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SOCIEDADE ANÓNIMA
ADMINISTRADOR
REMUNERAÇÃO
ESTATUTOS
DELIBERAÇÃO
PENSÃO DE REFORMA
SEGURANÇA SOCIAL
Sumário
I- O art. 402 do C.S.C. surge como uma faculdade à disposição da sociedade anónima para constituir um regime de reforma para os seus administradores, mas reveste-se de carácter imperativo no que respeita à forma de constituição desse direito; II- De acordo com este preceito, o contrato social deve prever o regime de reforma dos administradores, contemplando o regime instituído nas suas linhas orientadoras essenciais, e não pode limitar-se a consagrar ou a anunciar o direito dos administradores à reforma; III- A norma estatutária desconforme com o imperativo legal será nula e, com ela, qualquer deliberação que na mesma se fundamente; IV- O nº 2 do art. 402 do C.S.C. constitui uma mera especificação do disposto no nº 1 e não um preceito complementar; V- De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 402 do C.S.C., não pode a soma da pensão de reforma a cargo da sociedade e da pensão recebida do sistema contributivo de segurança social ultrapassar a remuneração do administrador em funções mais bem remunerado. (Sumário da Relatora)
Texto Parcial
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I- Relatório:
LR veio propor contra MPS, S.A., acção declarativa de condenação sob a forma ordinária, pedindo seja declarado que o A. tem direito a receber da Ré uma pensão de reforma no valor mensal resultante da deliberação da assembleia geral da sociedade de 30.3.1990, sendo a Ré condenada a pagar-lhe as mensalidades vencidas e não pagas de Janeiro e Fevereiro de 2012, inclusive, que somam € 12.464,00, bem como todas as vincendas a partir de Março de 2012, acrescidas de juros à taxa legal desde o seu vencimento. Alega, para tanto e em síntese, que tendo sido trabalhador da Ré desde 1966 até 1989, foi administrador da mesma entre 1989 e 2000, sendo que em assembleia geral da sociedade de 30.3.1990 foi aprovada uma proposta que previa o pagamento pela Ré de uma pensão vitalícia de reforma aos administradores que cessassem as suas funções. Mais refere que o A. recebeu tal pensão desde Agosto de 2000 até Dezembro de 2011. No entanto, em 7.2.2012, decorreu uma assembleia geral da Ré que ratificou deliberação do Conselho de Administração de 29.12.2011, no sentido de serem limitadas as pensões de reforma dos ex-administradores de modo a que o somatório das pensões pagas pela Ré e pela Segurança Social não exceda a remuneração do administrador que, no activo, for mais bem pago. Com fundamento em tal deliberação e no pressuposto de que o A. recebe da Segurança Social uma pensão superior à remuneração mais elevada dos administradores da Ré, esta deixou de pagar qualquer pensão ao A.. Defende que pagando a Ré ao A. uma pensão de reforma, e não um complemento de reforma, trata-se de um direito seu irrevogável que só se extingue com a extinção da sociedade, não podendo a Ré, unilateralmente, alterar os termos em que a mesma lhe foi concedida.
Contestou a Ré, alegando, no essencial, que o A., além de accionista da Ré, se manteve como administrador de facto da sociedade desde 2000 até 2011, ficando encarregue do respectivo acompanhamento e controlo de gestão. Por outro lado, os resultados da Ré nos últimos anos nada têm a ver com a situação existente em 1990, quando foi aprovado o regulamento das pensões, razão pela qual foi tomada a deliberação aqui questionada pelo A.. Mais defende que referido regulamento de 1990 é nulo por não satisfazer a exigência legal de definição contratual do regime aplicável. Acrescenta que a Ré verificou que o A. auferia, no conjunto entre a pensão de reforma a cargo da Ré e a da Segurança Social, mais do que a remuneração recebida pelo administrador efectivo mais bem pago da sociedade, e por isso deixou de lha processar. Pede a improcedência da acção e, em reconvenção, pede a condenação do A. a pagar-lhe a quantia de € 566.085,00, correspondente às pensões que lhe foram pagas pela sociedade desde Abril de 2007 (atenta a prescrição das anteriores), com juros acrescidos, atenta a referida nulidade do regulamento das pensões.
O A. apresentou réplica, invocando que a Ré age em abuso de direito e que o pedido de devolução das pensões pagas contraria os limites impostos pela boa fé, na medida em que o seu pagamento anterior e durante vários anos criou no A. a convicção de que tinha direito a tais valores. Conclui como na p.i. e pela improcedência da reconvenção.
A Ré respondeu, ainda, na tréplica.
Foi admitida a reconvenção e elaborado despacho saneador, com selecção da matéria de facto e organização da base instrutória.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, o Tribunal respondeu à matéria de facto constante da base instrutória, e as partes apresentaram alegações de direito, após o que foi proferida sentença nos seguintes termos: “(...) julgo:
a) a acção improcedente por não provada, absolvendo a ré do pedido;
b) a reconvenção improcedente por não provada, absolvendo o autor do pedido. Custas da acção pelo autor e da reconvenção pela Ré. (...).”
Inconformado, interpôs recurso o A., apresentando as respectivas alegações que culmina com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“
1. A resposta dada pelo Tribunal a quo ao n.º 1 da Base Instrutória (“O autor manteve-se como administrador de facto da Ré até 2011?”) resultou de uma deficiente ponderação dos elementos probatórios constantes dos autos cuja reapreciação, por via do presente recurso, se pede.
2. Quer do depoimento de parte do Autor (cfr. minutos 2,52 a 4,22, 5,23 a 5,55 e 6,04 a 10,16), quer do depoimento das testemunhas da Autora AS (cfr. minutos 8,15 a 9,57, 10, 20, 11,38 a 11,54, 16,52 a 17,01 e 34), MD (cfr. minutos 7,31 a 7,45, 8, 15 e 8, 53 a 9,20) e MM (cfr. minutos 5,17 a 6,02, 10,02 a 11,15 e 11,22 a 12,01) resulta, no entender do Apelante, conclusão diversa da alcançada pelo Tribunal a quo.
3. À face do teor dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, a resposta dada pelo Tribunal a quo não deveria ter sido “provado”, mas antes: “Provado apenas que, entre finais de 2002/inícios de 2003 e 2010, o A., através de uma sociedade de que era sócio e gerente, estabeleceu uma relação de assessoria com a Administração da Ré, dando-lhe apoio e aconselhamento na tomada de decisões, deslocando-se às instalações da Ré com uma periodicidade inferior à que mantinha quando era administrador da mesma e usufruindo de um gabinete e de apoio de secretariado”.
4. Em conformidade o ponto 68 dos Factos Assentes deve passar a ser do seguinte teor: Entre finais de 2002/inícios de 2003 e 2010, o A., através de uma sociedade de que era sócio e gerente, estabeleceu uma relação de assessoria com a Administração da Ré, dando-lhe apoio e aconselhamento na tomada de decisões, deslocando-se às instalações da Ré com uma periodicidade inferior à que mantinha quando era administrador da mesma e usufruindo de um gabinete e de apoio de secretariado.
5. O A. viu-se obrigado a mover a presente ação por a Ré ter deixado de lhe pagar uma pensão de reforma que pagava há mais de dez anos, com base em deliberações da sua assembleia geral iniciadas há mais de vinte anos, incumprimento esse baseado em interpretações irrazoáveis do art. 402 do CSC, que, infelizmente, o tribunal a quo fez suas, sem sequer discutir os argumentos do A..
6. O CSC prevê que as sociedades anónimas possam atribuir aos seus administradores pensões de reforma e complementos de pensões de reforma: o n.º 1 do art. 402 do CSC prevê as pensões de reforma e não fixa limites ao seu valor e o n.º 2 do mesmo artigo prevê os complementos de pensões de reforma e fixa como limite ao seu valor «a remuneração em cada momento percebida por um administrador efetivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas».
7. O critério para distinguir entre as pensões de reforma e os complementos de pensões de reforma previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 402 do CSC está na autonomia de tais prestações relativamente a outras prestações previdenciais a que os beneficiários tenham direito: se essas prestações forem independentes de outras trata-se de reformas; se estiverem ligadas a outras (forem complementos delas) trata-se de complementos de pensões de reforma.
8. O critério para distinguir reforma e complemento de reforma, para efeitos do art. 402 do CSC, não é a titularidade pelo beneficiário de uma pensão da Segurança Social: se o critério fosse esse, o n.º 1 do art. 402 não se aplicaria a ninguém, seria um conjunto vazio – o que é um resultado a que a interpretação da lei não pode conduzir.
9. Na verdade, na medida em que ao tempo da publicação do CSC não só já havia, há muito, Segurança Social, como os administradores já eram obrigatoriamente abrangidos por ela (pelo menos, desde a Portaria 115/77, de 9 de março), o que presidiu à distinção entre reformas e complementos de pensões de reforma feita pelo legislador no art. 402 do CSC não pode ter sido o direito a uma pensão de reforma da Segurança Social.
10. No caso vertente, é fora de dúvida que as estipulações relevantes atribuíam direitos a prestações independentes de quaisquer outras, tendo em vista o teor da cláusula estatutária relevante e o do regulamento aprovado pela assembleia geral da Ré.
11. A alteração dos estatutos da Ré de 31 de março de 1993 que introduziu nos mesmos a cláusula segunda a qual «Os membros do Conselho de Administração têm direito a reforma nos termos do regulamento já aprovado pela Assembleia Geral» recebeu neles o regulamento referido, pelo que respeita o n.º 4 do art. 402 do CSC.
12. As prestações previstas pelo regulamento em causa eram independentes de quaisquer outras, como resulta das suas cláusulas seguintes:
«1. A todos os administradores é assegurado o pagamento pela empresa de uma pensão vitalícia de reforma que se vencerá mensalmente a contar do mês seguinte àquele em que, por qualquer motivo, cessem as suas funções no Conselho de Administração da MPS.
«4. A pensão de reforma será independente de qualquer outro benefício que o administrador tenha a receber seja da Segurança Social, seja de qualquer outro sistema de previdência.» (cfr. ponto 11 dos Factos Assentes).
13. Se o direito do A. fosse qualificável como complemento de pensão de reforma (o que só por cautela de patrocínio se admite), daí não resultaria que o A. a nada tivesse direito, pois o n.º 2 do art. 402 do CSC não estabelece que o somatório da pensão da Segurança Social com o complemento de pensão não pode exceder a remuneração em cada momento percebida por um administrador efetivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas, mas sim que o complemento de pensão não pode exceder a remuneração em cada momento percebida por um administrador efetivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas.
14. Assim, ainda que a tese sintetizada nas conclusões 5.ª a 12.ª não procedesse, sempre A. sempre teria direito a receber da Ré, a título de complemento de pensão de reforma, o resultante dos estatutos e das deliberações da Ré, com o limite em causa.
15. Mesmo que se entendesse como inválida a cláusula estatutária relevante – o que se faz por mera cautela de patrocínio e sem conceder – o comportamento da Ré ao longo dos mais de 20 anos decorridos desde a deliberação de 30.3.1990 sempre tornaria abusiva a invocação pela Ré perante o Autor da alegada invalidade ou ineficácia da cláusula estatutária.
16. Ao considerar improcedente a ação, a sentença Apelada aplicou mal a lei como resulta das conclusões precedentes, em violação dos artigos 653.º, n.º 2 e 659.º, n.s 2 e 3 do Código de Processo Civil.
17. Ao decidir, como decidiu, a sentença Apelada violou o disposto no art 402 do CSC pelo que, em consequência, deve ser revogada, sendo substituída por outra que considere procedente a ação.”
Pede a procedência do recurso.
Em contra-alegações, sustenta a recorrida:
“
A. Nas suas Alegações, o Apelante requereu a alteração do ponto 1 da Base Instrutória, propondo uma redacção alternativa ao Facto Provado 68, mas não explica em que medida tal mudança influi na decisão do mérito da causa, nem alega que tal alteração permitirá ao Tribunal “ad quem” concluir pela procedência da acção;
B. As provas produzidas têm de ser apreciadas não apenas por aquilo que isoladamente valem, mas também valorizadas globalmente, isto é no sentido que assumem no conjunto de todas elas, o que foi precisamente isso que fez – e bem – o Tribunal “a quo” para formar a sua convicção à matéria perguntada no ponto 1º da Base Instrutória;
C. De acordo com a generalidade da doutrina, um administrador de facto é alguém que, sem a decorrência de uma qualquer designação legítima, exerce as funções de administração.
D. Ora, tendo ficado amplamente provado nos autos (não havendo uma única divergência na matéria provada, quer no que se refere à prova testemunhal, quer à documental quanto a este aspecto) que i) foi exclusivamente a pedido do Autor que este cessou, em 2000, a sua relação laboral e de administração com a Apelada, ii) que ficou como consultor desta; iii) que, nesta nova qualidade, com excepção dos horários que fazia, o seu estatuto, funções e regalias se mantiveram inalterados até 2011; iv) que não se reformou das empresas participadas pela Apelada (já que só esta tinha um regime de atribuição de reforma aos ex-administradores), continuando, de forma ininterrupta, a exercer nestas empresas as funções de administrador (inclusivamente de presidente do conselho de administração), v) que, sendo a Apelada uma SGPS, outra resposta não podia ser dada à matéria de facto perguntada no nº 1 da Base Instrutória;
E. Assim, foi absolutamente correcta a apreciação da prova e, consequentemente, a redacção dada ao Facto Provado 68, sendo que os excertos de depoimentos apontados pelo Apelante não são suficientes para sustentar a alteração requerida à resposta dada pelo Tribunal “a quo”, improcedendo, assim, as Conclusões 1º, 2º, 3ª e 4ª.
F. O art. 402º n.º 1 CSC faz depender de estipulação expressa no contrato de sociedade a faculdade desta criar e cumprir um regime de reforma, por velhice ou invalidez, para os seus administradores, pelo que, tratando-se de uma norma injuntiva, destinada à tutela de interesse de terceiros, os actos praticados em sua violação são nulos.
G. É pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência que não é suficiente que o contrato de sociedade, conforme sucedeu no caso da Apelada, se limite a consagrar um direito à reforma dos administradores, prevendo a possibilidade de a Assembleia Geral da Sociedade aprovar um regulamento relativo ao tema (art. 16º n.º 3 dos Estatutos iniciais) ou remetendo para um regulamento previamente aprovado (art. 16º n.º 5 da versão dos Estatutos em vigor).
H. Não colhe o argumento avançado pelo Autor, para sustentar a validade da cláusula estatutária aqui em causa, de que ao remeter para um regulamento antes aprovado, a cláusula incorporou o conteúdo desse regulamento e, portanto, respeitou do modo mais exigente possível a alegada necessidade de pormenorização do regime da reforma, pois tal não cumpre os objectivos de segurança jurídica e publicitação do conteúdo essencial do direito à reforma dos administradores, nomeadamente perante terceiros (credores da sociedade e potenciais novos sócios) que está subjacente a esse normativo.
I. Assim, foi totalmente correcta a decisão do Tribunal “a quo” de que “(…) o regime da reforma dos administradores têm, necessária e imperativamente de constar do contrato de sociedade, cabendo apenas à assembleia geral aprovar o respectivo regulamento”, improcedendo as Conclusões 10ª e 11ª.
J. Não pode ser acolhida a tese do Autor de que o critério para distinguir reforma e complemento de reforma, para efeitos do art. 402º do CSC, não pode ser a titularidade de uma pensão da Segurança Social, pois, se assim fosse, o n.º 1 do art. 402º CSC não se aplicaria a ninguém.
K. É, pacificamente, admitido no Direito Português que as pensões de velhice e as de invalidez constituem encargo da instituição de segurança social, embora se admitam, dentro de certos limites legalmente determinados, pensões complementares a cargo duma sociedade ou de certas instituições particulares (p.ex. fundos de pensões).
L. A distinção que deve presidir entre os dois conceitos é, assim, bem mais simples e depende tão só das respectivas circunstâncias factuais, i.e.: (i) se o beneficiário recebe pensão de reforma da Segurança Social, ou de outro esquema de previdência equivalente, a pensão de reforma a cargo da sociedade é qualificada de complemento de pensão ou pensão suplementar; (ii) se o beneficiário só recebe da sociedade, então essa prestação é qualificada de pensão de reforma, improcedendo as Conclusões 7ª, 8ª, 9ª e 10ª.
M. Não faz igualmente sentido a tese do Autor de que apenas os complementos de pensão de reforma estariam sujeitas ao limite previsto do art. 402º n.º2 CSC, solução que, aliás, não é acompanhada pela doutrina e jurisprudência que se pronunciou sobre o tema;
N. De facto, todos são unânimes ao afirmar que a limitação legal quanto ao montante que resulta do n.º 2 do art. 402º CSC, embora refira os complementos de reforma, não pode também deixar de se aplicar à própria pensão de reforma (que não apenas ao complemento de reforma) atribuída pela sociedade pela aplicação do argumento a minori, ad maius que conduz necessariamente a que o limite máximo da vantagem atribuída pela sociedade – seja a título de reforma, seja a título de complemento de reforma – não exceda o plafond legalmente fixado;
O. Assim, é irrelevante para o que se discute nos presentes autos qualificar se se está em presença de uma pensão de reforma ou de um complemento de reforma, uma vez que a solução legal é idêntica para ambas as situações, pelo que bem andou o Tribunal “a quo” ao decidir que “mesmo que não ocorresse o vício da nulidade do regulamento das reformas, certo é que o limite quantitativo fixado no n.º 2 do art. 402º se aplica também às reformas previstas no nº.1 do mesmo artigo”.
P. De todo o modo, no caso em apreço, recebendo o ora Apelante uma pensão da segurança social (facto provado 67), dúvidas não podem restar que se está perante um complemento de pensão de reforma, pelo que, ainda que colhesse a tese do Apelante sempre se aplicaria o limite estabelecido no art. 402º n.º2 CSC.
Q. Foi, assim, irrepreensível a decisão do Tribunal “a quo” de que, sendo a pensão auferida pelo Autor da Segurança Social superior à remuneração do administrador da Ré no activo mais bem pago, a Ré pode “limitar, de imediato, as pensões de reforma a cargo da Ré de modo a que o somatório das pensões pagas pela Ré e pela Segurança Social a cada ex-administrador reformado não exceda a remuneração do administrador no activo que, em cada momento, for mais bem pago (factos 33, 37, 38, 41 e 44)”, pelo que improcedem as Conclusões 14ª a 17ª.
R. Já depois de ter sido proferida a sentença dos autos, no dia 3 de Junho de 2013, a ora Apelada requereu, junto da Conservatória do Registo Comercial, a sua dissolução, a qual pode ter impacto na presente acção, nomeadamente no que respeita à condenação da Ré a pagar ao Autor as prestações de reforma vincendas, sem prejuízo do estrito cumprimento das disposições legais do CSC aplicáveis no que se refere à liquidação;
S. Caso a presente acção venha a ser julgada procedente – o que se equaciona, sem conceder – a condenação da Ré, ora Apelada, a pagar a pensão de reforma ao Autor deverá respeitar o limite temporal em que ocorrerá tal liquidação, já que, com o registo da liquidação da Apelada cessa o eventual direito dos ex-administradores à reforma.”
Conclui pela manutenção do decidido.
O recurso foi adequadamente recebido como de apelação, a subir de imediato nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação de Facto:
A decisão da 1ª instância fixou como provada a seguinte factualidade:
(...)
***
III- Fundamentos de Direito:
Cumpre apreciar do objecto do recurso.
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o seu âmbito. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões do recurso, verifica-se que as questões suscitadas que importa apreciar respeitam:
· à existência de erro na apreciação da matéria de facto;
· ao regime jurídico aplicável ao caso (interpretação do art. 402 do C.S.C.).
Passemos à análise pela ordem indicada.
A) Da impugnação da matéria de facto:
O apelante/A. impugna apenas um ponto da matéria de facto.
Invoca que não devia o Tribunal a quo ter dado como provado o facto constante do ponto 1. da Base Instrutória – “O autor manteve-se como administrador de facto da Ré até 2011?” – devendo ter respondido antes do seguinte modo: “Provado apenas que, entre finais de 2002/inícios de 2003 e 2010, o A., através de uma sociedade de que era sócio e gerente, estabeleceu uma relação de assessoria com a Administração da Ré, dando-lhe apoio e aconselhamento na tomada de decisões, deslocando-se às instalações da Ré com uma periodicidade inferior à que mantinha quando era administrador da mesma e usufruindo de um gabinete e de apoio de secretariado”.
Diz que assim o justificam o depoimento de parte do A. e os depoimentos das testemunhas AS, MD e MM.
A apelada/Ré contrapõe que nenhum interesse tem para a decisão da causa uma tal matéria e defende que, ainda assim, não deve alterar-se a resposta dada, tanto mais que, para a generalidade da doutrina, administrador de facto será aquele que, sem designação legítima, exerce as funções de administração.
O Tribunal a quo respondeu aos pontos da Base Instrutória no despacho de fls. 827 a 833, e justificou em concreto a resposta dada a este ponto 1. nos depoimentos das testemunhas JM, AS, MM e JC, conjugados com o documento junto a fls. 703 a 778 dos autos, não deixando de valorar o próprio depoimento de parte do A..
Vejamos.
O art. 655 do C.P.C. de 1961 (que aqui é de convocar e a cujas disposições doravante nos referiremos, salvo menção em contrário) consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. De acordo com este princípio, as provas são valoradas sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.
Conforme assinala a apelada, e sugere até o próprio apelante nas suas alegações de recurso, a matéria impugnada é irrelevante para a decisão da causa. Desse modo, não se enxerga verdadeira utilidade na análise da desconformidade suscitada, o que em princípio deveria determinar que logo passássemos à apreciação da questão seguinte.
No entanto, em nome do rigor, conheceremos da mencionada impugnação, depois de ouvidos os depoimentos atinentes (os invocados pelo apelante, aqueles em que o Tribunal sustenta a resposta ao ponto 1. da Base Instrutória e ainda o prestado por MC que também depôs sobre esta matéria) e vistos os autos, desde já adiantando que a apreciação levada a cabo na 1ª instância não nos merece reparo.
Se, desde logo, atentarmos no teor dos pontos 1º, 2º e 3º da Base Instrutória – “O autor manteve-se como administrador de facto da Ré até 2011?” (1º), “Ficando encarregue do acompanhamento e do controlo de gestão da sociedade?” (2º) e “Estando o autor bem ciente da situação geral e financeira da Ré?” (3º) – verificamos que o que pretende saber-se através dos mesmos, com relevância para a apreciação da causa, é se, apesar não exercer em termos formais as funções de administrador da Ré, o A. continuou, depois de 2000 e até 2011 a desempenhar, na prática, funções correspondentes em termos tais que conhecia perfeitamente qual a situação geral e financeira da Ré.
Dentro desta lógica – e não tendo sido questionada a resposta dada pelo Tribunal aos pontos 2 e 3 da Base Instrutória (pontos 69 e 70 supra) – o que é decisivo apurar é que funções concretas o A. desenvolveu na sociedade Ré mesmo após a cessação do vínculo laboral e da renúncia ao cargo de administrador, sendo irrelevante para o efeito que o tenha feito directamente ou através de uma sociedade de que era sócio e gerente (e por via da qual receberia a retribuição acordada, como o próprio salientou em depoimento de parte), sem prejuízo do provável interesse de ordem fiscal na opção tomada.
Na mesma linha de pensamento, torna-se também despiciendo especificar se para desempenhar certas atribuições na Ré o A. passou, porque já não era trabalhador ou administrador da empresa, a ter de estar munido de uma procuração da Ré para o efeito. É evidente que para validar o desempenho de determinadas actividades na Ré, que não as de mero consultor, o A., que com a sociedade já não tinha um vínculo laboral ou outro, teria de estar a coberto de uma qualquer outra protecção jurídica. É, pois, secundário averiguar qual o “formato” legalmente adoptado para permitir ao A. o desempenho válido de certas atribuições na empresa, antes cumprindo saber de que funções concretas estamos a falar.
Ora, tendo em conta o que acabámos de dizer e ouvindo as testemunhas JM, que foi motorista na Ré e que é contabilista na empresa desde 2004, AS, técnico oficial de contas da Ré desde 1998 e que é desta funcionário desde 1978, MD que é técnica oficial de contas de outra empresa do mesmo grupo económico da Ré desde 1995, MM, secretária de administração da Ré que trabalhou com o A. desde 1986, e JC, administrador da Ré em representação de uma sociedade desde 1992 até Julho de 2012, sopesando, ainda, o próprio depoimento de parte do A., verificamos que outra não podia ser a resposta do Tribunal ao ponto 1 da Base Instrutória.
Na verdade, todos os inquiridos reconheceram que o A., após a “saída” da Ré em 2000 e depois de uma breve diminuição de actividade até por volta de 2002/2003 (período em que terá ocupado o lugar de deputado na Assembleia da República), continuou na “MPS” a desempenhar funções nalguns pontos equivalentes às que antes ali desenvolvia enquanto administrador, a tal ponto que, como o próprio referiu em depoimento de parte, se encontrava munido de uma procuração outorgada pela Ré. Aliás, as testemunhas inquiridas, no seu conjunto, reconheceram que apesar do A., depois de 2000, já não se deslocar diariamente às instalações da sociedade e de aí não permanecer um tão largo número de horas em cada dia, tudo se manteve, no essencial, como antes, gozando ali o A. das mesmas prerrogativas e levando a cabo uma actividade semelhante, agora adaptada ao próprio decréscimo de actividade da Ré a partir de 2000 face à importante reestruturação então operada na empresa (conforme salientou a testemunha JC).
Assim, segundo disseram, o A. deslocava-se regularmente às instalações da Ré onde mantinha o mesmo gabinete e apoio do secretariado, tinha “a última palavra” em matérias relevantes para a empresa, elaborava minutas de relatórios de contas anuais ou pelo menos supervisionava a respectiva elaboração (como disseram, em particular, JM, AS ou MM, esta última recordando que o A. fez relatórios até 2009 ou 2010), e assinava, no dia a dia, sozinho ou com o administrador executivo, vária documentação e cheques em representação da Ré (ver, ainda, o doc. junto a fls. 703 a 778 dos autos).
Se tivermos em conta que ao administrador da sociedade anónima compete gerir os negócios sociais, a prossecução do objecto social e os actos de gestão da sociedade, representando a mesma (ver arts. 405, nº 1, e 406 do C.S.C.), só podemos concluir que o A. se manteve, realmente, como administrador de facto da Ré (isto é, a título informal) até 2011.
Por conseguinte, e em síntese, temos que a resposta dada ao facto impugnado encontra plena justificação nos termos indicados pelo Tribunal a quo, não se surpreendendo qualquer contradição ou erro manifesto de avaliação entre os elementos de prova disponíveis e a indicada resposta, o que significa dizer que a convicção expressa pela 1ª instância naquela matéria tem inteiro suporte naquilo que os meios de prova analisados fornecem. É, pois, de manter inalterada a resposta dada em 1ª instância àquele ponto 1 da Base Instrutória.
B) Do regime jurídico aplicável ao caso (interpretação do art. 402 do C.S.C.):
Passemos, então, ao enquadramento jurídico dos factos assentes.
No essencial, a argumentação do A. na causa vai no sentido de que a sociedade Ré deve continuar a pagar-lhe a pensão de reforma, como fez a partir de Agosto de 2000, e que lhe retirou em Janeiro de 2012, por se tratar de um direito seu irrevogável que só se extingue com a extinção da sociedade, não podendo a sociedade Ré, unilateralmente, alterar os termos em que a mesma lhe foi concedida.
Face à improcedência da acção, insiste o A. no recurso por si interposto que a sentença faz inadequada interpretação do art. 402 do C.S.C., que o que a Ré sempre lhe pagou foi uma verdadeira reforma e não um complemento de reforma, pelo que tal prestação não está sujeita a qualquer limite. Defende que, em todo o caso, mesmo tratando-se de complemento de reforma, deve entender-se que é o seu valor (e não o somatório deste com a pensão paga pela Segurança Social) que não pode ultrapassar a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas. Por fim, sustenta que ainda que se entendesse como inválida a cláusula estatutária relevante, o comportamento da Ré ao longo dos mais de 20 anos decorridos desde a deliberação de 30.3.1990 sempre tornaria abusiva a invocação agora perante o A. da alegada invalidade ou ineficácia da cláusula estatutária.
Na contestação, a sociedade Ré defendeu que o Regulamento aprovado em Assembleia Geral de 30.3.1990, sobre a reforma dos administradores e a atribuição de pensões a cargo da sociedade, é nulo por não satisfazer a exigência legal de definição contratual do regime aplicável, e que o A. auferia, no conjunto entre a pensão de reforma a cargo da Ré e a da Segurança Social, mais do que a remuneração recebida pelo administrador efectivo mais bem pago da sociedade, e por isso deixou de lha processar. Em contra-alegações, sustenta a posição e argumenta que pagava ao A. um complemento de reforma, mas que os limites legais previstos para estes devem também aplicar-se às pensões de reforma.
Na sentença concluiu-se pela improcedência da acção que se justificou, em súmula, com a concreta nulidade da estipulação sobre a concessão das reformas aos administradores, ou, de qualquer forma, com o idêntico regime aplicável à reforma e ao complemento de reforma, e com a circunstância da pensão concedida pela Segurança Social ao A. ser, por si só, superior à remuneração do administrador mais bem pago da Ré no activo (cumprindo limitar a pensão a cargo da Ré de modo que o somatório da pensão que paga e a atribuída pela Segurança Social não exceda a remuneração do administrador no activo mais bem pago a cada momento).
Vejamos.
Explica Paulo Olavo Cunha, reportando-se aos órgãos de administração das sociedades anónimas: “(...) Considerando que a situação remuneratória em caso de reforma – baseada nas contribuições efectuadas durante a vida activa –, a cargo do sistema geral da segurança social, não proporciona ao administrador reformado condições equivalentes ou sequer aproximadas às que ele desfrutava no activo, a lei societária admite que o contrato de sociedade preveja, em acumulação com o regime geral de previdência, um regime de reforma a cargo da sociedade, ou inclusivamente a constituição de um Fundo de Pensões, sendo possível fazer aprovar pela assembleia geral ou pelo conselho geral e de supervisão um regulamento aplicável (...)” ([1]).
Estabelece o art. 402 do C.S.C., sob a epígrafe “Reforma dos administradores”, que: “1. O contrato de sociedade pode estabelecer um regime de reforma por velhice ou invalidez dos administradores, a cargo da sociedade. 2. É permitido à sociedade atribuir aos administradores complementos de pensões de reforma, contanto que não seja excedida a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas. 3. O direito dos administradores a pensões de reforma ou complementares cessa no momento em que a sociedade se extinguir, podendo, no entanto, esta realizar à sua custa contratos de seguro contra este risco, no interesse dos beneficiários. 4. O regulamento de execução do disposto nos números anteriores deve ser aprovado pela assembleia geral.”
Este regime da reforma dos administradores, exclusivo das sociedades anónimas – certamente tendo em conta a dimensão deste tipo societário e a respectiva capacidade financeira – tem evidente carácter excepcional por, desde logo, não se ajustar ao fim lucrativo que caracteriza em particular as sociedades comerciais, sendo certo que a capacidade da sociedade integra os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, estando, à partida, proibidos os actos que o contrariem (cfr. art. 160 do C.C. e 6 do C.S.C.).
Ora, a concessão de reforma a administradores, seja qual for o regime e os fins protegidos, constitui sempre um benefício concedido pela sociedade sem contrapartida do beneficiário e, por conseguinte, uma liberalidade, um acto gratuito, contrário, na sua essência, ao fim lucrativo das sociedades comerciais.
Observam, por isso, Carvalho Fernandes e João Labareda([2]) que a legitimidade da limitação da capacidade de gozo das sociedades comerciais se impõe tendo em vista o fim que prosseguem mas reforça-se ainda pela necessidade de tutela dos interesses dos credores, dos trabalhadores e clientes, para além daqueles dos próprios sócios.
O art. 402 do C.S.C. surge, deste modo, como uma faculdade à disposição da sociedade para constituir um regime de reforma para os seus administradores, mas reveste-se de carácter imperativo no que respeita à forma de constituição desse direito (ver nº 1 do art. 402). Isto é, a norma contempla uma opção quanto à constituição de um regime de reforma por parte da sociedade, mas institui a obrigatoriedade de estipulação expressa no contrato social do regime de reforma que se proponha assegurar, uma vez feita essa escolha. Carvalho Fernandes e João Labareda salientam as razões da imposição legal referida: “(...) constituindo o regime de reforma uma excepção, (...), à regra da especialidade de capacidade de gozo das sociedades comerciais, como espécie do género pessoas colectivas, torna-se necessário que, quem quer que nisso tenha interesse relevante, possa aceder ao efectivo conhecimento desse desvio, com o qual não tem de contar antecipadamente e que se traduz, afinal de contas, numa situação onerosa para a sociedade. E interesses relevantes são, sem dúvida, neste âmbito, os de duas categorias de entidades, a saber: em primeiro lugar, os dos eventuais futuros accionistas que, para formarem devidamente a vontade de participação na sociedade, devem poder saber as obrigações que sobre ela impendem e que extravasam do seu fim; em segundo lugar, os dos credores sociais e de outros interessados, igualmente afectados pela assunção de obrigações pela sociedade, que, representando encargos sem contrapartida, naturalmente podem diminuir a sua capacidade de solvência. (...)”([3]).
O contrato social deve, por isso, conter, tendo especialmente em conta os interesses de terceiros, as bases gerais do regime (destinatários, pressupostos da concessão, tipo e conteúdo mínimo), cabendo ao regulamento (aprovado pela assembleia geral - nº 4 do art. 402) concretizar essas bases e definir os procedimentos de execução correspondentes, estabelecendo, por exemplo, o início e termo da pensão, meios e prazos de pagamento([4]).
Quer isto significar que o contrato social não pode limitar-se a consagrar ou a anunciar o direito dos administradores à reforma, antes devendo contemplar o regime instituído nas suas linhas orientadoras essenciais. Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda: “(...) a segurança jurídica, com necessária tutela dos múltiplos interesses envolvidos, não se satisfaz com a simples publicitação da existência do direito à reforma; impõe-se que, por esta via, seja facultado o conhecimento do conteúdo, pelo menos essencial, do direito que está a ser consagrado (...).”([5]).
Por outro lado, a norma estatutária desconforme com o imperativo legal será necessariamente inválida e, com ela, qualquer deliberação que aí se fundamente([6]). Tal invalidade, como se entendeu no Ac. do STJ de 10.5.2000([7]), deve qualificar-se como nulidade, por estar em causa estipulação contrária a disposição legal imperativa (art. 294 do C.C.).
Vejamos agora se a sociedade Ré instituiu validamente um regime de reforma para os seus administradores.
A resposta deve ser, em nosso entender, negativa, conforme se sustentou na sentença sob recurso contra o defendido pelo A./apelante.
Conforme se provou, em 1987, a cláusula 16, nº 3, dos estatutos da Ré, previa apenas que: “A assembleia geral poderá, em qualquer altura, conceder o direito de reforma aos Membros do Conselho de Administração, estabelecendo o seu regime.” (ponto 6 supra). Em assembleia geral de 30.3.1990 foi, entretanto, aprovado um regulamento sobre a reforma dos administradores e a atribuição de pensões a cargo da sociedade (pontos 9 a 11). Em 31.3.1993, a Ré alterou a denominação social e os seus estatutos, passando a dita cláusula 16, nº 3, a ter a seguinte redacção: “Os membros do Conselho de Administração têm direito a reforma nos termos do Regulamento já aprovado pela Assembleia Geral” (ponto 13). Desde, pelo menos, 1997, os estatutos da Ré contêm a cláusula: “Os membros do Conselho de Administração remunerados têm direito a reforma nos termos do regulamento já aprovado pela Assembleia Geral.” (ponto 14). Em 1999, a referida regra estatutária (agora sob o número 16, nº 5) passou apenas a conter a especificação de que a sociedade só atribuía pensão de reforma aos administradores remunerados (ponto 19). Por último, em 1999/2000, o A. acordou com a Ré pôr fim ao contrato de trabalho que os ligava e renunciou ao cargo de administrador, passando a receber a pensão mensal acordada (pontos 15 a 19 e 21 supra).
Decorre da factualidade enunciada, que o pacto social da sociedade Ré em 1987 contemplava (na cláusula 16, nº 3) um simples direito à reforma por parte dos membros do conselho de administração, sendo aprovado, em assembleia geral de 30.3.1990, regulamento sobre a reforma dos administradores e a atribuição de pensões a cargo da sociedade, com o teor constante dos pontos 10 e 11 supra. Por seu turno, em 31.3.1993, a Ré somente acrescentou à dita cláusula dos estatutos que os membros do conselho de administração “têm direito a reforma nos termos do Regulamento já aprovado pela Assembleia Geral”.
Tendo em conta o que acima deixámos dito, afigura-se-nos desadequada a previsão no pacto social da Ré quanto à matéria em análise quando celebrou com o A., em 1999/2000, o acordo com vista à aquisição por este do direito à reforma.
Até 1993, a omissão é manifesta, limitando-se os estatutos a anunciar o direito à reforma que veio a ser efectivamente apenas definido, nas linhas essenciais, em regulamento aprovado pela assembleia geral. Ambos, cláusula estatutária e regulamento, porque contrários a disposição legal imperativa, estavam, por conseguinte, inquinados com o vício da nulidade (art. 294 do C.C.).
Em 1993, a Ré acrescentou à dita cláusula dos estatutos que os membros do conselho de administração “têm direito a reforma nos termos do Regulamento já aprovado pela Assembleia Geral”. Argumenta, então, o apelante que a alteração dos estatutos em 1993 recebeu neles o regulamento de 1990, pelo que com isso se respeita a previsão legal.
Não podemos concordar, por duas ordens de razões. A cláusula estatutária de 1993 limitou-se a prever um direito de reforma dos administradores da Ré, fazendo simples remissão para um “Regulamento já aprovado pela Assembleia Geral”. Ora, se tal regulamento (o aprovado 30.3.1990) era nulo, como vimos, não podia validar-se através da alteração de redacção da cláusula estatutária([8]), sendo ainda certo que a referida remissão não corresponde às exigências formais de estipulação expressa do regime de reforma no contrato social. Ou seja, a previsão estatutária de 1993 não fornece, designadamente a terceiros, como se impunha, o conhecimento do conteúdo básico do direito de reforma consagrado.
Daqui resulta a invalidade do regime de reformas instituído aquando da celebração do acordo entre A. e Ré sobre a pensão de reforma que inquina, forçosamente, o acordo nessa vertente, acrescendo que nem mais tarde se mostra consagrado nos estatutos da sociedade o regime de reformas a que o A. faz apelo.
Diz ainda o apelante que a invocação agora pela Ré da nulidade da cláusula estatutária sempre seria abusiva, tendo em conta o comportamento anterior da sociedade desde a deliberação de 1990.
Não lhe assiste razão.
Estamos perante o vício da nulidade, insanável, como vimos, que pode ser conhecido a todo o tempo e declarado oficiosamente pelo tribunal (art. 286 do C.C.).
A ilegitimidade em que se traduz o abuso de direito (art. 334 do C.C.) não resulta da violação formal de qualquer preceito legal em concreto mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito, independentemente do animus ou da consciência que o seu titular tenha do carácter abusivo da sua conduta([9]). O abuso de direito surge como a excepção oposta ao direito, cuja existência em si não é questionada, mas cujo exercício, por circunstâncias concretas, se torna inadmissível. Daí que a verificação em concreto do abuso legitime a oposição ao seu exercício e paralise a respectiva execução.
Ora, não se alcança como, na situação sub judice, a conduta anterior da Ré pudesse validar uma conduta inválida e ferida de vício irreparável, justificando-a e eternizando-a na ordem jurídica. Ademais, a própria Ré confiou ao longo dos anos na validade das cláusulas que regulavam o regime de reforma dos seus administradores e por isso se reconheceu na obrigação de pagar a pensão de reforma ao A..
Assim, o que no caso excedia os limites da boa fé – conforme se reconheceu na sentença sob recurso e transitou em julgado – era o pedido formulado pela Ré, em reconvenção, por via da nulidade da arguida cláusula estatutária, de restituição das pensões de reforma pagas ao A. desde 2007. Nessa matéria, paralisou-se o direito da Ré à restituição reclamada e julgou-se improcedente a reconvenção.
No mais, no entanto, não pode proceder a excepção do abuso de direito.
O que deixamos dito é, por si só, suficiente para julgar improcedente a apelação.
Deixaremos, no entanto, umas breves notas sobre as restantes questões suscitadas no recurso, ainda que baseadas na validade do regime de reforma instituído pela Ré.
A primeira respeita à caracterização da prestação paga pela Ré ao A. a partir de 2000.
O recorrente desdobrou-se no recurso em explicações sobre a natureza dessa prestação que considera de reforma e não como complemento de reforma, face ao teor do regulamento. Daí retira que a mesma, enquanto pensão de reforma está prevista no nº 1 do art. 402 do C.S.C. e não tem qualquer limite, enquanto o complemento de reforma vem consagrado no nº 2 do mesmo artigo e está sujeito ao limite aí fixado([10]).
Entendemos, conforme sustenta Paulo Olavo Cunha([11]), que o nº 2 do art. 402 constitui uma mera especificação do disposto no nº 1 e não um preceito complementar. A nosso ver, de resto, estando os administradores da sociedade abrangidos pelo regime contributivo da Segurança Social, como admite o apelante, nenhum sentido teria a destrinça legal assinalada no recurso.
Por conseguinte, não nos parece que esteja em causa no preceito uma hipotética faculdade de conceder pensões por referência (ou não) às prestadas pela Segurança Social e, assim, de contemplar no contrato social a natureza independente ou complementar da pensão atribuída, como defende o apelante.
Em todo o caso, assinala-se ainda que numa interpretação embora diversa dos nºs 1 e 2 do art. 402, isto é, autonomizando os dois preceitos, Carvalho Fernandes e João Labareda não deixam de equiparar os regimes, afirmando com relação ao nº 2: “(...) Embora este limite esteja directamente fixado para os complementos de reforma, afigura-se, contudo, razoável sustentar a sua aplicação à reforma regulada no nº 1 (...). Prevalecem, na verdade, análogas razões de decidir. Na sua aplicação correspondente à reforma dos administradores, este limite significa que não pode verificar-se a atribuição de um valor que leve o beneficiário a auferir, em cada momento, a título de reforma, mais do que o montante da remuneração máxima praticada na sociedade para administradores no activo, com qualidade e funções equivalentes.”([12]).
Em suma, mesmo sendo válida a estipulação estatutária, estaria a pensão de reforma do A. necessariamente sujeita aos limites previstos no nº 2 do art. 402 do C.C..
A última questão prende-se com a anterior e é a de saber se, na interpretação da parte final do nº 2 do art. 402, deve considerar-se o somatório das pensões auferidas (da Segurança Social e da sociedade) ou será apenas a paga pela sociedade que não pode exceder a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo (ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas), como defende o apelante.
Pensamos, contra o entendimento deste último, que a referência há-de ser a soma das pensões auferidas.
Explica, com suficiente clareza, Paulo Olavo Cunha a tal propósito: “(...) Sendo excepcional no regime dos órgãos societários a atribuição de uma pensão a cargo da sociedade, compreende-se que a lei tenha tido o cuidado de limitar a contribuição máxima desta – não autorizando que a soma do complemento de pensão de reforma a cargo da sociedade e da pensão recebida do sistema contributivo de segurança social ultrapasse a remuneração do administrador em funções mais bem remunerado, por não fazer sentido que um administrador reformado possa, à custa da sociedade, receber mais do que aqueles que estão no activo e asseguram os meios indispensáveis ao pagamento da sua reforma complementar. (...)”([13]).
Em todo o caso, como acima referimos, a situação sub judice não encontra solução nas abordagens acabadas de fazer, sendo irrelevantes, para o efeito, os critérios relativos ao limite aplicável à pensão atribuída pela sociedade Ré ao A..
Na verdade, a acção e o recurso improcedem porque se concluiu pela nulidade das cláusulas reguladoras em apreciação e, assim sendo, pela invalidade do regime de reformas instituído pela sociedade Ré quando foi celebrado o acordo entre esta e o A., em 1999/2000, quanto à pensão de reforma deste.
Por seu turno, a referida invalidade afecta necessariamente o contratado entre as partes nessa vertente, não se mostrando, ainda, que alguma vez tal regime tenha vindo depois a ser contemplado no pacto social da Ré em conformidade com o disposto no art. 402 do C.S.C..
É, assim, de confirmar a sentença recorrida, ainda que por motivos não inteiramente coincidentes.
***
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, por consequência, a sentença recorrida.
Custas pelo A./apelante.
Notifique.
***
Lisboa, 4.2.2014
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Roque Nogueira
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------- [1] “Direito das Sociedades Comerciais”, Almedina, 4ª ed., pág. 796. [2] “Do regime jurídico do direito à reforma dos administradores a cargo das sociedades anónimas”, in “Revista de Direito das Sociedades”, Ano II (2010), 3/4, págs. 531 e ss.. [3] Ob. cit., pág. 542. [4] Ver Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 544, e Paulo Olavo Cunha, ob. cit., pág. 797. [5] Ob. cit., pág. 545. [6] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 546/547. [7] Em CJ/ASTJ, Ano VIII, T. II, 2000, págs. 52 e ss.. [8] Só a anulabilidade é sanável mediante confirmação (art. 288 do C.C.). [9] Cfr. “Dicionário Jurídico”, Ana Prata, 3ª ed., pág. 7. [10] Relembrando, estabelece o nº 1 do art. 402 que “O contrato de sociedade pode estabelecer um regime de reforma por velhice ou invalidez dos administradores, a cargo da sociedade” e o nº 2 que “É permitido à sociedade atribuir aos administradores complementos de pensões de reforma, contanto que não seja excedida a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas”. [11] Ob. cit., pág. 798. [12] Ob. cit., pág. 552. [13] Ob. cit., págs. 798/799.