecedores de matéria prima que permita a continuação da laboração. Não chegam, por conseguinte, a ser efectivamente retidas as importâncias devidas ao Estado por não chegarem a ser geradas. Aliás, ficou indiciado durante a instrução, que o arguido terá utilizado património próprio da família, que utilizou em benefício da empresa; deixou de receber os próprios salários e fez as tentativas que estiveram ao seu alcance para tentar cumprir com os seus deveres para com o Estado (…) Não se indicia aqui uma vontade esclarecida do arguido no sentido o não cumprimento das obrigações para com a segurança social para, dessa forma, utilizar essas verbas de forma indevida. O que se indicia, pelo contrário, é uma actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações, o que configura, como vem sendo entendido por alguma doutrina e jurisprudência a que aderimos, um verdadeiro estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa dos agentes”.

Consagra-se no artigo 107º, nº 1, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidos com as penas previstas nos nº 1 e 5 do artigo 105º”.

Como se salienta no Acórdão desta Relação e Secção, de 20/03/2012, Proc. nº 5209/04.5TDLSB.L1-5, consultável em www.dgsi.pt, “estamos perante um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida. Neste sentido, atente-se que o agente detém o montante, na qualidade de depositário, possuindo-a e detendo-a licitamente, se bem que a título precário e temporário. Com a sua não entrega ao Estado, o agente altera o título da posse ou detenção, passando a dispor da coisa, como se a mesma estivesse sob seu domínio, na sua disponibilidade” – no mesmo sentido, vd. por todos, Ac. R. de Coimbra de 25/05/2011, Proc. nº 472/04.4TAAGD.C1, no sítio mencionado.

E, conforme se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 15/02/2007, citado no aludido aresto “no crime de abuso de confiança em relação à segurança social (art. 27.°-B do Dec.-Lei n.° 20-A/90, de 15.01) o acto de entrega não translativo da propriedade, traduz-se na circunstância da entidade empregadora estar legalmente investida do poder de deduzir e reter, nos vencimentos dos seus trabalhadores, os montantes pecuniários correspondentes às contribuições devidas à segurança social; A apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser - como quase sempre é - apenas contabilística”.

Embora se não concorde que o artigo 107°, do RGIT, para o preenchimento da conduta típica, não prescinde do elemento “apropriação”, designadamente por se confundir esta com dar-se outro destino aos valores retidos dos salários dos trabalhadores, que não o destino legal – pois elemento do tipo objectivo do crime é a “não entrega da prestação” e não a “apropriação” - certo é que a não entrega das contribuições e respectiva afectação a finalidades diferentes pode consubstanciar-se numa operação meramente contabilística, não correspondente a liquidez existente.

Na verdade, como se defende no Ac. R. de Évora de 25/09/2012, Proc. nº 9/09.9TAVRS.E1, consultável em www.dgsi.pt, entendimento que perfilhamos, “para efeito do preenchimento dos elementos do tipo legal do crime em apreço, é totalmente irrelevante que não tenha ocorrido uma verdadeira retenção monetária daquilo que corresponde ao registo contabilístico e sendo certo que a parte correspondente ao salário devido foi paga aos trabalhadores”.

Acrescentando-se ainda que “se o arguido, em vez de entregar as contribuições “deduzidas” (que deviam ser deduzidas, que foram contabilizadas como tal, tendo os salários sido pagos) do valor das remunerações pagas aos trabalhadores, por decisão sua, não as entregou, por que motivo fosse, seja por dificuldades financeiras da sociedade arguida, seja por que não correspondiam a liquidez existente (eram meros registos contabilísticos), seja para pagar os salários dos seus empregados, seja para despesas de laboração relativas à actividade da arguida sociedade, naturalmente que se assumiu como “dono” dessas contribuições devidas à segurança social, ou, pelos menos, não as entregou como devia, preferindo, ao que resulta da própria motivação do recurso, pagar os salários aos trabalhadores e satisfazer, na medida das possibilidades, outras obrigações da sociedade arguida. Porém, em substância, o arguido detinha tais contribuições, “desviando” o dinheiro (correspondente às deduções registadas, mas inexistente) para fins diversos, a que sentiu necessidade de acorrer.
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Considerando as mencionadas declarações, é também manifesto estar suficientemente indiciado que, tal como consta do ponto 6 da acusação pública “o arguido, a partir de….., formulou o desígnio de não proceder à entrega das contribuições descontadas aos salários dos trabalhadores que mantinha ao seu serviço e que deviam ser entregues à segurança social”, contrariamente ao entendimento vertido no despacho revidendo que, aliás nem sequer menciona quais os elementos probatórios constantes dos autos em que se alicerça a convicção a que chegou.

E dessas mesmas declarações resulta que o arguido não só estava consciente da sua conduta omissiva, como tinha o conhecimento da factualidade necessária para o preenchimento do tipo objectivo do crime e a consciência de que a mesma era criminalmente punível pois, conforme se pode ainda ler nas suas declarações “questionado se a JCM – empresa que efectuava a contabilidade da sociedade arguida – lhe tinha dado conhecimento que o facto de não entregar à Segurança Social as cotizações dos trabalhadores poderia ser crime, respondeu que lhe deram conhecimento de tal facto, não no início da dívida mas após cinco meses do decurso da mesma”.

Consistindo o dolo na vontade livre e consciente de não entregar as contribuições legalmente devidas e que quanto à consciência da ilicitude basta a consciência de que essas contribuições são devidas à Segurança Social, está verificada a existência de dolo genérico e tanto basta, pois no tipo em causa não existe referência alguma a elementos concernentes a um dolo específico ou elemento subjectivo da ilicitude.

Mas, considerou-se na decisão revidenda verificar-se situação de estado de necessidade desculpante, nomeadamente por ser “a actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações”.

A obrigação legal de entregar as contribuições à Segurança Social é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores, porquanto os valores que se visam salvaguardar com as prestações à segurança social entroncam directamente nas atribuições do Estado, no sentido de salvaguardar os cidadãos assistência e protecção na velhice, na invalidez, viuvez, e orfandade, bem como outras situações de perda de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

E, é manifesto que estes interesses, de natureza pública, se sobrepõem aos interesses dos particulares, pois se elegeu até um tipo criminal para a sua protecção, quando vero é que o não pagamento de salários ou a fornecedores se traduz em mero incumprimento de obrigações contratuais.

Mas, concretamente quanto ao estado de necessidade desculpante, estabelece-se no artigo 35º, do Código Penal:

“1.Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2.Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena”.

Não se alcança qual o perigo que estava ameaçando a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do arguido Renato ... ou de terceiro que fosse afastado pela não entrega à Segurança Social das prestações devidas e temos por seguro que o não pagamento de salários aos trabalhadores o não configura.

Mas, mesmo que se entendesse que estava em causa a continuação da “vida”, entendida como existência, da sociedade arguida, o comportamento omissivo em causa não pode ser visto como o único com potencialidade ou capacidade para afastar esse perigo pois, perante a sua situação deficitária, o arguido tinha sempre a possibilidade legal de optar pela respectiva extinção, bem como pelo não pagamento dos salários – cfr. Ac. R. de Guimarães de 14/03/2005, Proc. nº 131/05-1 e Ac. R. de Évora de 20/03/2012, Proc. nº 213/09.0TAETZ.E1, em www.dgsi.pt.

Também Carlos Adérito Teixeira e Sofia Correia Gaspar, em Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. II, UCE, Lisboa 2011, pag. 479, nos dão a conhecer que é entendimento de significativa jurisprudência “que a impossibilidade de cumprimento da prestação tributária não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social nem causa de justificação ou de exclusão da culpa”, enunciando alguns desses arestos.

Conclui-se, pois, que não se verificam os pressupostos do estado de necessidade desculpante.

Termos em que, existindo indícios suficientes de que o arguido Renato ..., enquanto gerente da sociedade arguida “... e Pesquisa, S.A.”, não entregou, no prazo legal, as quantias devidas à Segurança Social, afectando-as a outro destino que não o legal, fazendo-o de forma voluntária, livre e consciente, não se verificando causa alguma de exclusão da ilicitude ou da culpa, mormente o estado de necessidade desculpante, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social que lhes é imputado”.

Relativamente aos fundamentos supra expostos, transcritos do cit. acórdão, apenas se impõe actualizar o momento da prática do crime e salientar que, para além da vasta provia documental carreada, os indícios do delito resultam ainda dos depoimentos do TOC da empresa e da esposa do arguido, em tudo semelhantes às prestadas no predito processo.

Como afirmámos no Ac. RP, de 30-5-2012, Proc. nº 5360/07.0TAVNG.P1, o que está em causa não é uma mera cobrança de dívida por parte do Estado ou da Segurança Social, muito menos de natureza civil, mas antes a não entrega à segurança social de montantes deduzidos pela entidade patronal, mas que por lei não lhe pertencem, pelo que inexiste qualquer similitude com a não satisfação ao credor da prestação obrigacionalmente devida, geradora de incumprimento e consequente responsabilidade civil por força da mora ou do incumprimento definitivo. Inexiste, assim, qualquer semelhança da situação jurídica do incumpridor da obrigação civil e do que não entrega à segurança social as prestações legalmente previstas e previamente deduzidas, pelo que não se verifica, neste particular, qualquer situação de igualdade, passível de violação por contradição com o art. 13º da C. R. Port.. De resto, como se sublinha no Ac. STJ, de 18-10-06, Proc. nº 06P2935, em www. dgsi.pt, a exigência do pagamento da prestação tributária (ou à segurança social) como condição de suspensão de execução da pena justifica-se pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário e o tratamento diferenciado pelo interesse preponderantemente público  a acautelar.

Ora, importa salientar que o que está em causa não é um dever de restituir, mas antes de entregar à Segurança Social aquilo que lhe pertence – nomeadamente os descontos nos salários dos trabalhadores -, posto que a entidade patronal se limita a praticar uma operação de tesouraria, transferindo verbas dos salários para a segurança social, sendo que em momento algum aquelas ingressaram de direito no seu património.

O tipo objectivo deste ilícito criminal ocorre quando a entidade empregadora deduz das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos sociais as contribuições por estes devidas à segurança social, decorrente de uma relação jurídica tributária, fazendo as mesmas suas, mediante a sua não entrega, daí advindo um prejuízo para o património tributário.

Deste modo e para percebermos quem é que surge nessa tríplice relação jurídica tributária e poderá ser o agente desta infracção, teremos que nos reter nos seus três sujeitos e nas obrigações ou direitos atribuídos a cada um dos mesmos.

Assim, a segurança social surge como o credor tributário, o trabalhador ou os membros dos órgãos sociais como os verdadeiros devedores tributários, enquanto o substituto deste, passa a ser simultaneamente o devedor indirecto e o fiel depositário da contribuição devida por aquele, a quem lhe é legalmente atribuído o dever de liquidar e entregar à Segurança Social a respectiva contribuição.

Nesta conformidade mediante a quebra dessa relação de confiança, seguida da não entrega pelo devedor substituto da contribuição liquidada ou retida, inverte-se o correspondente título de posse, passando este a agir com “animus domini” em relação a essas contribuições tributárias.

O desvalor da acção neste tipo de crime passa por isso pela defraudação da confiança que foi atribuída ao devedor substituto, consubstanciado numa acção omissiva, que consiste na não entrega dos valores deduzidos a título de contribuição social. - Ac. RP, de 12-12-11, Proc. nº 155/05.8TAVNG.P1, ( Des. Joaquim Gomes).

Verifica-se, assim, que na actual lei o crime em apreço pressupõe a existência de um perigo concreto; se consome com uma omissão pura (embora previamente haja a actividade correspondente á dedução dos descontos); e não alude a qualquer elemento subjectivo específico, independentemente da apropriação, que aqui não está em causa em face da matéria de facto dada como provada (cfr. Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, 2011, pg. 51 a 64; e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2006, pg. 166 a 169; e Acs. do STJ, de 4-12-08, Proc. nº 06P409; de 9-9-10, Proc. nº 125/06.9TAGMR.G1.S1; de 18-12-10, Proc. nº 432/09.9YFLSB; e da RP, de 2-11-11, Proc. 7967/04.8TDPRT.P1, em www.dgsi.pt).

O bem jurídico protegido pelo tipo legal em causa é multifacetado, abrangendo o direito fundamental à segurança social decorrente do dever de solidariedade, consagrados no art. 63º da C. R. Port. e ainda reflexamente o património da segurança social. “Mediante este ilícito pretende-se ainda tutelar, embora o seja de um modo reflexo, o património da segurança social e o seu desiderato de assegurar o direito universal dos cidadãos a um mínimo vital de subsistência, enquanto direito à justiça social e à preservação do carácter assistencial do direito à segurança social [63.º, n.º 1 Constituição; art. 22.º, da DUDH; artigo 12.º, 1) da Carta Social Europeia; 34.º, n.º 1 CDFUE]. Tal direito fundamental passa pelo acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem protecção, designadamente nos de maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência, velhice ou perda de emprego”. – cit. Ac. RP, de 12-12-11.

Mas, se não se verifica qualquer estado de necessidade desculpante, também não será despiciendo afirmar pela não verificação de qualquer conflito de deveres (art. 36º, C. Pen.) entre o pagamento dos salários aos trabalhadores e a entrega dos correspondentes descontos à segurança social.

Neste particular a jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes em afastar a existência do aludido conflito, com fundamento em que: um dos deveres conflituantes – o de assegurar o funcionamento do negócio não é alheio mas próprio -, sendo a satisfação dos interesses dos trabalhadores apenas mediata; a obrigação de pagar ao fisco ou à segurança social decorre da lei, pelo que se encontra num plano superior à obrigação de cumprir contratos; a igualdade entre os diversos agentes económicos ficaria afectada se se conferisse possibilidade de escolha na prioridade de pagamento ao devedor tributário ou da segurança social; os interesses de um grupo (os trabalhadores de uma determinada empresa) não podem sobrepor-se aos de toda a comunidade, beneficiária da segurança social, pese embora a protecção constitucional de ambos, pois esta visa esbater as desigualdades sociais (cfr. Isabel Marques da Silva, Paulo Marques e Germano Marques da Silva, obs. cit.).

Entende-se, assim, que o recurso deve merecer provimento.
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Pelo exposto:

Decide-se na ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que pronuncie os arguidos pelos factos e incriminação constante da acusação do MP.
Não é devida taxa de justiça.


Lisboa, 31-12-2013


Carlos Espírito Santo