CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
ACUSAÇÃO
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Sumário

A acusação deduzida pelo assistente, feita nos termos do art.º 284º do CPP, isto é, quando acompanha a do Ministério Público nos casos de crimes públicos e semi-públicos, não tem que ser notificada ao arguido durante a fase de inquérito.

Texto Integral

           Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Tribunal Judicial de Torres Vedras, por despacho de 14/06/2013, constante de fls. 351/352, relativamente à Arg.[1] , com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 123[3]), foi decidido o seguinte:

“…Compulsados os autos, constata-se que foi deduzida acusação particular contra a arguida (cfr. fls. 340 a 344) dos autos.

Contudo, compulsados os autos, verifica-se que a arguida e. a sua defensora não foi notificada da acusação particular deduzida.

Ora, nos termos dos artigos 1 13.° n.° 9, 283.° n.° 5, 277.° n.° 3 e 284.° n.° 2 do C.P.P., a notificação respeitante à acusação particular deve ser obrigatoriamente efectuada aos arguidos e, aos seus defensores oficiosos.

O acto de notificação da acusação ao arguido e seu defensor não tem apenas como único objectivo, facultar ao mesmo a possibilidade de requerer a abertura da fase facultativa da instrução, visando, igualmente, dar-lhe a conhecer que o Ministério Público e o assistente consideraram existirem indícios suficientes de que praticou um crime e que, por essa razão, será julgado.

Por esse motivo, o artigo 277.° n.° 3 do C.P.P., aplicável por força do disposto nos artigos 283.° n.° 5 e 284.° n.°s 1 e 2 do C.P.P., impõe que a acusação particular seja também comunicada ao arguido, bem como ao seu defensor.

Na verdade, a remessa dos autos para julgamento, sem a notificação da acusação particular ao arguido, apenas é admitida quando os procedimentos para a sua notificação se tenham revelado ineficazes (cfr. artigo 285.° n.° 3 do C.P.P.).

Contudo, tal não é o caso dos autos.

Efectivamente, a notificação à referida arguida e sua defensora, da acusação particular foi omitida, não tendo sido efectuada qualquer diligência nesse sentido.

Ora, a omissão em apreço integra uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123.° n.° 1 do C.P.P., irregularidade essa do conhecimento oficioso, uma vez que tal irregularidade coarcta os direitos de defesa da arguida constitucionalmente consagrados, diminuindo as suas garantias.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20/02/2008, in jurisprudencia.vlex.pt: "A falta de notificação da acusação ao arguido constitui irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente pelo juiz no despacho a que se refere o art. 311 ° do Código de Processo Penal.".

Na verdade, "(...) a falta de notificação da acusação implica a impossibilidade do mais elementar direito dos arguidos, o de defesa, com consagração constitucional." (vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 18/09/2006, in jurisprudencia.vlex.pt).

Nestes termos e, ao abrigo das normas supra citadas, bem como do disposto no artigo 123.° n.° 2 do C.P.P., julga-se verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular à arguida e, em consequência, determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público, a fim de que aí se proceda à reparação da aludida irregularidade, dando-se baixa da distribuição efectuada. …”.

*

Não se conformando, a Exm.ª Magistrada do MP[4] o interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 368/373, com as seguintes conclusões:

“… 1. O objecto do recurso é o despacho que julgou verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular à arguida e que determinou, em consequência, a remessa dos autos ao Ministério Público a fim de a reparar.

2. Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra Maria João dos Santos Marques da Silva, imputando-lhe a autoria, em concurso efectivo, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3), e de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, todos do Código Penal.

3. Após ter sido notificado da acusação pública, e nos termos do artigo 284.º do Código de Processo Penal, veio o assistente aderir à mesma, limitando-se a deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, não obstante se ler na peça processual que vem “deduzir acusação particular e formular pedido de indemnização civil”.

4. Nem para outra coisa, aliás, tinha legitimidade, já que os autos não versam sobre qualquer crime particular.

5. Nesta sequência foram os autos remetidos à distribuição, tendo a Meritíssima Juiz considerado que a falta de notificação da acusação deduzida pelo assistente afectou as garantias de defesa da arguida e que tal omissão integra uma irregularidade processual nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

6. Afigura-se-nos, no entanto, que inexiste qualquer irregularidade, já que além da acusação deduzida pelo assistente nem sequer ter de ser notificada à arguida, por se tratar de uma acusação de mera adesão e insusceptível de fundamentar um requerimento de abertura de instrução, em nada foram afectados os seus direitos de defesa.

7. Com efeito, a acusação pública, regularmente notificada, fixou o objecto do processo, permitindo, assim, que a arguida exerça, em pleno, a sua defesa.

8. Ainda que seja outro o entendimento, o regime das irregularidades previstas no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é o de que dependem de arguição pelo próprio interessado no prazo de 3 dias.

9. Não obstante, uma vez que a Meritíssima Juiz decidiu reparar oficiosamente tal irregularidade, devia ter determinado que os respectivos serviços diligenciassem nesse sentido, e não ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público para esse efeito, porquanto carece de poder para determinar ao Ministério Público a realização de qualquer acto.

10. A devolução dos autos ao Ministério Público, tal como foi feita, é inconstitucional, por violação dos princípios do acusatório, independência e autonomia da magistratura do Ministério Público em relação à magistratura Judicial, razão pelo qual o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 32.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 123.º, 311.º e 312.º do Código de Processo Penal.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, entendemos que deverá conceder-se provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogado o despacho que julgou verificada a irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação particular à arguida e que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público, ordenando-se a sua substituição por outro que:

1. Declare não verificada qualquer irregularidade e que receba as acusações deduzidas pelo Ministério Público e pelo assistente, designando data para a realização da audiência de julgamento, nos termos dos artigos 311.º e 312.º do Código de Processo Penal; ou

2. Caso se entenda verificada a existência da irregularidade em apreço, determine aos próprios serviços a sua reparação.
Assim se fazendo JUSTIÇA! …”.
*

Nem a Arg. nem o Assistente responderam ao recurso.

*

Neste tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 383/385, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância, e pronunciando-se pela procedência do recurso.

*
É pacífica a jurisprudência do STJ[5] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[6], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[7].

Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a única questão fundamental a apreciar no presente recurso é a de saber se a acusação do Assistente tem que ser notificada ao Arg. e, na sua falta, se o juiz pode devolver os autos ao MP, para sanação do vício.

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Cumpre decidir.

No presente caso, o Assistente deduziu acusação que reproduz e acompanha a acusação do MP, estando em causa crimes públicos e semi-públicos.

A acusação deduzida pelo assistente, feita nos termos do art.º 284º do CPP, isto é, quando acompanha a do MP nos casos de crimes públicos e semi-públicos, não tem que ser notificada ao Arg. durante a fase de inquérito.

Isso é o que resulta da conjugação do disposto nos art.ºs 283º a 285º do CPP.

Na verdade, o art.º 283º/5 do CPP prevê a notificação da acusação deduzida pelo MP, ainda que esta notificação não seja imprescindível para o prosseguimento dos autos, e o art.º 285º/3 do CPP prevê a notificação da acusação deduzida pelo assistente, para os casos de crimes particulares, mas o art.º 284º do CPP não prevê qualquer notificação, durante o inquérito, da acusação deduzida pelo assistente que acompanha a do MP nos casos de crimes públicos e semi-públicos.

Não se trata de um lapso ou de uma omissão do legislador, mas de uma opção assumida, uma vez que seria uma notificação inútil, com meros efeitos de dilação processual, porque neste caso não pode o Arg. ter qualquer reacção à acusação do assistente e, por outro lado, sempre esta acusação lhe será notificada, aquando da notificação do despacho que designa data para a audiência, nos termos do art.º 313º/2 do CPP, no caso de ser aceite pelo juiz (art.º 311º/2-b) do CPP).

Mas mesmo que assim se não entendesse, isto é, mesmo que se tratasse de uma irregularidade, não podia a senhora Juíza ter determinado a devolução dos autos ao MP para a sua sanção.

Em primeiro lugar, porque não podia dela conhecer oficiosamente, uma vez que tal irregularidade nunca afectaria o valor da acusação do assistente (art.º 123º/1/2 do CPP).

Em segundo lugar, porque, se fosse de conhecimento oficioso, podia ordenar a reparação da irregularidade, mandando efectuar os serviços do tribunal a notificação em falta, mas não podia devolver os autos para a sua sanação, conforme decorre do teor do art.º 123º/2 do CPP.

Em terceiro lugar, porque, atentas a autonomia do MP e a estrutura acusatória do processo penal, o juiz não tem competência para dar ordens ao MP durante o inquérito[8].

Não pode, pois, deixar de proceder o recurso.

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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não verificada a irregularidade da falta de notificação da acusação do Assistente e, consequentemente, provido o recurso, pelo que revogamos o despacho recorrido.
Sem custas.

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Notifique.

D.N..

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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

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Lisboa, 22/05/2014

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(João Abrunhosa)

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(Maria do Carmo Ferreira)


[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 29/04/2011.
[4] Ministério Público.
[5] Supremo Tribunal de Justiça.
[6]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[7] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[8] Neste sentido, veja-se a seguinte jurisprudência, em parte já citada pelo MP, quer na 1ª instância, quer neste tribunal:

- Acórdão da RE de 14/04/2014, relatado por Sousa Cardoso, in CJ, II, do qual citamos: “…Diga-se ainda que mesmo a verificar-se a falta de notificação da acusação à arguida, tal não constituiria a nulidade insanável prevista no art. 119º aI. c) CPP, por não estar em causa a ausência do arguido a acto processual para o qual a lei exige a respectiva comparência, mas apenas o conhecimento da acusação contra si deduzida. Conforme pode ler-se no Ac STJ de 10.10.07 (5) invocado (certamente por lapso) pelo tribunal a quo para apoio do seu entendimento de que a falta de notificação da acusação constituiria nulidade insanável, estamos neste caso perante mera irregularidade " ... já que a situação não cabe no elenco das nulidades dos arts.119º e 120º do Código ... ". … E ainda assim, apenas constituiria irregularidade relevante nos termos do art. 123º do CPP se pudesse concluir-se no caso concreto que a mesma teria afectado o valor do acto praticado, de acordo com o principio da relevância material da irregularidade, estabelecido na parte final do nº 2 daquele preceito para a irregularidade oficiosamente conhecida, que não pode deixar de valer, por igualdade de razões, para a irregularidade arguida pelo interessado.  …”;

- Acórdão da RP de 04/03/2009, relatado por Melo Lima, no processo 0817712, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Em jeito de nota introdutória e no único propósito de conseguir o enfoque adequado da questão agora em apreço, importa ter presente a filosofia subjacente à lei penal adjectiva nos pontos em que, quais princípios reitores, assume, de uma parte, a estrutura basicamente acusatória do processo penal e, de outra, na decorrência desta mesma estrutura acusatória, confere uma específica relevância ao inquérito que, “convertido na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação”, é realizado “sob a titularidade e a direcção do Ministério Público a quem, exactamente por lhe ser deferida tal titularidade bem como a competência exclusiva para a promoção processual, é atribuído não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica magistratura sujeita ao estrito dever de objectividade”. [1]


Retomando a questão: é da exclusiva competência de um juiz o conhecimento da excepção da incompetência relativa do tribunal ou, na fase do Inquérito ela compete (também ou exclusivamente) ao Ministério Público?

Disse-se já que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público.

É o que resulta expressis verbis das normas ínsitas nos artigos 53º/2 al. b) e 263º/1 do C.P.Penal. [2]

Deste poder de direcção conjugado com aquela vinculação ao dever de objectividade resulta que se por um lado tem ele o poder de praticar ou não praticar os actos de investigação e as diligências probatórias que entenda adequadas aos fins do inquérito não pode, por outro, deixar de pautar a sua conduta de direcção da actividade processual no âmbito do inquérito – do Inquérito, como em todas as vertentes do seu exercício funcional – pelo princípio da legalidade e por critérios de estrita objectividade.

Pois bem, no específico exercício deste poder de direcção do inquérito, que há-de ser enformado, repete-se, pelos princípios da legalidade e do respeito por critérios de estrita objectividade, compete-lhe decidir sobre os pressupostos processuais, v.g, da legitimidade e da tempestividade da queixa ou sobre a verificação de causas impeditivas do procedimento como a amnistia, a prescrição, etc, etc.

E neste sentido, porque exactamente a competência do tribunal, seja em razão da matéria, seja em razão do território, consubstancia um pressuposto processual para o procedimento penal, ao Ministério Público compete, em obediência aos princípios da legalidade, objectividade e imparcialidade a que está vinculado, aferir e garantir o cumprimento da lei adjectiva penal no respeitante à conformidade legal do mesmo pressuposto.

Determina-se, a este propósito no artigo 277º/1 do C.P.Penal que “O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de não se ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento”.

Vale dizer, deve o Ministério Público conhecer das nulidades, irregularidades ou pressupostos processuais que obstam ao conhecimento de meritis.

Entre os pressupostos processuais – que na inconformidade legal se constituem verdadeira causa de impedimento ao procedimento criminal – conta-se o da competência do tribunal, cuja violação e/ou inobservância obedece ao regime consignado no regime das nulidades.

Dizer, então: constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a violação das regras de competência do tribunal – Artigo 119º/al.e) do C.P.Penal.

Se é obrigatório o conhecimento ex officio em qualquer fase do procedimento tem então o MºPº inteira competência – e também o dever de - para, no exercício da sua função de direcção do inquérito pôr-lhe termo na decorrência e comprovação da excepcionada incompetência relativa.

Uma competência que, no âmbito do Inquérito e neste caso específico, surge paralela, igual à do Juiz de Instrução.

É que, como diz Pinto de Albuquerque:

“Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal. O princípio da legalidade implica aquela competência concorrente do Ministério Público e do juiz de instrução na fase de inquérito, pois também a magistratura do Ministério Público está vinculada ao princípio da legalidade e numa fase processual dirigida pelo Ministério Público essa vinculação há-de traduzir-se precisamente no poder de controlar as invalidades nela cometidas. Outra solução que vedasse ao Ministério Público esta competência numa fase processual por si dirigida violaria a competência constitucional de fiscal da legalidade do Ministério Público. Portanto, nem o juiz de instrução tem o exclusivo desta competência na fase de inquérito (…), nem o Ministério Público (…)

Mas adverte o mesmo Autor:

“Contudo, esta competência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência…”

A competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da actividade do Ministério Público…

Por outo lado, a competência do juiz de instrução seria igualmente subvertida se o Ministério Público pudesse declarar a nulidade de actos processuais presididos pelo juiz de instrução durante o inquérito”

E conclui:

“Portanto, do despacho do Ministério Público que decide durante o inquérito se um acto processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular ou uma prova é ou não é proibida não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior, mas reclamação hierárquica para o superior hierárquico do magistrado do Ministério Público” …”.

- Acórdão da RL de 26/02/2013, relatado por Alda Tomé Casimiro, no proc. 406/10.7GALHN-A.L1, do qual citamos: “…A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. arts. 219º da Constituição da República Portuguesa e 262º do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional.

Assim é por força da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art. 32º, nº 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que a acusação – que define e fixa o objecto do processo, imputando um crime a determinada pessoa – tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório.

Todavia, o princípio do acusatório e o facto da direcção do Inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos actos praticados nessa fase.

Tendo sido deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo segue para a fase de julgamento, cabendo, então, ao juiz (de julgamento) pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 311º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.

E sendo pacífico que no despacho a que se refere aquele art. 311º “não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação” (cfr. acórdão do TRE, de 11.07.1995, in CJ XX, tomo IV, p. 287), já se divergem as opiniões quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido.

De facto, já se defendeu que o juiz pode devolver os autos ao Ministério Público se entender que não foram efectuadas todas as diligências necessárias para a notificação da acusação ao arguido (assim, e para além do acórdão citado no despacho recorrido, cfr. o acórdão do TRP, de 09.05.2001, in CJ XXVI, tomo III, p. 230) com o argumento de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa e uma deficiente notificação é “susceptível de afectar o direito de defesa do arguido – na medida em que deste faz parte o direito conferido ao arguido de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, com vista a evitar a sua submissão a julgamento”, pelo que se imporia a “possibilidade da sua reparação oficiosa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 123º do C. Penal” – no mesmo sentido cfr. o acórdão do TRC, de 24.11.1999, in CJ XXIV, tomo V, p. 51.

Acontece que a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação – podendo então requerer instrução, para o que disporá do prazo normal de 20 dias.

Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no nº 1 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, e não no nº 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294).

Mas ainda que seja entendimento do Juiz que é de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando que os respectivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contem implícita uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido – decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.

De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, “não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” (cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006 (pesquisado in www.dgsi.pt) – assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição actualizada, ps. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende quepelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação”. …”.