SUMÁRIO (do relator).
O art. 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil define o critério de determinação da legitimidade das partes em função da titularidade da relação material controvertida, tal como é descrita na petição inicial.
Alegando-se, na petição inicial, um direito de crédito resultante da prestação de serviço de um sócio e administrador da autora, é esta titular da relação material controvertida.
Podendo o crédito ter sido cedido à autora, com o conhecimento da devedora, aquela, como sujeito da relação creditícia, é também titular da relação material controvertida.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
A e B, requereu, em 29 de maio de 2013, no Balcão Nacional de Injunções, um procedimento de injunção contra C, e D, pedindo o pagamento da quantia de € 60 780,12, pela prestação de serviços, que não foram pagos na data do vencimento das correspondentes faturas.
Ambas as Requeridas deduziram oposição, nomeadamente no sentido da improcedência do procedimento, com a última a alegar, entre o mais, a ilegitimidade da Requerente, por nunca ter sido titular da relação jurídica.
Distribuída a ação à 7.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, replicou a A., concluindo pela improcedência da matéria de exceção.
Em 13 de dezembro de 2013, foi proferido despacho saneador, declarando-se a ilegitimidade da Autora e absolvendo as Rés da instância (fls. 194/196).
Inconformada com essa decisão, recorreu a Autora e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
a) A causa de pedir consiste no facto jurídico complexo integrado pela nomeação do advogado A como administrador do Consórcio formado pelas Rés, auferindo uma remuneração mensal e pelo acordo no sentido de que a faturação da remuneração fosse emitida pela Recorrente e a esta paga.
b) Na execução daquele acordo, a Recorrente emitiu as faturas dos autos, parte delas pagas pelo Consórcio, incluindo-as integralmente na sua contabilidade, liquidando o respetivo IVA e entregando-o à Autoridade Tributária.
c) Assim, é manifesto o interesse da Recorrente na demanda, sendo titular da relação jurídica controvertida, tal como foi configurada.
d) Por erro de interpretação e aplicação, a decisão recorrida violou o disposto no art. 30.º do CPC.
Pretende a Autora, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida.
Contra-alegou apenas a R. D, nomeadamente no sentido de ser mantida a decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
No recurso, está apenas em discussão a legitimidade ativa para a ação.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cuja questão jurídica emergente acaba de ser especificada.
O despacho recorrido declarou a ilegitimidade da Apelante na ação, segundo o entendimento de que o sujeito ativo da relação material controvertida, tal como fora configurada no requerimento de injunção, não era a Apelante, mas o seu sócio e administrador, que fora nomeado, pela Apelada D, como seu representante junto do conselho de orientação e fiscalização de um Consórcio externo.
Deste modo, discute-se a legitimidade ativa da Apelante para exigir, na ação, o direito de crédito, resultante da retribuição de uma prestação de serviço.
No requerimento de injunção, com a mesma função da petição inicial depois da transmutação em ação, a Apelante alegou, nomeadamente, que o advogado A fora designado, como representante da Apelada D, membro do Consórcio externo, com o objetivo específico de proceder à renovação e/ou remodelação de um prédio urbano sito em Lisboa e ainda que essa atividade era remunerada e a faturação era emitida a favor da Apelante, da qual o advogado A era sócio e administrador.
Perante a materialidade alegada, desde já, se adianta que não falta legitimidade à Apelante para demandar as Apeladas, exigindo o direito de crédito.
A vexata quaestio que, durante anos e anos captou a atenção da doutrina e da jurisprudência, a propósito da legitimidade processual, ficou ultrapassada com a reforma processual empreendida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, e pelo DL n.º 180/96, de 25 de Setembro, com a nova redação dada ao então art. 26.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).
Essa norma, como as outras do mesmo artigo, conservou-se no CPC, entrado em vigor no dia 1 de setembro de 2013, nomeadamente no seu art. 30.º, n.º 3, o qual dispõe que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares de interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Com esta norma consagrou-se, decididamente, a tese sustentada por BARBOSA DE MAGALHÃES, no sentido de que, quando a legitimidade deva ser determinada apenas em função da titularidade da relação material controvertida, esta deve ser considerada com a configuração dada unilateralmente na petição inicial (LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, pág. 59).
Desta forma, está definido o critério de determinação da legitimidade das partes, como pressuposto processual, em função da titularidade da relação material controvertida, tal como é descrita na petição inicial.
Se, por vezes, a determinação da legitimidade das partes não apresenta qualquer problema, por fácil compreensão de quem tem interesse direto em demandar ou interesse direto em contradizer, aferido pela utilidade ou prejuízo que lhes podem advir, outras vezes, porém, apresenta dificuldades.
Nestas situações, para se superarem as dificuldades, na identificação dos titulares da relação material controvertida, é imperioso recorrer ao critério normativo plasmado no art. 30.º, n.º 3, do CPC.
Nesta perspetiva, tendo a Apelante alegado, na petição inicial, um direito de crédito resultante da prestação de serviço de um seu sócio e administrador, nesse sentido se interpretando o acordo da respetiva faturação ser emitida em nome da Apelante, fica evidenciado ser esta a titular da relação material controvertida e, por isso, gozar de legitimidade ativa para a ação, nomeadamente por efeito do critério estabelecido no art. 30.º, n.º 3, do CPC.
O acordo para a emissão da faturação em nome da Apelante, pela prestação de serviço, não pode ser desligado deste contrato, porquanto faz parte integrante da sua regulação normativa, pelo que, nesta medida, se diverge da decisão recorrida.
Mas ainda que assim não fosse entendido, poder-se-ia ainda afirmar a alegação de uma cessão de créditos em favor da Apelante – art. 577.º do Código Civil (CC).
Tendo o crédito, resultante da retribuição pela prestação de serviço, sido cedido à Apelante, com o conhecimento da devedora, a Apelante, como sujeito da relação creditícia, é também titular da relação material controvertida.
Nestes termos, a Apelante, sendo sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada na petição inicial, goza de legitimidade ativa na ação, satisfazendo este pressuposto processual.
Por isso, não pode manter-se a decisão recorrida, que declarou a ilegitimidade ativa na ação, absolvendo da instância as RR., o que implica a sua revogação.
2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. O art. 30.º, n.º 3, do Código de Processo Civil define o critério de determinação da legitimidade das partes em função da titularidade da relação material controvertida, tal como é descrita na petição inicial.
II. Alegando-se, na petição inicial, um direito de crédito resultante da prestação de serviço de um sócio e administrador da autora, é esta titular da relação material controvertida.
III. Podendo o crédito ter sido cedido à autora, com o conhecimento da devedora, aquela, como sujeito da relação creditícia, é também titular da relação material controvertida.
2.3. A Apelada D, na medida em que ficou vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, por efeito da consagrada regra da causalidade (art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC).
III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.
2) Condenar a Apelada D, no pagamento das custas.
Lisboa, 19 de junho de 2014
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Lúcia Sousa)
(Magda Geraldes)