PROPRIEDADE HORIZONTAL
REQUISITOS
ESCRITURA PÚBLICA
VALIDADE
PARTE COMUM
ESTACIONAMENTO
Sumário

I - Para que determinado edifício possa ser submetido ao regime da propriedade horizontal mostra-se necessária a verificação cumulativa dos requisitos enumerados no artigo 1415.º, do Código Civil (constituírem as diversas fracções unidades independentes, distintas e isoladas entre si; disponham de uma saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública) e, bem assim, as condições que decorrem de normas regulamentares emanadas das autoridades camarárias competentes que regem as construções urbanas e que são de interesse e ordem pública, designadamente as normas do Plano Director Municipal vigentes à data da constituição do regime de propriedade horizontal.
II – Atento o disposto no n.º2 do artigo 74.º-B, do Código do Notariado (aprovado pelo DL 47619, de 31/3/1967, com as alterações introduzidas pelo DL 286/84, de 23/8), a validade da escritura de constituição da propriedade horizontal não se encontra confinada à realização de prévia vistoria, porquanto o preceito permite que os requisitos legais referentes às fracções possam ser verificados pelo notário perante a análise do projecto de construção aprovado pela câmara municipal.
III – Não resultando das normas regulamentares aplicáveis qualquer imposição em fazer incluir os estacionamentos nas partes comuns do prédio, a (in)validade da escritura de constituição da propriedade horizontal dependerá, apenas, da (des)conformidade entre o fim/utilização que relativamente às fracções em causa constava do projecto aprovado pela Câmara Municipal e o fim/utilização que, quanto às mesmas, é conferido no título constitutivo da propriedade horizontal – cfr. artigo 1418.º, n.º3, do Código Civil.
(sumário da relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de ...,

I - Relatório

Partes:

ADMINISTRAÇÃO CONDOMÍNIO DO PRÉDIO URBANO SITO, 175 (Réu/Recorrente)

M (Autora/Recorrida)

Pedido[1]:

A) Declarar a Autora dona e legítima proprietária das fracções A e B do prédio sito na R.

B) Condenação da Ré a entregar à Autora os códigos e chaves de acesso às referidas fracções.

Fundamentos:

- Encontrarem-se registados em seu favor 2/9 da fracção A e 3/4 da fracção B do prédio sito na Rua, destinadas a parqueamento automóvel;

- Ter a Ré alterado os códigos de acesso e as fechaduras de acesso aos lugares de parqueamento;

- Não lhe ter a Ré fornecido os novos códigos e as chaves, não obstante solicitada para o efeito.

Contestação

A Ré apresentou contestação e deduziu reconvenção pedindo a declaração da nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal relativamente às referidas fracções, declarando-se que as mesmas são partes comuns do prédio.

Admitida a intervenção principal provocada de: V (falecido na pendência da presente acção e substituído por A e M), A, A, F, M, J, A, J (o administrador 5/30 4 do condomínio), A, E, M, P, I, J, M, Á, M, M, M, S, A, A, L, R, I e J.

Os chamados V e A declararam fazer seus os articulados da Ré.

A chamada A invocou a sua ilegitimidade por estar casada com J no regime da separação de bens.

Foi admitida a intervenção acessória provocada de A, que contestou, invocando a ilegitimidade dos reconvindos por não ter sido demandado o notário e o abuso do direito por o preço das habitações e das lojas ter sido estabelecido tendo em consideração a autonomização dos lugares de estacionamento e tal ser conhecido dos adquirentes.

Sentença[2]

O tribunal a quo proferiu sentença declarando que a Autora é comproprietária das referidas fracções condenou a Ré a entregar à Autora os códigos e chaves de acesso às referidas fracções, absolvendo a e os intervenientes principais do pedido reconvencional.

Conclusões da apelação da Ré (transcrição):

I) MAL ANDOU A DECISÃO SINDICADA AO CONSIDERAR QUE O ACTO DE CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL NÃO FOI PRATICADO EM CLARA FRAUDE À LEI;

II) MAL ANDOU A DECISÃO SINDICADA AO NÃO ADMITIR, PELOS FACTOS ATRÁS ELENCADOS, O PEDIDO RECONVENCIONAL ONDE SE RECLAMA QIE A A ESCRITURA DE CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL REALIZADA EM .. NO CARTÓRIO NOTARIAL DE … E LAVRADA DE flS.33 A flS. … N° DAS NOTAS DO CARTÓRIO, SER DECLARADA NULA NO QUE RESPEITA À CONSTITUIÇÃO DAS FRACÇÕES AUTÓNOMAS “A” E "B" RESPEITANTES À …, DECLARANDO A CAVE E SUBCAVE COMO PARTES COMUNS DO PRÉDIO, A SEREM ADMINISTRADAS PELO R., COM A CONSEQUENTE ALTERAÇÃO DO TITULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL NA PARTE RESPEITANTE À CAVE E SUB-CAVE INDEVIDAMENTE AUTONOMIZADAS.

III) MAL ANDOU A DECISÃO SINDICADA AO NÃO ORDENAR O CANCELAMENTO DO REGISTO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL NO RESPEITANTE ÀS SOBREDITAS FACÇÕES “A” E “B” NA 8° CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE …, BEM COMO OS CONSEQUENTES REGISTOS DE INSCRIÇÃO DE PROPRIEDADE A FAVOR DA A/RECONVINDA E DOS ORA CHAMADOS, ISTO PORQUE;

IV) A ESCRITURA DE CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE .. HORIZONTAL FOI INSTRUÍDA APENAS COM A DECLARAÇÃO DO ANTIGO MODELO 129 PARA EFEITOS DE CONTRIBUIÇÃO PREDIAL;

V) A ESCRITURA DE CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL FOI OUTORGADA EM CLARA FRAUDE À LEI E EM DESRESPEITO COM TODO O PROCESSO DE LICENCIAMENTO EM CURSO, O QUAL, EMBORA NÃO CONSTITUA LEI ESCRITA, CONSTITUI O SUBSTRATO DO PRÓPRIO LICENCIMENTO EM SI JÁ QUE A CÁMARA MUNICIPAL DE .. QUANDO SE PRONUNCIOU SOBRE O MESMO (PROC. ) DOC. N.º1 JUNTO AOS AUTOS COM A CONTESTAÇÃO, CONCLUIU QUE “NAS .. LOCALIZAM-SE O ESTACIONAMENTO PRIVATIVO DO EDIFÍCIO COM CAPACIDADE PARA 13 (TREZE) AUTOMÓVEIS”, ADMITINDO-SE ASSIM QUE O PRÉDIO TERÁ COMO FRACÇÕES AUTÓNOMAS - UMA (1) HABITAÇÃO COM CINCO DIVISÕES ASSOALHADAS; - UMA (1) HABITAÇÃO COM QUATRO DIVISÕES ASSOALHADAS; - QUATRO (4) HABITAÇÕES COM TRÈS DIVISÕES ASSOALHADAS, FAZENDO ASSENTAR A SUA DECISÃO DE EMITIR A LICENÇA DE CONSTRUÇÃO NESTA MESMA VISTORIA. ACRESCE QUE;

VI) A ESCRITURA DE CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL FOI OUTORGADA SEM QUE A MESMA FOSSE INSTRUÍDA COM A NECESSÁRIA DOCUMENTAÇÃO CAMARÁRIA, A QUAL SERIA NECESSÁRIA PARA SE AFERIR DA LEGALIDADE DO ACTO JÁ QUE À DATA DA PRÁTICA DESTE ACTO VIGORAVA O DECRETO LEI 47619 DE 31 DE MARÇO DE 1967, O QUAL, DE ACORDO COM O VERTIDO NO ARTIGO 89.º
 (EXIGÊNCIA DE ESCRITURA)
 ESTABELECIA QUE SE DEVERIAM CELEBRAR POR ESCRITURA PÚBLICA, ALÉM DE OUTROS ESPECIALMENTE PREVISTOS NA LEI: “A) OS ACTOS QUE IMPORTEM RECONHECIMENTO, CONSTITUIÇÃO, AQUISIÇÃO, MODIFICAÇÃO, DIVISÃO OU EXTINÇÃO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE, USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO, ENFITEUSE, SUPERFÍCIE OU DE SERVIDÃO SOBRE COISAS IMÓVEIS;”;

VII) DE ACORDO COM O ARTIGO 73.º
 DAQUELE DIPLOMA NOS INSTRUMENTOS EM QUE SE DESCREVAM PRÉDIOS RÚSTICOS, URBANOS OU MISTOS DEVE INDICAR-SE O NÚMERO DA RESPECTIVA INSCRIÇÃO NA MATRIZ OU, NO CASO DE NELA ESTAREM OMISSOS, CONSIGNAR-SE A DECLARAÇÃO DE HAVER SIDO APRESENTADA NA REPARTIÇÃO DE FINANÇAS A PARTICIPAÇÃO PARA A INSCRIÇÃO, QUANDO DEVIDA NOS TERMOS DO CÓDIGO DA CONTRIBUIÇÃO PREDIAL;

VIII) SUCEDE QUE O PRÉDIO EM CAUSA NÃO ESTAVA OMISSO DA MATRIZ, FIGURANDO APENAS COMO PRÉDIO EM PROPRIEDADE PLENA PELO QUE DEVERIA O REQUERENTE, AUTOR DO ACTO DE CONSTITUIÇÃO PROPRIEDADE HORIZONTAL, TER APRESENTADO SOB PENA DE NULIDADE DO ACTO, O QUE NÃO ACONTECEU TENDO A ESCRITURA OUTORGADA EM … DE …SIDO CELEBRADA SEM CUMPRIR COM OS REQUISITOS LEGAIS, DECORRENTE DA FALTA DE DOCUMENTAÇÃO NECESSÁRIA PARA O ACTO.

IX) ACRESCE QUE FACE AO DISPOSTO NAS NORMAS PROVISÓRIAS DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL, EM VIGOR EM 1993 E À AUSÊNCIA DA CERTIDÃO CAMARÁRIA NECESSÁRIA À CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL DETERMINARIA IGUALMENTE A NULIDADE DO ACTO JÁ QUE O PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL, ANTÓNIO ESTEVÃO, APENAS APRESENTOU PARA A PRÁTICA DESTE ACTO, EM 13.8.1993 A DECLARAÇÃO MOD. 129 PARA INSCRIÇÃO DO PRÉDIO NA MATRIZ, CONFORME DOCUMENTO N° 3 JUNTO COM A CONTESTAÇÃO, DOCUMENTO QUE NÃO SE CONFUNDE NEM COM A EFECTIVA INSCRIÇÃO NA MATRIZ NEM, TÃO POUCO, COM A DECLARAÇÃO DA AUTARQUIA COMPETENTE QUE LEGITIMARIA A PRÁTICA DO ACTO.

X) À DATA ENCONTRAVA-SE EM VIGOR NA ÁREA TERRITORIAL DO MUNICIPIO DE … AS “NORMAS PROVISÓRIAS DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE ..." PUBLICADO NO DR, LL SÉRIE DE 30.6.1992, NOS TERMOS DO EDITAL N° 101 / 93 APROVADO EM 27/5/1993 E PUBLICADO NO DIÁRIO MUNICIPAL DE .. OS ESTACIONAMENTOS NA CIDADE DE ... PASSARAM A ESTAR SUBMETIDOS A UM CONJUNTO DE REGRAS ANTERIORMENTE DEFINIDAS E EM VIGOR E CONSTANTES DAS “NORMAS PROVISÓRIAS DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE ..." RESULTANDO DAQUELAS DISPOSIÇÕES, ART°. 1°, N° 1 DO REGULAMENTO DE 26/30 25 ESTACIONAMENTO, NORMAS PROVISÓRIAS DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE ..., QUE DEVEM OBRIGATORIAMENTE PREVER A INCLUSÃO DE ESTACIONAMENTO PRIVATIVO OS EDIFÍCIOS DESTINADOS A HABITAÇÃO, SERVIÇOS, COMÉRCIO E INDÚSTRIAS, BEM COMO HOTÉIS, BANCOS, OfiCINAS, ARMAZÉNS, EDIFÍCIOS PÚBLICOS, MORADIAS E RESTANTE UTILIZAÇÃO DEfiNIDAS NAS NORMAS PROVISÓRIAS, DISPOSIÇÕES QUE IMPEDEM OS ESTACIONAMENTOS DE CONSTITUIR FRACÇÕES AUTÓNOMAS

XI) BEM SE VÊ VENERANDOS SENHORES DESEMBARGADORES QUE O ACTO EM CAUSA ESTÁ APENAS LEGITIMADO EM DOCUMENTAÇÃO CRIADA PELO PRÓPRIO INTERESSADO.

XII) BEM SE VÊ, AINDA QUE SE ACEITASSE A POSIÇÃO DEFENDIDA PELO TRIBUNAL “A QUO” QUE O ACTO EM CAUSA CONTRARIA TODA A DOCUMENTAÇÃO DO PROCESSO DE LICENACIAMENTO EM CURSO, PELO QUE, AINDA QUE NÃO EXISTISSE NORMA EXPRESSA APLICÁVEL, FÁCIL SERIA, AINDA ASSIM, QUE O PROPRIETÁRIO DO PRÉDIO ACTUOU EM DETRIMENTO DE TODO O PROCESSADO ANTERIOR JUNTO DAS ENTIDADES COMPETENTES, O QUE CONSTITUI UM CLARO ABUSO DE DIREITO JÁ QUE DO PROCESSO, QUE O REQUERENTE NÃO DESCONHECIA, E INFORMAÇÃO COM O N°  SE REFERIA " QUE O ESTACIONAMENTO IGUALA AS NECESSIDADES DO PRÉDIO “, SENDO ESTAS, FACE AOS REGULAMENTOS EM VIGOR, DE 13 ESTACIONAMENTOS.

XIII) POR TAL FACTO, NO AUTO DE VISTORIA, OS ESTACIONAMENTOS FORAM INCLUIDOS NAS PARTES PRESUMIVELMENTE COMUNS, IMPOSSIBILITADOS DE CONSTITUÍREM FRACÇÕES AUTÔNOMAS, TUDO EM CUMPRIMENTO DO VERTIDO NO ART°. 105, N° 3 DO PDM E ART°S.25, 26 E 28 DAS NORMAS PROVISÓRIAS E ART°S 106, 107 E 109 DO PDM;

XIV) OS ACTOS QUE VIOLEM AS PRESCRIÇÕES DE NORMAS PROVISÓRIAS DE PLANOS DIRECTORES MUNICIPAIS ENTENDEMO-LOS COMO NULOS, “MUTATIS MUTANDI" COM O DISPOSTO NO DL 445/91 DE 20/11 (VD. NESTE SENTIDO O ACORDÃO DE 23.05.1995 IN BMJ 447, 537).

As contra alegações da Autora foram mandadas desentranhar por extemporaneidade.

II - Apreciação do recurso

Os factos:

O tribunal a quo deu como provado o seguinte factualismo:

1 - Encontra-se registada a favor da A. a aquisição da quota de 2/9 da fracção A, correspondente à subcave, para parqueamento automóvel, com entrada pelo n° 175 A, do prédio sito na Rua .

2 - Encontra-se registada a favor da A. a aquisição da quota de 3/4 da fracção B, correspondente à cave, para parqueamento automóvel, com entrada pelo n° 175 A, do prédio sito na Rua .

3 - No dia 6 de Setembro de 1993, por escritura pública, o chamado … e a A. declararam que o prédio sito na Rua , se encontra em construção e se destina a venda em fracções autónomas e que constituem em regime de propriedade horizontal o identificado prédio, “sendo composto pelas fracções autónomas e distintas, independentes e isoladas entre si, seguintes: Fracção A - subcave; Fracção B - cave; Fracção C - rés-do-chão - loja; Fracção D - primeiro andar direito; Fracção E - primeiro andar esquerdo; Fracção F - segundo andar direito; Fracção G – segundo andar esquerdo; Fracção H – terceiro andar direito; Fracção I – terceiro andar esquerdo; Fracção J – quarto andar; Fracção L – quinto andar.

Cada uma das fracções A e B é composta por uma divisão ampla;

As fracções autónomas designadas pelas letras A e B são destinadas a parqueamento automóvel".

4 - Da escritura referida em 3 o notário fez constar que “verifiquei os requisitos legais para a constituição do regime de propriedade horizontal em face da análise que fiz ao respectivo projecto de construção, aprovado pela Câmara Municipal de ... em vinte e dois de Julho de 1992, que exibiram".

5 - No início de 2002, a R., invocando motivos de segurança, alterou os códigos de acesso e as fechaduras de acesso à cave e subcave.

6 - A R. não forneceu à A os novos códigos e as chaves.

7 - A A. solicitou à R. insistentemente a entrega dos novos códigos e das chaves.

O direito

Questão submetida pela Apelante ao conhecimento deste tribunal: (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do NCPC)

Ø Da nulidade da escritura de constituição da propriedade horizontal

A decisão recorrida assenta a condenação da Ré nas seguintes premissas:

ü O título constitutivo da propriedade horizontal do prédio a que as fracções A e B pertencem afastou a presunção prevista no n.º2 do artigo 1421 do Código Civil, nos termos do qual as garagens e outros lugares de estacionamento se presumem comuns;

ü A escritura pública foi celebrada com base no projecto de construção relativo ao imóvel aprovado pela Câmara Municipal, nos termos permitidos pelo artigo 74.º-B, do Código do Notariado (aprovado pelo DL 47619, de 31-03, alterado pelo DL 286/84, de 23-08, que introduziu o referido preceito);

ü A celebração de escritura pública de constituição de propriedade horizontal não carece de realização de prévia vistoria e nela foi respeitado o fim ou utilização consignado no projecto, não ocorrendo violação do disposto no artigo 1418.º, n.º3, do Código Civil;

ü O Plano Director Municipal de ..., publicado a 29-09-1994 (cujo artigo 105.º, n.º3, prescreve que as áreas e lugares de estacionamento obrigatórias na presente secção são insusceptíveis de constituir fracções autónomas independentes das unidades de utilização dos edifícios a que ficam imperativamente adstritas), porque posterior à celebração da escritura de constituição da propriedade horizontal, não lhe é aplicável;

ü À data da celebração da escritura não existiam quaisquer normas (Plano director municipal de ... de 1992) que, à semelhança do artigo 105, n.º3, do PDM de 1994, estipulassem a insusceptibilidade das áreas ou lugares de estacionamento obrigatórias constituírem fracções autónomas das unidades de utilização dos edifícios.

Insurge-se a Ré contra esta decisão pugnando pela nulidade do acto constitutivo da propriedade horizontal sustentando que a escritura foi outorgada com fraude à lei por não ter sido instruída com a necessária documentação camarária, focalizando-se em duas ordens de argumentos:

1) Por não terem sido apresentados os documentos necessários: respeitantes à inscrição na matriz (porque o prédio em causa não estava omisso na matriz e apenas foi apresentada a declaração Mod 129 - para inscrição do prédio na matriz);

2) Por o respectivo conteúdo (no que se reporta à autonomização das fracções A e B, referentes ao parqueamento) violar expressamente a lei aplicável: normas provisórias do Plano Directório Municipal de ... (artigos 25.º, 26.º e 28.º) e do PDM (artigos 106.º, 107.º e 109.º), tendo sido outorgada em desrespeito do processo de licenciamento em curso, que pressupunha que os estacionamentos eram incluídos nas partes presumivelmente comuns (a Câmara Municipal pronunciou-se no sentido de que “nas caves localizam-se o estacionamento privativo do edifício com capacidade para treze automóveis” admitindo-se que o prédio terá como fracções autónomas uma habitação com cinco divisões assoalhadas, uma habitação com quatro divisões assoalhadas e 4 habitações com três divisões assoalhadas)

Conforme faz salientar Henrique Mesquita[3], o título constitutivo da propriedade horizontal é um acto modelador do estatuto da mesma e as suas determinações têm natureza real, com eficácia erga omnes.

A constituição da propriedade horizontal pode resultar de negócio jurídico (cfr. n.º1 do artigo 1417.º do Código Civil), sendo um dos poucos casos em que a autonomia da vontade pode intervir na fixação do conteúdo dos direitos reais[4].

Na situação sob apreciação, a propriedade horizontal encontra-se constituída por escritura pública (celebrada em 06-09-1993).

Dispõe o n.º1 do artigo 1416.º do Código Civil, que a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.

A necessidade da propriedade horizontal ser constituída em obediência a critérios legalmente fixados tem por finalidade garantir que se efective a prossecução dos objectivos (de interesse público) subjacentes à construção de edifícios a que não são estranhas ponderosas razões de ordem social e económica.

Desde logo, para que determinado edifício possa ser submetido ao regime da propriedade horizontal mostra-se necessária a verificação cumulativa das condições prevista no artigo 1415.º, do Código Civil: constituírem as diversas fracções unidades independentes, distintas e isoladas entre si; disponham de uma saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

Para além dos requisitos legais enumerados neste preceito, tem vindo a considerar-se obrigatórios (exigidos) para tal efeito, as condições que decorrem de normas regulamentares emanadas das autoridades camarárias competentes que regem as construções urbanas e que são de interesse e ordem pública[5].

Na situação sob apreciação, ao invés do que defende o Apelante, a escritura pública, onde foram especificadas 11 fracções autónomas (duas das quais, as A e B, destinadas a parqueamento automóvel – cfr. n.º 3 da matéria de facto provada) mostra-se realizada de acordo com os preceitos legais que, à data, se lhes aplicava: Código do Notariado, aprovado pelo DL 47619, de 31/3/1967, com as alterações introduzidas pelo DL 286/84, de 23/8.

Com efeito, da referida escritura e na sequência do que consta apurado no n.º4 da matéria de facto, no acto da mesma foi exibido o projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal de ..., elaborado em 22-7-1992.

Decorre do disposto no n.º2 do artigo 74.º-B, do citado Código do Notariado aqui aplicável, que no caso do prédio construído para venda em fracções autónomas, o documento passado pela câmara municipal comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção aprovado pela câmara municipal. Esta disposição, contrariamente ao que parece ser o entendimento do Apelante, não impõe a realização de prévia vistoria.

Assim sendo, evidencia-se que os requisitos legais para constituição do regime de propriedade horizontal foram, no caso, verificados pelo notário em face da análise do referido projecto.

Tendo em conta a argumentação tecida pelo Apelante cumpre salientar, igualmente, que, não só a lei não fere de nulidade qualquer desconformidade com o preceituado no artigo 73.º, do Código do Notariado (indicação do número da inscrição do prédio na matriz), como não resulta dos elementos fácticos disponíveis do processo o desrespeito pela apresentação dos documentos respeitantes à matriz de que o Recorrente faz referência nas suas alegações.

Importa por fim sublinhar que, na sequência do que se encontra devidamente fundamentado na sentença recorrida, a referida escritura não violou nenhuma norma emanada das autoridades camarárias competentes relativa às construções urbanas e de interesse e ordem pública, pois que, à data da respectiva celebração, as normas que lhe eram aplicáveis (as provisórias do plano director municipal de ... - de 30/6/1992) não vedavam a possibilidade das áreas ou lugares de estacionamento obrigatório constituírem fracções autónomas independentes das unidades de utilização dos edifícios a que ficavam adstritas, conforme posteriormente passou a estatuir o artigo 105.º, n.º3, do Plano Director Municipal de ..., publicado a 29-9-1994, o qual, como vimos, não pode assumir aplicação (retroactiva) ao caso.  

Assim sendo e porque na situação sob apreciação não ocorre qualquer desconformidade entre o fim/utilização que relativamente às fracções em causa constava do projecto aprovado pela Câmara Municipal e o fim/utilização que, quanto às mesmas, é conferido no título constitutivo da propriedade horizontal, não ocorrendo desrespeito pelo estatuído no artigo 1418.º, n.º3, do Código Civil, não se verifica a invocada nulidade do título.

Improcedem, por isso, na sua totalidade, as conclusões das alegações.

III – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de ... em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.

Lisboa, 9 de Julho de 2014

Graça Amaral

Orlando Nascimento

Dina Monteiro


[1] Em apreciação no âmbito deste recurso encontra-se a decisão proferida em fase de saneador que conheceu um dos pedidos formulados na acção.  
[2] Proferida em sede de saneador, tendo os autos prosseguido para apreciação do pedido de indemnização.
[3] A propriedade horizontal, pág. 94 a 112.
[4] Sanda Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Almedina, 2ª Edição, pág. 62.
[5] A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, portanto, imperativos, implica nulidade, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil. - Acórdão da Relação de Lisboa, de 26.1.1993, acessível através das bases documentais do ITIJ.