CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DECLARAÇÃO DE VENDA
DEVER ACESSÓRIO
REGISTO
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
CULPA IN CONTRAHENDO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário

1. Constitui dever acessório do vendedor a emissão por escrito de declaração de venda, necessária para que o comprador possa inscrever no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade.
2. Não pode ser considerada meramente instrumental a intervenção no contrato de compra e venda do banco financiador – ao adquirir a um terceiro, a pedido do financiado, um veículo que depois vendeu a este a crédito – pois que foi ele quem efectivamente adquiriu a viatura ao terceiro e fê-lo para salvaguardar um interesse seu em reservar para si a propriedade da mesma na venda que posteriormente realizou.
3. Competia por isso banco financiador, aquando da aquisição da viatura ao terceiro, certificar-se da sua regularidade registral e exigir deste a entrega dos respectivos documentos.
4. Ao não entregar ao comprador os documentos necessários ao registo da viatura em nome deste num prazo razoável (sempre inferior a 60 dias, por ser este o prazo máximo previsto na lei para ser requerida a realização do registo – art. 42º, n.º 1, do Decreto n.º 55/75, de 12/02), entrou em situação de mora, a qual que se transformou em incumprimento definitivo, por perda de interesse na manutenção do negócio por parte daquele.
5. A "culpa in contrahendo" cobre três áreas: a dos deveres de protecção, a dos deveres de informação e a dos deveres de lealdade.
6. Não se tendo apurado que o banco financiador tenha mandatado o financiado para tal, não se pode fazer recair sobre este o dever de se ter certificado da situação registral da viatura.
7. Perante a situação criada, uma actuação diligente do banco réu exigiria da sua parte uma imediata concertação com o ora autor e o exercitar do direito à resolução ou anulação do contrato celebrado com o chamado e não fazer recair sobre o autor todas as consequências negativas decorrentes do contrato de compra e venda: adquiriu e pagou ao vendedor o preço de um bem, sem que, do ponto de vista legal, possa utilizar o mesmo na via pública.
8. Não se tendo provado ter o autor assumido qualquer atitude susceptível de criar confiança no réu de que tinha verificado a documentação da viatura ou que tivesse feito crer ou dado a entender a este que estaria na disposição de adquirir sem a documentação necessária para poder circular com a mesma, nada tem de ilegítimo o exercício do direito à resolução do contrato de compra e venda por parte do autor (comprador).

(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. BS, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo sumário contra Banco …, SA, peticionando que:
- seja considerado nulo e de nenhum efeito o contrato de venda a crédito celebrado entre autor e réu;
- seja o réu condenado a devolver ao autor todas as quantias liquidadas no âmbito daquele negócio, no montante de € 6.619,74;
- caso assim não se entenda, seja declarado resolvido o contrato celebrado entre as partes e seja o réu condenado a devolver ao autor todas as quantias liquidadas no âmbito daquele negócio, no montante de € 6.619,74;
- seja o réu condenado a pagar ao autor indemnização a título de danos não patrimoniais, no montante de € 20.000,00.
Alegou, em síntese, que em 31 de Janeiro de 2008 celebrou com o réu um contrato de venda a crédito que teve por objecto um veículo de marca R…, com a matrícula…, nos termos do qual o réu vendeu ao autor aquele veículo pelo preço de € 12.662,11, que pagou em 66 prestações mensais, sendo a última de Janeiro de 2010; que o contrato em causa é regulado pelo D.L. n." 359/91, de 21-09, sendo nulo, por não prever as condições de reembolso do crédito e por incidir sobre bem alheio; que algumas semanas após a celebração do mencionado contrato veio o autor a descobrir que o veículo, em causa, não se encontrava registado nem em nome do réu, nem em nome do vendedor do veículo, PS, mas em nome de um terceiro, o …, Instituição Financeira de Crédito SA., sendo por isso um bem alheio; que caso se entenda não ser nulo o contrato em referência, por carta remetida ao réu, resolveu o dito contrato, porquanto este último não lhe entregou os documentos do mesmo veículo; que o réu só lhe entregou autorizações de circulação provisórias, sendo a última de Março de 2009; que, por essa razão, não pode circular com o veículo de forma regular, tendo em Dezembro de 2009 sido autuado pela PSP, não lhe tendo igualmente sido possível realizar a inspecção obrigatória do veículo; que foi condenado numa coima de €250,00, devendo ser indemnizado pelo réu nesse montante; que perdeu interesse na prestação a efectuar pelo réu; que a não regularização da situação do veículo provocou-lhe enorme angústia e com receio de ser objecto de fiscalização rodoviária; e que deve ser indemnizado numa quantia não inferior a €20.000,00.
O réu contestou, tendo impugnado parcialmente o alegado pelo autor.
Alegou ainda que interveio na venda a título instrumental, adquirindo o veículo a pedido do autor, seu cliente; que o Banco interveio para proporcionar o instrumento financeiro (contrato de venda a crédito com reserva de propriedade); que a questão da obtenção de documentação era da responsabilidade do autor e do fornecedor/vendedor; e que é abusiva e de má fé a pretendida resolução do contrato, o qual continua na posse do veículo.
O réu requereu ainda a intervenção provocada do vendedor do veículo, PS, nos termos dos arts. 325º e 330º do CPC.
Pelo despacho de fls. 100/101 foi admitido o incidente de intervenção acessória provocada de PS.
Este deduziu contestação, na qual invocou a excepção dilatória da litispendência (atenta a pendência da acção n.º 5576/08.1TBVNG, na qual o autor peticiona a sua condenação no reconhecimento da nulidade do negócio em causa e numa indemnização por danos morais) e impugnou parcialmente os factos alegados pelo autor, descrevendo a sua versão do sucedido.
Respondeu ao autor à excepção dilatória invocada pelo chamado, concluindo pela sua improcedência.
No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória da litispendência invocada pelo chamado, não se tendo procedido à fixação da matéria de facto.
A fls. 362 o autor veio ampliar o pedido formulado nos autos (do montante de € 6.619,74) para o montante total de € 10.981,99, o qual foi admitido pelo despacho de fls. 375.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar parcialmente procedente a presente acção provada e, em consequência:
- Declarar validamente resolvido pelo autor, a 20-01-2011, o contrato celebrado pelas partes, com a denominação "Contrato de Venda a Crédito" a que foi atribuído o n." 2008001320.
- Condenar o réu a pagar ao autor uma indemnização a título de danos não patrimoniais, no montante de € 8.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, ocorrida a 01-02-2011, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais peticionado.
- Condenar o interveniente PS a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito estabelecidos na presente decisão judicial, nos termos, para os efeitos e com os limites mencionados nos arts. 341 ° e 332°, n." 1 e n." 4 do C. Processo Civil (actuais arts. 323° e 332° do CPC).
- Condenar o autor e o réu no pagamento das custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em metade para cada um - art. 527° do C. Processo Civil.
- Condenar o interveniente PS, no pagamento das custas do processo, nos termos do art. 538° do C. Processo Civil e do art. 13°, n.º 7, al. c) e Tabela I-B do RCP.
Inconformado, veio o réu interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
a) Atenta a configuração da acção conforme a sentença a entende, resulta patente que ela, assenta, formal e substantivamente, na impossibilidade de inscrição de propriedade da viatura dos autos a favor de PS ("fornecedor"/vendedor do veículo) e inscrição da subsequente transmissão a favor do Banco-R. e, por sua vez, deste para o A., com reserva de propriedade;
b) Da matéria fáctica provada, resulta inequívoco que ao Banco-R., não pode ser assacada qualquer responsabilidade, nem, por omissão, nem por conduta negligente, já que interveio na operação de compra da viatura a título instrumental, tendo-a adquirido a pedido do seu cliente, o A.;
c) Foi este quem, decidiu adquirir aquela viatura em concreto, como foi ele que negociou o preço e demais condições, com o vendedor, tendo entrado na sua posse e passado a utilizá-la, em exclusivo, a partir de então;
d) O A., assumiu pois o risco de transmissão da viatura, certificando-se da conformidade desta aos fins desejados, quando menos, não podendo fazer repercutir, em exclusivo sobre o Banco-R., os riscos do negócio por ele pretendido;
e) A intervenção do Banco teve natureza exclusivamente financeira, de que os aspectos formais do negócio, mormente a inscrição da propriedade da viatura a seu favor, constituíam meros auxiliares da sua concretização, pelo que o direito de propriedade sobre ela transmitiu-se por mero efeito daquele contrato;
f) Dai que o Banco recorrente desconhecesse a situação registral do veículo e não estivesse sequer obrigado a conhecê-la, dada a natureza do negócio firmado com o seu cliente;
g) Desta sorte, andou mal a sentença ao decidir no sentido de que o A. resolveu validamente o contrato, uma vez que, fundando-se tal direito de resolução num acto ilícito, a saber, no incumprimento culposo da outra parte, não se vê como e em quê, se traduz, no caso, tal incumprimento culposo do Banco-R.;
h) Pelo contrário, a pretendida resolução do contrato, consubstancia manifesto abuso de direito (art.º 334.° CC), na modalidade de "venire contra factum proprium" pois esse regime é ininvocável pelo A., atento o referido quadro negocial;
i) De resto, nunca tomou o A., qualquer iniciativa no sentido de "entregar" a viatura ao Banco-R., pelo contrário, continuou, por sua livre opção, na sua posse e utilização;
 j) Não existe pois fundamento, nem de facto, nem de direito para a sentença ter fixado "in casu" a indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 8.000,00, tanto mais tendo apenas dado por provado "que a impossibilidade de regularizar a situação jurídica do veiculo, bem como, as consequências que lhe estão associadas, provocaram no autor uma enorme e justificada angústia, que se prolonga desde pelo menos, 2009. Esta angústia traduz-se num sofrimento psicológico, atingindo bens imateriais como a saúde e o bem estar do autor";
l) É que, nem se provou que a impossibilidade de regularizar a situação registral do veículo radique em incumprimento culposo do Banco; nem se percebe e justifica a invocação da angústia prolongada desde 2009, quando o facto é que foi o A. que optou por manter o veículo e por o utilizar; não foi o Banco-R., que o obrigou a prolongar essa posse, contra a sua vontade; nem se percebe e justifica a invocação dos danos à saúde e bem estar do autor quando o único facto provado e atendível nesta sede (danos não patrimoniais) foi o constante do artigo 70° da PI: "Provado que - A não regularização do veiculo provocou no autor uma enorme angústia" - o que é um juízo conclusivo - " dado o receio de vir a ser alvo de fiscalização rodoviária": este o único facto concreto apurado;
m) Mesmo que assim não se considerasse, o facto do autor ter ficado angustiado nas circunstâncias fácticas que resultaram provadas, não assume, no caso concreto, uma gravidade que mereça a tutela do direito, nos termos do art. 496° n.º 1 do CC;
n) Acresce que no contexto descrito, o quantitativo indemnizatório fixado sempre seria francamente exagerado e totalmente desenquadrado dos valores jurisprudencialmente praticados;
o) Nestas circunstâncias e, note-se, tendo o Banco-R. sido absolvido dos pedidos de pagamento de danos patrimoniais e, perante a imaterialidade destes outros danos em presença, não tendo ainda a indemnização dos danos não patrimoniais por escopo a sua reparação económica, mas tão só compensar o lesado pelo dano sofrido, proporcionando-lhe uma quantia pecuniária que lhe permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão, afigura-se, de todo, injustificada, a indemnização fixada;
p) Encontra-se, pois, de todo em todo, ilidida, qualquer prova ou presunção de culpa que onerasse o Banco recorrente;
q) Como tal, é a conduta do Banco, insusceptível, causalmente, de poder produzir os danos não patrimoniais fixados, que além do mais e por mera cautela de patrocínio, se reputam no mínimo, manifestamente exagerados, e, ao arrepio de toda a jurisprudência nacional sobre a matéria;
r) Face ao disposto no artigo 496° do C.C., há que ter "em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida";
s) Regras conformadoras de que a sentença recorrida se afastou radicalmente, daí que mereça a censura que o Banco apelante aqui preconiza.
t) A sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação as normas constantes dos artigos 483, n.º 2 e 798°, 562°, 490 e 496, n.º 1 do C. Civil.
Termina pedindo seja a apelação julgada procedente, sendo a sentença recorrida revogada, absolvendo-se o Banco recorrente.
O autor apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
A) A intervenção do Recorrente no contrato dos autos foi principal, enquanto vendedor do veículo, sendo sua a obrigação de garantir a conformidade daquele bem com os termos contratuais firmados com o Recorrido.
B) O contrato de venda do veículo foi validamente resolvido pelo Recorrido, face ao incumprimento contratual culposo do Recorrente.
C) A entrega ou não entrega do veículo pelo Recorrido não consta da matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, pelo que não poderá ser apreciada em sede de recurso sem que haja impugnação da matéria de facto.
D) Os danos causados ao Recorrido pelo incumprimento contratual culposo do Recorrente merecem a tutela do Direito, pelo que devem ser objecto de indemnização, verificados que estão os demais requisitos legais da obrigação de indemnizar.
E) O quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo mostra-se conforme com a situação de facto concreta apurada e, bem assim, com os parâmetros estabelecidos pelo n.º 4 do art.º 496.° e pelo art.º 494.°.
F) Devendo pois o recurso apresentado pelo Recorrente ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se na íntegra a decisão a quo.
Termina pedindo seja o recurso julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. São os seguintes os factos considerados provados:
1. Entre o autor e o réu Banco …, SA foi celebrado, a 31-01-2008, contrato de venda a crédito de um automóvel ligeiro de marca R..., modelo C..., com a matricula…, cfr. doc. a fls. 15/17.
2. Nos termos daquele contrato o réu vendeu ao autor o mesmo automóvel pelo preço total de € 12.662,11, que deveria ser pago em 66 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no montante de € 338,10 e as seguintes no montante de € 174,49, cfr. doc. a fls. 15/17.
3. Prestações que o autor sempre liquidou, pontualmente, e que, a 04-02-2013, perfaziam o montante total de € 10.981,99, vide fls. 362/372.
4. O réu adquiriu a viatura, em causa, a pedido do seu cliente, o autor.
5. Foi o autor quem decidiu adquirir aquela viatura, a escolheu e negociou previamente com o respectivo vendedor - PS - o preço e demais condições.
6. Foi o autor que foi buscar a viatura a …, a 12-02-2008.
7. O réu adquiriu a viatura ao Sr. PS, em 28.01.2008, tendo-a vendido, com reserva de propriedade ao autor, em 31.01.2008, cfr. docs. a fls. 15/17 e 73.
8. Foi o Banco réu quem autorizou o chamado a entregar o veículo ao autor.
9. Após a celebração do contrato mencionado no art. 1° da pi, o autor veio a descobrir que o veículo por ele adquirido estava registado a favor de …- Instituição Financeira de Crédito SA, cfr. doc. a fls. 18.
10. Desde a celebração do contrato, em causa, que o autor, na pessoa da sua companheira, AM, tem vindo a insistir junto do Balcão do réu, da…, onde o negócio se firmou, para que o réu regularizasse a situação do veículo.
11. Tais insistências têm sido efectuadas quer presencialmente quer telefonicamente quer por escrito.
12. Só após a celebração, entre o Banco e o autor, do referido contrato, aquando da instrução dos competentes registos na Conservatória do Registo Automóvel, foi detectado que não só a viatura não estava registada em nome do referido PS, como se tratava de um "salvado" .
13. CB foi a pessoa que comprou o salvado.
14. O Banco réu solicitou a colaboração de PS, na obtenção da documentação necessária ao registo do veículo.
15. Contudo, não foi possível obter a assinatura, no competente modelo de registo, da pessoa que comprou o "salvado".
16. Os únicos documentos que o réu entregou ao autor foram autorizações de circulação provisórias, sendo que a última lhe foi entregue em Março de 2009.
17. Em Dezembro de 2009, o autor foi sujeito a uma operação de fiscalização levada a cabo pela PSP, enquanto circulava com o veículo em causa.
18. O autor foi notificado para apresentar o certificado de matrícula do mesmo veículo, no prazo de 8 dias.
19. O que não pôde fazer porquanto não tinha esse documento em seu poder.
20. Pelo mesmo motivo, não apresentou o veículo à inspecção obrigatória na data estabelecida para tal, tendo os agentes fiscalizadores instaurado um processo de contra-ordenação contra o autor.
21. Tendo o autor pago uma coima, no montante de € 250,00.
22. Por carta de 20-01-2011, dirigida pelo autor ao réu Banco …, SA, o primeiro declarou, nos seguintes termos: "Neste seguimento, e na medida em que até à presente data, e apesar das várias solicitações nesse sentido, V. Exas. não procederam á entrega ao meu cliente dos documentos relativos ao veículo supra identificado, o que até já originou processos contra-ordenacionais contra aquele, considera-se a partir da presente data o contrato supra identificado como resolvido. Efectivamente, a entrega dos documentos era uma obrigação da V. parte, e a sua omissão constitui V. Exas. em mora, mora essa que existindo desde a data da celebração do contrato foi causa da perda de interesse do meu cliente na prestação, considerando-se, para todos os efeitos legais, o contrato como resolvido. Mais se informa que a partir da presente data o meu cliente disponibiliza a V. Exas. o veículo aqui em causa o qual por via da resolução deverá ser devolvido a V. Exas. No mesmo sentido e na medida em que a ratio do contrato residia na transmissão da propriedade daquele veículo para o meu cliente, ora preterida, deverão V. Exas. devolver ao meu cliente tudo o que foi liquidado até ao momento por via da venda a crédito supra referida no montante de € 6.445,25 ( ... ) ", cfr. doc. a fls. 19.
 23. O autor tem uma situação económica precária, tendo sido com grande esforço que adquiriu o veículo em causa.
24. A não regularização do veículo provocou no autor uma enorme angústia, dado o receio de vir a ser alvo de fiscalização rodoviária.
25. O autor utilizava o mesmo veículo para se deslocar entre a sua casa e o local onde se encontrava a estudar.
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III. Nos termos dos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do N. C. P. Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se a saber:
- se nos encontramos em presença de uma coligação de contratos: de compra e venda e de crédito ao consumo;
- se assiste ao autor o direito à resolução desses contratos;
- se a actuação do autor, ao resolver os contratos, é abusiva;
- se assiste ao autor o direito a uma indemnização por danos não patrimoniais;
- se o montante indemnizatório fixado a esse título na sentença é excessivo.

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IV. Da questão de mérito:
Os factos apurados revelam a formação e subscrição de um contrato de crédito ao consumo (à data da sua outorga regulado no D.L n.º 359/91, de 21/09, com as alterações operadas pelos decretos-leis n.ºs 101/2000, de 2/6, e 82/2006, de 3/5 e, actualmente, regulado no D.L. n.º 133/2009, de 2/6) e, ainda, de um contrato de compra e venda, com reserva de propriedade a favor do vendedor, os quais mantêm uma ligação funcional entre si, pois, os sujeitos são os mesmos e o crédito mutuado serviu para financiar o pagamento do automóvel que foi objecto da compra e venda.
Trata-se de um financiamento pelo próprio vendedor e não de um crédito concedido para financiar a aquisição de um bem vendido por um terceiro.
Subsiste, pois, entre os aludidos contratos um nexo de relevância jurídica que se traduz em subordinação de um face ao outro, sob a égide de uma finalidade económica comum: é o que se chama de união ou coligação de contratos.

Na sentença recorrida entendeu-se assistir ao autor o direito a resolver esses contratos, face ao incumprimento definitivo do contrato de compra e venda do veículo automóvel por parte do vendedor (réu), atenta a falta de entrega dos documentos da viatura necessários ao registo do veículo em seu nome.
Diversamente, sustenta este (apelante) inexistir fundamento para a resolução dos contratos por falta de culpa da sua parte na não entrega dos documentos.
Vejamos.
Flui dos factos apurados que o autor decidiu adquirir o veículo automóvel ligeiro de marca R..., modelo C..., com a matrícula…, tendo negociado previamente com o respectivo vendedor – o chamado Paulo Soares - o preço e demais condições. Após, solicitou ao réu a aquisição da viatura para que este posteriormente lha vendesse, mediante a concessão de um financiamento.
O réu adquiriu então (a 28-01-2008) a viatura ao referido PS, tendo de seguida (a 31.01.2008) vendido a mesma ao autor, com reserva de propriedade e a crédito.
Os únicos documentos que o réu entregou ao autor foram autorizações de circulação provisórias, a última das quais em Março de 2009.
Só após a celebração do contrato entre o réu e o autor, este veio a descobrir que o veículo por si adquirido estava registado a favor de …- Instituição Financeira de Crédito SA. E só por ocasião da instrução dos competentes registos na Conservatória do Registo Automóvel, o réu detectou que não só a viatura não estava registada em nome do referido PS, como se tratava de um "salvado" que tinha sido comprado (ao …- Instituição Financeira de Crédito SA) por CB.
O autor passou então a insistir junto do Balcão do réu para que fosse regularizada a situação do veículo. Este solicitou então a colaboração de PS (chamado), na obtenção da documentação necessária ao registo do veículo, não tendo, porém, sido possível obter a assinatura, no competente modelo de registo, da pessoa que comprou o "salvado" .
Neste circunstancialismo, por carta de 20-01-2011, dirigida ao réu Banco …, SA, o autor resolveu o contrato, por perda de interesse na prestação, alegando a mora do réu na entrega dos documentos relativos ao veículo e que tal originou processos contra-ordenacionais contra si, tendo ainda declarado disponibilizar o veículo ao réu e dever este devolver o que tinha liquidado até ao momento por via da venda a crédito supra referida, no montante de € 6.445,25.
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Nos termos do art.º 874.º do Código Civil, compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, mediante um preço, tendo como efeitos essenciais (art.º 879.º do Código Civil):
a). a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b). a obrigação de entregar a coisa;
c). a obrigação de pagar o preço.
A transmissão da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, tendo o vendedor a obrigação de entregar a coisa.
Por sua vez, estabelece o art. 882º, nº2, do Código Civil que a obrigação da entrega da coisa que impende sobre o vendedor, abrange, “salvo estipulação em contrário”, a entrega ao comprador dos “documentos relativos à coisa ou direito”.
Trata-se de uma obrigação acessória que visa, fundamentalmente, propiciar o comprador as condições de fruir completamente o seu direito.
Essa mesma obrigação deriva dos chamados deveres secundários ou acessórios de conduta.
Na verdade, constitui dever acessório do vendedor a emissão por escrito de declaração de venda, necessária para que o comprador possa inscrever no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade – cfr. Ac STJ de 23/03/2006, in CJ-STJ 2006, tomo 1, pag. 150/153.
Com efeito, tratando-se de um veículo automóvel, embora a entrega dos documentos não seja requisito da transferência de propriedade, pois que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a forma, podendo validamente ser celebrado verbalmente, há uma exigência formal (documental) para fim registral, sendo aí exigida a declaração de venda emitida pelo titular do direito de propriedade (que consta do registo) sobre o veículo alienado.
Esse registo é indispensável para atribuir ao comprador a faculdade de poder dispor, como pretender, do bem, assim como apresentar-se regularmente credenciado perante as autoridades, uma vez que é proibida a circulação de veículos na via pública sem a correspectiva chancela.
Incumbia assim ao réu proceder à entrega dos documentos ao autor, obrigação que o mesmo incumpriu, entrando em situação de mora.
Esse incumprimento presume-se culposo (art. 799º, n.º 1, do C. Civil).

            Diz porém o apelante que a sua intervenção no contrato de compra e venda foi meramente instrumental, pois que adquiriu o veículo a pedido do autor, e que este não o contactou para que se certificasse da regularidade registral do veículo, mas sim para que lhe proporcionasse o instrumento financeiro (contrato de venda a crédito com reserva de propriedade) que possibilitasse a aquisição da viatura.
Vejamos.
Da factualidade apurada o que resulta é que foi o autor quem negociou com o possuidor e à data proprietário do veículo o preço de venda, mas não foi ele quem, do ponto de vista formal, adquiriu a viatura a este, mas sim o réu.
A intervenção do réu na compra da viatura ao chamado PS deveu-se ao seu interesse em reservar para si a propriedade da viatura na venda que posteriormente realizou ao autor. Isto, certamente, devido ao entendimento jurisprudencial, segundo o qual a cláusula de reserva de propriedade, sob pena de nulidade, só pode ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação e não em qualquer outro (ex: contrato de crédito ao consumo), pois que é sua característica essencial suspender os efeitos translativos inerentes a tal contrato.
Sendo assim, o réu não pode, por um lado, querer aproveitar-se do negócio da compra e venda que celebrou para dele retirar benefícios (reserva de propriedade a seu favor até ao pagamento do preço/montante do crédito concedido), mas, por outro, pretender que tudo se passa como se aquele contrato tivesse sido celebrado directamente entre o chamado (enquanto fornecedor do bem) e o autor.
Deste modo, também do ponto de vista substancial, o réu é o efectivo titular do interesse que no contrato de alienação a lei reserva ao vendedor.
Competia por isso ao réu, aquando da aquisição da viatura ao chamado, certificar-se da regularidade registral do veículo e exigir deste a entrega dos respectivos documentos.
Como se diz na sentença recorrida:
“(…)deveria ter sido antes de o ter adquirido ao chamado PS, que o réu se deveria ter informado e munido dos documentos necessários que lhe permitissem registar o veículo, em seu nome”.
E no caso em análise, para além da entrega do certificado de matrícula (art.º 9 do DL54/75, de 12/02), encontrando-se o veículo registado em nome de um terceiro, importaria que o chamado tivesse também entregue ao réu uma declaração de venda subscrita pelo titular inscrito no registo, o que não ocorreu, tendo-se limitado a entregar a declaração de venda que constitui fls. 73 dos autos (doc. 1 apresentado com a contestação).
O réu actuou assim de forma descuidada.
Dessa falta de cuidado derivou que só após a celebração do contrato de compra e venda entre o réu e o autor, aquele detectou, por ocasião da instrução dos competentes registos na Conservatória do Registo Automóvel, que não só a viatura não estava registada em nome do chamado PS, como se tratava de um "salvado" que tinha sido comprado (ao …- Instituição Financeira de Crédito SA) por CB.
Revelou, por isso, imprudência.
Deste modo, o réu não ilidiu a presunção de culpa que sobre si incide.
Consequentemente, ao não entregar ao autor os documentos necessários ao registo da viatura em nome deste num prazo razoável (sempre inferior a 60 dias, por ser este o prazo máximo previsto na lei para ser requerida a realização do registo – art. 42º, n.º 1, do Decreto n.º 55/75, de 12/02), entrou em situação de mora – art. 804º do C. C.
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Na declaração resolutiva o autor invocou ter perdido interesse na prestação.
Reza o art. 808, n.º 1, do C.C. que se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação, gerando o direito à resolução do contrato e à indemnização pelo seu incumprimento definitivo (arts. 801, ns. 1 e 2, 798, 432, 433).
A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.
Ora, tendo-se provado que o autor adquiriu o veículo automóvel para se deslocar de casa para o local onde estudava; que quase três anos volvidos sobre a compra ainda o réu não tinha obtido e entregue ao autor os documentos da viatura permissíveis à realização do registo e legalização da viatura; que o veículo não pode circular desacompanhado do certificado de matrícula, sem se encontrar regularizado no prazo de 60 dias o registo de propriedade e sem a realização da inspecção, sob pena de responsabilidade contra-ordenacional (tendo já pago uma coima no montante de € 250,00) e de eventual apreensão da viatura (arts 85º e 162 n.º 1, al. e) e g) do CE e art. 42º, n.º 1, do DL n°55/75, de 12 de Fevereiro que aprovou o Regulamento do Registo de Automóveis); e sendo notório que o decurso do tempo só por si é causa de acentuada perda de valor dos veículos automóveis, não pode deixar de se considerar objectivamente justificada a perda de interesse na manutenção do negócio por parte do comprador autor.

Mas será que o autor contribuiu de forma culposa para aquele incumprimento do réu?
Será que competia ao autor certificar-se da situação registral do veículo aquando das negociações que encetou com o chamado para acertar as condições da venda e o preço?
Vejamos.
O que está primacialmente em causa é a violação pelo autor de algum dever de conduta na fase que antecedeu a celebração dos contratos em causa nos autos.
A nossa lei consagra - art.º 227.º do C. Civil - o princípio da boa-fé na formação dos contratos, deste modo impondo que as partes contratantes procedam lealmente na fase pré-contratual e cominando o dever de indemnizar o lesado pelos prejuízos por ele sofridos àquele que, culposamente, a eles deu causa, em virtude de ter agido com desonestidade e indignidade nos preliminares do contrato e com vista à sua concretização.
A "culpa in contrahendo" cobre três áreas: a dos deveres de protecção (obriga a que, sob pretexto de negociações preliminares, não se inflijam danos à outra parte), a dos deveres de informação (adstringem as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato) e a dos deveres de lealdade (vinculam os negociadores a não assumirem comportamentos que se desviem de uma negociação correcta e honesta, onde se incluem os deveres de sigilo - terão de guardar segredo quanto à matéria de que tomaram conhecimento, de cuidado - deve ser preservado o escopo da formação válida do contrato e de actuação subsequente - não se deve injustificadamente interromper uma negociação em curso) - Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, volume I, págs. 582 e segs.
No caso em análise está fora de causa qualquer intuito malévolo do autor no decurso das negociações ou qualquer violação intencional dos deveres de informação e lealdade (ex: esconder do réu o facto do veículo não se encontrar registado em nome do chamado), pois que se apurou que só após ter adquirido o veículo ao réu veio a descobrir que o mesmo estava registado a favor de …- Instituição Financeira de Crédito SA.
De resto, destinando-se a viatura a ser adquirida por si, careceria de sentido tal intuito do autor.
O que está em causa é uma eventual actuação negligente do autor durante as negociações que teria conduzido o réu à celebração do contrato de compra e venda com o chamado, e que, de alguma forma, teria induzido aquele à sua celebração, no convencimento de que inexistia qualquer problema com a documentação da viatura.
Porém, os factos apurados não suportam a conclusão de que o autor tenha violado qualquer daqueles deveres de conduta, revelando apenas que o autor durante as negociações que encetou com o chamado PS para acertar as condições da venda, maxime do preço, não se inteirou da situação registral da viatura, sendo que este último se comportou perante aquele (e perante o réu) como possuidor e proprietário do veículo.
 E, como supra se deixou expresso, a entrega dos documentos constitui uma mera obrigação acessória do vendedor, a realizar no acto da venda ou em momento posterior a esta.
Não se tendo apurado que o banco réu tivesse mandatado o autor para tal, não se vê como se possa fazer recair sobre este o dever de se ter certificado da situação registral da viatura, tanto mais que, como resulta da experiência comum, esses documentos até poderiam ser entregues em momento posterior ao da venda.
Era, pois, ao comprador que, no momento da venda, competia inteirar-se sobre tal.
Por outro lado, perante a situação criada, uma actuação diligente do banco réu exigiria da sua parte uma imediata concertação com o ora autor e o exercitar do direito à resolução ou anulação do contrato celebrado com o chamado e não fazer recair sobre o autor todas as consequências negativas decorrentes do contrato de compra e venda: adquiriu e pagou ao vendedor o preço de um bem, sem que, do ponto de vista legal, possa utilizar o mesmo na via pública.
Trata-se de uma situação que o direito não pode tolerar.
Não se provou, pois, que o autor, por omissão da diligência exigível, tivesse contribuído para o surgimento de um qualquer erro de facto, susceptível de viciar a vontade negocial do réu.

Mas será que o autor agiu com abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, ao resolver o contrato de compra e venda?
Estipula o art. 334º, do C. Civil, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
Uma das manifestações do abuso de direito é a proibição do venire contra factum proprium.
Este caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Para que se possa dar por criada uma situação objectiva de confiança torna-se necessário que alguém pratique um facto – o factum proprium – que, em abstracto, seja apto a determinar em outrem uma expectativa da adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com o primeiro e que, em concreto, gere efectivamente uma tal convicção.
Ora, não se provou ter o autor assumido qualquer atitude susceptível de criar confiança no réu de que tinha verificado a documentação da viatura ou que tivesse feito crer ou dado a entender a este que estaria na disposição de adquirir o veículo sem a documentação necessária para poder circular com o mesmo.
Nada tem, pois, de ilegítimo a resolução do contrato de compra e venda.
E a circunstância do autor se ter limitado a disponibilizar a entrega da viatura, mantendo-a na sua posse, também não traduz qualquer actuação abusiva, tanto mais que o banco réu também não restituiu os valores pagos, sendo que a restituição das prestações, a ocorrer, teria de ser simultânea (vide art. 290º do C.Civil).
Concluímos assim, tal como na sentença recorrida, assistir ao autor o direito à resolução do contrato.
*


Nessa sentença entendeu-se, porém, que não obstante essa resolução a mesma não importa a restituição das prestações efectuadas (o veículo automóvel e o preço), tendo-se julgado improcedente esse pedido, entendendo-se que “quer durante a execução do contrato quer após a resolução operada, o autor teve sempre o veículo na sua posse, tendo a possibilidade de retirar dele as respectivas utilidades. Pelo exposto, inexiste fundamento para condenar o réu a devolver ao autor os montantes já pagos, dado que estes correspondem à contraprestação devida pela disponibilização e utilização do veículo”.
Este segmento decisório não foi impugnado por qualquer das partes, máxime pelo autor, impondo-se, por isso, o julgado a esta Relação, restringindo-se a questão de que cumpre conhecer à condenação do réu no pagamento da quantia de €8.000,00 pelos danos não patrimoniais causados ao autor.
*
Dos danos não patrimoniais:
Nesta matéria, exarou-se na sentença que:
“Conforme se mencionou supra o incumprimento é um acto ilícito baseado num comportamento culposo (arts. 483°, n." 2 e 798° do C. Civil) que determina a responsabilidade pelo prejuízo causado, em que o réu incorreu pelos motivos já explanados.
(…)
A obrigação de indemnizar pode abranger não só a reparação dos danos patrimoniais, como a compensação pelos danos não patrimoniais, nos termos do disposto no art. 496° do C. Civil.
 (…)
São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que "pela sua gravidade mereçam a tutela do direito" – nºs 1 e 3 do art. 496° do Código Civil.
Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de "dano", vide o ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, pág.50I; "O montante da indemnização correspondente aos danos não patri­moniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.".
A compensação devida pelo dano não patrimonial tem, como reconhecem os tratadistas, além de uma função reparadora visando proporcionar ao lesado meios de natureza pecuniária que constituam lenitivo para a sua dor moral, uma função punitiva/sancionatória devendo reflectir o grau de culpa do autor do facto ilícito.
(…)
A este propósito provou-se que o réu não entregou ao autor os documentos do veículo, em causa, tendo-lhe apenas entregue autorizações de circulação até Março de 2009.
Provou-se, ainda, que: "Em Dezembro de 2009, o autor foi sujeito a uma operação de fiscalização levada a cabo pela PSP, enquanto circulava com o veículo, em causa. O autor foi notificado para apresentar o certificado de matrícula do mesmo veículo, no prazo de 8 dias. O que não pôde fazer porquanto não tinha esse documento em seu poder. Pelo mesmo motivo, não apresentou o veículo à inspecção obrigatória na data estabelecida para tal, tendo os agentes fiscalizadores instaurado um processo de contra-ordenação contra o autor. Tendo o autor pago uma coima, no montante de é 250,00. O autor tem uma situação económica precária, tendo sido com grande esforço que adquiriu o veículo em causa. A não regularização do veículo provocou no autor uma enorme angústia, dado o receio de vir a ser alvo de fiscalização rodoviária. O autor utilizava o mesmo veículo para se deslocar entre a sua casa e o local onde se encontrava a estudar. ".
Provou-se, assim, que a impossibilidade de regularizar a situação jurídica do veículo, bem como, as consequências que lhe estão associadas, provocaram no autor uma enorme e justificada angústia, que se prolonga desde pelo menos, 2009.
Esta angústia traduz-se num sofrimento psicológico, atingindo bens imateriais como a saúde e o bem-estar do autor. Pela sua gravidade, entende-se, que estes prejuízos devem ser indemnizados.
Atendendo ao grau de culpabilidade do réu, à situação económica de ambas as partes e à gravidade do dano e das suas consequências, já enumeradas, considera-se adequado fixar a indemnização devida a título de danos não patrimoniais, no montante de € 8.000,00.
À quantia peticionada acrescem juros de mora à taxa supletiva legal, a contar da citação, ocorrida a 01-02-2011 (vide fls. 62), nos termos dos arts. 559°, 798°, 804°, 805° e 806° do C. Civil”.

Dissentindo do assim decidido, diz o apelante que:
- nem se percebe e justifica a invocação da angústia prolongada desde 2009, quando o facto é que foi o A. que optou por manter o veículo e por o utilizar; não foi o Banco-R., que o obrigou a prolongar essa posse, contra a sua vontade;
- nem se percebe e justifica a invocação dos danos à saúde e bem estar do autor quando o único facto provado e atendível nesta sede (danos não patrimoniais) foi o constante do artigo 70° da PI: "Provado que - A não regularização do veiculo provocou no autor uma enorme angústia" - o que é um juízo conclusivo - " dado o receio de vir a ser alvo de fiscalização rodoviária ":
- mesmo que assim não se considerasse, o facto do autor ter ficado angustiado nas circunstâncias fácticas que resultaram provadas, não assume, no caso concreto, uma gravidade que mereça a tutela do direito, nos termos do art. 496° n.º1 do CC;
- acresce que no contexto descrito, o quantitativo indemnizatório fixado sempre sena francamente exagerado e totalmente desenquadrado dos valores jurisprudencialmente praticados.

Liminarmente importa deixar claro que o facto provado e alegado no art. 70º da p.i. (“A não regularização do veiculo provocou no autor uma enorme angústia”) não constitui um facto conclusivo, pois que, como é sabido, “dentro da vasta categoria de factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem – ex propriis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo” – cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 407.
Posto isto, importa apreciar a questão atinente aos danos não patrimoniais e ao montante destes fixado na sentença.

Dispõe o art. 496º, n.º 1, do CC que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”.
Ora, como se deixou expresso na sentença recorrida, na responsabilidade contratual são indemnizáveis os danos não patrimoniais que mereçam a tutela do direito, como vem entendendo o STJ – vide Acs. de 22/06/2005, relatado pelo Cons. Ferreira Girão; e de 24 de Janeiro de 2012, relatado pelo Cons. Martins de Sousa, in www.dgsi.pt.
E, como sublinha Antunes Varela, depois de considerar que só em face da gravidade do dano se justifica a satisfação pecuniária do lesado, “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” – cfr. Das Obrigações Em Geral, vol. I, 9ª ed., pág. 630.
Para aquilatar da sua gravidade, importa analisar a factualidade dada como provada.
Com interesse para a apreciação desta questão, apurou-se que
- Desde a celebração do contrato, em causa, que o autor, na pessoa da sua companheira, AM, tem vindo a insistir junto do Balcão do réu, da…, onde o negócio se firmou, para que o réu regularizasse a situação do veículo.
- Tais insistências têm sido efectuadas quer presencialmente quer telefonicamente quer por escrito.
- Em Dezembro de 2009, o autor foi sujeito a uma operação de fiscalização levada a cabo pela PSP, enquanto circulava com o veículo, em causa.
- O autor foi notificado para apresentar o certificado de matricula do mesmo veículo, no prazo de 8 dias.
- O que não pôde fazer porquanto não tinha esse documento em seu poder.
- Pelo mesmo motivo, não apresentou o veículo à inspecção obrigatória na data estabelecida para tal, tendo os agentes fiscalizadores instaurado um processo de contra-ordenação contra o autor.
-Tendo o autor pago uma coima, no montante de € 250,00.
- O autor tem uma situação económica precária, tendo sido com grande esforço que adquiriu o veículo em causa.
- A não regularização do veículo provocou no autor uma enorme angústia, dado o receio de vir a ser alvo de fiscalização rodoviária.
Destes factos deriva que os danos sofridos pelo autor saem da mediania e que afectaram o mesmo na sua saúde psíquica, sendo, por isso, merecedores da tutela do direito.
O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo-se ao grau de responsabilidade da lesante, à sua situação económica e à do lesado e às demais circunstâncias do caso – art. 496º, nº 3 do mesmo diploma legal.
Nesta sede, deverá o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida - Ac. do STJ de 10/2/98, CJ S. T. 1, p. 65 e P. Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. 1, p. 501.
Assentes estes princípios, e tendo presente a função de compensação especialmente desempenhada pela indemnização por danos morais e a reprovação que a conduta do banco réu merece, entende-se que a indemnização fixada em 1ª instância (€8.000,00) se afigura excessiva, o que transparece com maior clareza quando valorada à luz dos montantes envolvidos nos contratos outorgados entre as partes, entendendo-se equitativo fixar aquela no montante de €4.000,00, calculado por referência à data da citação do réu.

Procede, assim, em parte a apelação.

***
V. Decisão:
Pelo acima exposto, decide-se:
Julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, na parte atinente ao montante dos danos não patrimoniais devidos pelo réu ao autor, que se reduzem para o montante de €4.000,00 (quatro mil euros), a que acrescem os juros de mora fixados na sentença.
Custas devidas (em 1ª instância e nesta Relação), pelo autor (apelado) e réu (apelante), na proporção do respectivo decaimento;
Registe e notifique.


Lisboa, 29 de Abril de 2014

Manuel Ribeiro Marques

Pedro Brighton

Teresa Sousa Henriques