CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PACTO COMISSÓRIO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Sumário

1. A locação financeira restitutiva (ou lease-back) é uma modalidade de locação financeira que pressupõe a prévia compra do bem a ser dado em locação ao próprio locatário e situa-se nos primórdios deste instituto, concretamente, nos Estados Unidos da América, onde esta operação de crédito surgiu e se configurou; a doutrina e jurisprudência portuguesas não vêm colocando em causa a legalidade desta figura jurídica.
2. A locação financeira restitutiva pode violar a proibição do pacto comissório, sendo inadmissível sempre que, no caso concreto, se destine a contornar aquela proibição, cuja ratio é plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do credor e a necessidade, que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as "regras do jogo", através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em prejuízo dos demais.
3. Constituem factos-índice da utilização do lease-back para um fim ilícito: «em primeiro lugar, a preexistência de uma relação creditícia entre as partes; em segundo lugar, a circunstância de o utilizador se encontrar numa situação de grave dificuldade económico-financeira; em terceiro lugar, o facto de a posição do locador ser ocupada por um sujeito que não exerça, habitualmente, a atividade de locação financeira; em quarto lugar, a existência de uma desproporção entre o montante do bem dado em garantia e o do débito».
4. Tendo a Requerida cumprido durante quase três anos, pontualmente, o contrato de locação financeira, a invocação de nulidade do contrato face ao pedido de restituição em consequência do incumprimento, constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, como bem defende o recorrido.
5. (AAC)

Texto Integral

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório 

“Banco …, S.A”, com sede na …, veio intentar os presentes autos de procedimento cautelar (entrega judicial – art. 21º, do Dec. Lei nº 149/95, de 24-6) contra “R…”, com sede no lugar de …, formulando o seguinte pedido:

1. Ordenar-se a imediata entrega à Requerente do seguinte imóvel: Prédio rústico, com a área de 85,920 m2, denominado "M… C…", freguesia de …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha número …, da mencionada Freguesia, inscrito na matriz predial, Secção Y", com a sua apreensão através da autoridade policial competente; e que 

2. Após decretar a presente providência cautelar, se digne ouvir as partes e antecipar o juízo sobre a causa principal, devendo a mesma ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser a Requerida definitivamente condenada:

a) Na entrega do imóvel supra descrito, se necessário, confirmando-se a decisão da providência cautelar pretendida; e

b) no pagamento à Requerente da quantia de € 17.092,76, por cada mês ou fração em que estiver em mora na restituição do imóvel, contados desde 26/01/2013 até à sua efetiva entrega ao B…, e que somavam em 26/06/2013 o valor de € 85.463,80 (oitenta e cinco mil quatrocentos e sessenta c três euros e oitenta cêntimos), acrescido dos respetivos juros legais vencidos e vincendos, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento. 

Alega, para tanto, em suma, que: 

No âmbito da sua atividade, em 17-2-2006, a sociedade “Be…, S.A.” celebrou com a Requerida contrato de locação financeira tendo por objeto o imóvel que identifica, destinando-se aquele prédio à prossecução do objeto social da Requerida; a Requerida obrigou-se, então, a pagar à Requerente (que sucedeu ao “Be…”) rendas mensais, conforme contratado; a Requerida não pagou à Requerente as rendas que esta identifica; na sequência do que a Requerente resolveu o contrato de locação financeira, exigindo a devolução do imóvel, o que a Requerida se recusa a fazer.

                                               *

A Requerida veio deduzir Oposição invocando, em suma, que: 

Esta e o Requerente, em 2005, fruto da situação económico-financeira débil daquela, iniciaram negociações com vista à regularização dessa sua situação deficitária; e que o Requerente, tendo conhecimento de que a Requerida estava em vias de adquirir um imóvel, sugeriu a esta que, após essa aquisição, o vendesse ao Requerente seguido da celebração de contrato de locação financeira à Requerida; e que, com o produto dessa venda, a Requerida liquidasse os montantes que tinha em dívida para com o Requerente impedindo a resolução de contratos e a exigência da totalidade de montantes em dívida, o que, a suceder, resultaria no agravamento ou impossibilidade de acesso ao crédito e a cessação da atividade da Requerida; proposta que a Requerida aceitou e se concretizou;

este negócio (locação financeira restitutiva) é nulo por consistir em fraude à lei, dado que existiam relações creditícias prévias entre as partes; com o produto da venda, a Requerida pagou ao Requerente dívidas que tinha para com este; e o terreno em causa apresentava valor muito superior ao que foi o preço da compra à ora Requerida, pelo Requerente; mais alegando que a natureza deste procedimento cautelar não se coaduna com o pedido indemnizatório formulado. 

                                                      *

A final, foi proferida sentença que decidiu:

Julgar a presente providência cautelar de entrega judicial procedente por provada, nos termos do art. 21º, nº 1 e nº 4, do Dec. Lei nº 149/95, de 24-6 (alterado pelo Dec. Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro) e, em consequência, ordenar a restituição imediata ao Requerente, “Banco …, S.A.”, do seguinte bem: Prédio rústico, com a área de 85.920 m2, denominado "M…C…”, freguesia de …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha número …, da mencionada freguesia, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 00. Secção Y".

                                                     *

“R…”, inconformada com o teor da sentença veio interpor recurso, concluindo da forma seguinte:

I. O Recorrido intentou o presente procedimento cautelar com vista à recuperação do imóvel objeto dos presentes Autos,

II. Alegando para tal ter celebrado um contrato de Leasing, que foi incumprido pela Recorrente.

III. A Recorrente defendeu-se alegando a nulidade do contrato de Leasing (Leaseback) em apreço.

IV. Assim, aquilo que está realmente em causa nos presentes Autos é apenas e tão só o seguinte: O contrato de Leaseback em questão está ou não, conforme à lei, designadamente se o mesmo viola, ou não, a proibição do pacto comissório, através da fraude à Lei.

V. Conforme resulta do relatório constante na Sentença em crise, foram dados como provados, ainda que indiciariamente, os seguintes factos com interesse para o presente recurso, os quais por facilidade de exposição e uma vez que já estão indicados nas alegações, se procede apenas à sua enumeração: 1, 2, 10, 20, 21, 22, 23, 24, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41 e 42.

VI. A verdade é que da matéria dada como assente, resultavam factos suficientes para uma decisão diferente.

VII. Resultou indiciariamente dado como provado, que a iniciativa da celebração do contrato de Leaseback partiu do Recorrido.

VIII. Olhando para a situação fáctica supra descrita, à data da realização da operação de sale and Leaseback, temos que a Recorrente, encontrava-se em situação de incumprimento contratual para com o Recorrido – cfr. Ponto 21 da matéria indiciariamente dada como assente.

IX. Foi proposto à Recorrente pelo Recorrido alienar-lhe o imóvel objeto do contrato junto aos presentes Autos, sendo-lhe de seguida o mesmo dado em locação financeira – cfr. Ponto 21 da matéria indiciariamente dada como assente.

X. Finda a locação, seria o imóvel “readquirido”, por um valor simbólico de € 73.200,00 (setenta e três mil e duzentos euros), ou seja, cerca de 2,9% do preço – cfr. Ponto 36 da matéria indiciariamente dada como assente.

XI. Ora, o contrato de Leasing em questão, mais não é do que um mútuo encapotado, onde, para garantia do bom cumprimento das obrigações pré-existentes, se utilizou, ao invés da hipoteca, a compra e venda e imediatamente subsequente contrato de leasing,

XII. Conseguindo, assim, o mesmo resultado económico (garantia do contrato através do imóvel), mas com a vantagem (proibida por lei) de: 

i) Poder proceder à venda do imóvel sem o recurso a uma Acão judicial (visto que já é proprietário) e,

si) Não ficar sujeito a privilégios creditórios suscetíveis de inutilizar, na prática, qualquer garantia real tradicional como a hipoteca, e ainda do direito de retenção, as chamadas garantias ocultas.

XIII. A Doutrina supra mencionada avança com vários critérios (não cumulativos ou exclusivos) para se aferir da existência de fraude à lei de um contrato de sale and Leaseback, mas em suma, será sempre que haja razões para concluir que a intenção das partes foi contornar em concreto a proibição da lei.

XIV. Ficou demonstrada a existência de relações creditícias prévias entre Recorrido e Recorrente, esta em situação de incumprimento, à data da celebração do contrato de sale and Leaseback – cfr. Ponto 21 da matéria indiciariamente dada como assente.

XV. Assim como ficou provado o facto de a sugestão da modalidade de contrato em causa ter partido do Recorrido – cfr. Ponto 21 da matéria indiciariamente dada como assente,

XVI. devendo, por fim, acrescentar-se que o terreno em questão apresentava e apresenta um valor comercial bastante superior ao pago pelo Recorrido.

XVII. Com efeito, a 20 de Julho de 2010 (em plena vigência do contrato de leasing atente-se), foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de uma parcela do terreno em causa – cfr. Ponto 37 da matéria indiciariamente dada como assente,

XVIII. Mais concretamente de 15.000 m2 dos 85.920 m2 que totalizam a área do terreno (cerca de 17%) pelo valor de €1.200.000,00 – cfr. Ponto 38 da matéria indiciariamente dada como assente.

XIX. Podemos assim assumir, aplicando-se uma regra de proporcionalidade, que o imóvel valerá em termos comerciais sensivelmente € 6.870.000,00,

XX. Cerca de duas vezes e meia o valor pago pelo Recorrido à Recorrente, sendo certo que, à data do referido contrato-promessa, o mercado imobiliário estava já em plena crise – o que não acontecia na data do contrato de compra e venda em 2006.

XXI. Sendo do conhecimento geral que após a crise de 2009, o mercado imobiliário sofreu uma grande desvalorização.

XXII. No contrato supra junto, são partes a Recorrente e a S…, S.A – cfr. Ponto 39 da matéria indiciariamente dada como assente.

XXIII. Tal operação era, como não podia deixar de ser, do conhecimento do Recorrido – cfr. Ponto 40 da matéria indiciariamente dada como assente.

XXIV. Conforme ficou acordado entre o Recorrido e a Recorrente – pasme-se –, aquele anuiu na afetação de € 1.030.000,00 do produto da venda supra indicada (cerca de 85% da verba), à liquidação de responsabilidades da Recorrente para com o mesmo – cfr. Ponto 41 da matéria indiciariamente dada como assente.

XXV. Ou seja, uma parte substancial da venda parcial do imóvel, propriedade do credor, serviria para pagar dívidas ao próprio credor - cfr. Ponto 42 da matéria indiciariamente dada como assente, estimando-se o restante à própria Recorrente (!) – cfr. Ponto 42 da matéria indiciariamente dada como assente. 

XXVI. Considerações à parte, e conforme temos defendido desde o início do presente Recurso, o contrato verdadeiro in causa, aquele que as partes verdadeiramente quiseram celebrar, foi um simples contrato de mútuo com hipoteca, disfarçado de sale and Leaseback, para obstar às desvantagens supra indicadas inerentes à constituição de hipoteca.

XXVII. o Recorrido, fazendo-se valer da situação fragilizada da Recorrente, quis celebrar este tipo de negócio.

XXVIII. É verdade que o negócio não se chegou a realizar por incapacidade financeira da SUMA – cfr. Ponto 43 da matéria indiciariamente dada como assente.

XXIX. Mas tal não invalida as ilações que se devem retirar da verdadeira vontade das partes, pois como é natural, não seria possível (ou pelo menos provável), conseguir-se uma declaração do Recorrido a afirmar que utilizou a figura do Leaseback como forma de contornar o pacto comissório, tal intenção resulta indiretamente dos factos indiciariamente dados como provados.

XXX. Assim, não podemos deixar de qualificar o consentimento dado pelo Recorrido à venda parcial do imóvel e consequente destino a dar ao valor obtido com a venda, como nada mais nada menos que o distrate parcial da hipoteca que existiria, não tivessem sido celebrado os contratos de Leaseback.

XXXI. Os factos supra descritos, bem como os restantes que compõe a Douta Sentença, indicam, sem margem de dúvida, que o contrato em questão, apodado e operacionalizado de Leaseback, Mais não foi, na prática, que um contrato de mútuo com hipoteca, destinado à liquidação de uma dívida pré-existente, cuja forma assumida teve como único propósito defraudar a proibição de estipulação de um pacto comissório, se não vejamos.

XXXII. A doutrina citada admite a possibilidade de, caso o contrato de locação financeira restitutiva seja utilizado para um fim que não o legalmente previsto, como por exemplo para ocultação de um pacto comissório, este poder vir a ser considerado nulo5, por fraude à lei quanto à proibição do pacto comissório.

XXXIII. Dispõe o art.º 694.º do Código Civil (doravante “C.C.”) que: “é nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir.”.

XXXIV. Daqui podemos retirar que qualquer convenção que permita ao credor adquirir a coisa onerada em caso de incumprimento será nula.

XXXV. E da letra da lei o que se retira é que é nula a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada em caso de incumprimento, mesmo (ou seja, reforço/especificação da generalidade do preceito) que seja anterior ou posterior à constituição do ónus.

XXXVI. Estamos assim perante uma proibição absoluta, que não está restrita aos institutos em crise.

Também a Douta Sentença recorrida admite esta possibilidade, podendo ler-se e passamos a citar: “Se foi celebrado para contornar a proibição legal de pacto comissório, tal contrato deve ser sancionado, defende esta autora; não podendo o Tribunal deixar de concluir, também, pela censurabilidade da conduta contratual consistente na utilização fraudulenta de certa figura jurídica como modo de praticar ato ou celebrar contrato proibido por lei”. 

XXXVII. Assim, em causa estaria, apenas, a verificação de uma convenção que fizesse do credor (no caso em apreço, o Recorrido) a coisa onerada (o imóvel objeto de locação financeira) em caso de incumprimento do devedor (a Recorrente).

XXXVIII. Dispõe o art.º 294.º do C.C. que os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.

XXXIX. Cremos não ser discutível o carácter imperativo do disposto no art.º 694.º do C.C.

XL. É jurisprudência unânime que a fraude à lei tem o mesmo desvalor da direta violação da lei.

XLI. Assim, no caso em apreço, porque os contratos celebrados (compra e venda e locação com opção de compra, ou seja, Leaseback), tiveram como único intuito o defraudamento da proibição do pacto comissório, deverão ambos ser declarados nulos e em consequência ser restituído tudo o que foi prestado.

XLII. Devendo nestes termos, ser a Sentença em crise ser revogada e substituída por outra que não decrete a providência cautelar em apreço.

                                                       *

 “Banco …, S.A”, respondeu ao recurso, concluindo da forma seguinte:

I) Por douta sentença de 18/11/2013, foi julgada procedente, por provada, a providência cautelar intentada pelo Banco …, S.A. contra R…, Lda., em virtude de resolução (por incumprimento) do contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre as partes relativamente ao prédio melhor identificado supra, objeto de contrato de locação financeira imobiliária e, em consequência, decretada a respetiva entrega imediata ao ora Apelante. 

II) Não se conformando com a douta decisão de 1.ª instância, vem a R… deduzir recurso de Apelação alegando que os contratos de compra e venda e de leasing padecem de nulidade “por fraude à lei quanto à proibição de pacto comissório” pelo que deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que declare essa invalidade e não decrete a providência cautelar em apreço. 

III) Do elenco dos factos provados resultou, entre outros, a celebração de um contrato de locação financeira, em 17 de Fevereiro de 2006, através do qual o Banco… se obrigou a ceder o imóvel acima mencionado e a R… a liquidar pontualmente as respetivas mensais acordadas.  

IV) Resultou também assente que, desde 1 de Janeiro de 2009, a R… deixou de pagar as rendas vencidas não obstante ter sido devidamente interpelada pelo Banco para pôr fim a essa mora sob pena de aplicação do previsto na Cláusula 13.º das Condições Gerais do Contrato”. 

V) Atenta a manutenção reiterada do incumprimento do contrato, em 10/01/2013, o Banco procedeu à resolução do contrato nos termos legais e deu entrada de providência cautelar para restituição do imóvel cumprindo os precisos termos previstos no art.º 21.º do D.L. 149/95, de 24 de Junho. 

VI) Sem pôr em causa o incumprimento do contrato de locação financeira in casu vem a R… alegar em sua defesa (mais de 7 anos depois da sua celebração) que o contrato é nulo por, na prática, corresponder a um “mútuo encapotado, onde, para garantia do bom cumprimento das obrigações pré-existentes, se utilizou, ao invés da hipoteca, a compra e venda e imediatamente subsequente contrato de leasing, conseguindo, assim, o mesmo resultado económico (garantia do contrato através do imóvel) mas com a vantagem (proibida por lei) de: i) Poder proceder à venda do imóvel sem o recurso a uma Acão judicial (visto que já é proprietário) e, si) Não ficar sujeito a privilégios creditórios suscetíveis de inutilizar, na prática, qualquer garantia real tradicional como a hipoteca, e ainda do direito de retenção, as chamadas garantias ocultas.” 

VII) O que, configurando, por sua vez, um verdadeiro “pacto comissório”, proibido nos termos do art.º 694.º do C.C., constitui uma situação de fraude à lei e, consequentemente, acarreta a nulidade dos mencionados contratos nos termos do art.º 294.º do C.C. 

VIII) Nada disso, no entanto, se verificou na realidade nem sequer se extrai da matéria assente. 

IX) O contrato em causa foi celebrado por duas sociedades comerciais que atuam no mercado com igualdade de armas. 

X) O imóvel em questão, já antes da celebração da locação financeira, era alvo de negociações entre a R… e uma terceira empresa – a I… – pelo que o Banco locador interveio a posteriori e não foi elemento incentivador e manipulador do contrato como a Requerida pretende fazer passar. 

XI) O Banco, como é prática habitual, exigiu para garantia do contrato a entrega de uma livrança pelo que, também por aqui, falece o argumento de que a locação não passava de uma hipoteca (garantia) “encapotada”. 

XII) Mais, tratando-se a figura do lease back de um negócio que por natureza pressupõe um financiamento - a obtenção de liquidez por via da alienação de um bem instrumental à sua atividade empresarial, conservando o gozo e a disponibilidade material do bem e assistindo-lhe a faculdade de readquirir a propriedade do bem no fim do contrato – a sua validade é genérica e pacificamente admitida pela doutrina e jurisprudência.  

XIII) Sendo apenas de questionar as situações em que, comprovadamente, o instituto da locação tenha sido utilizado fraudulentamente, com a intenção deliberada de contornar uma proibição legal, in casu, o pacto comissório previsto no art.º 694.º do C.C. 

XIV) Acresce que a R…, durante quase três anos, cumpriu pontualmente o contrato de locação financeira criando no Requerente a expectativa e confiança de que a sua validade era ponto assente/inquestionável. 

XV) Pelo que os argumentos enganadores de que agora se serve constituem verdadeiro abuso de direito na modalidade de Venire contra Factum Proprium. 

XVI) Sendo certo, por outro lado, que, ainda que o contrato de locação financeira fosse nulo - o que apenas por hipótese se admite - ao abrigo do artigo 289.º do Código Civil, a consequência dessa alegada nulidade sempre seria a restituição de tudo quanto houvesse sido prestado como se contrato não tivesse existido, em razão da retroatividade da nulidade do negócio. 

XVII) O que equivale a afirmar que sempre se manteria a obrigação da Requerida restituir ao Requerente o imóvel da propriedade desta e para cuja detenção não teria, dessa forma, qualquer título que a legitimasse. 

XVIII) Sendo, em síntese, de manter na íntegra a douta sentença recorrida, improcedendo Conclui no sentido de dever o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o Douto Despacho Recorrido, com todas as consequências legais. 

                                                       *

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

                                                        *

QUESTÕES A DECIDIR:

-Se o contrato de Leaseback em questão está ou não, conforme à lei, designadamente se o mesmo viola, ou não, a proibição do pacto comissório, através da fraude à Lei.

-Da existência de abuso de direito.

                                                          *

II - Fundamentação de Facto

 Mostra-se indiciariamente provada a seguinte matéria de facto:

1. No âmbito da sua atividade, em 17 de Fevereiro de 2006, a sociedade denominada “Be…, S.A." celebrou com a Requerida, o contrato de locação financeira imobiliária (proposta n.02017602) cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 12 a 32.

2. O contrato em causa teve por objeto o seguinte imóvel: Prédio rústico, com a área de 85.920 m2, denominado "M…C…, freguesia de …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob a ficha número …, da mencionada freguesia, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... Secção Y"

3. Conforme o mencionado contrato, o supra identificado prédio destinava-se à "Prossecução do objeto social da Locatária”.

4. A Be…, SA., extinguiu-se por força da fusão donde decorreu a sua incorporação no Banco …, S.A..

5. Em 29 de Dezembro de 2008 foi deliberada a indicada fusão por incorporação tendo a mesma sido registada em 30 de Dezembro de 2008.

6. A fusão por incorporação assumiu as características de sucessão universal e abrangeu todos os ativos que faziam parte do património da “Be…, S.A.”.

7. A Requerida obrigou-se a pagar ao Requerente, nos termos do contrato, cento e oitenta rendas mensais e sucessivas, no valor de € 26.441.40 cada uma, indexadas à Euribor Mensal, sendo a taxa implícita arredondada a 1/4 superior, conforme Cláusula IV (Renda) das Condições Particulares do acima mencionado contrato.

8. Foi estipulado, no mesmo contrato, que as rendas se venciam no dia 01 de cada mês. 9. Foi ainda convencionado que o seu pagamento se realizaria por débito na conta da Requerida nº 000 e a crédito na conta do Requerente nº 000, conforme Cláusula IV (Renda) das Condições Particulares. 10. A Requerida não pagou ao Requerente as rendas n.º35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 61º, 61º, 62º, 63º, 64º, 65º, 66º, 67º, 68º,69º, 70º, 71º, 72º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º, 78º, 79º, 80º, 81º, 82º e 83º que se venceram, respetivamente, em 01/01/2009, 01/02/2009, 01/03/2009, 01/04/2009, 01105/2009, 01/06/2009, 01/07/2009, 01/08/2009, 01/09/2009, 01/10/2009, 01/11/2009, 01/12/2009, 01/01/2010, 01/02/2010, 01103/2010, 01/04/2010, 01/05/2010, 02/06/2010, 01/07/2010, 01/08/2010, 01/09/2010, 01/10/2010, 01/11/2010, 01/12/2010, 01/01/2011, 01/02/2011, 01/03/2011, 01/04/2011, 01/05/2011, 02/06/2011, 01/07/2011, 01/0812011, 01/09/2011, 01/10/2011, 01/11/2011, 01/12/2011, 01/01/2012, 01/02/2012, 01/03/2012, 01/04/2012, 01/05/2012, 02/06/2012, 01/07/2012, 01/08/2012, 01/09/2012, 01/10/2012, 01/11/2012, 01/12/2012 e 01/01/2013.

11. Dispõe o ponto Dois da Cláusula Vigésima das Condições Gerais do sobredito contrato: "Considera-se que existe incumprimento definitivo quando a LOCATARIA se apresentar em mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a sessenta dias.”.

12. O Requerente - face à falta de pagamento das rendas por parte da Requerida - procedeu à resolução do contrato de locação financeira em apreço, por meio de carta registada com aviso de recepção, datada de 10 de Janeiro de 2013.

13. Através da mesma carta, o Requerente exigiu da Requerida que o imóvel lhe fosse devolvido livre, devoluto e em bom estado de conservação, até ao dia 25/01/2013.

14. A Requerida recebeu a indicada carta registada com aviso de recepção em 23/01/2013. 15. Não obstante a supra referida declaração de resolução do contrato e a solicitação de entrega do imóvel, por parte do Banco…, a Requerida recusa-se a entregar ao Requerente o imóvel objeto dos autos.

16. O Requerente ao cancelamento dos registos da “locação financeira” objeto dos autos com fundamento na resolução do contrato por incumprimento.

17. A Requerida persiste em manter-se na posse do imóvel que foi objeto do contrato de locação financeira objeto dos autos.

18. O Banco pretende, no âmbito do seu objeto social, dispor do bem em causa.

19. Consta do n.º6 da Cláusula Vigésima Primeira das Condições Gerais do sobredito contrato, que, em caso de mora na restituição do imóvel, o BANCO terá direito a haver da Requerida uma quantia equivalente ao dobro da última renda vencida, por cada mês ou fração em que se mantiver a ocupação indevida.

20. No segundo semestre de 2005, em momento não posterior ao mês de Outubro desse ano, a Requerida contactou com o Requerente com vista a obter deste, financiamento que a habilitasse a pagar o remanescente do preço pela compra de imóvel, que a Requerida prometera comprar à empresa “I…, Lda.” - o imóvel com a denominação “M…C…, sito na freguesia de …, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob a ficha n.º …, da mencionada freguesia e inscrito na matriz predial sob o artigo … - tendo as partes encetado negociações com esse objetivo.

21. Sugeriu, então, o Requerente à Requerida a celebração de contrato de locação financeira imobiliária que teria por objeto esse imóvel; sendo que, não se encontrando essa operação bancária de locação financeira aprovada pela entidade bancária nas proximidades da data da, já agendada, escritura de compra e venda desse imóvel, a Requerida adquiriu o aludido imóvel à “I…”, após o que o vendeu ao ora Requerente para que o imóvel, como acordado, fosse objeto de contrato de locação financeira; tendo, o ora Requerente, proposto que, com o produto dessa venda do imóvel (ao Requerente) a Requerida liquidasse montantes em dívida para com o Requerente, concretamente, a quantia avançada por este, à Requerida, para a compra do imóvel e o saldo devedor de “conta caucionada” titulada pela Requerida, o que esta aceitou.

22. Aos 17 dias de Fevereiro de 2006, a Requerida celebrou com o Requerente escritura de compra e venda do imóvel supra referido, pelo valor de € 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros).

23. Tendo ficado expresso na escritura supra indicada que o imóvel, objeto do negócio em causa se destinava a ser dado em locação financeira, à Requerida.

24. Nesse mesmo dia 17 de Fevereiro de 2006, foi celebrado o contrato de “locação financeira imobiliária” com o nº 0000, por via do qual o Requerente deu em locação à Requerida, o imóvel acima identificado.

25. Pelo prazo de 15 anos, acrescido do período de construção (que se previa até 17 de Fevereiro de 2008).

26. Contra o pagamento de pré-rendas mensais, no valor de € 16, 07 por cada cinco mil euros de financiamento.

27. E de 180 rendas constantes e mensais, sendo, as 179 rendas subsequente à primeira, no valor de € 26.441,40, cada.

28. Como forma de garantia do contrato supra indicado, a Requerida subscreveu uma livrança em branco, avalizada por duas pessoas que entregou ao Requerente.

29. No próprio dia 17 de Fevereiro de 2006, o montante referente à venda do imóvel foi depositado na conta bancária n.º 000, pertencente à Requerida.

30. A 20 de Fevereiro de 2006 foi transferido o montante de € 1.246.994,00 (um milhão, duzentos e quarenta e seis mil, novecentos e noventa e quatro euros) para a conta n.º 000, pertencente à Requerida.

31. Esta última conta, é uma conta caucionada a qual, em 20 de Fevereiro de 2006, dia da transferência supra referida, apresentava um saldo devedor, à Requerente, de € 1.246.994,00 (um milhão, duzentos e quarenta e seis mil, novecentos e noventa e quatro euros).

32. Exatamente o valor transferido com parte do produto da venda do imóvel.

33. A qual ficou saldada.

34. A 3 de Março de 2006, a Requerida pagou ao Requerente o acima referido € 1.750.000,00 (um milhão, setecentos e cinquenta mil euros) que o Requerente adiantara à Requerida de modo a possibilitar a realização da escritura, com a “I…” no dia agendado para esse efeito.

35. Utilizando para o efeito parte do produto da venda do imóvel, objeto dos autos, ao Requerente.

36. Conforme o último parágrafo da cláusula VI do sobredito contrato de locação financeira imobiliária, o “valor residual” era de “setenta e três mil duzentos e cinquenta euros”.

37. Com data de 20 de Julho de 2010 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de uma parcela do terreno em causa.

38. Mais concretamente de 15.000 m2 dos 85.920 m2 que totalizam a área do terreno objeto dos autos, pelo valor de €1.200.000,00.

39. Neste (agora, referido) contrato-promessa, são partes a Requerida e a “S…, S.A.”

40. Tal operação era do conhecimento do Requerente.

41. Conforme ficou acordado entre o Requerente e a Requerida aquele autorizou a realização desse negócio, designadamente, com a condição de que € 1.030.000,00 do produto da venda supra indicada, se destinasse à liquidação de responsabilidades da Requerida para com o mesmo,

42. Destinando-se a quantia de 170 000, 00 euros à Requerida com vista ao pagamento de dívidas fiscais, licenciamento do destaque, escrituras e comissões de venda.

43. O negócio a que aludia aquele contrato-promessa não se chegou a realizar. 

                                                    *

III - Fundamentação de Direito

Sem pôr em causa o incumprimento do contrato de locação financeira in casu vem a R… alegar em sua defesa (mais de 7 anos depois da sua celebração) que o contrato é nulo por, na prática, corresponder a um “mútuo encapotado, onde, para garantia do bom cumprimento das obrigações pré-existentes, se utilizou, ao invés da hipoteca, a compra e venda e imediatamente subsequente contrato de leasing, conseguindo, assim, o mesmo resultado económico (garantia do contrato através do imóvel) mas com a vantagem (proibida por lei) de: i) Poder proceder à venda do imóvel sem o recurso a uma Acão judicial (visto que já é proprietário) e, si) Não ficar sujeito a privilégios creditórios suscetíveis de inutilizar, na prática, qualquer garantia real tradicional como a hipoteca, e ainda do direito de retenção, as chamadas garantias ocultas.” 

O que, configurando, por sua vez, um verdadeiro “pacto comissório”, proibido nos termos do art.º 694.º do C.C., constitui uma situação de fraude à lei e, consequentemente, acarreta a nulidade dos mencionados contratos nos termos do art.º 294.º do C.C. 

É destituída de razão a argumentação tecida nas conclusões do recurso, antes se aderindo na íntegra à posição defendida na sentença objeto de recurso.

Como bem nela se refere, face à factualidade dada como assente, verifica-se que o Requerente e a Requerida são outorgantes em contrato de locação financeira tal como este contrato se encontra definido pelo art. 1º, do Dec. Lei nº 149/95, de 24 de Junho, atualizado, mais recentemente, pelo Dec. Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro; mais concretamente, um contrato de locação financeira restitutiva, (modalidade de locação financeira que pressupõe a prévia compra do bem a ser dado em locação; compra, essa, não, a um terceiro, mas, ao próprio locatário, como vem sendo tratado pela doutrina e pela jurisprudência) figura igualmente contida naquela definição. Aliás, como ensina o Professor Diogo Leite de Campos, mormente, em “Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira”, esta forma da locação financeira situa-se nos primórdios deste instituto, concretamente, nos Estados Unidos da América, onde esta operação de crédito surgiu e se configurou. Doutrina e jurisprudência portuguesas não vêm colocando em causa a legalidade desta figura jurídica. E mesmo a autora invocada pela Requerida, Ana Filipa Morais Antunes, concretamente, in “O Contrato de Locação Financeira Restitutiva”, Universidade Católica Editora, na p. 116 desta obra, conclui que “só na hipótese de utilização anómala de locação financeira restitutiva caberá sancionar o contrato, na medida em que se demonstre que foi celebrado para contornar a proibição legal do pacto comissório”. Efetivamente, esta autora coloca a possibilidade de ofensa da proibição do pacto comissório pela locação financeira restitutiva; defendendo que esta figura jurídica é inadmissível sempre que, no caso concreto, se destine a contornar aquela proibição legal. Ora, é conhecido o teor do art. 694º, do C. Civil que incide sobre tal pacto comissório: “É nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir.”. Não são estranhas ao conhecimento jurídico, as razões que subjazem a esta proibição. Veja-se, contudo, sobre a matéria, o relativamente recente Ac. STJ, de 16-3- 2011 in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf que traz à colação o Ac. daquele Supremo Tribunal, de 21-12-05, em que se mostram analisadas detalhadamente as razões que justificam o regime legal constante do referido art. 694º, nos seguintes termos: “Consigna o artº 694º do CC a proibição absoluta do pacto comissório, oriunda, como lembra Menezes Cordeiro, da "velha constituição de Constantino" "Direitos Reais", Lex, 1993, pág. 765), proibição essa, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, fundada "no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses", tal fundamento sendo "paralelo ao da proibição da usura (…) cfr., o nosso Código Anotado" - 4ª Edição Revista e Atualizada -, vol. I, pág. 718.)”. Mais se enuncia, a respeito da ratio da proibição do pacto comissório, o sustentado por Manuel Januário da Costa Gomes, quando escreve:  "A ideia dominante entre nós é a de que a proibição do pacto comissório é justificada pela necessidade de proteger o devedor face a eventuais extorsões por parte do credor, identificando-se com a ratio do art. 1146º que pune a usura, bem como com o pensamento subjacente à condenação dos negócios usurários (art. 282º). No entanto, como observa ROPPO, esta justificação é suscetível de provocar perplexidades por razões de ordem sistemática, já que na lógica do sistema, a tutela de quem contrata em estado de necessidade ou coagido não passa pela nulidade, para além de que não se furta à sanção da nulidade um pacto que se mostre em concreto vantajoso para o devedor (em virtude, v.g., da desproporção existente entre o valor do bem que é objeto de garantia e o montante da obrigação garantida). 

Daí que tenham surgido na doutrina e jurisprudência italianas outras justificações para a proibição do pacto comissório. Assim, BETTI associa a proibição à atribuição exclusiva ao Estado do controlo sobre o não cumprimento das obrigações; LOJACONO explica-a à luz da necessidade de efetivação do princípio par conditio creditorum; BIANCA invoca a existência de um interesse geral em evitar um "prejuízo social", ideia grosso modo retornada por CARNEVALI, quando se reporta a um interesse geral no regular e correto desenvolvimento das relações jurídicas; finalmente, the last but not the least, COSTANZA considera que muito provavelmente devem ser relevadas todas as razões apresentadas, que não são entre si incompatíveis ou contraditórias, respondendo, antes, à lógica unitária da correção negocial. 

Aderindo, grosso modo, à ideia de COSTANZA, parece-nos que a ratio da proibição do pacto comissório é plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do credor e a necessidade, que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as "regras do jogo", através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em objetivo (seja ele efetivo ou potencial) prejuízo dos demais. A correção negocial não se compadece com mecanismos que possam legitimar, direta ou indiretamente, a institucionalização de "castas" entre os credores, fora das vias transparentes e objetivas que justificam as exceções ao princípio par conditio creditorum ("Assunção Fidejussória de Dívida"- Almedina 2000 - pág. 92 a 94).”. Volte-se à autora acima identificada (Ana Filipa Morais Antunes) para se anotar que esta, na p. 98 da obra supra citada, salienta que a maioria da doutrina que se tem debruçado sobre o lease-back (ou locação financeira restitutiva) defende a sua validade “atendendo à respetiva função económico-social merecedora de tutela jurídica: potenciar a empresa, incrementando os fatores produtivos de natureza financeira (…) configurando-o como um contrato atípico suscetível de prosseguir interesses relevantes do alienante-utilizador; a obtenção de liquidez por via da alienação de um bem instrumental à sua atividade empresarial, conservando o gozo e a disponibilidade material do bem e assistindo-lhe a faculdade de readquirir a propriedade do bem, no termo do contrato.”. Se foi celebrado para contornar a proibição legal de pacto comissório, tal contrato deve ser sancionado, defende esta autora; não podendo o Tribunal deixar de concluir, também, pela censurabilidade da conduta contratual consistente na utilização fraudulenta de certa figura jurídica como modo de praticar ato ou celebrar contrato proibido por lei. Ora, na senda da identificação de tais casos fraudulentos, aponta, esta mesma autora, factos-índice da utilização do contrato lease-back para um fim ilícito (cfr. p. 116 da obra já citada). São estes: em primeiro lugar, a preexistência de uma relação creditícia entre as partes; em segundo lugar, a circunstância de o utilizador se encontrar numa situação de grave dificuldade económico-financeira; em terceiro lugar, o facto de a posição do locador ser ocupada por um sujeito que não exerça, habitualmente, a atividade de locação financeira; em quarto lugar, a existência de uma desproporção entre o montante do bem dado em garantia e o do débito.”.

Compulsando os factos provados, não resulta que tais factos-índice da utilização do contrato lease-back para um fim ilícito estejam preenchidos.

Na senda do defendido, verifiquemos do preenchimento dos sobreditos factos-índice de fraude enunciados, na obra citada, por Ana Filipa Morais Antunes. É verdade que a Requerida, antes mesmo de contactar o Requerente com vista a obter financiamento para comprar um imóvel pelo valor (em falta) de um milhão e meio de euros, já era titular, no ora Requerente, de uma conta caucionada que apresentava um saldo devedor. Não se alegou, porém, que a essa data, o Requerente fosse titular de qualquer outro crédito sobre a Requerida; sendo certo, ainda, que é da natureza das “contas caucionadas” terem saldos devedores; pois que tais contas se destinam justamente a permitir a disponibilização de fundos aos clientes (mormente, às empresas) pelos bancos, até determinados montantes, ainda, que tais clientes não disponham do correspondente saldo positivo nas suas contas bancárias. A isto acresce que, dos factos provados, não resulta que a Requerida se encontrasse na, apelidada, débil situação económico-financeira. Quanto a este aspeto, apenas contamos com estes dados factuais: a Requerida tinha uma conta caucionada com um saldo devedor, no ora Requerente, no montante de cerca de 1 250 000, 00 euros; e queria adquirir um imóvel, no exercício da sua atividade comercial, pelo valor (que faltava pagar) de 1 500 000, 00 euros, necessitando de financiamento para esse efeito; nada mais se sabendo sobre a sua situação económico-financeira; a não ser que a Requerida logrou, até, pagar ao Requerente, a seguir a ter recebido o preço da venda, a este, do imóvel dos autos, cerca de 500 000, 00 euros de que dispunha (recebeu 2 500 000, 00 a título de preço e pagou ao Requerente cerca de 1 250 000, 00 e 1 750 000, 00 euros) o que mostra, pelo menos, alguma disponibilidade financeira. No que concerne ao terceiro indício, não cremos que importem tecer grandes considerandos quanto ao facto de a locadora, no contrato de locação financeira objeto dos autos, a “Be…, S.A.”, que veio a ser alvo de incorporação na ora Requerente, ser um sujeito que se dedica habitualmente à locação financeira. No que respeita ao quarto indício acima referido, alega a Requerida que o terreno em questão tinha e tem um valor comercial muito superior ao pago pelo Requerente. Como se verifica, da decisão da matéria de facto, tal não logrou provar-se. Veja-se, ainda que, se é verdade que certa parcela deste terreno (15.000 m2 dos 85.920 m2 que totalizam a área do terreno objeto dos autos) veio a ser, em Julho de 2010, objeto de um contrato-promessa de compra e venda, pelo valor de 1 200 000, 00 euros (desconhecendo o Tribunal que novas circunstâncias objetivas, atinentes ao terreno, ou subjetivas atinentes ao outro outorgante se mostraram determinantes para a fixação desse valor); também, não é menos verdade que, daquilo que a Requerida pretendeu transmitir ao Tribunal, fica a saber-se que o imóvel que vendeu ao ora Requerente em 17 de Fevereiro de 2006, por 2 500 000, 00 euros, havia sido comprado pela mesma Requerida, em 15 de Dezembro de 2005, pelo valor de 1 500 000, 00 euros; termos em que, à falta de outros elementos, não logramos concluir pela invocada, patente, desproporção de valores. Assim, em suma, olhando à matéria de facto provada; e salvo o devido respeito por melhor entendimento, contamos com um contrato de locação financeira celebrado entre um locatário que se deslocou a uma entidade financeira pretendendo obter financiamento para a aquisição de um imóvel e um locador que acedeu a conceder esse financiamento propondo, a uma sociedade comercial (que, a ver pela sua firma, se dedica à gestão de empresas e a compra e venda de imóveis; proposta que foi aceite; a celebração do contrato de locação financeira objeto dos autos. Não será, portanto, um caso digno de nota, na perspetiva da ilicitude, por fraude à lei mas de um contrato de locação financeira, na modalidade de “sale and lease back”; anotando-se o teor do Ac. R.L., de 24-01-2012 in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf: “Sendo, no essencial, o contrato de locação financeira um negócio de crédito e de garantia, porque respetivamente são ambos as suas funções essenciais, a verdade é que, no âmbito da outorga do referido contrato e sobretudo quando na modalidade de “sale and lease back”, está outrossim presente a finalidade de propiciar ao locatário o gozo de um bem, gozo esse do qual o locatário não se quer privar, e, ademais, o locador só adquire o bem e o locatário só o vende porque o mesmo é de imediato dado em locação financeira ao vendedor.”.

Nenhum dos requisitos supra indicados se mostra preenchido nem se extrai, conforme alega a Apelante, da matéria de facto provada. 

Efetivamente, a relação creditícia preexistente entre as partes, correspondendo a uma conta caucionada, não se enquadra no conceito de relação creditícia elencada como facto-índice já que, como o próprio nome indica, é pressuposto da mesma a existência de um saldo devedor. 

Depois, e quanto ao segundo pressuposto, também não resultou provado que a Requerida se encontrasse numa situação de grave dificuldade financeira questionando-se, desde logo, se assim fosse, porque razão então se encontraria em negociações com a Imotorres para a aquisição de um terreno tão valioso como pretende fazer passar. 

Em terceiro lugar, facto-índice que convenientemente a Requerente esquece/omite, a posição do locador era ocupada pelo Be (ora Banco …) - sujeito que, pública e notoriamente, exerce habitualmente, entre outras, a atividade de locação financeira. 

Finalmente, não se verifica qualquer desproporção entre o montante do bem dado em garantia e o do débito, como se extrai, com clareza, da matéria de facto provada; o valor de qualquer imóvel passa, entre mais, pela potencialidade de transação a qual, ao invés do pretendido, não sucede in caso. 

Não se verificando o preenchimento de qualquer um dos pressupostos que poderia conduzir à conclusão da existência de um “pacto comissório” não poderia ser outro o sentido da douta sentença recorrida. 

Aderindo a tais argumentos, conclui-se que não se verifica a apontada nulidade, improcedendo o recurso com tal fundamento.

                                                    *

Além do exposto, e ainda que assim se não entendesse, impõe-se atentar em que, a razão de ser da proibição do pacto comissório, como exaustiva e claramente é explicado na sentença recorrida, prende-se com a proteção do devedor em situação fragilizada “face a eventuais extorsões por parte do credor, identificando-se com a ratio do art. 1146° que pune a usura, bem como com o pensamento subjacente à condenação dos negócios usurários (art. 282°).” 

Ambas as partes são sociedades comerciais que atuam no mercado visando o lucro, cada uma prosseguindo o seu concreto objeto social. 

A R… cumpriu durante quase três anos, pontualmente, o contrato de locação financeira e somente no momento em que o BANCO pretende reaver o imóvel em consequência do incumprimento verificado é que o põe em causa.

Os argumentos de que agora se serve para se imiscuir ao propósito/fundamento da providência cautelar – entrega imediata do imóvel objeto do contrato por si incumprido- constituem verdadeiro abuso de direito na modalidade de Venire contra Factum Proprium, como bem defende o recorrido.

Neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 2 de Dezembro de 2003, disponível em www.dgsi.pt 

“Malgrado a aparente tutela que pode encontrar a sua pretensão em preceitos objetivos, o resultado pretendido é recusado pelo sistema jurídico, na medida em que implicaria a aceitação dos efeitos jurídicos de condutas qualificáveis como de “venire contra factum proprium”. Como ensina Planiol, “o direito cessa onde começa o abuso”. citado por Menezes Cordeiro, in «Tratado de direito civil», tomo I, pág.192.  Sob a epígrafe «abuso do direito», prescreve o art.334º: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante. Cfr. Prof. Vaz Serra, «BMJ» nº85, pág.253 A boa fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. O termo ilegitimidade no artigo em análise, é sinónimo de antijuridicidade ou ilicitude. Cfr. Jorge Coutinho de Abreu, «Do abuso de direito», págs.55 e 67 O instituto mais claro deste abuso é a chamada conduta contraditória (“venire contra factum proprium”) em combinação com o princípio da tutela da confiança. Com raiz no princípio da boa-fé, a proibição da conduta de “venire contra factum proprium” impede o exercício de um direito subjetivo ou duma pretensão, quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável) Ob. Supra citada, pág.59- 60.” 

No mais, ainda que o contrato de locação financeira enfermasse de nulidade - o que não é o caso - ao abrigo do artigo 289.º do Código Civil, a consequência dessa alegada nulidade sempre seria a restituição de tudo quanto houvesse sido prestado como se contrato não tivesse existido, em razão da retroatividade da nulidade do negócio. 

O que equivale a afirmar que sempre se manteria a obrigação da Requerida restituir ao Requerente o imóvel da propriedade desta e para cuja detenção não teria, dessa forma, qualquer título que a legitimasse. 

Pelas razões explanadas, improcedendo o recurso na sua totalidade, impõe-se manter na íntegra a sentença recorrida.

                                                                 *

DECISÃO

Nos termos vistos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo na íntegra a sentença objeto de recurso.

Custas a cargo da Apelante.

(Este Acórdão foi elaborado pela Relatora e por ela integralmente revisto)

Lisboa, 5 de junho de 2014

Maria Amélia Ameixoeira

Ferreira de Almeida

Silva Santos