I – As partes comuns do edifício definidas no titulo constitutivo da propriedade horizontal, nomeadamente as instalações destinadas à casa da porteira, mantém-se inalteradas, sendo insuscetíveis de modificação por ação individual, própria e autónoma dos proprietários das frações, apenas podendo ser alterado desde que haja acordo de todos os condóminos, nos termos do art.º 1419.º/1 do C. Civil.
2. Não pode ser adquirido o direito real de propriedade, por um dos condóminos, por usucapião, tendo por objeto uma parte comum do edifício, como é o caso da dependência destinada ao uso da porteira e assim destinada pelo título constitutivo da propriedade horizontal.(sumário do Relator)
I. Relatório.
1. M… e mulher, E…, intentaram a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra L…, A… e mulher, R…, S… e marido, P… e J… e mulher, C…, pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem o direito dos Autores, na qualidade de proprietários e em execução do acordo havido com os demais condóminos que ao tempo o eram do mesmo prédio, a integrarem o espaço destinado a habitação da porteira, que era composto por uma assoalhada, considerando-se alterado o título constitutivo da propriedade horizontal ou autorizando-se o Autor a outorgar a correspondente escritura retificativa, com a inerente atualização do registo predial e, subsidiariamente, pediram que seja reconhecido, incluindo para efeitos de registo, a afetação do mesmo espaço ao uso exclusivo da fração B, como se desta faça parte, alegando.
Alegaram, resumidamente:
- São donos das frações autónomas designadas pelas letras A, B, D e H, correspondentes a loja com saída para a via pública, rés do chão esquerdo, 1.º andar esquerdo e 3.º andar esquerdo do prédio sito na Rua …, que foi construído e pertenceu à Sociedade …, Lda., de que o Autor e um seu irmão eram os únicos sócios, sendo os Réus os proprietários, respetivamente, do 1.º andar direito, 2.º andar direito, 2.º andar esquerdo e terceiro andar esquerdo, a que correspondem as frações C, E, F e G do mesmo prédio.
- Na sua composição inicial o dito prédio compreendia um espaço destinado a habitação da porteira, que era composto por uma casa assoalhada, cozinha, casa de banho e logradouro, que ficou a ser parte comum, quando foi constituída a propriedade horizontal.
- Porém, em 1980, a sociedade anterior proprietária obteve dos restantes condóminos o acordo para prescindirem da existência e serviços de porteira, com vista à inclusão das instalações que lhe seriam destinadas na fração correspondente ao rés do chão esquerdo, até aí constituído apenas por uma divisão e sanitários, passando este a fins habitacionais.
- A Câmara Municipal de … autorizou a eliminação das ditas instalações da porteira e integração na fração do rés do chão esquerdo, a qual passou a ser utilizada para habitação e a ter a sua atual configuração, com duas divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e logradouro. No entanto, o título de propriedade horizontal não foi atualizado e os Autores não lograram obter dos restantes condóminos, os ora Réus, a deliberação necessária para esse efeito.
- Os Autores e antes deles a anterior sociedade proprietária, desde há mais de 25 anos, estão na posse do rés do chão esquerdo com a sua atual composição, pelo que adquiriram a sua propriedade por usucapião.
2. Citados, os Réus contestaram, alegando que nunca os anteriores proprietários acederam a renunciar à casa da porteira enquanto bem comum, sendo certo que caso o acordo alegado pelos Autores existisse, o mesmo não vincularia os atuais proprietários Por outro lado, a qualidade de bem comum da casa da porteira impede a sua aquisição por usucapião, o que não se altera pelo facto de os Autores terem obtido licença camarária, pois esta não interfere com a propriedade, sendo certo que o título constitutivo da propriedade horizontal não pode ser alterado por meio de sentença, pois o recurso ao instituto do suprimento do consentimento é excecional e não é admissível nesta matéria.
E concluíram pela improcedência da ação e, em reconvenção, pediram o reconhecimento do seu direito de compropriedade sobre a casa da porteira, condenando-se os Autores a eliminarem a ligação da mesma à fração B e na sua restituição aos ora Autores, bem como na cessação do uso de habitação dado à fração B.
Replicaram os Autores, pugnando pela improcedência da reconvenção.
3. Realizou-se uma audiência preliminar, no âmbito da qual se comunicou às partes a intenção de conhecer imediatamente do mérito da causa, tendo-lhes sido concedido, a seu pedido, um prazo para alegarem, o que fizeram.
E, por se considerar que os autos permitiam conhecer imediatamente o pedido, sem necessidade de mais provas, foi proferida o respetivo saneador-sentença, julgando-se a ação improcedente e procedente a reconvenção.
Os Autores recorreram para este Tribunal da Relação, que julgou improcedente a apelação, o que mereceu recurso de revista excecional para o S. T. J., que por douto Acórdão de 18/12/2012 anulou o acórdão recorrido e ordenou a ampliação da matéria de facto de forma a abarcar a matéria controvertida enunciada e que procedesse à condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa de acordo com as várias soluções plausíveis das questões de direito, discriminando-se os factos assentes e a realização de Base Instrutória.
Procedeu-se, então, à elaboração da matéria de facto assente e da Base Instrutória, e realizado o julgamento foi proferida a competente sentença, com a seguinte parte decisória:
“- julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolver os RR. de todo o pedido.
- julgar a reconvenção procedente e, em consequência:
a) Reconhecem-se os Réus/reconvintes como comproprietários das dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, que se localizam no rés do chão do prédio urbano sito na Rua …, compostas por uma casa assoalhada, cozinha, casa de banho e logradouro e
b) Condenam-se os Autores/reconvindos a reconhecer tal direito e a restituir aos RR. as ditas dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, eliminando a ligação existente com a fração “B” e a utilização desta para finalidade diversa da definida no título constitutivo da propriedade horizontal”.
4. Desta sentença vieram os Autores interpor o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A. As respostas dadas à matéria dos artigos 1º a 5º da Base Instrutória não correspondem ao conteúdo e sentido da prova produzida – documental junta aos autos e testemunhal gravada em audiência – pelo que, em face da respetiva e supra justificada reapreciação, não podem deixar de ser alteradas;
B. Essa alteração, tal como supra ficou amplamente justificada, impõe que as respostas aos artigos 1º, 3º e 4º consistam tão somente em “Provado”, que a resposta ao artigo 2º seja a de “Provado que a sociedade referida em A) tinha em vista a inclusão das instalações que lhe seriam destinadas na fração correspondente ao rés do chão esquerdo – fração “B” até aí constituído apenas por uma divisão (“atelier”) e sanitários, passando este a fins habitacionais” e que em relação ao artigo 5º se considere “Provado que a partir de 1991 recaiu exclusivamente sobre os Autores a obrigação legal de pagamento dos impostos relativos à fração “B” do prédio, suportados antes pela sociedade referida em A)”
C. Da conjugação de quanto ficou a constar da especificação dos Factos Assentes com as respostas que assim devem ser dadas aos indicados postos da Base Instrutória, e tudo isso configurando em síntese a factualidade em que assenta a presente demanda, resulta além do mais apurado, com mais direta incidência na decisão do presente recurso, que:
- no ano de 1980, a Sociedade construtora e ante possuidora do prédio de que Autores e Réus são atuais e únicos condóminos, conseguiu dos então restantes condóminos a concordância para a supressão de porteira, tendo em vista a disponibilização das instalações a esta destinadas e o seu subsequente licenciamento para habitação;
- obtida aquela anuência a mesma Sociedade obteve da Câmara Municipal de …, em 12.01.1982, autorização para integração das referidas dependências na fração “B” do imóvel, da qual ao tempo era exclusiva proprietária, tendo essa obra sido licenciada pela Autarquia em 15.03.1982;
- depois de concretizada a pretendida junção, com ligação interna dos dois espaços e supressão da porta de acesso da inicial “casa da porteira” para a escada, foi em 23.06.1982 passada licença de utilização para a recém ampliada fração “B” e a correspondente inscrição matricial atualizada em 11.06.1986 já com a nova e ainda atual configuração;
- em 02.06.1986 a predita Sociedade, representada aliás pelo Autor marido e mais uma vez se assumindo como sua única proprietária, deu de arrendamento a mesma fração, para uso habitacional, ao seu ainda atual locatário;
- em 29.05.1991 os Autores adquiriram a propriedade plena da referida fração “B” por efeito da dissolução e partilha da mencionada Sociedade, e a partir daí e até ao presente mantiveram integralmente o respetivo arrendamento, cobrando e fazendo suas todas as rendas entretanto pagas, suportando os inerentes encargos fiscais e em tudo o mais dando continuidade à atuação da extinta Sociedade, considerando-se tanto quanto esta reais proprietários das antigas dependências da porteira que a fação absorveu;
- até pela visibilidade que oferece num prédio de apenas sete fogos residenciais, toda esta situação foi e é do inteiro conhecimento dos demais condóminos, quer dos que hoje o são com daqueles que os antecederam, sem que nenhum deles, fosse quando fosse, haja tomado medidas concretas no sentido de a alterar ou lhe por cobro.
D. Verifica-se, por conseguinte, que, consecutivamente, desde há mais de vinte anos – por si e ante possuidora (artº 1.256º CC) – com completa exclusão de quem mais fosse, os Autores, ora Recorrentes, mantêm a apropriação e posse efetiva, em nome próprio, das questionadas “dependências destinadas ao uso e habitação da porteira”, conservando e reiterando perante terceiros, incluindo os restantes condóminos, esse seu total domínio e fruição.
E. Nessa medida, é incontroverso que a alegada posse dos Autores e sua antecessora, tendo todas as características que legalmente conduzem e dão lugar à inversão do seu título, e datando por forma publica, pacifica e continuada de há mais de trina anos, é causa legítima para a reivindicada aquisição da propriedade, por usucapião entretanto consumada, sobre a parte do prédio que tem sido objeto dessa posse, e que por isso deixou de ser comum.
F. Embora as dependências em apreço estejam qualificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como “partes comuns”, e estejam sujeitas por lei ao regime de compropriedade, uma vez que se não enquadram nas que imperativamente têm essa classificação, é perfeitamente admissível serem passíveis daquele efeito legal e mudem de enquadramento.
G. Até porque a condição de unanimidade dos condóminos legalmente estabelecida para modificação do título constitutivo da propriedade horizontal deve entender-se restrita à sua alteração por via negocial, nada impedindo, quando para isso haja fundamento, que a mesma se processe por imposição judicial.
H. Tendo a situação em foco nesta demanda perdurado, como se disse e ficou provado, por mais de três décadas, com implícita anuência dos condóminos que entretanto deixaram de o ser (e que a tal respeito nunca levantaram qualquer problema) e muito pouca, para se não dizer nenhuma, reação contrária por parte dos atuais condóminos (traduzida apenas na recusa de alterarem o título), a atitude que estes últimos vieram assumir e a pretensão que deduziram na presente demanda (contrária a todas as expectativas que por sua inércia deixaram criar) reconduz-se notoriamente aquele “venire contra factum proprium” que sempre paralisaria esse desiderato.
I. Para além de o pedido reconvencional consubstanciar um por demais evidente caso de abuso de direito, e ainda que por aí não colapsasse, mesmo assim não teria sentido ,nem o pedido, menos ainda o incrível acolhimento que lhe vem dado, de condenação dos Reconvindos “a restituir, de imediato, aos réus-reconvintes, livre e desocupada, a referida casa da porteira”, pois não são pertença destes mas do condomínio.
M. Seja, pois, qual for o ângulo por que se analise a matéria da demanda, a sua justa e legal decisão tem de passar pela procedência da ação e improcedência da reconvenção.
N. Decidindo em contrário, a sentença recorrida não respeitou, por manifestos erros de interpretação e desvios de aplicação, o quadro normativo decorrente das disposições combinadas dos pertinentes preceitos da Lei, nomeadamente os artºs 607º, 4 e 5 do atual CPC (ou, se assim se entender, os artºs 653º,2 e 659º. 2 do anterior) e os artºs 1.251º, 1.254º, 1.257º, 1263º, a), 1.265º, 1.287º, 1.296º, 1.406º, 1.420º, 1.421º, 1.422º-A e 334º CC, pelo que, na linha da presente alegação, e por consentânea observância desses preceitos, terá de ser revogada.
6. O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito devolutivo (fls. 691).
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
No caso concreto, estamos em presença de ação instaurada em 9 de junho de 2010 e a decisão recorrida foi proferida em 31 de outubro de 2013.
Aos recursos de decisões proferidas a partir de 1 de setembro de 2013, em processos instaurados após 1 de janeiro de 2008, é aplicável o regime de recursos do atual C. P. Civil aprovado pela Lei n.º41/2003, de 26 de junho, nos termos do seu art.º 5.º/1 (posição assumida igualmente por Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, pág. 16).
Assim, será aplicável o regime do atual Código de Processo Civil.
III – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se serem as seguintes as questões a resolver:
a) Alteração da matéria de facto.
b) Aquisição, ou não, pelos Autores, da propriedade exclusiva, por usucapião, das dependências destinadas ao uso e habitação da casa da porteira do edifício.
c) Abuso de direito.
***
IV – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Omissis (…)
A matéria de facto fixada na 1.ª instância, que se mantém, è a seguinte:
1 - O prédio urbano sito na Rua …, foi construído (tendo ficado concluído em 1976) e a sua propriedade mostrou-se anteriormente averbada em nome da “Sociedade …, Lda”, da qual o A. marido e um seu Irmão, já falecido, eram os únicos sócios.
2 - Entretanto, por efeito da dissolução e partilha dessa sociedade, operada em 29/05/1991, mostra-se averbada a transmissão para os AA. da titularidade do direito de propriedade da loja com saída própria para a via publica, rés do chão esquerdo, primeiro andar esquerdo e terceiro andar esquerdo do mencionado imóvel, que em regime de propriedade horizontal correspondem a frações autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “D” e “H”.
3 - Por seu turno, mostra-se averbada a propriedade, por via da compra, do primeiro andar direito por parte da 1ª Ré L…; do segundo andar direito por parte dos 2ºs RR. A… e R…; do segundo andar esquerdo por parte dos 3ºs RR. S… e P… e, por último, do terceiro andar direito por parte dos 4ºs RR. J… e C…, que respetivamente integram as frações autónomas designadas pelas letras “C”, E”, “F” e “G” daquele prédio.
4 - Do escrito denominado “Constituição de propriedade horizontal” - que consta da escritura publica outorgada em 8 de novembro de 1976 de fls. 29 a 31 do Livro nº 218-C do então 15º Cartório Notarial de … – consta que a permilagem das referidas frações é de 17%º para a “A”, de 5%º para a “B” e de 13%º para as “C” a “H”.
5 - O indicado imóvel encontra-se inscrito na respetiva matriz predial, com discriminação exata da atual composição de cada uma das suas frações, indicação do seu valor patrimonial e identificação do titular, sob o artigo … NIP da freguesia da …. e concelho de ….
6 - Também o mesmo prédio e todas as frações que o constituem, supra identificadas, se encontram devidamente descritos e a aquisição da sua propriedade inscrita a favor dos AA e dos RR a quem respetivamente pertencem, na Conservatória do Registo Predial de …, onde consta com o nº … da freguesia da ….
7- No escrito denominado “constituição da propriedade horizontal”, constante de fls. 11 e segs. consta ainda:
«Que o prédio é constituído pelas frações autónomas a seguir individualizadas pelas letras A (…); B – rés do chão, destinado a escritório ou “atelier”, composto de uma divisão e sanitários (…); C (…); D (…); E (…); F (…); G (…); H (…).
Que são comuns a todas as frações, exceto à designada pela letra “A”, a entrada principal, vestíbulo e escada geral; e que são comuns a todas elas as restantes partes do prédio não individualizadas, incluindo as dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, que se localizam no rés do chão e se compõem de uma casa assoalhada, cozinha, casa de banho e logradouro».
8 - Em 1980, a sociedade acima mencionada requereu à Câmara Municipal de …, a dispensa de porteira e a consequente eliminação das instalações destinadas à habitação desta, com integração das mesmas na fração correspondente ao rés do chão esquerdo do prédio e o seu subsequente licenciamento para habitação.
9- Essa obra foi autorizada pelos competentes Serviços Municipais, em 12/01/1982, licenciada em 15/03/1982 e logo levada a efeito – após desmontagem de uma porta e abertura de outra -, tendo sido vistoriada e emitida a Licença de Utilização, para habitação, nº …/U/1982, em 23/06/1982.
10- Desde então a fração autónoma “B”, correspondente ao rés do chão esquerdo do imóvel, passou a ficar unida às dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, e a ser utilizada para habitação como um espaço unitário de duas divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e logradouro.
11- Os RR. recusam-se a alterar o título de propriedade horizontal, no sentido de o retificarem em conformidade com a utilização daquela Fração “B” do prédio.
12- Essa fração passou a estar arrendada para habitação a J… e como tal permanece, recebendo os AA. as correspondentes rendas.
13- As pessoas identificadas no documento que constitui fls. 422 subscreveram a aludida “declaração” cujo teor aqui se reproduz.
14- Não é conhecida reação por parte dos condóminos ao descrito em 9), 10) e 12).
15- O A. liquidou, relativamente ao prédio descrito nas finanças sob o artº U … – fração autónoma B), …, descrito a fls. 17, o correspondente à 1ª prestação de IMI do ano de 2007, 1ª e 2ª prestações de IMI do ano de 2008, 1ª prestação de IMI do ano de 2012 e 1ª prestação de IMI do ano de 2013.
3.1. Aquisição da propriedade exclusiva, por usucapião, das dependências destinadas ao uso e habitação da casa da porteira.
Os Autores pretendem alterar o título constitutivo da propriedade horizontal de forma que as dependências destinadas ao uso da porteira, situadas no rés do chão, que se compõem de uma casa assoalhada, cozinha, casa de banho e logradouro, passem a integrar a fração autónoma “B”, que lhes pertence, passando a constituir uma nova fração, destinada a habitação, e não a de escritório ou atelier, como foi definido no referido título constitutivo.
E discordam da decisão recorrida por entenderem que desde há mais de vinte anos – por si e ante possuidora (artº 1.256º CC) – com completa exclusão de quem mais fosse, mantêm a apropriação e posse efetiva, em nome próprio, das questionadas “dependências destinadas ao uso e habitação da porteira”, conservando e reiterando perante terceiros, incluindo os restantes condóminos, esse seu total domínio e fruição. E, nessa medida, é incontroverso que a alegada posse dos Autores e sua antecessora, tendo todas as características que legalmente conduzem e dão lugar à inversão do seu título, e datando por forma publica, pacifica e continuada de há mais de trina anos, é causa legítima para a reivindicada aquisição da propriedade, por usucapião entretanto consumada, sobre a parte do prédio que tem sido objeto dessa posse, e que por isso deixou de ser comum, apesar das dependências estejam qualificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como “partes comuns”, e estejam sujeitas por lei ao regime de compropriedade, uma vez que se não enquadram nas que imperativamente têm essa classificação, sendo perfeitamente admissível a sua aquisição por usucapião.
Vejamos, pois, se lhes assiste razão.
3.1.1.Como é sabido e consabido, nos termos do art.º 1417.º do C. Civil, a propriedade horizontal “pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.”
Na propriedade horizontal cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. O conjunto dos dois direitos é incidível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio do condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição, como decorre expressamente do art.º 1420.º do C. Civil.
Como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, pág. 397, “ O que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é, pois, a fruição de um edifício por parcelas ou frações independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afetados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns”.
Assim, ao lado da propriedade exclusiva sobre a sua fração, cada condómino é ainda comproprietário das partes comuns do edifício, sendo contitular, juntamente com os restantes condóminos, do direito de propriedade sobre as partes comuns.
Existe uma total incindibilidade destes direitos – parte privada e autónoma e parte comum - , de modo a que a alienação do direito real autónomo não pode ser desanexado ou separado da parte afeta à comunhão, pois que a lei o proíbe expressamente (n.º2 do art.º 1420.º do C. Civil), como também sublinham Pires de Lima e Antunes Varela. ob. citada, pág. 417, “Cada fração autónoma é, em princípio, inseparável das partes comuns do edifício a que correspondem. Isto significa que o direito de propriedade exclusiva sobre a fração não pode ser alienado sem o direito de compropriedade correspondente sobre as coisas comuns e vice-versa. O princípio da incindibilidade é aplicável não só em relação às coisas como relativamente àquelas que podiam ser objeto de propriedade exclusiva de qualquer dos condóminos, mas que realmente o não são. O que interessa á regra da inseparabilidade é que elas estejam efetivamente em comunhão.”
Sobra a natureza jurídica da propriedade horizontal ensina José Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 4.ª Edição, pág. 408, tratar-se de “um novo direito real, caracterizado por resultar de um complexo incindível de propriedade e compropriedade das partes comuns”. E caracteriza a propriedade horizontal como uma propriedade especial: “Entre a propriedade e a compropriedade, a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios coletivos. Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas que é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio”.
Daí extrair as seguintes consequências deste regime jurídico : 1) O conjunto dos dois direitos é incindível e nenhum deles pode ser alienado separadamente (art.º 1420.º/2 ); 2) O abandono liberatório é excluído; não é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação e fruição (art.º 1420.º/2); 3) Os condóminos não podem exigir a divisão das coisas comuns (art.º 1423.º).
Na propriedade horizontal existe uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, quer dizer, ao exercício do domínio pleno sobre ele (Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4.ª Edição, pág. 335 e segs).
E refere ainda, este Autor, sendo estes direitos qualitativamente iguais, isso implica que se eles se autolimitam, pois o exercício de cada um terá de se fazer sem prejuízo de um exercício equivalente dos demais, aderindo à tese maioritária acolhida na doutrina, “configurando a compropriedade como um conjunto de direitos de propriedade – qualitativamente iguais – sobre uma mesma coisa e, como tal, autolimitados”.
Para Manuel H. Mesquita, “A Propriedade Horizontal, Separata da RDES”, 53: “o que há de específico no direito de propriedade sobre as frações autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objeto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras frações pertencentes a proprietários diversos.”
Mas para ser legalmente possível a constituição da propriedade horizontal torna-se necessário que o edifício se possa autonomizar em frações ou unidades distintas e isoladas umas das outras, tendo cada uma delas uma saída própria para uma parte comum do edifício ou para a via pública – art.º 1415.º do C. Civil.
Por outro lado, no título constitutivo deverão ser especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas e fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio, sob pena de acarretar a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fração – art.ºs 1415.º a 1418.º do C. Civil.
E o art.º 1421.º, do C. Civil, determina quais as partes consideradas comuns do edifício e aquelas que o possam vir a ser, ou seja, possam entrar na comunhão, de acordo com o título constitutivo, podendo ainda neste ser afetado o uso exclusivo a um dos condóminos de certas zonas das partes comuns.
Assim, nos termos do seu n.º1, são obrigatoriamente comuns a todos os condóminos: o solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração; as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos; as instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.
E, nos termos do seu n.º2, presumem-se ainda comuns: os pátios e jardins anexos ao edifício; os ascensores; as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro; as garagens e outros lugares de estacionamento; em geral, as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.
Decorre do n.º1 do citado preceito a enumeração imperativa das partes comuns, no sentido de que são forçosamente comuns a todos os condóminos, não podendo o título constitutivo dispor de modo diferente, enquanto no seu n.º2 se refere, de modo não taxativo, as partes que são presumidamente comuns. Nestas, trata-se, como refere João Alves, in “Propriedade Horizontal”, 2011, Coimbra Editora, pág. 63, de “partes meramente instrumentais do fim a que se destina o edifício, a sua inexistência não contende com o regime da propriedade horizontal”.
Daí a extrema importância do título constitutivo da propriedade horizontal para todos aqueles que venham a adquirir a propriedade de frações autónomas, como chamam à atenção Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, pág. 411, pois que “ o negócio jurídico de constituição da propriedade horizontal opera a modificação do estatuto real a que o imóvel se encontra sujeito, extinguindo o direito de propriedade normal e constituindo, em sua substituição, um direito real novo. Com a constituição da propriedade horizontal, o edifício fica juridicamente dividido, mesmo em relação ao proprietário, em várias frações autónomas, com individualidade jurídica própria.”
E uma vez constituída a propriedade horizontal, o título constitutivo ( sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º -A e do disposto em lei especial , que ao caso não importa), só pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, desde que haja acordo de todos os condóminos ( art.º 1419.º/1 do C. Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de julho, vigente a partir de 2009-01-01).
3.1.2. No caso concreto, a constituição da propriedade horizontal do edifício em causa ocorreu por declaração negocial da proprietária Sociedade de Construções …, Lda”, que o construiu, da qual o A. marido e um seu Irmão, eram os únicos sócios.
E da escritura de constituição da propriedade horizontal, realizada em 8 de novembro de 1976, fls. 29 a 31 do Livro nº 218-C do então 15º Cartório Notarial de …, consta que a permilagem das referidas frações é de 17%º para a “A”, de 5%º para a “B” e de 13%º para as “C” a “H” (documento de fls. 10 a 14).
E nela consta ainda que «o prédio é constituído pelas frações autónomas a seguir individualizadas pelas letras A (…); B – rés do chão, destinado a escritório ou “atelier”, composto de uma divisão e sanitários (…); C (…); D (…); E (…); F (…); G (…); H (…).
Que são comuns a todas as frações, exceto à designada pela letra “A”, a entrada principal, vestíbulo e escada geral; e que são comuns a todas elas as restantes partes do prédio não individualizadas, incluindo as dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, que se localizam no rés do chão e se compõem de uma casa assoalhada, cozinha, casa de banho e logradouro» ( nosso sublinhado).
Por isso, não podem restar dúvidas de que as dependências destinadas ao uso e habitação da porteira constituem partes comuns do edifício, porque assim o declararam expressamente no título constitutivo, afastando a eventual presunção legal, ou seja, quanto a esta questão o título constitutivo da propriedade horizontal declara expressamente que essas dependências são comuns a todas as frações do edifício, afastando qualquer demonstração em sentido contrário.
Ora, se assim é, entendemos que as partes comuns definidas no titulo constitutivo, enquanto tal, mantém-se inalteradas, sendo insuscetíveis de modificação por ação individual, própria e autónoma dos proprietários das frações, só podendo ocorrer por acordo de todos os condóminos, inexistente no caso concreto, por força do citado art.º 1419.º/1 do C. Civil.
Com efeito, como realça Aragão Seia, in “Propriedade Horizontal- Condóminos e Condomínios”, 2.ª Edição, pág. 55/56, “ o n.º1 do art.º 1419.º é imperativo ao exigir o acordo de todos os condóminos para a modificação do título constitutivo, afastando a possibilidade do suprimento judicial do consentimento – art.º 1425.º, do CPC, que, por natureza excecional, só vigora nos casos em que a lei o estabelece. Por isso, se não houver acordo, não é viável a modificação do título constitutivo”.
E prossegue o Autor, pág. 57 que, “Do que fica referido terá de se concluir que não é possível modificar o título constitutivo por meio de decisão judicial mas, apenas, frisa-se mais uma vez, por meio de escritura pública, havendo acordo de todos os Condóminos ( sublinhado nosso).
E isto quer a decisão seja de suprimento judicial, como já se viu, quer tenha por finalidade o tribunal substituir-se à recusa de um condómino, após deliberação por unanimidade, a outorgar a respetiva escritura pública para alterar o título. E que, neste caso, a deliberação tomada, tem caráter obrigacional e, como tal, não sendo caso de execução específica - n.º 1, do artigo 830.° -, não pode ser objeto de intervenção do tribunal para ser executada, podendo até ser revogada por simples deliberação maioritária”.
Também Ana Sofia Gomes, in “ A Assembleia de Condóminos”, 2011, Quid Juris”, pág. 90, entende que caso não haja acordo por parte de todos os condóminos, a alteração ao título constitutivo não pode realizar-se, considerando a única exceção a prevista no n.º4 do art.º 1422.º-A. Nesse sentido, esclarece a Autora, “salva esta exceção, não havendo unanimidade, não é possível alterar o título constitutivo, nem mesmo pelo recurso à via judicial, pois na falta de acordo, mantém-se o anterior título constitutivo , dada a natureza imperativa da norma constante do art.º 1419.º do Código Civil”.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão de 03-10-2006, do S. T. J., relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, “A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efetuada de acordo com o preceituado no art. 1419.º, n.º 1, do CC, e nunca através de decisão judicial.”
Caminho igualmente seguido no Acórdão do STJ, de 21/11/2006, Proc. n.º 06ª3493 ( Nuno Cameira), disponível em www.dgsi.pt, onde pode ler-se:
“Constatando-se a inexistência de acordo de todos os condóminos em ordem à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, afigura-se incontestável que o acolhimento do pedido da autora visando tal modificação, implicaria frontal violação da norma do art.º 1419.º/1 do CC, que é de natureza imperativa; implicaria, mais precisamente, a obtenção de um resultado em fraude manifesta a essa disposição legal, de que o tribunal seria o instrumento. A situação jurídica do prédio, enquanto objeto de um direito real, eficaz erga omnes, define-se pelo título constitutivo e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional; menos ainda, pelo projeto de construção do edifício, ainda que aprovado pela autoridade administrativa competente”.
Orientação também partilhada no Acórdão do STJ, 20/10/2011, Proc. n.º 369/2002 (Martins de Sousa), disponível em www.dgsi.pt, onde se entendeu que “a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efetuada de acordo com o preceituado no art.º 1419.º, n.º1, do CC, e nunca através de decisão judicial”.
Este tem sido, aliás, o entendimento, que cremos maioritário, da nossa jurisprudência, à qual aderimos, por traduzir a interpretação mais adequada do texto legal citado e em consonância com o seu espírito ([1]) ( [2]).
Na realidade, independentemente de se questionar a forma de alteração do título constitutivo ( escritura pública, documento particular ou decisão judicial), a verdade é que a questão formal não pode olvidar a questão substantiva, isto é, a manifestação de vontade de todos os condóminos, ou usando a expressão legal - o acordo de todos os condóminos - quanto à sua alteração.
E faltando esse acordo, não podem os Autores, como pretendem, obter, por decisão judicial, a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal do referido edifício, de modo a que as dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, que se localizam no rés do chão, passem a integrar e fazer parte da sua fração “B”, passando a ter uma finalidade diversa – habitação.
Repare-se que mesmo quanto à fração “B”, o título constitutivo não é omisso quanto ao fim a que se destina - rés do chão, destinado a escritório ou “atelier”, composto de uma divisão e sanitários- , pelo que qualquer alteração sobre o seu fim carece de autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio – art.ºs 1422.º/2, al. c) e 4 do C. Civil.
A alteração pretendida pelos Autores configuraria, sem dúvida, como se afirma no supra citado Aresto do STJ de 21/11/2006, a obtenção de um resultado em fraude manifesta a essa disposição legal, bem como uma fraude à lei, na medida em que conseguiriam por esta via contornar a exigência regulamentar de existência de instalações destinadas à porteira, para aprovação do projeto de construção, facto que é expressamente reconhecido pelos Autores nas suas alegações, ao afirmarem:
“Convirá, neste passo e a esse propósito esclarecer que tanto em relação ao prédio dos autos, como a outro – o nº … da mesma Rua – contíguo e estruturalmente igual, de que os Irmãos … (pela Firma de ambos, “Sociedade de Construções …., Lda”) foram também e na mesma altura construtores, sempre entenderam que a existência no(s) respetivo(s) projeto(s) de um apartamento destinado a porteira (e que por assim ter sido licenciado veio a figurar como tal na escritura de propriedade horizontal) mais não era do que uma exigência burocrática, como que um “pró forma”, para dar satisfação a algum regulamento camarário…”.
Por esta razão, a ação teria de improceder.
3.1.3. Todavia, e ainda que outro fosse o entendimento quanto à aquisição por usucapião, pela manutenção da posse, quanto as partes presuntivamente comuns, importa acrescentar o seguinte:
Nos termos do art.º 1251º do C. Civil, “posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Como é sabido e consabido, e segundo a doutrina tradicional, esta disposição, conjugada com o art. 1253º, al. a), consagram a conceção subjetiva da posse, segundo a qual para a existência de uma situação possessória é necessário simultaneamente dois elementos essenciais: o corpus , elemento objetivo - situação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor; e o animus –elemento subjetivo, a intenção do detentor de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa . Sem corpus não haverá posse porquanto falta a atuação de facto correspondente ao exercício do direito e sem animus não haverá posse, porque falta a intenção da titularidade do direito. (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob citada, pág. 5.
Quando se refere no Acórdão do S. T. J. de 6/2/2007, Proc. n.º 06A4036, quando se fala em posse jurídica quer-se dizer posse verdadeira e própria, e não simples detenção; posse, portanto, integrada por corpus e animus possidendi, isto é,por atos materiais praticados com intenção correspondente ao conteúdo de certo e determinado direito real ( art.º 1251.º do C.C.).
A posse adquire-se, entre outros, pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito ou por inversão do título da posse – art.º 1263.º, als. a) e d) do C. C.
“A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião” – art.º 1287.º do C. C.
Ora, a verdade é que os Autores não têm efetivamente posse jurídica das dependências destinadas à casa porteira, correspondente ao exercício do direito real de propriedade, actuando antes na qualidade de comproprietários sobre essa parte comum, sendo a respetiva posse correspondente ao exercício desse direito, ou seja, a sua posse foi exercida de forma correspondente ao exercício do direito real de propriedade, de que são também contitulares, visto que na propriedade horizontal, na palavras de Luís A. Carvalho Fernandes, existe uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele.
E não foram demonstrados factos que sejam susceptíveis de integração do conceito legal de inversão do título da posse, mediante oposição dos Autores, enquanto detentores do direito, contra os restantes condóminos, o que sempre os impediria de adquirir para si, por usucapião, a propriedade exclusiva dessa parte comum, ( art.º 1265.º e 1290.º do C. C.).
Pelo que também por esta via a ação teria de improceder.
Apesar disso, repete-se, atenta a especialidade do regime jurídico da propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre frações autónomas, tal como estão individualizadas no título constitutivo, não quanto às partes comuns, e enquanto o título constitutivo não seja modificado, por acordo de todos os condóminos, mediante escritura pública ou documento particular autenticado, nunca por decisão judicial.
Daí a sua insusceptibilidade de ser adquirida pelo instituto da usucapião, como pretendem os apelantes e, por essa via, conseguir a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.
Dito doutro modo, não pode ser adquirido o direito real de propriedade, por um dos condóminos, por usucapião, tendo por objeto uma parte comum do edifício, nomeadamente a dependência destinada ao uso da porteira e assim destinada pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Neste sentido se tem pronunciado, maioritariamente, a jurisprudência, como se poderá constatar, entre outros, pelos Acórdãos do S. T. J. de 20/10/2011, Proc. n.º 369/2002.E1.S1; de 15/11/2011, Proc. n.º 718/03.6TBPNI.L1.S1 e de Ac STJ de 13/12/2007 , proc. n.º 07ª3023.
Com efeito, escreveu-se no primeiro dos arestos citados, que acompanhamos:
“Com as restrições derivadas não do domínio mas do figurino desenhado para este direito novo de propriedade horizontal, as partes que são objeto de direito de propriedade, exclusivo, por banda dos condóminos, são as frações autónomas, e apenas elas, tal como são especificadas, imperativamente, no título constitutivo (artº1420º,1 e 1418º do citado diploma); o restante edifício porque afetado ao uso comum dos diversos condóminos é objeto da compropriedade de todos, exceto se o título dispuser o contrário, isto é, se atribuir o uso exclusivo de partes comuns a um desses condóminos (mencionado artº1421º,1 ou 2 e al.e) deste último número).
Deste quadro estrutural derivam inferências inevitáveis: quanto à situação jurídica do imóvel que precedeu a propriedade horizontal deixa ela de ser invocável face à transformação operada nos direitos constituintes por este novo instituto e a natureza real de seu título constitutivo; após a constituição da propriedade horizontal, só as frações individualizadas no título constitutivo é que podem ser reconhecidas como tal e só essas podem ser objeto do direito de propriedade exclusiva dos condóminos.
…
Independentemente de saber-se se os atos materiais de posse que a prova denunciou se enquadram ou denunciam aquele comportamento equivalente ao do condómino, certo é que tais atos, reiterados, publicitados, traduzindo, ao longo do tempo, atos materiais de gozo e fruição das referenciadas arrecadações, como sendo a expressão de um direito próprio, configuram, sem sombra de dúvida, uma situação possessória que, todavia, neste domínio da propriedade horizontal, não se constitui como fonte aquisitiva de direitos (usucapião), se não se situar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra, nunca a extravasando (art. 1263.º-a) do CC – cfr no site da DGSI, o acórdão deste Tribunal e secção, de 13.12.2007, proferido no Pº07A3023 (Conselheiro Mário Cruz) -, sob pena de implosão de o seu regime legal.
Na verdade, como se já viu acima, as arrecadações reclamadas como propriedade exclusiva pelos Recorrentes, em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal, integram as partes comuns do edifício, se bem que o seu uso exclusivo pertença às frações C a N.
A atuação que sobre elas recaiu bem como a pretensão dos Reconvintes de sobre elas reclamarem a sua propriedade exclusiva deixam claro o seu propósito de alterar aquele título constitutivo que, desse modo, é adulterado quanto à composição das partes comuns e ao numerus clausus das respetivas frações autónomas.
Sucede que, como já se referenciou acima, na propriedade horizontal o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre frações autónomas, tal como estão individualizadas no título constitutivo (arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC.). E assim será até que tal título seja objeto de modificação (artº1419º,1 do CC).
…
Em consequência, e tal como se concluiu no citado Acórdão deste Tribunal de 13.12.2007, não pode operar aqui a usucapião para adquirir a propriedade sobre as mencionadas arrecadações “na medida em que esse objetivo é legalmente impossível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, área em que o Tribunal não pode atuar porque se exige acordo prévio de todos os condóminos”.
Nesse sentido, a eventual demonstração da posse em nome próprio também seria inadequada ao resultado pretendido.
3.2. Abuso de direito.
Dizem os Autores que o facto de ficar provado, por mais de três décadas, com implícita anuência dos condóminos que entretanto deixaram de o ser (e que a tal respeito nunca levantaram qualquer problema) e muito pouca, para se não dizer nenhuma, reação contrária por parte dos atuais condóminos (traduzida apenas na recusa de alterarem o título), a atitude que estes últimos vieram assumir e a pretensão que deduziram na presente demanda (contrária a todas as expectativas que por sua inércia deixaram criar) reconduz-se notoriamente aquele “venire contra factum proprium” que sempre paralisaria esse desiderato.
Este argumento não pode, obviamente, proceder.
Na verdade, como flui do art.º 334.º do C. Civil, apenas será ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ensina Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, 2ª Edição, 2000, Almedina, pág. 249/251, que “a conceção geral do abuso de direito postula a existência de limites indeterminados á atuação jurídica individual. Tais limites advêm de conceitos particulares como os de função, de bons costumes e da boa-fé”. E integra nessa categoria o venire contra factum propium, que exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 300, acentuam que “a nota típica do abuso de direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.”
E ensina o Professor Almeida Costa, ob. tid. Pág. 83, que “ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social”. E acrescenta, “os efeitos do abuso de direito equiparam-se aos da pura falta de direito”.
Para o Professor Vaz Serra ([3]) : “Há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”.
A este propósito, citamos o que se escreveu no Acórdão do S.T.J., de 28/06/2007, Proc. n.º 07B1964, in www.dgsi.pt: “O abuso de direito na sua vertente “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convição criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe, que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”.
Em resumo, para que se verifique abuso de direito é necessário que a pessoa a quem tal direito assiste, em termos formais, nas circunstâncias concretas do seu exercício, o exerça de modo que, face aos valores consagrados na lei, constitua manifesta injustiça.
No caso em apreço, os Réus adquiriram as respectivas fracções em 21/11/1995 (“C”), 05/04/2004 (“E”), 04/12/2001 (“F”) e 06/04/2005 (“G”), razão pela qual não lhes poder ser atribuída qualquer responsabilidade pela situação anteriormente criada – integração na fracção “B” das dependências destinadas à porteira - e ao serem confrontados com esse facto, a partir dessa altura, ou seja, com a ocupação de uma parte comum, como tal qualificada pelo título constitutivo, não aceitaram essa circunstância, nem actuaram de modo a criar a legítima convição nos Autores de que abdicariam dessa parte comum do prédio, não sendo, portanto, obrigados a tolerar essa situação.
É, pois, manifesta, a falta de razão dos recorrentes, quanto à invocação do exercício abusivo do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Porém, têm razão os apelantes no que respeita à sua condenação na restituição da referida casa da porteira aos Réus, devendo antes ser entregue ao condomínio, dada a natureza de parte comum.
Resumindo, improcedem todas as conclusões do recurso, salvo no que respeita à entrega da casa da porteira ao condomínio, e não aos Réus como foi decidido.
Vencidos no recurso, suportarão os apelantes as respetivas custas – art.º 527.º/1 do C. P. Civil.
I – As partes comuns do edifício definidas no titulo constitutivo da propriedade horizontal, nomeadamente as instalações destinadas à casa da porteira, mantém-se inalteradas, sendo insuscetíveis de modificação por ação individual, própria e autónoma dos proprietários das frações, apenas podendo ser alterado desde que haja acordo de todos os condóminos, nos termos do art.º 1419.º/1 do C. Civil.
2. Não pode ser adquirido o direito real de propriedade, por um dos condóminos, por usucapião, tendo por objeto uma parte comum do edifício, como é o caso da dependência destinada ao uso da porteira e assim destinada pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida apenas na parte que condena os Autores a restituir aos Réus as mencionadas dependências destinadas ao uso e habitação da porteira, sendo apenas condenados a fazer essa restituição ao condomínio do prédio, mantendo-se no mais o decidido.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 2014/04/03
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Tomé Almeida Ramião ( Relator)
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Vítor Amaral
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Fernanda Isabel Pereira
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([1]) Neste sentido, e sem pretender ser exaustivo, o Acórdão do STJ de 11/6/1986, Bol. 358.º- 529: 1 - O título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os interessados - art. 1419.°, n.° 1 do CC -, não podendo o referido título ser alterado por decisão judicial. II - Isso verificar-se-ia se a pretexto de se anular total ou parcialmente o título, se declarasse que uma fração, que pelo título é autónoma, passasse a constituir parte comum dos condóminos.
Acórdãos do STJ de 17/11/89, Bol. 383.º, 548; da Relação de Lisboa de 4/10/1990, Col. Jur. XV, 4, 136, e de 12/6/1984, Col. Jur. IX, 3,151, da Relação do Porto de 13/5/1999, Col. Jur., XXIV, 3, 183, de 20/11/1995, Col. Jur. XX, 5, 208, e de 3/11/1998, Bol. 381, 751, da Relação de Coimbra de 11/6/1991, Bol. 408, 663, e da Relação de Évora de 10/10/1991, Bol. 410, 904; e mais recentemente, Acórdãos da Relação de Lisboa, de 28/05/09, Proc. n.º 9759/08.8 e de 15/11/2011, Proc. n.º718/03.6TBPNL.L1S1; Acórdão da Relação do Porto de 11/06/07, Proc. n.º0752276, da Relação de Coimbra de 22/04/08 , Proc. n.º97/04.4TBVN-C1, e da Relação de Évora de 15/12/09, Proc. n.º 717/06.TBABTEI, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
([2]) Em sentido contrário, ou seja, da possibilidade judicial de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, se pronunciou o Acórdão desta Relação de Lisboa, de 20/11/2007, Proc. n.º 5404/2007-7 ( Rosa Ribeiro Coelho), onde se entendeu que “ nada obsta a que na propriedade horizontal existam, no âmbito do que é presuntivamente comum, partes que integrem uma compropriedade restrita de, apenas, alguns condóminos. A exigência legal de escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos, para alteração do título constitutivo da propriedade horizontal respeita apenas à forma e declarações de vontade exigíveis para alteração negocial da propriedade horizontal. Esta exigência não pode impedir o funcionamento das normas legais atinentes à usucapião. Este resultado só pode ser alcançado se houver inversão do título de posse, que exige que os atos materiais capazes de conduzir à usucapião signifiquem inequivocamente de quem detém a coisa em nome alheio quer passar a possui-la só para si”.
Assim também os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.04.09, Proc. n.º 3275/07.OTLSB-7 e de 20.05.10, Proc. n.º1727/07.1TVLSB.L1-6 ( Carlos Valverde); e Acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 16/12/2009, Proc. n.º 811/07.6TBCHV.P1 ( Canelas Brás), disponíveis em www.dgsi.pt.
([3]) Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência 111ª, p. 296.