I) A exceção de litispendência proíbe que perante um processo pendente volte a suscitar-se a mesma questão em outro processo, decorrendo a identidade da questão das dos sujeitos, pedido e causa de pedir.
II) Os embargos ou oposição à execução são ações declarativas, estruturalmente autónomas, não contestação à petição inicial da ação executiva.
III) Apesar dessa estrutura, visto tratar-se de um meio defesa e não de contra-ataque, a oposição pode conter matéria de impugnação e/ou de exceção, mas não de reconvenção.
IV) A pretensão processual prosseguida pela dedução de exceção de compensação em embargos ou em oposição a execução traduz-se na solicitação de uma atuação judicial diversa da pretendida pela dedução de pedido reconvencional de condenação no pagamento do montante que excede o do crédito a compensar; não se verifica entre ambas a identidade que a litispendência exige.(AAC)
O condomínio do prédio sito na Av. …, representado pela sua administradora P…, Lda., instaurou ação declarativa, com processo sumário, contra V…, Lda., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 16.166,60, acrescida dos juros, à taxa legal, até ao integral e efetivo pagamento, sendo os vencidos no montante de € 2.487,97 e, ainda, da quantia de € 530,00, também acrescida de juros, à taxa legal, a contar desde a apresentação da petição inicial e até integral e efetivo pagamento.
Alegou, em resumo que a ré não procedeu ao pagamento da quantia peticionada em primeiro lugar, a título de despesas de condomínio vencidas de Março a Dezembro de 2006, em relação às frações do edifício de que é proprietário, sendo que o autor despende ainda a quantia de € 530,00 em honorários de advogados e despesas administrativas.
A ré contestou. Defendeu-se por excepção peremptória de compensação, invocando um contra crédito no valor de € 19.517,00, deduziu reconvenção quanto ao excedente no valor de € 332,63 e impugnou a matéria articulada pelo autor.
Em face da defesa – ataque da ré e do valor dos montantes em causa o processo passou a tramitar segundo a forma ordinária.
O autor replicou, pugnando pela improcedência da exceção e do pedido reconvencional deduzidos, impugnando a factualidade subjacente e excecionando contra este último a litispendência e a prescrição.
O réu treplicou, pugnando pela improcedência destas exceções.
Procedeu-se à prolação de despacho saneador – onde, face à procedência da exceção de litispendência, se julgou improcedente a exceção de compensação e foi o autor absolvido do pedido reconvencional - e à seleção da matéria de facto relevante.
Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pelo autor e, em consequência, condenou a ré no pagamento ao autor da quantia de € 16.166,60 (dezasseis mil, cento e sessenta e seis euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, até ao integral e efectivo pagamento, sendo os vencidos até 22/5/2010 no valor de € 2.487,97 (dois mil, quatrocentos e oitenta e sete euros e noventa e sete cêntimos), absolvendo-a do restante peticionado.
Inconformada interpôs a RÉ competente recurso cuja minuta concluiu da seguinte forma:
‘’I. A douta decisão viola o artigo 496.º, 1, 3, 4 e 5 do CPC, ao declarar a litispendência do pedido reconvencional face ao processo n.º …/09.8YYLSB-A, devendo a decisão ser oposta, conhecendo o tribunal do correspondente pedido reconvencional.
II. Face aos testemunhos apresentados e ao desconhecimento patente dos factos, deveria o tribunal dar como não provada a matéria dos quesitos 1 a 3 e 5 a 8.
III. Foram violados os artigos 219.º e 220.º, 364.º, n.º 1, 392.º, 393.º, n.º 1, 394.º, n.º 1, e 238.º todos do CC, ao admitir-se prova testemunhal para provar deliberações dos condóminos e com teor oposto aos textos existentes.
IV. Se a ata de 24.03.2009, na convicção do tribunal fixou em concreto as quotizações a pagar em 2009, o que determinaria ser título executivo, segundo a sua fundamentação, então a sentença viola o artigo 449.º, n.º 2, al. c), devendo o autor suportar todas as custas.
V. Se em tribunal não se provou a data de vencimento das quotizações do condomínio, os juros de mora apenas deveriam ser admitidos a partir da citação.
Nestes termos, farão V. Exas. a costumada justiça’’
Não foram oferecidas contra-alegações.
A. O prédio urbano sito na Av. …, descrito sob o n.º …, na … Conservatória do Registo Predial de …, está constituído no regime da propriedade horizontal -A.
B. O referido prédio urbano integra 290 fracções autónomas destinadas a estacionamento automóvel e arrecadação distribuídas por 3 caves, pisos -1, -2 e -3 -B. C. A Ré é proprietária das seguintes fracções autónomas que integram o antemencionado prédio urbano: a) A, B, C, D, E, H, BZ, CA, CF, DG, DH, DL, DM, DN,DO, DP, DQ, EM, EP, ES, ET, EU, EX, FB, FE, FF, FH, FI, FJ, FL, FM, FR, FS, FT, FU, FV,FZ, GC, GE, GF, GG, GH, GI, GJ, GL, GM, GN, GO, GP, GQ, GR, GS, e HB, no total de 53 fracções, que correspondem a estacionamentos simples com a permilagem de 3,25/1000 cada;b) CO, CP, CQ e GX, que correspondem a estacionamentos duplos com a permilagem de 6/1000 cada; c) GZ, que corresponde a um estacionamento com arrecadação com a permilagem de 12,5/1000; no total de 58 frações autónomas -C.
D. Na Assembleia de Condóminos de 24/03/2009 foi deliberado nomear administradora do condomínio A. a sociedade P…, Lda. - D.
E. Na Assembleia de Condóminos de 04/04/2006 foi deliberado, por unanimidade e com o voto da aqui Ré, aprovar o orçamento para o ano de 2006, no valor total de 93.041,59€,incluindo 8.458,33€ de fundo de reserva legal -E.
F. Encontra-se em prazo de trânsito em julgado a sentença do Julgado de Paz de Lisboa, de 19 de Maio de 2010, que, no âmbito do processo n.º …/2009, condenou a ora Ré ao pagamento das quotas de condomínio dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2006, no que respeita às mesmas fracções autónomas mencionadas em C., no valor total de 3.233,32€ -F.
G. As despesas do condomínio A. são fixadas em relação a cada fração autónoma, por simples cálculo aritmético, aplicando a permilagem dessas frações ao valor do orçamento anualmente aprovado pela Assembleia de Condóminos – 1º.
H. O valor anual respeitante a cada fração, apurado nos termos referidos no ponto anterior, é fracionado em 12 prestações mensais – 2º.
I. Debitadas e enviadas pela administração aos condóminos – 3º.
J. Às frações referidas em C. couberam os seguintes valores de quotas mensais de 2006: frações com a permilagem de 3,25/100, 25,20€; frações com a permilagem de 6/1000, 46,52€; fração com a permilagem de 12,5/1000, 94,98€ - 5º a 7º.
L. Na Assembleia de Condóminos de 24/03/2009, foi deliberado, com o voto a favor da aqui Ré, ratificar o valor exato das quotas para o ano de 2006 – 8º
M. Em 31/12/2011, o Ilustre Mandatário do autor emitiu e enviou ao mesmo a «nota de honorários e despesas» a que se refere a cópia de fls. 401 a 403, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – 9º e 10º.
A ré, para além de invocar a exceção de compensação do crédito reclamado pelo autor com um seu no valor de € 19.517,20 deduziu ainda pedido reconvencional contra o mesmo autor, para obter a condenação deste no pagamento do montante excedente a essa compensação, isto é, da quantia de € 332,63, acrescido de juros vincendos.
O A. excecionou a litispendência relativamente ao pedido de compensação, já efetuado pela Ré nos autos n.º …/09.8YYLSB-A que corre termos na … Secção do … Juízo de Execução de Lisboa.
O primeiro grau julgou procedente a exceção de litispendência e improcedente a exceção de compensação invocada pela ré, absolvendo em consequência o autor da instância reconvencional.
Motivando o seu julgado, a decisão recorrida argumentou: ‘’Nos presentes autos, a ré invocou um crédito sobre o autor de € 19.517,20, referente a despesas suportadas pela ré e respeitantes a despesas ordinárias e reparações urgentes que a ré terá pago, enquanto administradora do condomínio do prédio agora administrado pelo autor.
Na referida oposição à execução intentada pelo autor, a ora ré e aí executada requereu fosse declarada extinta a quantia exequenda por compensação da mesma com o crédito no valor de € 189.832,26, resultando também este saldo da diferença entre as verbas despendidas pela ré em pagamento das despesas de condomínio e enquanto administradora do mesmo e as receitas obtidas.
Ou seja, numa e noutra ação, a ré pretende extinguir os créditos distintos do autor, mediante compensação com contra crédito, emergente de despesas por si assumidas e pagas no exercício da função de administradora do edifício em questão e durante o período em que exercer essas funções.
Independentemente da diferença de valores invocados, é certo que a ora ré pretende, invocando a compensação seja reconhecido o seu direito a haver para si o saldo resultante da prestação de contas final pelo exercício das funções de administradora do condomínio.
No caso da oposição à ação executiva invoca expressamente o saldo a seu favor de € 189.832,26 e, nesta ação, invoca apenas o montante de € 19.517,20, necessariamente incluído naquele saldo da administração.
A admitir-se outra construção, estaríamos perante o multiplicar de exceções com base nos mesmos factos e certamente perante uma potenciação da possibilidade de contradição de julgados (exatamente o que a lei pretende evitar – art. 497.º, n.º 2, CPC).
Concluindo e, em síntese, o facto gerador do crédito que esteve em causa na dedução da exceção de compensação na referida oposição à execução e, nestes autos, de dedução da exceção de compensação e de condenação do valor excedente, é o mesmo.
Estamos, pois, perante idênticas causas de pedir.
Igualmente já concluímos que o pedido embora quantitativamente diferente, é o mesmo, (releva a igualdade qualitativa), sendo evidente que são os mesmos os sujeitos da relação jurídica em causa’’.
Que pensar desta argumentação?
A litispendência é um conceito dual. Constitui antes de mais uma exceção dilatória que proíbe que perante um processo pendente volte a suscitar-se a mesma questão quando a mesma está a ser apreciada pelo mesmo ou outro tribunal (artigos 494.º, al. i) e 497.º, n.º 1, CPC).
Mas, além disso, é um estado processual mais amplo, que provoca diversos efeitos, como a estabilidade da instância e consequente proibição da mutatio libellis, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei (artigos 267.º a 273.º do CPC).
No caso sujeito só nos importa a primeira dimensão do conceito que a par do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 497.º, n.º 2, CPC).
A lei exige, para se verificar a exceção de litispendência, as três identidades também exigidas para a exceção de caso julgado, a saber, identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir (art. 498.º CPC).
A recorrente aceita que há identidade de sujeitos, mas discorda que haja a mesma identidade quanto ao pedido e causa de pedir.
Vejamos.
Embora haja vozes discordantes sobre a matéria, os embargos ou oposição à execução são acções declarativas, estruturalmente autónomas, e não contestação à petição inicial da acção executiva.
Di-lo E. Lopes Cardoso: ‘’pelos embargos, o executado assume a autoria dum processo declarativo, destinado a contestar o direito do exequente , quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam matéria de excepção.
Os embargos apresentam a figura quase perfeita de acção dirigida contra o exequente, em que este toma a posição de réu e passa a denominar-se ‘’embargado’’ e em que o executado é autor, com o nome de ‘’embargante’’ (Manual da Acção Executiva, Lisboa 1987:279).
No mesmo sentido se pronunciam também, por exemplo, Remédio Marques: ‘’Os embargos são acções declarativas, estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às acções executivas – nelas correndo por apenso -, pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo’’ (Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Almedina, Coimbra, 2000:149), e José Lebre de Freitas: ’’Diversamente da contestação da acção declarativa, a oposição à execução, constituindo , do ponto de vista estrutural , algo de extrínseco à acção executiva, toma o carácter de uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da acção que nele se baseia’’ (A Acção Executiva, 5.ª ed., Coimbra, 2009:189).
Apesar dessa estrutura, visto tratar-se de um meio defesa e não de contra-ataque, a oposição pode conter matéria de impugnação como de excepção, mas já não de reconvenção (J.Lebre de Freitas, op.cit: 183/184, no mesmo sentido J. de Castro Mendes, Sobre a admissibilidade da reconvenção em processo sumaríssimo, Lisboa, 1964:6; na doutrina estrangeira é ainda útil para o confronto das teorias em presença a análise de Nicola Jaeger, La Riconvenzione nel Processo Civile, Cedam, Padova, 1930: 225 e ss).
A doutrina costuma decompor o pedido, em acção declarativa, em dois elementos: uma pretensão material e uma pretensão processual.
‘’ A pretensão material é a afirmação de um interesse como juridicamente titulado – a afirmação ‘’grosso modo’’, de um direito subjectivo. O autor vai-se a juízo afirmando que é credor, proprietário, que tem direito a uma herança, ou - ou que o seu interesse em certo facto, ou situação jurídica (nulidade dum contrato, por exemplo) é tutelado na medida em que o facto ou a situação são verdadeiros.
A pretensão processual tem já carácter volitivo – o carácter volitivo especial dos pedidos, bivolitivo podíamos dizer: manifestação de vontade destinada a influenciar a vontade alheia – e traduz-se na solicitação de uma actuação judicial determinada: condene, execute, declare, arreste , etc…’’ (J. de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol III, Lisboa, 1974: 3/4).
Em sede de embargos de executado/oposição à execução, refere Lebre de Freitas que quando o executado veicula uma oposição de mérito à acção executiva, o pedido nela deduzido é de verificação da inexistência, total ou parcial, do direito exequendo, com fundamento, entre outros, conforme o título executivo, em facto que impeça, modifique ou extinga o facto constitutivo do direito do exequente (‘’Concentração da defesa e formação de caso julgado e embargos de executado’’, in Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra, 2002:457). Acrescenta o mesmo autor que ‘’a sentença proferida nos embargos de executado é assim sempre uma sentença de mera apreciação, por ela se acertando, sendo a acção procedente, a inexistência da obrigação exequenda, em sentido contrário ao de acertamento consubstanciado no título executivo, cuja eficácia é consequentemente eliminada (…)’’(Ibidem).
No que tange à invocação da compensação por banda do executado, Lebre de Freitas opina: ‘’ao alegar a compensação, o executado pretende fazer valer um facto extintivo do direito exequendo; não pretende reconvir, o que seria inadmissível em processo executivo (…) pelo que, se o seu crédito for superior ao do exequente, não poderá invocar a sentença que a seu favor obtenha na oposição à execução como uma sentença de condenação do exequente no pagamento da diferença entre os dois créditos, nem sequer como sentença de mero reconhecimento da existência da dívida pelo excesso, nem (muito menos) obter o pagamento forçado dessa diferença no processo executivo a que se opôs; mas, quer o seu crédito seja igual ou inferior , quer seja superior ao do exequente, é-lhe permitido deduzir a excepção de compensação, seja como objecção (no caso de já extrajudicialmente ter declarado querer compensar), seja como exceção propriamente dita (no caso de essa declaração ser feita no requerimento de oposição’’ (Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 3.º. Coimbra 2003: 317/318).
No caso sujeito verifica-se que na execução n.º …/09.8YYLSB pendente no … Juízo – … Secção dos Juízos de Execução de Lisboa, a então oponente, aqui ré, ‘’limitou-se’’ a invocar a compensação de créditos, como excepção conducente à extinção da instância executiva que peticionou.
Não formulou qualquer pedido reconvencional, nem, como vimos o poderia fazer.
Nem nenhuma das partes, tanto quanto é sabido, deduziu o pedido de declaração incidental previsto no artigo 96.º, n.º 2, do CPC.
Não há assim qualquer razão para se falar em identidade de pedidos e consequentemente em julgar procedente a exceção de litispendência.
A falta de um elemento da tríplice identidade acarreta, ao contrário do que foi decidido no primeiro grau, a improcedência da referida exceção, prejudicando o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, porquanto a revogação da decisão proferida a fls. 364 afeta e repercute-se nos atos subsequentes.
Custas pelo recorrido.
(Luís Correia de Mendonça)
(Maria Amélia Ameixoeira)
(A. Ferreira de Almeida)