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GARANTIA BANCÁRIA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
Sumário
1. No caso de garantias bancárias “on first demand”, há da parte do garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou interpelação do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o beneficiário e o seu devedor. 2. Não obstante a automaticidade da garantia, isentando-se o beneficiário da prova do pressuposto do seu direito, não fica vedada ao garante a possibilidade de recusar a soma objecto da garantia em caso de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário, para além da hipótese de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (como, por exemplo, a dação em cumprimento e a compensação), resolução ou caducidade. 3. É admissível que o ordenador da garantia intente providências cautelares destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário. 4. Tendo-se apurado, de forma concludente, que a beneficiária (dona da obra) deve à mandante (empreiteira) o valor titulado por letras, no montante global de €4.650.684,28 (parte do preço da empreitada), acrescido dos juros de mora, e que esta declarou pretender compensar esse seu crédito com um crédito daquela, de montante inferior, relativo a despesas com a eliminação dos defeitos da obra que realizou, assim operando a extinção das obrigações garantidas, deixou de subsistir fundamento para o accionamento das garantias (no montante máximo de €525.913,67). 5. Nesse circunstancialismo, o accionamento das garantias pela beneficiária criaria uma situação claramente desproporcionada e violadora das regras da boa fé, sendo, por isso, ilegítimo, tanto mais que as garantias foram prestadas para responderem pelo cumprimento das obrigações da mandante durante o prazo de garantia da obra, isto é, numa altura em que supostamente o preço das empreitadas se encontraria liquidado com a conclusão da obra, situação que não ocorre. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. OE, S.A. intentou procedimento cautelar comum contra SRU, SA e BANCO C, S.A. requerendo que se iniba o requerido Banco C de proceder ao pagamento do valor garantido pelas garantias bancárias e se iniba a requerida SRU de proceder a futuros pedidos de accionamento das mesmas garantias.
Alegou, em síntese, ter celebrado com a 1ª requerida 4 contratos de empreitada para a realização das obras de recuperação do Complexo do CP; que efectuou todos os trabalhos acordados e aceites pela 1ª requerida; que esta deve à requerente a quantia de €4.650.684,28 de capital e €392.637,84 de juros vencidos até ao dia 10/07/2013; que no âmbito dos contratos de empreitada emitiu várias garantias bancárias a favor da requerida e prestadas pelo BANCO C, as quais foram sendo devolvidas à requerente, restando apenas duas, nos valores de €127.882,95 e €398.030,72; que, atento o litígio que envolve a requerente e a 1ª requerida – contra a qual instaurou uma execução e um arresto, bem como um pedido de insolvência – teme que esta accione as ditas garantias, o que seria absolutamente abusivo atenta a conclusão da obra e o facto daquela ser devedora da quantia de € 5.043,322,12.
Citadas as Requeridas, deduziu apenas oposição a 1ª Requerida alegando, em síntese, não ter a Requerente reparado anomalias da execução dos trabalhos relativos às empreitadas de acabamentos e instalações especiais do parque de estacionamento e do centro de ócio e lazer do CP e respeitante aos trabalhos de execução das instalações técnicas da Praça T do CP, fornecimento e montagem da cobertura e instalações associadas, tendo, no que a estas empreitadas respeita, sido apenas elaborado o auto de recepção de definitiva quanto à cobertura metálica da praça T; que denunciou por várias vezes as anomalias verificadas e que descreve tendo a Requerente reparado parte delas, já que abandonou os trabalhos que vinha desenvolvendo em final de 2011, sem que até agora os retomasse, negando que a sua situação financeira ponha em risco a devolução à Requerente dos montantes titulados pelas garantias bancárias, na hipótese de na acção principal se vir a concluir não ter a aquela incumprido os contratos de empreitada em causa.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar improcedente o procedimento cautelar.
Não se conformando com tal decisão, interpôs a requerente o recurso agora sob apreciação, apresentando as seguintes conclusões:
(…)
Termina pedindo seja o recurso julgado procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedente o presente procedimento cautelar.
A fls. 1051/1052 o ilustre mandatário da 1ª requerida veio dar conta da declaração de insolvência desta, no âmbito da acção n.º …, e da consequente caducidade do mandato.
A massa insolvente veio então constituir novo mandatário, não tendo, porém, apresentado contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II. As questões a decidir resumem-se, essencialmente, em apurar:
- se é caso de alterar a matéria de facto;
- se se verificam os requisitos conducentes ao decretamento da providência cautelar requerida.
*
III. Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
(…)
*
(…)
* IV. Da questão de Direito:
Nos termos do disposto nos arts. 381º e 387º do CPC, o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1. probabilidade séria da existência do direito invocado;
2. fundado receio de que outrem, antes da acção definitiva ser proposta ou na sua pendência, cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito;
3. adequação da providência à situação de lesão iminente;
4. inexistência de providência cautelar específica para acautelar o direito invocado;
5. que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
*
Em causa no recurso está, fundamentalmente, a questão da verificação do 1º dos apontados requisitos.
Na decisão recorrida entendeu-se que: “A garantia que aqui está em causa é, como se viu, uma garantia autónoma, na qual a sua obrigação não depende da existência, validade, extensão ou exequibilidade da obrigação do terceiro beneficiário. (…) Tal prevalência da autonomia da obrigação do garante relativamente ao contrato base, apenas encontra o limite imposto pela boa fé, como princípio a que as partes devem obediência no cumprimento dos contratos. (…) Destarte a recusa de pagamento ao beneficiário da garantia só será aceitável na garantia à primeira solicitação caso seja inequívoca a existência de má fé por parte do beneficiário. Importa referir que partilhamos o entendimento segundo o qual se considera admissível que no procedimento cautelar com o objectivo de "bloquear" a garantia autónoma à la interpelação, a prova do abuso de direito e que esta poderá fazer-se, além dos documentos, com recurso a outros meios de prova, designadamente testemunhal - cf. Acórdãos do Tribunal da Relação Porto de 12.12.2000 e da Relação de Lisboa de 13.10.2009 in www.dgsi.pt. Analisando o caso vertente à luz dos ensinamentos vindos de referir e tendo por referência os factos indiciariamente apurados, diremos que, a pretensão da Requerente não poderá deixar de ser considerada improcedente na medida em que não logrou demonstrar que a 1ª Requerida tenha agido de má fé e que, assim, justificasse a paralisação dos efeitos da garantias prestadas. (…) Conforme emerge de comunicações mantidas entre as partes que remontam ao ano de 2008 - arts. 50°, 52°, 53°, da oposição - prologando-se até 2011 - arts. 44° - e culminando com o email trocado entre os dias 21 de Novembro de 2011 e28 de Novembro de 2011, no qual cada uma das partes elencou quais os pontos que, na sua perspectiva, ainda permaneciam por reparar. Tal comportamento não poderá deixar de ser tido em conta na apreciação da exigibilidade de accionamento das garantias bancárias que precisamente tinham em vista acautelar a insolvência do empreiteiro e, em última análise, assegurar a eliminação dos defeitos que fossem verificados após a entrega provisória da obra, evitando assim perder a quantia incorporada nas garantias. Muito embora se reconheça a não automaticidade absoluta das garantias autónomas - cfr. Acórdão do STJ de 14.10.2004, in www.dgsi.pt, admitindo-se a oposição pelos garante e ordenante ao beneficiário da excepção de abuso evidente deste na execução da garantia, reitera-se não ter a Requerente logrado a demonstração comportamento configurável com o abuso de direito atribuível à Requerida. Ao invés, perante a persistência de anomalias na execução da empreitada que a Requerente não corrigiu na empreitada de "Acabamentos do Interior do Parque de Estacionamento e Centro Comercial" e "Acabamentos do Edifício da Praça, Instalações Especiais e Cobertura" - mormente perante o reconhecimento pela Requerente de que: as pedras das escadas rolantes duplas da galeria comercial que necessitam de reparação; pisos das rampas helicoidais que necessitam de reparação; piso que apresenta fissuras no cais de descarga e de lixos; - instalações eléctricas que necessitam de reparação; portas e baias dos camarotes da Praça T do CP que necessitam de reparação; 4 portas exteriores da Praça T do CP que necessitam de reparação; lage do fontanário que apresenta fissura; estrutura metálica das "courettes" que abateram na zona de passagem de público na via pública; calçada interior e exterior em que ocorreram abatimentos; infiltrações nas escadas de saída de emergência do parque de estacionamento; pedras das paredes interiores e exteriores em lioz ou em valverde que descolam e caem; ruptura da caixa de esgoto do piso - 4;fontes de alimentação de electro válvulas de gás ao PRM, com anomalias de funcionamento - de que existiam e careciam de reparação - arts. 331 ° / 2 e 1220°/2 ambos do Código Civil, não se verificam os pressupostos de cujo preenchimento depende o decretamento do procedimento cautelar, não podendo concluir-se no sentido de que o accionamento das garantia por banda da 1 a Requerido integre abuso de direito. Concluindo, perante as considerações acabadas de expor, não estarem verificados os requisitos - a probabilidade seria da existência do direito invocado - de que dependia a procedência da providência instaurada pela Requerente relativamente às garantias bancárias (…)”.
Contrapõe a apelante que
- À data de 10.07.2013, a 1ª requerida tinha em dívida para com a requerente a quantia de € 5.043.322,12, a qual se encontra titulada por letras; - A 1ª requerida, no âmbito de dois dos contratos de empreitada celebrados com a Recorrente, tem em seu poder duas garantias bancárias no valor de € 525.913,67, garantias entregues para garantia da boa execução dos contratos; - A requerida SRU alega que tem que tem o direito de poder accionar as mencionadas garantias em virtude de terem ficado por debelar pequenas correcções dos trabalhos realizados pela Recorrente; - No entanto, a existirem pequenas correcções a efectuar nos trabalhos realizados pela Recorrente, a verdade é que o valor dessas correcções (que não será superior a € 150.000,00) é manifestamente inferior ao montante máximo titulado pelas garantias bancárias e substancialmente inferior ao valor da dívida que a Recorrida SRU tem para com a Recorrente; - Independentemente de o Tribunal a quo ter considerado que se encontravam por debelar algumas correcções - as quais serão sempre de pequena monta (atento quer o valor da empreitada quer o valor do crédito da Recorrente sobre a Recorrida SRU) - o accionamento das garantias bancárias é inseparável da existência de direitos creditícios de que seja titular a Recorrida SRU em razão de eventual incumprimento contratual imputável à Recorrente. - Assim, caso a Requerida SRU pretendesse exercer um direito de crédito no valor das alegadas reparações (até ao valor máximo titulado pelas garantias bancárias) esse valor sempre seria integralmente extinto por compensação legal, nos termos do artigo 847.° do C.C.; - Sendo que a consequência desse pagamento seria o Recorrente constituir-se devedora do Recorrido BANCO C pelo valor garantido; - A Recorrida SRU não tem capacidade financeira para liquidar os valores que se encontram em dívida para com a Recorrente; - A Recorrida tem vindo a dissipar o seu irrisório património, impedindo a satisfação do crédito da Recorrente, como se comprova pela cessão da posição contratual, que só visou evitar a penhora dos direitos de crédito que a Recorrida SRU detém sobre a promotora de espectáculos e sobre os lojistas do CP; - Não sendo decretada a providência requerida, a 1ª apelada, para além de continuar a ser devedora da Recorrente no valor de € 5.043.322,12, conseguirá ainda, por via do accionamento das garantias, receber uma quantia no valor de € 525.913,67. Vejamos.
Flui dos autos que entre a Requerente e a Requerida SRU foram celebrados 4 (quatro) contratos de empreitada para a realização das obras de recuperação do Complexo do CP, a saber:
a) Contrato de Empreitada respeitante aos trabalhos de Escavação e Contenção Periférica da Praça T do CP - celebrado em 23.07.01;
b) Contrato de Empreitada respeitante aos trabalhos de Redes e Drenagens e de Fundações de Estruturas da Praça T do CP - celebrado em 28.05.02;
c) Contrato de Empreitada respeitante aos trabalhos de Acabamentos e Instalações Especiais do Parque de Estacionamento e Centro de Ócio e Lazer do CP - celebrado em 19.04.04;
d) Contrato de Empreitada respeitante aos trabalhos de execução das Instalações Técnicas da Praça T do CP, Fornecimento e Montagem da Cobertura e Instalações Técnicas Associadas - celebrado em 05.04.05 (este constitui uma extensão do referido em c)).
Das garantias bancárias prestadas pela Requerente, através do BANCO C, mantém-se a:
1. Garantia Bancária n.º …, no valor máximo de € 127.882,95 (cento e vinte e sete mil oitocentos e oitenta e dois euros e noventa e cinco cêntimos), referente à empreitada de 5ª Fase - Acabamentos do Interior do Parque de Estacionamento e Centro Comercial" ;
2. Garantia bancária n.º …, no valor máximo de € 398.030,72 (trezentos e noventa e oito mil e trinta euros e setenta e dois cêntimos), referente à empreitada "Acabamentos do Edifício da Praça, Instalações Especiais e Cobertura".
E flui do texto dessas garantias que:
- Garantia Bancária nrº …:
No dia 10 de Março de 2006 o Banco C, S.A., em nome e a pedido de S, S.A., “vem oferecer pelo presente instrumento, até ao montante de EUR 398.030,72 (…) e a favor da S.R.U. – SRU, S.A. (…) uma garantia bancária como caução do cumprimento das obrigações contratuais que para o Ordenador resultam do Contrato, referente à Empreitada de “Acabamentos do Edifício da Praça, Instalações Especiais e Cobertura”, assinado com a S.R.U., S.A., destinada à substituição do Depósito Definitivo referente a trabalhos adicionais. Nos termos desta garantia, o Banco C, S.A., pagará à S.R.U. –, S.A., até ao valor indicado, qualquer valor por este requerido contra o seu simples pedido formulado por escrito, independentemente das razões que lhe possam assistir ou não, ou de qualquer irregularidade ou ilegalidade de que possa enfermar o aludido contrato” – cfr. de fls. 199.
- Garantia Bancária nrº:
No dia 10 de Julho de 2006 o Banco C, S.A., em nome e a pedido de S, S.A, “vem oferecer pelo presente instrumento, até ao montante de EUR 127.882,95 (…) e a favor da SRU, S.A. (…) uma garantia bancária como caução do cumprimento das obrigações contratuais que para o Ordenador resultam do Contrato, referente à Empreitada de “5ª FASE – Acabamentos do Interior do Parque de Estacionamento e Centro Comercial”, assinado com a SRU, S.A., destinada à substituição do reforço do depósito definitivo. Nos termos desta garantia, o Banco C, S.A., pagará à SRU, S.A., até ao valor indicado, qualquer valor por este requerido contra o seu simples pedido formulado por escrito, independentemente das razões que lhe possam assistir ou não, ou de qualquer irregularidade ou ilegalidade de que possa enfermar o aludido contrato” – cfr. de fls. 197.
Na sentença qualificou-se essas garantias como garantias bancárias autónomas, não se questionando essa qualificação na apelação.
Efectivamente, decorre do respectivo texto que as mesmas garantem o cumprimento das obrigações contratuais que para o Ordenador (mandante, ora requerente) resultam do Contrato de Empreitada (de Acabamentos do Edifício da Praça, Instalações Especiais e Cobertura” e de“5ª FASE – Acabamentos do Interior do Parque de Estacionamento e Centro Comercial”), e que, nos termos dessas garantias, o BANCO C (garante, ora requerido) se obrigou a pagar à SRU, S.A., (beneficiário, ora requerida) “até ao valor indicado, qualquer valor por este requerido contra o seu simples pedido formulado por escrito, independentemente das razões que lhe possam assistir ou não, ou de qualquer irregularidade ou ilegalidade de que possa enfermar o aludido contrato”.
Responsabilizou-se assim o BANCO C a indemnizar a 1ª requerida pelas perdas financeiras por esta sofridas, em resultado do incumprimento da requerente, mas a sua obrigação, como garante, não depende de existência, da extensão, da validade ou da exequibilidade da obrigação desta, na medida em que se obrigou a pagar à beneficiária determinadas importâncias, logo que este lhas peça por escrito.
As garantias bancárias que foram prestadas assumiram, pois, a modalidade on first demand.
Nestas, há da parte do garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou interpelação do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o beneficiário e o seu devedor.
Como costuma invocar-se na gíria bancária, o carácter autónomo do funcionamento desta garantia significa: «pediu, pagou»; o garante não pode contestar o pagamento que lhe foi exigido (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte; Garantias do Cumprimento, 5ª edição, pag. 136).
Não obstante a automaticidade da garantia, isentando-se o beneficiário da prova do pressuposto do seu direito, não fica vedada ao garante a possibilidade de recusar a soma objecto da garantia em caso de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário, para além da hipótese de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (como, por exemplo, a dação em cumprimento e a compensação), resolução ou caducidade - cfr Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte, ob. cit. pags. 145 a 151.
Aceita-se assim a existência de um limite ao modo como há-de processar-se o seu cumprimento e cuja violação implicará um desrespeito aos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa – Ac. STJ 6-03-2014, relatado pelo Cons. Silva Gonçalves, in www.dgsi.pt.
A legitimidade da recusa tem sido defendida designadamente nas seguintes circunstâncias:
- Manifesta má fé ou a má fé patente, isto é, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante;
- Casos de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário;
- Quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes;
- Sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido – cfr. Ac. STJ de 5-07-2012, relatado pelo Cons. A. Geraldes, in www.dgsi.pt.
E, assim, conforme também decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-10-2004 (relatado pelo Cons. Araújo Barros, in www.dgsi.pt), é admissível que o ordenador da garantia intente, “providências cautelares, ou mesmo acções, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.”.
Posto isto, vejamos a situação que ocorre nos autos.
Da factualidade apurada resulta que a requerente não eliminou as anomalias que a obra (5ª e 6ª fases) por si realizada apresenta, não tendo, por essa razão, sido recepcionada provisoriamente em toda a sua extensão (vide doc. n.º 22 junto com a contestação).
Provou-se ainda que, com referência aos trabalhos adjudicados, verificam-se as seguintes anomalias:
- As pedras das escadas rolantes duplas da galeria comercial que necessitam de reparação;
- Pisos das rampas helicoidais que necessitam de reparação;
- Piso que apresenta fissuras do cais de descarga e de lixos;
- Instalações eléctricas que necessitam de reparação;
- Portas e baias dos camarotes da Praça T do CP que necessitam de reparação;
- 4 Portas exteriores da Praça T do CP que necessitam de reparação;
- Lage do fontanário que apresenta fissura;
- Estrutura metálica das "courettes" que abateram na zona de passagem de público na via pública;
- Calçada interior e exterior em que ocorreram abatimentos;
-Escadas de saída de emergência do parque de estacionamento que têm infiltrações;
- Pedras das paredes interiores e exteriores em lioz ou em valverde que descolam e caem;
- Ruptura da caixa de esgoto do piso - 4;
- Fontes de alimentação de electro válvulas de gás ao PRM, com anomalias de funcionamento.
Não tendo a requerente provado que essas anomalias derivam de erros do projecto que executou, não podem deixar de ser consideradas defeitos da obra.
Estes não foram eliminados no prazo concedido (vide doc. n.º 22), pelo que assistia à requerida SRU o direito de mandar executar tais obras a expensas daquela, descontando-se o seu custo nas garantias – vide cláusula 12.3 do contrato de empreitada em causa (respeitante à 5ª fase-fls. 622 dos autos).
Deste modo, na linha do exarado na decisão recorrida, conclui-se que a requerente incumpriu as suas obrigações contratuais ao não ter eliminado os defeitos da obra que se provaram, podendo, por isso, os contratos de garantia serem executados.
Acontece, porém, que se apurou de forma concludente, no que toca à relação garantida, que a requerida deve à requerente o valor titulado pelas letras (€4.650.684,28) e os juros de mora respectivos, o que aponta para uma dívida superior a €5.000.000,00, sendo que, como flui do requerimento inicial (arts. 74º a 77º), a requerente declarou pretender compensar este seu crédito com o crédito da requerida atinente à eliminação dos defeitos.
É certo que se não apurou o custo concreto da eliminação dos defeitos apurados.
Com efeito, a requerente não logrou provar importarem os mesmos uma quantia na ordem dos €150.000,00 (vide art. 74º da p.i.) e a requerida SRU também não provou ser o custo desses trabalhos superior ao valor titulado pelas letras (art. 70º da oposição).
Certo é que vários dos defeitos alegados pela requerida e que determinaram a mesma a apontar para aquele valor não se provaram (vide o alegado nos art. 66º e 67º da oposição), sendo que as garantias foram prestadas para efeitos de a empreiteira poder receber de imediato todos os montantes facturados, pois que, de outro modo, 10% das facturas ficariam retidos pela dona da obra (1ª requerida) e só seriam entregues no final da empreitada, o que aponta para um valor inferior a €2.000.000,00 (os preços das empreitadas em causa foram de €12.316.629,59 e €6.000.000,00).
Destes factos conhecidos e do tipo e natureza das deficiências apuradas, infere-se que o custo destas será seguramente inferior ao valor titulado pelas letras (€4.650.684,28).
Refira-se ainda, no que tange ao alegado crédito da 1ª requerida relativo a multas pelo incumprimento contratual da requerente, que se não provou ter aquela direito ao recebimento de qualquer valor a este nível.
É certo que as partes estipularam na cláusula 18ª do contrato de empreitada que “em tudo o omisso no presente contrato e em todos os elementos escritos ou desenhados que o integram, aplica-se o disposto no decreto-lei 59/99 de 2 de Março, com excepção do Título IX”.
Porém, e além do mais, não se mostra observado o procedimento previsto no n.º 5, do art. 201º do citado diploma legal, dado não ter sido lavrado o respectivo auto pela fiscalização e o seu envio ao dono da obra para, no prazo de oito dias, deduzir a sua defesa ou impugnação.
Por outro lado, o recebimento pela 1ª requerida das quantias referenciadas nas garantias, por via do cumprimento destas, determinaria que o 2º requerido ficaria sub-rogado nos direitos do credor beneficiário, nos termos do disposto nos arts. 592º, nº 1 e 593º, nº 1, do CC., ficando, consequentemente, a requerente obrigada a ressarcir o requerido BANCO C na medida correspondente.
Assim, devendo a beneficiária das garantias (1ª requerida) à mandante (requerente) uma quantia na ordem dos €5.000.000,00, que esta pretende compensar com o crédito daquela relativo à eliminação dos defeitos, de valor inferior, operando assim a extinção das obrigações garantidas (art. 847º do C.Civil), deixou de subsistir fundamento para o accionamento das garantias.
Neste circunstancialismo, o accionamento das garantias pela beneficiária criaria uma situação claramente desproporcionada e violadora das regras da boa fé, tanto mais que as garantias foram prestadas para responderem pelo cumprimento das obrigações da mandante durante o prazo de garantia da obra, isto é, numa altura em que supostamente o preço das empreitadas se encontraria liquidado com a conclusão da obra, situação que não ocorre.
O accionamento das garantias bancárias geraria, pois, um manifesto desequilíbrio da relação jurídica principal, visada pela própria obrigação do garante, criando uma situação claramente desvantajosa para a requerente. Configura-se, pois, como ilegítimo o exercício do direito de accionar as garantias por parte da 1ª requerida.
Assiste, assim, à requerente o direito de obstar a que a 1ª requerida accione as garantias bancárias em causa nos autos.
Quanto à verificação dos demais requisitos do procedimento cautelar:
Apurou-se que no âmbito da execução movida pela requerente contra a requerida, com base nas 22 letras referenciadas nos autos, a Requerente apenas logrou a penhora do direito de superfície em subsolo da Praça do CP, constituído a favor da Requerida SRU, o qual se encontra onerado a favor do Requerido BANCO C, no valor total de aproximadamente € 78.000.000,00.
Provou-se ainda que a aí executada/1ª requerida, como forma de obstar à penhora dos direitos de crédito que detinha sobre a promotora de espectáculos E e os lojistas da Galeria Comercial do CP, cedeu a sua posição contratual a favor da SRU, S.A., a qual é por si detida, e que aquela, posteriormente, foi declarada insolvente.
A partir destes factos circunstanciais conhecidos, pode-se inferir a existência do fundado receio de que a 1ª requerida accione as garantias, causando dessa forma lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente.
Por outro lado, a providência requerida, mostra-se adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado e não se mostra ser o dano daí resultante para a requerida consideravelmente superior ao dano que se pretende prevenir.
Procede, assim, a apelação, havendo, em consonância, que decretar a providência cautelar requerida.
***
V. Decisão:
Pelo exposto decide-se:
1. Julgar procedente a apelação, decretando-se a providência cautelar requerida nos autos, e, em consequência:
a. Intima-se o requerido BANCO.., S.A. a abster-se de proceder ao pagamento dos valores das garantias bancárias n.ºs …, no valor máximo de € 127.882,95 (cento e vinte e sete mil oitocentos e oitenta e dois euros e noventa e cinco cêntimos), e …, no valor máximo de € 398.030,72 (trezentos e noventa e oito mil e trinta euros e setenta e dois cêntimos;
b. Intima-se a requerida SRU, SA a não proceder a futuros pedidos de accionamento das mesmas garantias.
2. Custas pela 1ª requerida (massa insolvente).
3. Notifique.