COMPRA E VENDA
RESERVA DE PROPRIEDADE
EFICÁCIA REAL
SUB-ROGAÇÃO REAL
Sumário

1. A reserva de propriedade com eficácia real, tal como está configurada no artigo 409.º do CC, constitui um mecanismo de garantia do proprietário-alienante colimada à resolução do contrato fundada seja em incumprimento por parte do adquirente, seja na verificação de qualquer outro evento que as partes tenham previsto, nomeadamente como fundamento da resolução, mas sempre no âmbito do contrato alienação em causa.
2. Nessa medida, a cláusula de reserva de propriedade assume a natureza de cláusula acessória do contrato de alienação, maxime do compra e venda, através do qual se opera a transmissão do direito de propriedade da coisa para o vendedor sob condição suspensiva.
3. Se as partes tiverem convencionado uma cláusula atípica de reserva de propriedade, fora do âmbito legal acima referenciado, importa considerar que, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1306.º do CC, não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei
4. Assim, nos termos da parte final do indicado normativo, toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional.
5. Nessa medida, não se divisa a possibilidade legal de transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro por via da cessão de crédito previsto nos artigos 577.º e seguintes do CC ou mediante a sub-rogação legal estabelecida no artigo 592.º do mesmo diploma, já que se trata de institutos de transmissão de créditos e de dívidas a que são alheios os dieitos ou efeitos de natureza real.
6. Quanto à possibilidade de transferência da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, no quadro de contratos mistos, nomeadamente em sede de união de contratos, ou mediante cessão da posição contratual do vendedor para o financiador, nos termos do artigo 424º e seguintes do CC, afigura-se admissível que possa o vendedor do bem financiado, ao receber directamente o preço da venda do bem por parte da financiadora, sub-rogar a sua posição contratual no contrato de compra e venda a esta financiadora, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação, nos termos do 589.º do CC, incluindo a reserva de propriedade que ali tenha sido estabelecida.
7. Porém, no caso vertente, nada foi alegado e muito menos provado no sentido de ter existido um acordo entre a fornecedora do bem e a financiadora que consubstancie qualquer sub-rogação da posição contratual dessa fornecedora para a A., incluindo reserva de propriedade do veículo que tenha sido anteriormente estabelecida entre a vendedora e o comprador, tanto mais que a propriedade do veículo fora inscrita a favor do mutuário, ora R., tendo sido, seguidamente, registada a reserva de propriedade a favor da A..
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. A sociedade BW - Sucursal Portuguesa (A.), intentou, em 27/12/2011, junto das Varas Cíveis de Lisboa, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a sociedade FG (R.), com benefício de apoio judiciário, alegando, em resumo, que:
- Em 28/06/2007, a A. concedeu ao R. um financiamento, no valor de € 50.000,00, para a compra de um veículo automóvel, de marca BMW, modelo …, com a matrícula …, a reembolsar em 73 prestações mensais variáveis, das quais 72 no valor de unitário de € 649,46 e uma final no valor de € 15.000,00, ficando a A. com a reserva de propriedade sobre aquele veículo;  
- Porém, o R. não pagou as prestações n.º 48 a 51, vencidas em 05/07/2011, 05/08/2011, 05/09/2011 e 05/10/2011, respectivamente, no montante total de € 1.835,53, com IVA incluído, pelo que a A. lhe comunicou, através de carta registada, datada e 14/10/2011, que deveria proceder à liquidação das prestações em falta, no prazo de oito dias, sob pena de automática rescisão do contrato, o que não se verificou.
Pede a A. que seja:
a) – reconhecida a resolução do sobredito contrato à data de 30/10/ 2011;    
b) – condenado o R. a devolver à A. o veículo em referência com todos os respectivos documentos;
c) – reconhecida a propriedade da A. sobre o mesmo veículo;
d) – ordenado o cancelamento do registo de propriedade do mesmo veículo a favor do R.   
2. O R. contestou, pugnando pela improcedência da acção, sustentando que:
- procedeu a duas transferências bancárias, em 05/07/2011 e 08/08/ 2011, cada uma no valor de € 521,52, no total de € 1.043,04, pelo que o valor em falta é apenas de € 792,49;
- o pagamento das prestações n.º 50 e 51, referentes a Setembro e Outubro de 2011, não foram atempadamente liquidadas em virtude de a A. não lhe ter remetido, em tempo, as facturas para pagamento.
3. A A. apresentou réplica a rebater a excepção invocada pelo R..
4. Realizou-se audiência preliminar, no decurso da qual foi proferido saneador tabelar e seleccionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória (fls. 77-76).
5. Procedeu-se à audiência final, com gravação da prova, tendo sido decidida a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 116-118.
6. Por fim, foi proferida sentença, datada de 22/05/2013 (fls. 134-149), a julgar a acção parcialmente procedente, declarando-se válida a alegada resolução do contrato, mas absolvendo-se o R. do demais peticionado.
7. Inconformada com essa decisão, na parte absolutória, a A. apelou dela, formulando as seguintes conclusões:
1.ª - Julgou o Tribunal a quo parcialmente procedente a presente acção, reconhecendo judicialmente válida da resolução do contrato anteriormente celebrado com o R., absolvendo este dos demais pedidos pela A. formulados;
2.ª - Fundamentou tal improcedência dos demais pedidos na convicção de que a cláusula de reserva de propriedade contratualmente estipulada a favor da Recorrente se mostra ser nula, não obstante ter julgado válida a rescisão contratual promovida pela Recorrente, precisamente, tendo por base essa mesma reserva de propriedade;
3.ª - Ao julgar válida a rescisão contratual, prévia e necessariamente teve o Tribunal de considerar, de igual modo, também válida a cláusula de reserva de propriedade contratualmente fixada, sendo esta condição “sine qua non” da válida rescisão contratual.
4.ª - Apenas porque o contrato celebrado veio a ser validamente resolvido, tem a ora Recorrente interesse e legitimidade em ver reconhecida a sua propriedade sobre o veículo – a qual nunca deixou de se encontrar registalmente reservada para si -, bem como para requerer o cancelamento do registo de propriedade até então existente a favor do aqui Recorrido.
5.ª - A não ser assim, sendo nula a reserva de propriedade registada, também a resolução contratual promovida e judicialmente reconhecida, porque fundada na existência dessa mesma reserva de propriedade, se mostraria prejudicada.
6.ª - Apenas veio a ser julgada válida a rescisão contratual operada porquanto o contrato em questão se mostrava garantido por reserva de propriedade a favor da aqui Recorrente, tendo o Tribunal “a quo” de tal facto se socorrido na fundamentação de tal procedência.
7.ª - Não pode o Tribunal a quo considerar válida a reserva de propriedade registada para apreciar isoladamente determinado pedido e, em seguida, desconsiderar aquela, em absoluto, aquando da apreciação feita aos demais pedidos formulados.
7.ª - Admitir-se o contrário, seria conceber uma dualidade de critérios para uma mesma universalidade de facto e uma mesma realidade jurídica, qual sela, a reserva de propriedade em questão.
8.ª - Sendo a nulidade a mais gravosa das vicissitudes juridicamente existentes, afectando, no seu todo e sem possibilidade de excepção, o acto a que respeita, nunca o Tribunal a quo poderia ter decidido conforme decidiu.
9.ª - Por outro lado, tenha-se presente que em causa nestes autos não está a constituição da reserva a favor da entidade mutuante, a qual, conforme resulta do contrato junto, se mostra ter sido transmitida pelo fornecedor do bem para a Recorrente, mediante o instituto da sub-rogação, a qual foi voluntária e se encontra plasmada no n.° 1 do artigo 12.° das Condições Gerais do Contrato.
10.ª - O fornecedor do veículo objecto dos autos - e credor do crédito ao preço da compra e venda do veículo -, tendo recebido directamente da aqui Recorrente o valor da respectiva prestação, sub-rogou a mesma nos seus direitos.
11.ª - Sendo que, salvo o devido respeito, não mostra qualquer acolhimento na Lei nem tal tem sido entendimento doutrinal e/ou jurisprudencial (vide Acórdão deste Tribunal proferido em 07.12.2011) que sendo a cláusula de reserva de propriedade própria de um instituto específico (a transmissão da propriedade), não possa ser objecto ela própria de transmissão para garantia de um crédito que não respeita à transferência da propriedade.
12.ª - A manifestação da vontade de sub-rogar, assim o tem defendido as doutrina e jurisprudência, basta-se com uma declaração expressa das partes, a qual pode ser apenas verbal, desde que perceptível;
13.ª - Mostra-se, assim, perfeitamente válida e eficaz a sub-rogação do fornecedor a favor da Recorrente, da reserva de propriedade e seus direitos inerentes, pelo que deveria o Tribunal a quo ter tomado decisão diversa da que tomou.
14.ª - Sem prejuízo, sempre se dirá ser admissível a constituição da reserva de propriedade a favor da entidade mutuante, pelo que sempre a mesma terá de ser considerada válida.
15.ª - O artigo 409.° do CC, constituindo uma excepção à regra prevista no artigo 408.° do mesmo Diploma Legal, tem como efeito suspender a transmissão do bem, permitindo ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador.
16.ª - O próprio diploma legal que regula o crédito ao consumo (DL 359/ 91, de 21-09), prevê no n.º 3 do seu art.º 6.° que "O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento de aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (...) f) O acordo sobre a reserva de propriedade".
17.ª - Neste sentido, tem vindo a desenvolver-se uma corrente jurisprudencial que considera admissível a constituição de reserva da propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, nomeadamente quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda, resultando tal conexão evidente da própria Lei do Crédito ao Consumo (vide artigo 12.°)
18.ª - O comprador do veículo associa o pagamento do preço do bem ao cumprimento do contrato de financiamento (mediante o pagamento mensal da prestação), aceitando, por essa razão, que a garantia da reserva da propriedade seja constituída como garantia de cumprimento desse contrato.
19.ª - No caso concreto, resulta claramente dos autos que a reserva da propriedade foi constituída para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, e não o contrato de compra e venda.
20.ª - Ademais, de acordo com o disposto no artigo 582.° do mesmo diploma legal, aplicável ex vi do artigo 594°, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub-rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido.
21.ª - Nos casos em que a aquisição do veículo é feita através de financiamento de terceiro quem efectivamente corre o risco de incumprimento é o mutuante e não o vendedor do veículo.
22.ª - A não se entender assim, chegaríamos à situação absurda de, incumprido o contrato de mútuo e sendo vedado ao financiador invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como causa do accionamento da reserva da propriedade constituída a seu favor, o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que não é efectivamente proprietário
23.ª - Ainda que se admita, por mero dever de patrocínio, e sem conceder, que a cláusula de reserva de propriedade é nula, sempre terá de se considerar o facto de tal direito se encontrar registado, impondo-se, assim, retirar as devidas consequências do facto de a Recorrente ter registada a seu favor a reserva de propriedade sobre o veículo objecto dos presentes autos
Pede a apelante que seja revogada a sentença recorrida, na parte impugnada, e substituída por decisão que reconheça a propriedade da Recorrente sobre o veículo em causa.  
8. Por sua vez, o R. apresentou contra-alegações a pugnar pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
Em conformidade com as conclusões da Recorrente, em função das quais se devem traçar os limites do objecto do recurso, a questão fundamental aqui a apreciar prende-se, tão só, com a validade da cláusula de reserva de propriedade que a mesma Recorrente se arroga para efeitos da pretendida procedência dos pedidos denegados, não vindo, propriamente, posto em causa o segmento da sentença que reconheceu a validade da resolução do contrato sub judice.
III - Fundamentação
1. Factualidade dada como provada na 1.ª instância
Vem dada como provada pela 1ª instância a seguinte factualidade:
1.1. A Autora (A.) é uma sociedade que tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de concessão de crédito - alínea A) dos Factos Assentes
1.2. No exercício da sua actividade, a A. celebrou com o R., em 28/06/ 2007, um contrato denominado de "contrato de crédito ao consumo n.º …, tendo por objecto o veículo automóvel marca BMW, modelo …, com a matrícula … e o chassis n.º …, adquirido pelo R. junto do fornecedor “BC, S.A.”, conforme documentos de fls. 7 a 11 - Alínea B) dos Factos Assentes
1.3. Através do mencionado contrato foi concedido um financiamento no valor de € 50.000,00 - Alínea C) dos Factos Assentes;
1.4. Ficou convencionado que o R. procederia ao pagamento do montante correspondente ao financiamento através da realização de 73 prestações mensais variáveis, 72 no valor de € 649,46 e uma prestação final no valor de € 15.000,00 - Alínea D) dos Factos Assentes;  
1.5. A A. é titular de reserva de propriedade do mencionado veículo, reserva essa que lhe foi transmitida pelo fornecedor do veículo, conforme Condições Particulares e artigo 12.° das Condições Gerais do Contrato - Alínea E) dos Factos Assentes.
1.6. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel competente, conforme documento de fls. 12 - Alínea F) dos Factos Assentes;  
1.7. Por conta do contrato descrito em 1.2, o R. procedeu a duas transferências bancárias, nas datas de 05/07/2011 e 08/08/2011, respectivamente, cada uma no valor de € 521,52 - Alínea I) dos Factos Assentes;
1.8. A transferência efectuada em 05/07/2011, no valor de € 521,52 foi utilizada para liquidar o remanescente da prestação vencida a 05/05/2011, no valor de € 204,82, bem como as despesas de devolução da prestação vencida a 05/06/2011, no valor de € 30,75, liquidando ainda uma parte da prestação vencida na referida data (05/06/2011), no valor de € 285,95, num total de €521,52 - resposta ao artigo 3.° da base instrutória;
1.9. A transferência efectuada em 08/08/2011 foi utilizada para liquidar o remanescente da prestação de 05/06/2011, no valor de € 235,56, bem como as despesas de devolução da prestação vencida a 05/07/2011, no valor de € 30,75, liquidando ainda uma parte da prestação vencida na referida data (05/07/2011), no valor de € 255,21, num total de € 521,52 - resposta ao artigo 4.° da base instrutória;
1.10. A A. enviou ao R. as facturas correspondentes às facturas 50 e 51, com as datas de 05/09/2011 e 05/10/2011 e os valores de € 523,85 cada uma - resposta ao artigo 2.° da base instrutória
1.11. Relativamente às prestações n.º 50 e 51, com datas de vencimento em 05/09/2011 e 05/10/2011, respectivamente, no valor de € 523,85 cada uma, o R. não pagou à A., pelo menos o valor de € 792,49 - Alínea G) dos Factos Assentes;
1.12. A A. enviou ao R., e este recebeu, uma carta registada com aviso de recepção datada de 14/10/2011, conforme documentos de fls. 13 e 14, com o seguinte teor:
"(..) Assunto: incumprimento do contrato de crédito n..° … e contrato de compra e venda conexo, o qual tem por objecto o veículo de marca BMW,, modelo … e matrícula ….
"Exmos. Senhores,
"Informamos que se encontram por liquidar as prestações relativas ao contrato de crédito identificado em assunto, cujos valores e respectivas datas de vencimento constam da listagem que se junta em anexo por comodidade de consulta, as quais, acrescidas dos juros de mora e despesas convencionadas, ascendem nesta data ao montante total global de 2475,87 Euros.
"Assim, vimos pela presente solicitar a V Exa. Proceda ao pagamento do montante em dívida acima referido no prazo máximo de 8 (oito) dias a contar da data da presente carta.
"Decorrido o prazo de 8 (oito) dias sem que V. Ex.° proceda ao pagamento ora solicitado, a mora converter-se-á em incumprimento definitivo e o contrato acima identificado considerar-se-á automática e imediatamente rescindido, sem necessidade de qualquer outra comunicação.
"Caso a resolução venha a operar-se ficará V Ex. «obrigado ao pagamento das seguintes quantias.
2.475, 87 Euros, a título de prestações vencidas e não pagas e de juros de mora convencionados.
5.199,93 Euros, a título de indemnização, correspondentes a 20% das prestações vincendas até ao termo do prazo do contrato de crédito, sem prejuízo do direito da SMW de exigir a reparação integral dos seus prejuízos.
A que acrescerá a prestação que eventualmente se venha a vencer dentro do prazo de 8 (dias) que vos é concedido para a regularização.
"Em tal caso, deverá V Ex.« dar cumprimento à obrigação contratualmente assumida de proceder à imediata devolução da viatura objecto dos contratos em perfeito estado de conservação, nas nossas instalações sitas no ….
"Informamos que, caso a resolução se venha a operar, instruiremos os nossos advogados para promoverem judicialmente a satisfação dos nossos direitos contratuais
"Por último, caso o pagamento ora solicitado tenha sido efectuado entretanto ou venha a ser efectuado dentro do prazo supra referido, solicitamos a V Ex. ° o favor de nos comunicar, com a maior urgência, o modo como esse pagamento foi efectuado.
"Na esperança de que V. Exa. retome o cumprimento pontual das suas obrigações no prazo supra fixado, aproveitamos para transmitir os melhores cumprimentos. (..)",
- Alínea H) dos Factos Assentes
A matéria acima descrita não foi impugnada, pelo que se tem por adquirida para os autos.
Todavia, para melhor precisão dos termos em que foi estabelecida a alegada cláusula de reserva de propriedade, importa destacar em desenvolvimento da matéria constante dos pontos 1.2, 1.5 e 1.6, a seguinte matéria provada:
1.13. As condições particulares e gerais do contrato de crédito identificado em 1.2, constantes do documento de fls. 7 e 8, foram subscritas apenas pelo BW - Sucursal Portuguesa, por FG, como mutuário, e por uma fiadora;
1.14. Da cláusula 12.ª, n.º 1, das referidas condições gerais consta o seguinte: 
“Nos termos convencionados nas condições particulares, o mutuário declara conhecer e aceitar a sub-rogação pelo fornecedor a favor do mutuante do crédito que para aquele emerge do contrato de compra e venda que celebrou com o mutuário, sub-rogação efectuada ao abrigo do art.º 589.º do CC, reconhecendo o mutuário expressamente que essa sub-rogação, por força do disposto no art.º 582.º, aplicável por remissão do art.º 594.º, ambos do CC, implica a transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor, assim como a transmissão do direito de resolver o contrato de compra e venda do bem.”    
1.15. A propriedade do veículo de marca BMW, com a matrícula …, foi registada a favor de FG, em 10/08/ 2007, tendo sido também, subsequentemente, nessa data, registada a reserva sobre o mesmo veiculo da favor do BW – Sucursal Portuguesa, conforme doc. de fls. 12.
2. Do mérito do recurso
Estamos no âmbito de um contrato de concessão de crédito ao consumo celebrado, em 28/06/2007, entre a A., na qualidade de mutuante, e o R., como mutuário, destinado a financiar a compra, por este ao fornecedor “BC, S.A.”, de um veículo automóvel. Nas condições gerais do referido contrato, foi incluída uma cláusula de reserva de propriedade, a favor da financiadora, sobre o veículo financiado, que se encontra registada em nome dela, mediante declaração expressa do própria mutuário no sentido de reconhecer e aceitar a sub-rogação pelo fornecedor do direito de resolver o respectivo contrato de compra e venda e da correspondente reserva de propriedade.    
Sucede que a decisão recorrida considerou, em resumo, que a sobredita cláusula de reserva de propriedade é nula, porquanto, nos termos do art.º 409.º do CC, não pode ser transmitido pelo fornecedor ao mutuante a reserva de um direito de propriedade que já não tem e que já fora transmitido ao comprador mutuário.
Porém, sustenta a apelante a validade daquela cláusula, ao abrigo dos artigos 408.º e 409.º n.º 1, do CC, em conjugação com o n.º 3 do art.º 6.º do Dec.Lei n.º 359/91, de 21-09, mormente, por via de cedência e sub-rogação, nos termos dos artigos 588.º e 592.º do mesmo código. Em abono dessa tese, a apelante parece louvar-se no entendimento, segundo o qual seria permitido estipular a reserva de propriedade do veículo financiado a favor da financiadora por acordo com o fornecedor e o comprador. E há até quem vá mais longe, considerando que o preceituado no n.º 1 do artigo 409º do CC, no seu segmento final, em que refere “à verificação de qualquer evento”, consente a estipulação de que o accionamento da reserva de propriedade do veículo financiado possa ser conectada ao incumprimento do contrato de concessão de crédito que tenha por escopo o contrato de compra e venda.
Não se desconhece a profunda divergência jurisprudencial existente nesta matéria, mas o certo é que todas as questões aqui suscitadas se encontram detalhadamente equacionadas no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, n.º 10/2008, de 09/10/2008, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 222, de 14/11/2008, ainda que em fixação de doutrina respeitante à penhora de veículo automóvel onerado com o registo de reserva de propriedade a favor do exequente.
No mencionado aresto, segundo a tese que fez vencimento, foi considerado que, face à natureza que a referida cláusula assume no nosso ordenamento jurídico, ela só poderia ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação, já que a sua característica essencial é a de suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos.    
Salvo o devido respeito por opinião contrária, sufragamos o entendimento de que a reserva de propriedade com eficácia real, tal como está configurada no artigo 409.º do CC, constitui um mecanismo de garantia do proprietário-alienante colimada à resolução do contrato fundada seja em incumprimento por parte do adquirente, seja na verificação de qualquer outro evento que as partes tenham previsto, nomeadamente como fundamento da resolução, mas sempre no âmbito do contrato alienação em causa. Nessa medida, a cláusula de reserva de propriedade assume a natureza de cláusula acessória do contrato de alienação, maxime do compra e venda, através do qual se opera a transmissão do direito de propriedade da coisa para o vendedor sob condição suspensiva[1].
E quanto a saber se as partes podem convencionar uma cláusula atípica de reserva de propriedade, fora do âmbito legal acima referenciado, importa considerar que, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1306.º do CC, não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei. É o chamado princípio do numerus clausus ou da tipicidade dos direitos reais que, obviamente, exclui a liberdade contratual nesse domínio, incluindo também os próprios direitos reais de garantia, como decorre, além do mais, do art.º 604.º, n.º 2, do CC. E nos termos da parte final do n.º 1 do citado art.º 1306.º, toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional. De resto, a admitir-se a estipulação da reserva de propriedade a favor de terceiro, mais não se estaria senão a permitir, por essa via, a transferência do direito de propriedade do beneficiário da reserva para terceiro.
Nem contra este entendimento procede a invocação do preceituado no art.º 6.º, n.º 3, alínea f), do Dec.-Lei n.º 359/91, de 21-9, quando ali se determina que o contrato de concessão de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de seus serviços mediante pagamento em prestações deve indicar, além do mais, o “acordo sobre a reserva de propriedade”.
Com efeito, este normativo não reconfigura o conceito legal da reserva de propriedade plasmado no artigo 409.º do CC, mas reporta-se somente a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantenha essa qualidade, por efeito de reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de algumas das formas prevista no art.º 2.º do citado Dec.-Lei n.º 359/91[2].     
Nesta medida, não se vislumbra a possibilidade legal de transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro por via da cessão de crédito previsto nos artigos 577.º e seguintes do CC ou mediante a sub-rogação legal estabelecida no artigo 592.º do mesmo diploma, já que se trata de institutos de transmissão de créditos e de dívidas a que são alheios os direitos ou efeitos de natureza real. 
Mais problemática poderá ser quanto a saber se é admissível a transferência da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, nos casos em que o alienante, o adquirente e financiador tenham, no quadro de contratos mistos, nomeadamente em sede de união de contratos, ou mediante cessão da posição contratual do vendedor para o financiador, nos termos do artigo 424º e seguintes do CC.
Na verdade, afigura-se admissível que possa o vendedor do bem financiado, ao receber directamente o preço da venda do bem por parte da financiadora, sub-rogar a sua posição contratual no contrato de compra e venda a esta financiadora, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação, nos termos do 589.º do CC, incluindo a reserva de propriedade que ali tenha sido estabelecida.
De qualquer modo, no caso vertente, apenas se provou que o contrato de concessão de crédito em causa foi celebrado entre a A., na qualidade de financiadora, e o R., como beneficiário desse crédito.
Nada foi alegado e muito menos provado no sentido de ter existido um acordo entre a fornecedora do bem e a financiadora que consubstancie qualquer sub-rogação da posição contratual dessa fornecedora para a A., incluindo reserva de propriedade do veículo que tenha sido anteriormente estabelecida entre a vendedora e o comprador. De resto, a propriedade do veículo fora inscrita a favor do mutuário, ora R., em 10/08/2007, tendo sido, seguidamente, registada a reserva de propriedade a favor da ora A. (fls. 12).
Nesse domínio, o que se provou foi apenas o teor da cláusula 12.º da condições gerais reproduzidas a fls. 8, e acima transcrita, ou seja, de que:
“Nos termos convencionados nas condições particulares, o mutuário declara conhecer e aceitar a sub-rogação pelo fornecedor a favor do mutuante do crédito que para aquele emerge do contrato de compra e venda que celebrou com o mutuário, sub-rogação efectuada ao abrigo do art.º 589.º do CC, reconhecendo o mutuário expressamente que essa sub-rogação, por força do disposto no art.º 582.º, aplicável por remissão do art.º 594.º, ambos do CC, implica a transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor …” 
Porém, de tal reconhecimento e aceitação unilateral, por parte do mutuário, não se poderá, sem mais, concluir pela sub-rogação expressa da vendedora do bem em favor da ora A., nem, muito menos, que tenha sequer sido constituída reserva de propriedade a favor dessa vendedora, em que se possa ancorar agora a reserva de propriedade invocada pela mesma A..     
         Acresce que a A. nem tão pouco operou, substancialmente, a resolução do contrato de compra e venda, mas sim a do contrato de concessão de crédito celebrado, em relação à qual pretende então aproveitar-se da invocada cláusula de reserva de propriedade.  
Por fim, importa referir que a nulidade da referida cláusula não é de molde a pôr em causa a validade da resolução operada pela A., tanto mais que ela não poderia ignorar a divergência jurisprudencial e doutrinária existente sobre essa matéria, não lhe sendo lícito condicionar a resolução à pretensa validade daquela cláusula.
Aliás, a A. nem sequer pretende aqui pôr em causa o reconhecimento da resolução feito pela 1.ª instância. O que pretende agora é, a partir de tal reconhecimento, integrar, forçosamente, nele o accionamento da reserva de propriedade, o que, como vimos, nem a lei nem os factos provados consentem.
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo da apelante.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2014
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado  
Rosa Maria Ribeiro Coelho
[1] No sentido perfilhado, vide, por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pag. 376; Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Almedina, 1988, pag. 115; a ainda os acórdãos do STJ, de 16/9/2008, no processo nº 08B2181, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Alberto Sobrinho, e de 31-03-2011, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Álvaro Rodrigues, no processo 4849/05.0TVLSB.L1.S1, publicados na página web http://www.dgsi.pt
[2] Neste sentido vide o acórdão desta Relação, de 14-12-2004, relatado pelo então Exm.º Juiz Desembargador Abrantes Geraldes, no processo n.º 9857/2004, citado no AUJ do STJ n.º 10/2008.