I - A circunstância de no nosso regime jurídico ter já existido norma semelhante à do art 22º do CIRE – o art 1188º do CPC/39 - que colocava a responsabilidade pelo infundado da falência claramente no campo da litigância de má fé, e a circunstância de, assim se entendendo, resultarem menos ofendidos os princípios que regem a responsabilidade civil, conduz a que se entenda que a respectiva previsão se refere à responsabilidade processual civil e não à responsabilidade civil.
II – De todo o modo, a estatuição desse preceito deve considerar-se extensiva à negligência grosseira, com base no brocardo “culpa lata dolo aequiparatur”.
III – Por isso, no que respeita à aplicação dessa norma, está apenas em causa uma situação de utilização imprópria do processo e não os prejuízos resultantes de ofensas de posições jurídicas substantivas a que o litigante de má fé possa igualmente ter dado lugar com o seu comportamento, podendo, no entanto, a responsabilidade processual civil coexistir com a responsabilidade civil, ou mesmo com o abuso de direito
I - Bandague – Sociedade de Recauchutagem de Pneus a Frio, SA, intentou a presente acção com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de Tripneus, Lda, invocando ser credora da mesma pelo valor relativo a fornecimentos não pagos no montante de € 4.935,77 e respectivos juros vencidos até 6/11/2013 no valor de € 475,36. Para além disso, alega, entre o mais, que «se presume que a requerida não está a exercer a sua actividade» – art 14º - «até porque não tem crédito junto dos seus antigos ou mesmo novos fornecedores» – art 15º - e que «tem a correr contra si vários processos de execução fiscal» –art 18º - mencionando - «a titulo exemplificativo», art 19º – dois processos, de natureza não fiscal, que contra ela estão a correr termos. Concluindo que «por estes factos e processos se demonstra a total incapacidade de a requerida em cumprir as suas obrigações» – art 20º. Refere ainda – art 25º - que «se presume que a requerida está com a actividade parada»- art 26º - «com o que resta da sua frota de camiões, onde foram instalados os bens vendidos pela requerente, parada», e que «tem dividas ao Estado» – art 34º
A requerida contestou, pedindo a improcedência do pedido, alegando que não está insolvente. Refere que está a exercer a sua actividade comercial, que tem crédito junto dos seus fornecedores, não tem dívidas ficais, os dois processos judiciais que a requerente refere decorrem não da incapacidade de cumprimento, mas da discussão do montante das dividas, e que a dívida para com a requerente estava a ser paga através de um plano de pagamentos de acordo com a sua disponibilidade financeira, sendo que é ela credora de valores no montante aproximado de € 104.597,10 , tem uma relação saudável com a banca, o seu activo é superior ao seu passivo, não tem dividas à segurança social e não tem dividas laborais Termina deduzindo pedido reconvencional, invocando o disposto no art 22º do CIRE, pedindo a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de 10.000,00 € a título de indemnização por ter sido interposta esta acção infundada, bem sabendo a requerente que o era, referindo que o requerimento de insolvência colocou em causa o seu bom nome e imagem, danos cujo ressarcimento computa no valor de € 8.000,00, alem de que o pedido apresentado a forçou a efectuar deslocações, reuniões, obtenção de declarações, solicitação de declarações abonatórias junto de fornecedores e de clientes, com o que afectou recursos que implicaram prejuízos que computa no valor de 2.000,00 € .
A requerente respondeu a este pedido, solicitando a respectiva improcedência.
Foi proferido despacho não admitindo o pedido reconvencional pela falta de fundamento legal para o mesmo, tendo, no entanto o mesmo salvaguardado que «o pedido indemnizatório formulado pode porém inserir-se no artigo 22.º do Cire e, nesses termos, será conhecido nestes autos».
Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e igualmente improcedente o pedido de indemnização da requerente.
II – Inconformada, apelou a requerida que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
1. A Apelada deduziu o pedido infundado de insolvência contra a Apelante, tendo este sido declarado improcedente pelo Tribunal a quo.
2. Na petição, a Apelada alegou factos atinentes à declaração de insolvência da Apelante, sem que apresentasse qualquer suporte probatório para cada uma dessas alegações.
3. Na contestação, a Apelante apresentou prova de que não se encontrava insolvente, que os factos alegados pela Apelada não correspondiam à verdade, deduzindo o pedido de indemnização pela responsabilidade civil decorrente do pedido infundado de insolvência, nos termos do artigo 22º do CIRE.
4. O Tribunal a quo declarou que a dívida existente entre ambas as sociedades não seria suficiente para proceder o pedido de insolvência formulado pela Apelante, pelo facto do montante ser reduzido (inferior a 5.000,00 euros), e terem sido efectuados três pagamentos por conta da mesma, abatendo à conta corrente existente entre ambas as sociedades.
5. O Tribunal a quo absolveu a Apelada do pedido de indemnização formulado, por faltar elementos integrantes da responsabilidade civil, sem os especificar.
6. Acresce que ficou ainda provado pelo Tribunal que a Requerida, ora Apelante: a. Encontra-se activa, a laborar; b. Tem um activo superior ao passivo; c. Não tem dívidas fiscais; d. Não tem dívidas à Segurança Social; e. Tem crédito junto dos seus fornecedores; f. Não tem rendas do estabelecimento em mora; g. Não regista incumprimentos junto da Banca; h. Tem património que podia responder pelo valor do crédito em causa
7. Entendeu igualmente que não se verificou nenhum dos indícios previstos no artigo 20º do CIRE, que permitisse decretar a insolvência, e não estar verificada a impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, nos termos do artigo 3.º do CIRE.
8. Um pedido infundado é, um pedido que carece de fundamento, isto é, não obedece aos fundamentos previstos na lei.
9. As consequências de um pedido infundado são desastrosas para a situação económica e social de uma empresa, assim como para a confiança do devedor, pelo que deverá haver responsabilidade para o Requerente que usa abusivamente o processo, deduzindo um pedido infundado de insolvência.
10. Ora, este pedido infundado de insolvência levantou diversos problemas, desde logo pela desconfiança que criou nos parceiros financeiros, nomeadamente a Banca.
11. Causou prejuízos comerciais, na medida em que a solvabilidade económica e o “bom nome” da Apelada foi colocada em causa, pelos fornecedores, pelas instituições e pelo próprio público em geral e potenciais clientes.
12. O pedido formulado pela Apelada careceu de fundamento, isto é, não obedeceu aos requisitos previstos na lei, quando na petição inicial existia a obrigatoriedade de indicar os factos em que se baseiam para fundamentar a insolvência.
13. A lei limita-se a afirmar que o dever de indemnização pressupõe um comportamento danoso, ilícito e culposo.
14. Diremos apenas que actuará de má fé aquele que, no quadro da insolvência com dolo: a) tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
15. Se analisarmos a conduta da Apelada, a própria petição contém elementos, afirmações e conclusões falsas, mesmo conclusões erradas da prova por si apresentada sobre o activo e passivo da Apelante.
16. A Apelada distorceu a verdade e levantou falsas suspeitas sobre a Apelante, colocou em causa o seu bom nome, ou seja, difamou-a.
17. A Apelada causou danos na imagem da Apelante, colocando causa o seu bom nome, construído ao longo de 25 anos de actividade, através do pedido de insolvência com base em insinuações falsas, apresentadas na petição inicial, como já transcritas nas alegações.
18. No domínio da conduta processual, o tipo legal expõe a dedução de um pedido infundado de insolvência, é necessário que, para que possa haver um acto ilícito, se viole uma conduta prevista no artigo.
19. Aqui a ilicitude consistiu no comportamento adoptado no momento de alegação dos factos ou dedução da pretensão, ou seja, na interposição da acção.
20. Assim, a Apelada ao deduzir o pedido de declaração de insolvência da Apelante, vindo a provar-se não se verificar qualquer dos factos-índice constantes das várias alíneas do n.º 1 do art. 20.º do CIRE, cometeu um facto ilícito.
21. Surgem assim os danos morais, resultantes deste processo, por via da difamação.
22. Sempre que a parte adoptar uma conduta ilícita preenche o elemento objectivo, e se conjugarmos com o elemento subjectivo, que a conduta seja dolosa, então terá que haver responsabilidade.
23. Ora, a conduta da Apelada foi Dolosa.
24. A Apelada sabia as consequências do provimento do seu pedido.
25. A Apelada sabia que a acção de insolvência não é a acção competente para a Apelada acionar os seus créditos, dado que este lança ilegitimamente mão de um “processo de execução universal” (artigo 1º do CIRE), que visa a satisfação da totalidade dos eventuais credores, o que constitui, neste caso, um expediente inadequado para ver garantido o seu crédito.
26. Ou seja, a Apelada ao requerer a insolvência da ora Apelante, sabe, ou não pode desconhecer as graves consequências da sua pretensão, nomeadamente:
a) Provocar o encerramento de uma empresa com mais de 25 anos;
b) Atirar os trabalhadores da Requerida para desemprego;
c) Provocar o vencimento dos créditos bancários existentes e, à data, regulares, acionando inevitavelmente as garantias pessoais assumidas pelos avales prestados pelos sócios e cônjuges;
d) Degradar e difamar a imagem da Requerida perante o mercado, fornecedores e seus
credores;
e) Provocar custos inerentes ao processo judicial a que deu aso.
27. A Apelada sabia e quis produzir estas consequências nefastas da procedência do seu pedido na esfera jurídica da Apelante.
28. Acresce que o próprio Administrador da Apelada, testemunha arrolada, veio afirmar que a dedução do pedido de insolvência dos clientes devedores era prática comum com outros devedores, utilizada como técnica corrente para a cobrança de créditos sobre os seus clientes.
29. Ou seja, a Apelada sabia e quis prejudicar a Apelante, utilizando argumentos que bem sabia serem falsos e distorcidos da realidade, com se veio a provar à contrario pelo Tribunal a quo.
30. Na realidade, sempre soube que a declaração de insolvência colocaria em causa, como o requerimento já colocou, a imagem credível que a Apelante possui no seu sector de actividade.
31. A declaração infundada do pedido de declaração de insolvência é geradora de responsabilidade civil na modalidade de danos patrimoniais e não patrimoniais.
32. A conduta da Apelada integra pedido infundado de declaração de insolvência, nos termos do artigo 22º do CIRE, e mostrou-se ilícita, atentos os meios que utiliza para lesar os interesses da Apelante.
33. A Apelada, sendo também uma empresa, não pode desconhecer as repercussões que um pedido de declaração de insolvência reflecte na esfera do devedor, nomeadamente prejuízos comerciais, na medida em que a solvabilidade económica daquele é colocada em causa, pelos fornecedores, pelas instituições e pelo próprio público em geral e potenciais clientes, como já se referiu.
34. Não obstante, a Requerente não se coibiu de recorrer a este expediente, bem sabendo que o seu pedido é manifestamente infundado atendendo ao supra alegado.
35. Pretendeu a Apelada com o requerimento inicial afastar a Apelante do mercado, não olhando a meios nem a fins para atingir este objectivo.
36. Ora esta conduta é ilícita e dolosa, causou danos à Apelante.
37. A Apelada colocou em causa o bom-nome da Apelante pretendendo e conseguindo denegrir a sua imagem comercial, provocando danos à sua imagem e credibilidade comercial que a mesma computou no valor total de € 8.000,00 (oito mil euros).
38. Para além deste montante, a Apelante, face ao pedido de insolvência apresentado viu-se forçada a efectuar deslocações, reuniões, obtenção de declarações e comprovação da situação actual, solicitar declarações abonatórias junto das Finanças e Segurança Social, pagar honorários aos ilustres mandatários, e afectar recursos humanos da estrutura empresarial à reunião de todos os documentos comprovativos da situação de solvabilidade da mesma.
39. Os factos supra invocados geraram prejuízos patrimoniais à Apelante, nomeadamente, despesas de deslocação, honorários a mandatários, horas de trabalho relativamente a recursos humanos, horas despendidas pela própria gerência.
40. Prejuízos que a Apelante computou no valor de € 2.000,00 (dois mil euros).
41. Mostrando-se preenchido o nexo de causalidade entre a conduta da Apelada e os danos que causou à Apelante.
A requerente apresentou contra alegações pedindo a manutenção do decidido.
Colhidos vistos, cumpre decidir.
III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade que tem por objecto a comercialização de pneus novos e recauchutados, sua montagem e desmontagem e todos os serviços conexos com esta actividade.
b) No exercício da sua actividade, a Requerente vendeu à Requerida vários pneus e outros equipamentos relacionados com os pneumáticos bem como serviços de assistência técnica.
c) A requerente emitiu as seguintes facturas: a) Factura n.º VC2/ 32004836, emitida em 29 de Outubro de 2012, no valor de € 2.826,24 e b) Factura n.º VC2/ 32004844, emitida em 29 de Outubro de 2012, no valor de € 4.260,77.
d) Por força dos fornecimentos ocorridos, deve a Requerida à Requerente a quantia total de € 5.411,13 (cinco mil quatrocentos e onze euros e treze cêntimos).
e) A Requerida foi oportunamente interpelada para pagar as quantias reclamadas.
f) É gerente da requerida Rogério Manuel Castelo Grilo.
g) A requerida está a exercer a sua actividade.
h) A requerida tem crédito junto dos seus fornecedores mantendo conta corrente que vai pagando de acordo com as suas possibilidades.
i) A requerida não tem dívidas fiscais.
j) De acordo com o ES de 2012, a requerida tem um passivo de 553.690,94 euros e um activo de 906.118,00 euros.
k) A requerida apresentou uma relação de bens no valor de 44.148,00 euros – teor do documento que a requerida juntou como n.º 8.
l) A requerida não tem dívidas no armazém onde labora.
IV- A questão a apreciar no recurso, tal como emerge das conclusões das alegações é em ultima análise a de saber se a interposição infundada da presente acção de insolvência, implicando o preenchimento da previsão do art 22º do CIRE, justificará ao contrário do decidido a condenação da requerente no pedido indemnizatório formulado.
Dispõe o art 22º do CIRE: «A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo».
Trata-se de dispositivo legal que tem vindo a ser objecto de profundas críticas e de entendimentos não uniformes, quer na doutrina quer na (pouca) jurisprudência encontrada a seu respeito [1].
Esta não uniformidade revela-se, desde logo, no campo da respectiva previsão, havendo quem entenda que a mesma se refere à responsabilidade processual civil e havendo quem a situe no campo estrito da responsabilidade civil.
Sucedendo, porém, que quer num caso quer noutro o preceito em referência, entendido à letra, isto é, aceitando-se que se reporte apenas e necessariamente a uma actuação dolosa de quem se presente à insolvência ou de quem a requeira, se revelaria como que uma aberração jurídica.
Refere Paula Costa e Silva [2] a este respeito: «O que imediatamente impressiona perante o regime do CIRE é a sua contradição valorativa com os tipos especiais dos arts 319º e 819º do CC. Sendo um meio especialmente perigoso, cujos efeitos na esfera do devedor podem ser incomensuráveis, esperar-se-ia que os deveres de cuidado impostos ao requerente fossem equivalentes àqueles que se impõem ao requerente de providência cautelar ou de execução fundada em titulo que determina a penhora prévia». Para concluir que, «o elemento subjectivo do ilícito não só, não está a par com aquele que encontramos nos tipos periféricos
(estando-se a reportar, como é manifesto, aos referidos arts 319 e 819º), como fica aquém daquele que resulta do tipo central » (estando a reportar-se litigância de má fé).
Pondo assim em relevo que, numa concepção ou noutra deste tipo de responsabilização – responsabilidade processual ou pura responsabilidade civil - restaria sempre por explicar a referência e a limitação explícita ao dolo.
Menezes Leitão [3] que, pelas considerações que tece a respeito da norma em causa, será partidário da colocação da mesma no campo da responsabilidade civil, refere: «Trata-se de solução que temos por dificilmente justificável consagrar uma responsabilidade limitada ao dolo por parte de quem decida mover infundadamente um pedido de declaração de insolvência, sabendo-se que no âmbito da responsabilidade civil a regra é que tanto se responde por dolo como por negligência (art 483º/1 CC). Ora, não há qualquer razão para quem mova negligentemente um pedido de declaração de insolvência deixe de responder pelos prejuízos causados, não fazendo por isso sentido a limitação deste artigo».
Por isso, conclui: «Em qualquer caso, parece-nos que o mesmo poderá ser analogicamente aplicável à negligência grosseira com base no brocardo “culpa lata dolo aequiparatur”».
Também Menezes Cordeiro[4], que atribui a norma em causa a uma transposição «menos pensada» do direito alemão, a coloca no campo da responsabilidade civil, e salienta: «Uma interpretação literal e imediata descobrirá qui um caso único no Direito Português de uma responsabilidade civil assente apenas no dolo. A assim ser, a pessoa que, por descuido grosseiro e indesculpável, viesse com um pedido de declaração de insolvência totalmente descabido, que provocasse os maiores danos patrimoniais e morais, não responderia… por não ter agido com dolo. A solução é tão obtusa que não pode resultar da lei no seu conjunto».
E parece ir ainda mais longe do que de Menezes Leitão, dizendo [5]: «Quanto ao pedido infundado ele é ilícito e responsabiliza por dolo ou mera culpa, nos termos do art 483º/1 CC. A assim não ser, ficariam sem cobertura direitos de personalidade tutelados pela Constituição. Um requerimento leviano de insolvência pode destruir patrimonial e pessoalmente uma pessoa: seria inimaginável que o Direito nada fizesse».
A circunstância de no nosso regime jurídico ter já existido norma semelhante à do art 22º do CIRE e que colocava a responsabilidade pelo infundado da falência claramente no campo da litigância de má fé, leva-nos, na esteira do entendimento de Pedro de Albuquerque – e ao que parece, embora não com toda a clareza, também de Carvalho Fernandes e João Labareda - a situar a disciplina do art 22º do CIRE nesse estrito campo.
Com efeito, no art 1188º CPC/39 cuja epígrafe era a de, “Apreciação oficiosa da má fé do requerente”, previa-se que, denegada a declaração de falência ou revogada a sentença que a declarara, verificar-se-ia necessariamente se no processo de falência o requerente agira de má fé; e caso assim se concluísse, seria o mesmo condenado em multa e indemnização nos termos da litigância de má fé, ressalvando-se ainda a possível responsabilização criminal.
Já então impressionava – como o notícia Paula Costa e Silva - que o requerente apenas respondesse em caso de actuação dolosa, pois, como é sabido, só com a reforma processual de 95 se passou a admitir a litigância de má fé com base na negligência grave.
Hoje, a referência ao dolo no art 22º do CIRE, atenta a previsibilidade da litigância de má fé com base na negligência grave, só pode implicar uma «contradição valorativa» [6]: «Se o sentido do art 22º é o de apenas permitir a condenação por litigância de má fé em caso de dolo, como entender este preceito à luz dos arts 456º e ss do CPC? Como explicar que na generalidade das acções, nomeadamente nas declarativas, as partes possam ser condenadas como litigante de má fé em virtude de dolo ou culpa, e no caso de pedido infundado de declaração de falência – justamente uma das situações em que a falta de ponderação e de temeridade do autor maiores lesões e prejuízos podem causar à outra parte – apenas se responda em caso de dolo?»
Assim para Pedro de Albuquerque [7]«uma interpretação meramente literal do art 22 º CIRE seria inconstitucional na medida em que colidiria com a tutela dispensada pela nossa Constituição a direitos como os de personalidade, de propriedade e livre iniciativa etc», sublinhando de qualquer modo que, «ao dizer que o pedido infundado, ou a indevida apresentação por parte do devedor gera responsabilidade pelos danos causados, mas tão só em caso de dolo, o preceito em referência não pode, na verdade (…) estar a referir-se à responsabilidade civil. Isso provocaria a respectiva inconstitucionalidade e uma gravissima desarmonia com princípios básicos e os próprios alicerces do nosso direito privado civil. A responsabilidade em causa é na realidade a responsabilidade processual civil».
O autor em causa sintetiza deste modo a sua posição relativamente ao (polémico) art 22º do CIRE [8]: «O art 22º do CIRE, ao estabelecer uma responsabilidade em caso de pedido infundado de declaração de insolvência, ou indevida apresentação, não está a afastar o regime constante do asrt 456º do CPC. Está apenas a chamar a atenção, no caso particular do processo de insolvência, para a circunstância comum de deveres de natureza processual se fazerem sentir logo na fase inicial de interposição da acção ou requerimento processual, ou mesmo na fase imediatamente anterior a ela. Dito de oura maneira: o art 22º é apenas uma concretização específica do art 456º, cuja doutrina continua a valer na sua plenitude no âmbito do processo de insolvência».
Não deixando de sublinhar, neste ponto coincidindo com o entendimento de Menezes Leitão: «E quanto à contradição valorativa só há que fazer apelo à força expansiva do princípio existente desde os tempos do Digesto, segundo o qual “culpa lata dolo aequiparitur» [9]
Desde o momento em que, como atrás salientado, se comunga com este autor do ponto de vista de que o art 22º CIRE – por razões históricas e porque resultam menos ofendidos os princípios que regem a responsabilidade civil - só pode respeitar à responsabilidade processual civil, deixa de ser relevante na concreta situação dos autos, a circunstância de não terem resultado efectivamente provados quaisquer concretos danos causados à requerida/apelante pela dedução infundada deste processo de insolvência, para se poder condenar a requerente como litigante de má fé.
È que, na litigância de má fé a ilicitude situa-se na circunstância de se estar em juízo com má fé - consubstanciada em dolo ou culpa grave - independentemente de danos para a outra parte. Está em causa apenas uma situação de utilização imprópria do processo, uma situação «que se joga fundamental ou exclusivamente a nível processual, e não num plano substantivo», o qual, como o assinala Pedro de Albuquerque [10] é deixado a outro tipo de institutos: o abuso de direito e a responsabilidade civil, sem prejuízo da responsabilidade processual civil poder coexistir com a responsabilidade civil ou até com o abuso de direito.
Consequentemente, para a condenação a que se reporta o art 22º do CIRE, o que importa é que dos autos resulte que foi cometido um ilícito de natureza (exclusivamente) processual.
Com efeito, «nenhuma das alíneas do art 456º indica uma qualquer situação em que na base da litigância de má fé esteja a ofensa, em si e por si, a um direito ou a outra posição jurídica subjectiva concedida ou protegida pelo direito substantivo». «Trata-se de uma ilicitude baseada na violação de posições e deveres processuais que, a serem atingidos, geram de imediato uma ilicitude sancionável independentemente da existência ou lesão de qualquer ilícito de direito substantivo - ou se se preferir da ofensa de posições jurídicas tuteladas pelo direito substantivo». [11]
Logo, e como atrás já se fez notar, não afectará o juízo que se impõe fazer nos presentes autos, a circunstância de, efectivamente, não terem resultado provados factos que permitissem a responsabilidade da requerente por danos morais [12] ou por danos patrimoniais [13].
«A responsabilidade por litigância de má fé está sempre associada à verificação de um puro ilícito processual, pelo que os danos referidos peso art 457º /1 al b) só podem ser assim os resultantes desse ilícito processual, não os resultantes de ofensas de posições jurídicas substantivas a que o litigante de má fé possa igualmente dar lugar com o seu comportamento»[14]
Ora, o critério da indemnização na litigância de má fé não é a medida do dano, nem tão pouco a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, já que, em vez de se atender, como sucede na responsabilidade civil, à situação do lesado, considera-se antes a do autor do facto ilícito. A finalidade visada pela indemnização em sede de litigância de má fé não é ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil, mas meramente sancionatória e compensatória.
Não se esqueça que com o instituto da litigância de má fé se protege um interesse publico [15] de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e a eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestigio da justiça.
È sabido que se pode falar em má fé substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cujo fundamento não devia ignorar (art 456º/2 al a), ou alterar a verdade dos factos, ou omitir factos relevantes para a decisão da causa – art 456º/2 al b) - ou seja «se tiver violado o dever de verdade», e pode falar-se de ma fé instrumental se a parte tiver omitido, com gravidade, o dever de cooperação – art 456º/2 al c) - tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar sem fundamento sério o transito em julgado da decisão – art 456º/2 d) CPC
Cumpre então saber se os factos provados , mas também os não provados, evidenciam, com suficiência, má fé substancial ou instrumental.
Dos factos alegados pela requerente resultaram não provados os aludidos nos artigos 14º, 15º, 18º, 19º, 25º, 26º, concretamente:
- «Presume-se que a requerida não está a exercer a sua actividade» – art 14º
-«Até porque não tem crédito junto dos seus antigos ou mesmo novos fornecedores» – art 15º
-«Tem a correr contra si vários processos de execução fiscal» –art 18º
-«Presume-se que a requerida está com a actividade parada»- art 25º
-«Com o que resta da sua frota de camiões onde foram instalados os bens vendidos pela requerente parada» -art 26º
E dos factos alegados pela requerida na sua defesa resultou provado – alguns ao contrário do que a requerente alegara:
- «A requerida está a exercer a sua actividade».
- «A requerida tem crédito junto dos seus fornecedores mantendo conta corrente que vai pagando de acordo com as suas possibilidades».
-« A requerida não tem dívidas fiscais».
-«De acordo com o ES de 2012, a requerida tem um passivo de 553.690,94 euros e um activo de 906.118,00 euros.
-« A requerida apresentou uma relação de bens no valor de 44.148,00 euros »
-«A requerida não tem dívidas no armazém onde labora».
Do que resulta que a requerente ao decidir intentar a acção a requerer a insolvência da requerida – em função de uma dívida de cerca de € 5.000,00 – se o não o tiver feito propositadamente para pressionar a requerida ao pagamento – o que na verdade se desconhece – fê-lo, no mínimo, levianamente, sem observar os deveres de cuidado que se impõem de obtenção de prévias e seguras informações a respeito do exercício de actividade, tendo actuado, consequentemente, indiferente à «altíssima probabilidade» [16] de a acção de insolvência desencadear ofensas drásticas no crédito e bom nome do requerido, mesmo quando a acção não chega a julgamento, como esta acabou por chegar. Quem intenta uma acção a requerer a insolvência tem um especial dever de diligência, deve observar um mínimo de cuidados, por não poder deixar de prever que a simples propositura desse tipo de acção provoque prejuízos.
Ora, o que sucede no requerimento de insolvência apresentado pela requerente é que a mesma máxime com a assumida vacuidade de certas considerações - «presume-se que a requerida não está a exercer a sua actividade», «presume-se que a requerida está com a actividade parada»- expressa «uma total indiferença pela exposição do devedor aos desvalores normalmente associados pelos diversos agentes económicos à circunstância de alguém (concretamente uma empresa) ser sujeito a um processo de insolvência, mesmo quando esta não vem a ser decretada»[17].
A requerida pediu uma indemnização de 10.000,000 € fazendo-o numa perspectiva de responsabilização civil, tendo chegado ao ponto de inserir nesta acção especial reconvenção, que foi rejeitada.
Sobejou, no entanto, o pedido de responsabilização a ser avaliado em função do disposto no art 22º CIRE.
Não logrou provar a efectividade dos danos de ordem não patrimonial e patrimonial que invocou.
Mas resulta dos autos má fé substancial da requerente ao ter proposto a acção, sabendo ou devendo saber que formulava pretensão cujo não fundamento não ignorava ou não ignoraria se tivesse tido o cuidado de melhor o averiguar, e sabendo ou devendo saber que alterava a verdade dos factos, só estas atitudes psicológicas podendo justificar a temeridade com que utilizou as acima referidas expressões, «presume-se que a requerida não está a exercer a sua actividade» e «presume-se que a requerida está com a actividade parada».
Neste contexto não se afigura excessivo nem desadequado condenar a requerente em função desse ilícito em indemnização à requerida de 2.500,00 € e em multa igualmente de 2.500,00 €.
V – Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e passando a condenar-se a requerente pela interposição infundada da presente acção como litigante de má fé em multa de € 2.500,00 e em indemnização à requerida de igual montante.
Custas pela requerida.
Lisboa, 5 de Junho de 2014
Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
[1] - Tanto quanto se conhece, apenas, como disso dá noticia Menezes Cordeiro, em «Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa “in agendo”», seis acórdãos: RP 22/4/2008 (Rodrigues Pires); RC 15/5/2012 (Carvalho Martins);11/12/2012 ( Mª José Guerra); 12/6/2012 (Teles Pereira); 19/2/2013 ( Jacinto Meca) ; R L 23/4/2013 (Isabel Fonseca)
[2] - «A Litigância de Má fé», Almedina, p 502 a 512
[3] - «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas» anotado, Maio de 2004, p 53
[4] - «Litigância de Ma fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa “in agendo”»
[5] - Obra referida, pag 250
[6] - Pedro de Albuquerque, obra referida
[7] Obra referida, p 154
[8] - Obra referida, p 157
[9]- Salienta Gavão Telles «Direito das Obrigações», 2ª ed , p 338: «A culpa grave, sabemo-lo é, em princípio equiparável ao dolo ou má fé. É-o no sentido de que, se a lei na sua letra só der relevância ao dolo ou má fé, a sua estatuição deverá considerar-se extensiva à culpa grave, salvo se em relação a determinado preceito legal houver porventura razões ponderosas para entendimento contrário »
[10] - Obra referida, p 29
[11] - Obra referida, p 52
[12]-Como os direitos ao bom nome e reputação, à imagem, à intimidade de vida privada ou à integridade psíquica
12- Como o atentado aos direitos de propriedade, de liberdade de empresa, de liberdade de trabalho e de integridade patrimonial
[14]- Pedro de Albuquerque, obra referida, p 54
[15] - Os deveres atingidos pela má fé processual são deveres com relevância e interesse público como claramente atesta a existência de multa a castigar o procedimento do litigante improbo e a menção à responsabilidade criminal constante do art 1188º do CPC relativo á litigância de má fé no âmbito do processo e falência
[16] - Pedro de Albuquerque, obra citada, p 7, nota 4
[17]- Utilizando as palavras do Ac R C de 12/6/2012 (Teles Pereira)