COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
LOTEAMENTO URBANO
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
Sumário

I – O “Documento de Reserva” em função dos quais os AA. interpõem a acção constitui um acordo intermédio, realizado no âmbito das negociações, configurando-se como um acordo instrumental de transição.
II – Este acordo, além de, instrumentalmente, servir «medio tempore» à criação de bases materiais para a consecução do objectivo pretendido pelo contrato final -  permitindo na situação dos autos que o lote que os AA. pretendiam comprar viesse a ter existência física e legal - serve também, através do regime da reserva, para estabelecer uma regulamentação para o caso das negociações se gorarem.
III -  São as partes, quem, com este mero sistema de reserva e no domínio ainda pré contratual, no âmbito da sua liberdade contratual e em função do preço que estabelecem para tal reserva, acabam por valorar as consequências da respectiva responsabilidade pré contratual se qualquer delas entender fazer abortar as negociações recusando-se a celebrar o contrato a que as mesmas tendiam.
IV – O valor da reserva, quando se perspective o interesse de quem pretende vender, destina-se a reparar o prejuízo que representa a imobilização do bem na sua esfera jurídica onde fica guardado durante determinado prazo para quem o pretende comprar, e quando se perspective o interesse desta parte, implica a compensação pelas expectativas que se vêem frustradas com a decisão de não vender.
IV – Na situação dos autos os AA. não procederam à realização da compra e venda  por (livre) opção sua, mas porque não conseguiram ultrapassar o impedimento da falta de crédito. Porque foi por motivos alheios à sua vontade que não reuniram condições para a realização da (ainda) desejada compra e venda, não têm de ser sancionados com a perda da importância dada em reserva que constitui na sua “ratio” um “preço” fixo para a opção de não contratar.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

.I - A e B, intentaram acção declarativa de condenação sob a forma sumária, contra  “C”, pedindo sejam os mesmos condenados a devolver-lhes em singelo a quantia prestada de € 20.000,00, por incumprimento do objecto do acordo, por razões alheias à vontade da R., nos termos da alínea a) da cláusula 5ª , acrescida de juros  vencidos e vincendos a contar da data da acção.

Alegam que pretendiam adquirir um lote de terreno que estava integrado num prédio rústico a cuja comercialização de venda a R. procedia, e que esta, visto que esse lote de terreno não estava ainda constituído, sugeriu ao A. que procedesse à reserva desse futuro lote, comprometendo-se ela a proceder ao destaque do mesmo e a desenvolver e aprovar projectos destinados à construção de moradias familiares isoladas. Formalizou então o A. tal intenção de aquisição por escrito, tendo a mesma ficado condicionada à efectivação do destaque do terreno com uma precisa metragem e à celebração da venda a terceiros pela R. de outros lotes de terreno integrados no mencionado prédio, tudo a efectuar no prazo de 24 meses a contar de 22/9/2006, tendo os AA. entregue à R., nesse acto, a quantia de € 20.000,00. Convencionou-se ainda que o “documento de reserva” seria substituído por um contrato promessa de compra e venda logo que o lote que o A. pretendia comprar estivesse inscrito nas Finanças e Conservatória, altura em que a importância entregue passaria a valer como sinal. Porém, o destaque apenas veio a ser concretizado em 16/1/2009, sendo que o terreno destacado apresenta uma dimensão inferior àquela que consta do dito escrito, mais sucedendo que a R. não logrou vender, nem adquirir, os demais lotes de terreno. Alegam ainda que só em 23/9/2010 tomaram conhecimento de que fora aprovado o projecto de arquitectura e o licenciamento da obra, e que a R., sabendo que eles não tinham conseguido financiamento para a aquisição pretendida, e não desconhecendo que não providenciara pela substituição do dito ajuste por um contrato promessa de compra e venda, como naquele se previra, e que o terreno não tinha a dimensão pretendida, interpelou-os para procederem à marcação da escritura pública, tendo ulteriormente, resolvido unilateralmente o acordo em apreço sem que tivesse procedido à devolução do valor que os AA. lhe haviam entregue. Terminam invocando que, mesmo que o incumprimento não possa ser atribuído à responsabilidade da R., ainda assim, esta dever-lhe-ia ter devolvido a quantia de € 20.000,00 prestada por eles, uma vez que o negocio de compra e venda não foi possível de realizar, tal como previsto na al a) da cláusula 5ª.

A R. contestou sustentando que ajustara com os AA. um contrato promessa de compra e venda, pelo que não existiria incumprimento pelo facto de não ter sido proposta a substituição do referido escrito, e que procedeu diligentemente pelo deferimento das licenças e pela inscrição do lote de terreno na conservatória e nas finanças, que a redução da dimensão do terreno se explica pela cedência ao domínio público, facto de que os AA. estavam a par, e que todos os lotes estão vendidos, sendo que o desinteresse dos mesmos pela celebração do negócio deriva do facto de não terem obtido financiamento bancário, o que, aliás, não era condição essencial para a concretização do negócio prometido, pretendendo que a culpa na inviabilização do negócio se deveu aos AA.. Em reconvenção, alegou a falta de pagamento do valor de € 3.000,00 respeitante a um projecto de execução que lhe foi encomendado pelos AA.

Ao AA. responderam  impugnando a factualidade aduzida na reconvenção.

Foi proferido despacho saneador e, tendo sido seleccionada a matéria de facto, veio a ter lugar o julgamento, tendo, após, sido proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido, e igualmente improcedente a reconvenção, absolvendo os AA. do pedido reconvencional.

II – Do assim decidido, apelaram os AA. que concluíram as respectivas alegações, nos seguintes termos:

            1. A principal questão controvertida nos autos prende-se com a interpretação das

declarações negociais transcritas no ponto n.º 5 dos factos provados.

2. É consabido que o n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil consagra a teoria da impressão do destinatário, nos termos da qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal lhe daria se fosse colocado na posição do declaratário real.

3. Como explica Carlos Mota Pinto, “releva o sentido que seria considerado poruma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da eclaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do claratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer” (Cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Atualizada, Coimbra Editora, 1994, pp. 447-448).

4. No campo dos negócios formais, o n.º 1 do artigo 238.º do Código Civil exige ainda que a declaração prevalente tenha na letra do contrato um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso.

5. Assim, na interpretação da declaração negocial controvertida nos autos, deverá tomar-se em consideração o texto do designado “Documento de Reserva” celebrado entre os Apelantes e a Apelada, transcrito no ponto n.º 5 dos factos provados, mas também a vivência da relação contratual estabelecida.

6. No que ora interessa, os Apelantes e a Apelada convencionaram, na Cláusula Terceira do “Documento de Reserva”, que “este "Documento de Reserva" será substituído por Contrato Promessa de Compra e Venda logo que o Lote esteja devidamente constituído e inscrito nas Finanças e Conservatória, valendo como sinal, o valor ora aqui instituído e pago com a assinatura do presente documento de reserva” (Cfr. ponto n.º 5 dos factos provados) (sublinhado nosso).

7. Por outro lado, foi ainda dado como provado que “como o lote de terreno ainda não se encontrava constituído, nem existia, em agosto de 2008, qualquer licença camarária que autorizasse uma construção, a Ré sugeriu aos Autores a possibilidade de aqueles procederem à reserva de um futuro lote de terreno, mediante a entrega de determinada quantia monetária (alínea d) dos factos assentes)” (Cfr. ponto n.º 4 dos factos provados) (sublinhado nosso).

8. Tendo os Apelantes e a Apelada denominado o acordo entre ambos celebrado de “Documento de Reserva”, o referido nome deverá, também, servir como um lemento a ter em consideração na interpretação do real sentido das declarações de vontade, ainda que não seja vinculativo.

9. O acordo firmado entre os Apelantes e a Apelada não configura um contrato promessa de compra e venda, desde logo, porque a citada Cláusula Terceira do “Documento de Reserva” estipula que o mesmo seria substituído por um contrato promessa de compra e venda, valendo, nessa circunstância, como sinal o valor pago.

10. Por outro lado, a conversão automática do referido acordo num contrato promessa de compra e venda, defendida pela ora Apelada em sede de contestação, não seria consentânea com as exigências de forma vertidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do Código Civil, tendo o Tribunal a quo dado como factos não provados que, “aquando da celebração do acordo descrito em 5., Autores e Ré assumiram que  quando o lote de terreno se encontrasse registado nas Finanças e na Conservatória do Registo Predial competente, o mesmo passaria, por substituição automática, a valer como contrato promessa de compra e venda”.

11. Por último, como se reconhece na douta sentença recorrida, os ora Apelantes e a ora Apelada não se vincularam, no designado “Documento de Reserva”, à prolação, no futuro, de declarações negociais de compra ou de venda do lote de terreno controvertido nos autos, tanto mais que, na data da celebração do referido acordo, o lote de terreno em causa não pertencia à ora Apelada, mas à sociedade D, pelo que aquela não poderia prometer vender algo que não lhe pertencia.

12. Arredada que está a qualificação do acordo controvertido nos autos como um contrato promessa de compra e venda, deverá o mesmo ser qualificado como um “acordo de reserva”, qualificação essa que é consentânea com a denominação dada

pelas próprias partes ao acordo, mas também com os factos vertidos no ponto n.º 4 da matéria provada.

13. Como se refere no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de fevereiro de 1991, “a reserva, constitui quando muito como que um pré-sinal; no âmbito, não do contrato-promessa, mas das negociações preliminares que, se forem interrompidas por ato culposo de um dos intervenientes pode dar lugar a indemnização

para ressarcimento dos danos causados por esse comportamento culposo, nos termos do que dispõe o artigo 227º do Código Civil” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de

Lisboa, de 28 de fevereiro de 1991, disponível em formato digital em www.dgsi.pt).

14. A quantia de € 20.000,00 entregue pelos Apelantes à Apelada, cuja restituição peticionam nos presentes autos, constitui, quando muito, um “pré-sinal”, entregue a título de reserva de um imóvel.

15. Pelo contrário, “o sinal pode configurar-se como confirmatório-penal, funcionando como pena convencional no caso de incumprimento culposo da obrigação principal, ou como penitencial, comportando, neste caso, a reserva de um direito de arrependimento de que constitui remuneração ou contrapartida” (Cfr. Acórdão do  Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de novembro de 2013, disponível em www.dgsi.pt).

16. A quantia entregue pelos Apelantes à Apelada, no momento da assinatura do designado “Documento de Reserva”, não pode ter – seja qualquer for a perspetiva que

se adote – a natureza de sinal, nos termos prescritos no artigo 442.º do Código Civil, porquanto, como se referiu, o sinal funciona como meio de coerção ao cumprimento e assume, em sede de contrato promessa, o valor de verdadeira indemnização prefixada convencionalmente pelo não cumprimento da obrigação de celebrar o contrato definitivo.

17. Não configurando o acordo celebrado entre os Apelantes e a Apelada um contrato promessa de compra e venda, e não tendo os Apelantes assumido a obrigação de comprar o lote de terreno controvertido nos autos, a quantia de € 20.000,00 entregue à Apelada a título de “reserva” do imóvel, deverá ser restituída aos Apelantes, nos termos peticionados, por não constituir um sinal, ou melhor, uma penalização típica do regime legal previsto no âmbito do contrato promessa de compra e venda.

18. Por outro lado, como se referiu, a jurisprudência tem entendido que a “reserva” constitui um “pré-sinal”, não no âmbito de um contrato promessa, “mas das negociações preliminares que, se forem interrompidas por ato culposo de um dos intervenientes pode dar lugar a indemnização para ressarcimento dos danos causados por esse comportamento culposo, nos termos do que dispõe o artigo 227º do Código Civil” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de fevereiro de 1991,

disponível em formato digital em www.dgsi.pt).

19. A doutrina e a jurisprudência têm entendido pacificamente que constituem requisitos da responsabilidade pré-contratual: i) um facto voluntário, positivo ou omissivo do agente; ii) a ilicitude desse ato; iii) a culpa do agente; e iv) a verificação de um dano causalmente ligado ao ato.

20. Como ensina João Calvão da Silva, “as negociações são a atividade instrumental da conclusão de um contrato, também da conclusão de contratopromessa. É a fase pré-contratual, na qual as partes devem proceder segundo as regras da boa fé (art. 227.º) Mas através das tratativas as partes não assumem a obrigação de celebrar o contrato in itinere, sendo a violação culposa da boa fé sancionada apenas pelo dever de indemnizar o interesse contratual negativo” (Cfr. Sinal e Contrato-Promessa, 6ª Edição – Revista e Aumentada, Coimbra, 1998, p. 25) (sublinhado nosso).

21. Sendo este o entendimento acolhido pela jurisprudência - a obrigação de indemnizar  nsagrada no artigo 227.º do Código Civil visa, essencialmente, o ressarcimento do interesse negativo ou de confiança, incluindo-se neste, tanto o dano emergente (as despesas efetuadas por causa das negociações) como o lucro cessante (os benefícios que o lesado teria auferido em virtude de oportunidades negociais falhadas se não se tivessem iniciado as negociações) resultantes da imperfeição ou ineficácia do contrato.

22. No caso em apreço, o ónus da alegação dos danos emergentes da não realização do negócio controvertido nos autos pertencia à Apelada, pelo que inexiste qualquer obrigação de indemnizar por parte dos Apelantes.

23. Caso assim doutamente não se entenda, sempre se dirá que, ainda que se acolha a qualificação jurídica da douta sentença recorrida, ou seja, que o acordo controvertido nos autos configura um “prolegómeno de um contrato promessa de ompra e venda” que viria a ser celebrado entre os Apelantes e a Apelada, o certo é que da factualidade provada resulta que a Apelada incumpriu os termos do referido acordo.

24. Nos considerandos do acordo transcrito no ponto n.º 5 dos factos provados, os Apelantes e a Apelada definiram os requisitos e as qualidades do lote de terreno que constituía o seu objeto, definindo prazos “máximos” para a sua concretização, nos seguintes termos: “a. A primeira (a ora Apelada) compromete-se a desenvolver e aprovar no referido prédio rústico três projetos destinados à construção de três moradias unifamiliares isoladas - sendo uma em propriedade plena com +/-200m2 de  rea Bruta de Construção (ABC) (mais cave com +/-100m2) e duas em condomínio simples: Fracção A e Fracção B, com +/-180m2 de ABC cada uma.  b. A primeira compromete-se ainda a desenvolver e aprovar os projetos conforme referido na alínea anterior e a efetuar o destaque no prazo máximo de 24 meses contados a partir de 2006.09.26. c. O lote objeto deste negócio será destacado do prédio rústico identificado em (1) e terá a área total de 1. 762m2, conforme consta do Anexo I.d. O processo de destaque será efetuado imediatamente após a aprovação dos projetos de arquitetura das Frações A e B que se encontram em fase final de aprovação junto da Câmara Municipal de .... e. No quadro do Contrato celebrado em 2006.09.22 a Primeira Outorgante obrigou-se a vender a terceiros ou a comprar os referidos prédios objeto do Contrato pelos valores mínimos acordados e no prazo máximo de 24 meses contados a partir da datada assinatura desse contrato.” (Cfr. ponto n.º 5 dos factos provados).

25. Os compromissos acima enunciados tinham como destinatária a Apelada, parte outorgante do acordo, que se obrigou, nos prazos “máximos” aí estipulados, a conferir ao lote de terreno que constituía o seu objeto os requisitos e qualidades convencionados.

26. Não obstante os Apelantes e a Apelada terem acordado que “os três projetos destinados à construção de três unidades unifamiliares isoladas” seriam ‘desenvolvidos’ e ‘aprovados’ “no prazo máximo de 24 meses contados a partir de 2006.09.26”, ou seja, até 26 de setembro de 2008, o certo é que “o projeto de arquitetura previsto no considerando (1) a) do acordo descrito em 5, foi aprovado por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... em 30 de novembro de 2009” e “o licenciamento da obra foi objeto de despacho proferido pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... em 17 de julho de 2010” (Cfr. pontos n.ºs 13 e 14 dos factos provados).

27. Ou seja, os projetos de arquitetura e o licenciamento da obra foram aprovados praticamente dois anos depois do termo do prazo máximo de 24 meses estipulado no acordo controvertido nos autos.

28. Por outro lado, “o destaque correspondente à constituição do lote de terreno a que se refere o acordo descrito em 5. foi levado a cabo em 16 de janeiro de 2009” (Cfr. ponto n.º 9 dos factos provados), tendo os Apelantes tido conhecimento do destaque efetuado em setembro de 2010 (Cfr. ponto n.º 11 dos factos provados), ou seja, decorridos dois anos sobre o termo do prazo máximo acordado para a sua conclusão.

29. O destaque foi concretizado ainda antes da data em que foi aprovado o projeto de arquitetura mencionado no considerando (1) a) do acordo controvertido nos autos, pelo que não colhe o entendimento da douta sentença recorrida ao referir que, “a Ré apenas se comprometeu a efetuar o destaque do lote que os Autores pretendiam adquirir após a aprovação dos projetos de arquitetura das frações "A" e "B" (alínea d) do considerando n.º 1 do escrito parcialmente reproduzido em 5.).”

30. Tendo a Apelada incumprido o prazo convencionado para a aprovação e desenvolvimento dos projetos, mas também para a concretização do destaque, em praticamente dois anos relativamente ao prazo “máximo” convencionado no acordo controvertido nos autos, incumpriu a mesma a obrigação de resultado a que se vinculou.

31. A Apelada não logrou demonstrar que “sempre diligenciou, por todos os meios que tinha ao seu alcance, para que durante o prazo estipulado no acordo referido em 5. o lote de terreno fosse inscrito nas finanças, na conservatória e para que as licenças fossem deferidas pela Câmara Municipal de ...”, tendo os referidos factos sido dados como não provados.

32. Demonstrado que está o incumprimento do acordo controvertido nos autos pela Apelada, haverá que atender ao estipulado na respetiva Cláusula Quinta, nos termos da qual “se por alguma razão, que de momento não se vislumbra, não for possível realizar o objeto deste negócio, a Primeira obriga-se a devolver de imediato todas as quantias recebidas: a. Em dobro no caso do incumprimento ser da responsabilidade exclusiva da Primeira. b. Em singelo no caso do incumprimento se ficar a dever a razões alheias à vontade a Primeira” (Cfr. ponto n.º 5 dos factos provados).

33. A cláusula quinta do acordo controvertido nos autos contempla uma previsão genérica, estipulando que a inviabilização da realização do seu objeto, independentemente da “razão” que a motive, determinaria a restituição do montante pago pelos Apelantes, em singelo ou em duplicado, consoante aquela se devesse à Apelada ou a motivos a ela alheios.

34. No caso em apreço, não foi possível ‘realizar o objeto do negócio’, uma vez que “a concretização do negócio descrito em 5., após 23 de setembro de 2010, dependia exclusivamente da circunstância de os Autores obterem financiamento bancário”, sendo que, “em 23 de setembro de 2010, os Autores (ora Apelantes) ainda não possuíam o financiamento necessário para a concretização do negócio” (Cfr. pontos n.ºs 16 e 17 dos factos provados).

35. Resultando o incumprimento verificado relativamente ao prazo estipulado no acordo de ‘razões alheias à vontade’ da Apelada, uma vez que estava dependente também da prática de atos de responsabilidade camarária, deve a mesma ser condenada a restituir em singelo a quantia de € 20.000,00 que lhe foi entregue pelos Apelantes.

36. Sendo certo que, nenhuma cominação foi estipulada no acordo controvertido nos autos relativamente ao seu incumprimento pelos Apelantes, ou, ainda, à não concretização do negócio, pelo que, mesmo que se considerasse ser assacável aos Apelantes a responsabilidade pela não concessão do financiamento bancário necessário à concretização do negócio, o que apenas por dever de patrocínio se admite, sem conceder, nunca poderia tal circunstância determinar a perda da quantia de € 20.000,00 entregue à Apelada.

37. Caso assim doutamente não se entenda, o que se admite também por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que a não obtenção do financiamento bancário e, em consequência, a não concretização do negócio, ficou a dever-se, também, à conclusão tardia das diligências acordadas relativamente à venda do imóvel controvertido nos autos, como sejam a efetivação do destaque do lote de terreno e a aprovação do projeto de arquitetura e respetivo licenciamento.

38. Pelo que, a não obtenção do financiamento bancário que determinou que não fosse possível realizar o objeto do negócio, não é assacável aos Apelantes, decorrendo antes  e razões alheias à sua vontade.

9. Na realidade, constitui facto público e notório que, em setembro de 2010, já se encontrava instalada a crise económico-financeira que assola o país, passando os bancos a restringir a concessão de crédito bancário aos particulares.

40. E tanto assim é, que resultou provado que “o sócio gerente da Ré (ora Apelada), António ..., reiterou a disponibilidade já demonstrada em Agosto de 2008, para encontrar uma solução financeira que permitisse a concretização do negócio, tendo enviado aos Autores o e-mail que se encontra junto aos autos a fls. 29”, sendo que a Apelada “não logrou obter uma resposta positiva das entidades bancárias por si contactadas, tendo informado de tal facto os Autores, nos termos constantes do e-mail junto aos autos a fls. 30” (Cfr. pontos n.ºs 19 e 20 dos factos provados).

A R. apresentou contra alegações, pugnando nelas pela manutenção do decidido entendendo ainda que se deve dar como perdido a favor dela o valor de 20.000 € por o incumprimento ser inteiramente imputável aos apelantes.

III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes os factos:

1-A Ré “C” é uma sociedade que se dedica, entre outras, à actividade de compra e venda de imóveis urbanos e rústicos destinados à construção de moradias unifamiliares ou prédios em regime de propriedade horizontal (alínea a) dos factos assentes);

2. No exercício dessa actividade vendeu, em 9 de Outubro de 2006, à “D”, com sede na Rua José ..., nº 7, 1º Esquerdo, em Lisboa, o prédio misto rústico denominado “Lameira”, com área total de 2.769 m2, localizado na ..., Freguesia de S. João das ..., Concelho de ..., descrito na 1ª Conservatória do registo Predial de ... sob o nº 3500, inscrito na matriz predial com o artigo 1 – secção QQ, da referida freguesia (alínea b) dos factos assentes);

3. Os Autores, que pretendiam adquirir um lote de terreno para a construção de uma moradia, contactaram em Agosto de 2008 a Ré para esse efeito, tendo esta sugerido como possibilidade de aquisição, um lote de terreno no prédio rústico propriedade da “D”, cuja comercialização seria por si efectuada (alínea c) dos factos assentes);

4. Como o lote de terreno ainda não se encontrava constituído, nem existia, em Agosto de 2008, qualquer licença camarária que autorizasse uma construção, a Ré sugeriu aos Autores a possibilidade de aqueles procederem à reserva de um futuro lote de terreno, mediante a entrega de determinada quantia monetária (alínea d) dos factos assentes);

5. Nessa sequência, entre os Autores, na qualidade de segundos outorgantes, e a  Ré, na qualidade de primeira outorgante, foi celebrado um acordo denominado “Documento de Reserva”, junto aos autos a fls. 20 a 23, cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido, nos termos do qual, e para além do mais, convencionaram o seguinte:

“ (…) CONSIDERANDO QUE: (1) A primeira celebrou em 2006.09.22 um Contrato com a proprietária do prédio rústico denominado “Lameira” com área de 2.760m2, localizado na (…) a. A primeira compromete-se a desenvolver e aprovar no referido prédio rústico três projectos destinados à construção de três moradias unifamiliares isoladas – sendo uma em propriedade plena com +/- 200m2 de Área Bruta de Construção (ABC) (mais cave com +/-100m2) e duas em condomínio simples: Fracção A e Fracção B, com +/- 180m2 de ABC cada uma  b. A primeira compromete-se ainda a desenvolver e aprovar os projectos conforme referido na alínea anterior e a efectuar o destaque no prazo máximo de 24 meses contados a partir de 2006.09.26. c. O lote objecto deste negócio será destacado do prédio rústico identificado em (1) e terá a área total de 1.762m2, conforme consta do Anexo I. d. O processo de destaque será efectuado imediatamente após a aprovação dos projectos de arquitectura das Fracções A e B que se encontram em fase final de aprovação junto da Câmara Municipal de .... e. No quadro do Contrato celebrado em 2006.09.22 a Primeira Outorgante obrigou-se a vender a terceiros ou a comprar os referidos prédios objecto do Contrato pelos valores mínimos acordados e no prazo máximo de 24 meses contados a partir da data da assinatura desse contrato (2) Os segundos pretendem adquirir o Lote atrás identificado conforme consta no Anexo I, pelo preço de 130.000 € (centro e trinta mil euros) livre de ónus, encargos ou responsabilidades, logo que esteja conforme o disposto nas alíneas a) a e) do ponto 1.

  Cláusula Primeira - O preço estabelecido para o negócio, com a total concordância das partes foi de 130.000 € (centro e trinta mil euros), que inclui o disposto na cláusula quarta deste documento de reserva, e será pago do seguinte modo: (1) Com a assinatura do “Documento de Reserva” e como primeiro pagamento os Segundos entregam à primeira, a quantia de 20.000 € (vinte mil euros). (2) Com a celebração da Escritura Pública de Compra e Venda será entregue a quantia de 110.000 € (cento e dez mil euros).

 Cláusula Segunda - A escritura Pública de Compra e Venda terá lugar no prazo máximo de 90 dias contados a partir da data de aprovação final do projecto da construção da moradia pela Câmara Municipal de ....

Cláusula Terceira - Este “Documento de Reserva” será substituído por Contrato Promessa de Compra e Venda logo que o Lote esteja devidamente constituído e inscrito nas Finanças e Conservatória, valendo como sinal, o valor ora aqui instituído e pago com a assinatura do presente documento de reserva.

 Cláusula Quarta -Todos os custos com os projectos destinados ao licenciamento da construção de uma moradia unifamiliar a edificar, nomeadamente projecto de arquitectura, projectos de especialidades e projecto de arquitectura paisagista, são da responsabilidade exclusiva da primeira.

Cláusula Quinta - Se por alguma razão, que de momento não se vislumbra, não for possível realizar o objecto deste negócio a Primeira obriga-se a devolver de imediato todas as quantias recebidas: a. Em dobro, no caso do incumprimento ser da responsabilidade exclusiva da Primeira. b. Em singelo, no caso do incumprimento se ficar a dever a razões alheias à vontade da Primeira.

 Terrugem, 28 de Agosto de 2007 (…)”(alínea e) dos factos assentes);

6. No âmbito do acordo referido em 5. os Autores solicitaram à Ré um projecto de execução para o lote de terreno (artigo 13º da base instrutória);

7. O projecto referido em 6. tinha um valor de € 5.000 € (artigo 14º da base instrutória);

8. Para pagamento do projecto referido em 6. os Autores entregaram à Ré a quantia de € 2.000 (artigo 15º da base instrutória);

9. O destaque correspondente à constituição do lote de terreno a que se refere o acordo descrito em 5. foi levado a cabo em 16 de Janeiro de 2009 (alínea f) dos factos assentes);

10. Após o referido destaque, o lote de terreno a que se refere o acordo descrito em 5. ficou com uma área de 1724m2 (alínea g) dos factos assentes);

11. Os Autores tomaram conhecimento do referido em 10. em Setembro de 2010 (artigo 2º da base instrutória);

12. Os Autores foram informados pela Ré da cedência ao domínio público de 38m2 do referido lote de terreno (artigo 8º da base instrutória);

13. O projecto de arquitectura previsto no considerando (1) a) do acordo descrito em 5, foi aprovado por despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... em 30 de Novembro de 2009 (alínea h) dos factos assentes);

14. O licenciamento da obra foi objecto de despacho proferido pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... em 17 de Julho de 2010 (alínea i) dos factos assentes);

15. Todos os lotes de terreno referidos no acordo descrito em 5., encontram-se vendidos (artigo 11º da base instrutória);

16. Em 23 de Setembro de 2010 os Autores ainda não possuíam o financiamento necessário para a concretização do negócio de compra e venda do lote de terreno descrito em 5. (alínea k) dos factos assentes);

17. A concretização do negócio descrito em 5., após 23 de Setembro de 2010, dependia exclusivamente da circunstância de os Autores obterem financiamento bancário (artigo 3º da base instrutória);

18. Após o lote de terreno descrito em 5. ter sido constituído e inscrito nas finanças, a Ré nunca providenciou pela substituição do referido acordo por um contrato promessa de compra e venda (artigo 4º da base instrutória);

19. O sócio gerente da Ré, António ..., reiterou a disponibilidade já demonstrada em Agosto de 2008, para encontrar uma solução financeira que permitisse a concretização do negócio, tendo enviado aos Autores o e-mail que se encontra junto aos autos a fls. 29 e cujo conteúdo aqui se tem por integralmente reproduzido (alínea k) dos factos assentes);

20. A Ré não logrou obter uma resposta positiva das entidades bancárias por si contactadas, tendo informado de tal facto os Autores, nos termos constantes do e-mail junto aos autos a fls. 30 e cujo teor aqui se tem por integralmente reproduzido (alínea l) dos factos assentes);

21. Os Autores enviaram à Ré o e-mail junto aos autos a fls. 31, cujo conteúdo aqui se tem por integralmente reproduzido, onde referia para além do mais o seguinte: (…) Após a reunião que teve lugar nas V. instalações no passado dia 27 de Setembro, e ponderando as opções possíveis para a resolução desta situação, escritura de compra e venda do lote de terreno por mim prometido adquirir (…) Desde a data da reunião até ao dia de hoje, tentei sem  êxito encontrar uma entidade bancária que financiasse a aquisição do lote de terreno. (…) Assim, sem pretender mais delongas proponho o seguinte: Que seja colocado o lote de terreno no mercado novamente, com o fim de o mesmo vir a ser vendido, com a necessária cessão da posição contratual por mim assumida no início do negócio, o que resultaria na devolução do valor entretanto pago na quantia de apenas 19.000 €, sendo que o restante seria a quantia que estou disposto a abdicar a V. favor. Esta proposta teria a duração de um ano findo o qual estou disposto a resolver o contrato contra a devolução de 17.000 € dos 20.000 € já entretanto liquidados (…)”(alínea m) dos factos assentes);

22. Por carta registada, com aviso de recepção e datada de 28/11/2011, a Ré interpelou os Autores para a marcação da escritura pública de compra e venda relativa ao lote de terreno objecto do acordo referido em 5., nos termos constantes de fls. 32, cujo conteúdo aqui se tem por integralmente reproduzido (alínea n) dos factos assentes);

IV - A questão que é colocada nas conclusões das alegações é basicamente a de saber se perante os factos provados e o convencionado na al b) da cláusula 5ª do “Documento de Reserva” junto aos autos, a acção, ao invés de ter sido julgada improcedente, deveria ter sido julgada procedente.

 Como é enfatizado na sentença recorrida e também nas alegações, ponto fulcral para o conhecimento do pedido, e agora para o do objecto do presente recurso, é a qualificação do contrato a que se refere o dito “Documento de Reserva”, pois que dessa qualificação resulta a melhor compreensão dos direitos e deveres que dele emergem para uma e outra das partes.

Impõe-se, assim, interpretar o contrato em causa, interpretação a fazer em função dos seus dizeres, mas também da demais matéria de facto que resultou provada, de que decorre o âmbito negocial em que o mesmo se inseriu, bem como a «vivência negocial [1]» a que o mesmo deu lugar.

Da simples leitura do contrato – celebrado em 28/8/2007 – e desde logo dos seus “considerandos”, constata-se que a aqui R. C – Propriedade, Lda, se vinculara anteriormente, por contrato de 22/9/2006, com a proprietária do prédio rustico denominado “Lameira”, sito em S João das ..., Concelho de ... – proprietária essa, que se vem a saber ser a “D– Ambiente e Urbanização, Lda” - a desenvolver e aprovar nesse prédio três projectos destinados à construção de três moradias unifamiliares isoladas, uma em propriedade plena e duas – estas, a Fracção A e a Fracção B - em condomínio simples, bem como se vinculara a efectuar o destaque – ao que parece referente às três moradias atrás referidas - no prazo máximo de 24 meses contados a partir de 26/9/2006, consequentemente até 26/9/2008, tendo-se vinculado ainda no  quadro do mesmo contrato, a vender a terceiros ou a comprar os acima referidos prédios, isto também  no prazo máximo de 24 meses contados a partir da data da assinatura do contrato, logo, até 28/8/2008. Diz-se ainda no escrito a cuja interpretação se procede que, os nele segundos (outorgantes), aqui AA. «pretendem» adquirir um  lote  a ser destacado do prédio rústico atrás mencionado e que terá a área de 1.762 m2 consoante anexo I, sendo  que o processo de destaque desse lote será efectuado imediatamente após a aprovação dos projectos de arquitectura das Fracções A e B que se encontram(vam) – em 28/8/2007 - em fase final de aprovação junto da Câmara Municipal de .... Diz-se também que, os já referidos segundos (outorgantes) «pretendem» adquirir esse lote pelo preço de 130.000 € (livre de ónus, encargos ou responsabilidades) «logo que esteja conforme o disposto nas alíneas a) a e) do ponto 1». Quer dizer, logo que a aqui R. – no cumprimento do contrato que a vinculava perante a D– tendo visto aprovados os projectos de arquitectura das Fracções A e B, tivesse procedido ao destaque do lote a vender aos aqui AA. e o tivesse comprado à “D”, bem como tivesse vendido a terceiros ou comprado à referida D as mencionadas Fracções A e B. Nesse escrito –“Documento de reserva” -  ficou acordado, na cláusula 1ª, o preço do negócio – 130.000 €  - e o modo de pagamento do mesmo – como 1º pagamento a quantia de 20.000,00 €, logo entregue  à “C”, e a quantia de € 110.000,00 com a celebração da escritura publica de compra e venda - dizendo-se de imediato, na cláusula 2ª, que esta  «terá lugar no prazo máximo de 90 dias contados a partir da data de aprovação final do projecto da construção da moradia pela Câmara Municipal de ...». Estabeleceu-se na cláusula 3ª que «logo que o Lote esteja devidamente constituído e inscrito nas Finanças e Conservatória, este “Documento de Reserva” será substituído por Contrato Promessa de Compra e Venda valendo como sinal, o valor pago com a assinatura do presente documento de reserva». Sendo que o acordo a que se tem vindo a fazer referência termina com uma claúsula 5ª com o seguinte teor: «Se, por alguma razão, que de momento não se vislumbra, não for possível realizar o objecto deste negócio a Primeira obriga-se a devolver de imediato todas as quantias recebidas: a. Em dobro, no caso do incumprimento ser da responsabilidade exclusiva da Primeira. b. Em singelo, no caso do incumprimento se ficar a dever a razões alheias à vontade da Primeira».

Sabe-se que a aqui R. foi quem vendera, pouco antes, à «D» o prédio rústico acima referido, e que, estando a efectuar a comercialização das moradias a edificar no terreno em causa, sugeriu aos AA., que a contactaram pretendendo adquirir um lote de terreno para a construção de uma moradia, a «possibilidade de aquisição», de um lote de terreno nesse prédio, tendo sido porque esse lote de terreno ainda não se encontrava constituído, nem então existia licença camarária que autorizasse uma construção, que procedessem «à reserva» desse futuro lote de terreno, mediante a entrega de determinada quantia monetária, pelo que celebraram o acordo acima referido intitulado “Documento de Reserva”.

Sabe-se também que no âmbito deste acordo os AA. solicitaram à R. um projecto de execução para o lote de terreno, que esse  projecto tinha um valor de € 5.000 e que para  pagamento do mesmo entregaram à R. a quantia de € 2.000, desconhecendo-se a data destes acontecimentos.

O que se sabe é que após o lote de terreno a vender aos AA. ter sido constituído e inscrito nas finanças, a R. não  providenciou pela substituição do acordo dito  “Documento de reserva” por um contrato promessa de compra e venda, que o projecto de arquitectura das Fracções A e B foi aprovado  em 30/11/2009 e que o licenciamento da construção da moradia no lote a vender aos AA. ocorreu em  17/7/2010.

Sabe-se igualmente que o lote de terreno a vender aos AA. ficou com uma área de 1724 m2 (e não de 1762 m 2), facto de que eles só tiveram conhecimento em 10/9/2010, tendo sido informados pela R. da cedência ao domínio público de 38 m2 do referido lote de terreno.

Todos os lotes de terreno a que deu lugar o acima referido prédio rústico se  encontram vendidos.

Sucede que em 23/9/2010 os AA. ainda não possuíam o financiamento necessário para a concretização do negócio de compra e venda do lote de terreno, sendo que, após essa data, a concretização desse negócio dependia exclusivamente da circunstância dos mesmos  obterem financiamento bancário.

 O sócio gerente da R., António ..., enviou aos AA., em 23/9/2010, o e-mail que se encontra junto aos autos a fls. 29, no qual, relembrando-lhes estarem reunidas as condições para levantar a licença de construção, referia, entre o mais: «Assim, espero que o Sr João Carvalho reúna as condições financeiras para a celebração da escritura (…) desde já reiteramos a nossa disponibilidade para colaborar no que for preciso, para obtenção do crédito bancário necessário ao financiamento da operação», sendo certo que a R. não logrou obter uma resposta positiva das entidades bancárias por si contactadas, tendo informado de tal facto os AA, nos termos constantes do e-mail de 3/2/2011. Posteriormente, em 25/10/2011, o A. enviou à R. e-mail onde dá noticia de que, depois de reunião havida com a R. em 27/9, «tentei sem êxito encontrar uma entidade bancária que financiasse a aquisição do lote de terreno», propondo-lhe que o mesmo fosse colocado no mercado e que a R. lhe devolvesse a quantia de apenas 19.000 €, e que, se ao fim de um ano, a R. não conseguisse a venda, estava disposto a resolver o contrato contra a devolução de 17.000 € dos 20.000 € já liquidados. Em face deste email, a R., por carta registada, com aviso de recepção, datada de 28/11/2011, interpelou os AA. para a marcação da escritura pública de compra e venda no prazo máximo de 90 dias, findos os quais o contrato seria definitivamente resolvido sem que houvesse lugar à devolução do valor entregue.

Do que se acabou de referir, logo se constata de que a relação contratual das aqui partes, iniciada em Agosto de 2007, terminou em Novembro de 2011, arrastando-se, pois, por quatro anos, e que, devendo a escritura publica ter lugar segundo o contrato até 17/10/2010 (90 dias após o licenciamento da construção da moradia pela CM de ...), em Setembro de 2010 os AA. não dispunham do financiamento necessário, tendo ambas as partes  tentado a obtenção desse financiamento durante cerca de mais um ano.

 Feita esta análise do material fáctico de que se dispõe está-se em condições de qualificar o contrato dos autos.

A sentença recorrida excluiu que o mesmo correspondesse a um contrato promessa de compra e venda, referindo, pertinentemente:

«(), os Autores e a Ré, no referido contrato, não se vincularam à prolação, no futuro, de declarações negociais de compra ou de venda do referido lote de terreno. Aliás, dado que o lote de terreno não pertencia à Ré mas à “D– Ambiente e Urbanização, Lda.”, seria dificilmente concebível que ela prometesse vender algo que não lhe pertencia e que, ademais, recentemente alienara. Acresce ainda que, na cláusula 3ª do escrito parcialmente reproduzido em 5., se estipulou que o referido “Documento de Reserva” seria substituído por um contrato promessa de compra e venda e que o montante pago seria aí tido como sinal. Não se tendo demonstrado que as partes assumiram a conversão automática do dito escrito num contrato promessa de compra e venda (o que, aliás, seria até pouco consentâneo com as exigências de forma vertidas no n.º 2 e n.º 3 do artigo 410º do Código ivil), seria absurdo considerar que, afinal, as partes quiseram substituir um escrito que corporizaria, no entender da Ré, um contrato promessa de compra e venda por um outro contrato promessa de compra e venda. Daí que, sem necessidade de demais considerações, devamos arredar esta qualificação».

Constata a sentença recorrida, no entanto, que «as partes, nesse escrito, acordaram em determinados aspectos fulcrais de um negócio futuro de compra e venda, a saber a identidade do objecto mediato do mesmo – o dito lote de terreno – e a sua metragem características - o preço, o prazo para a celebração da escritura de compra e venda e as consequências da inviabilização da realização do negócio que seriam assacadas à Ré. Acresce ainda que as partes acordaram em substituir esse escrito por um contrato promessa de compra e venda, valendo como sinal o valor pago».

E vem a concluir que, porque «(…) entre as negociações iniciais e a conclusão de um contrato podem surgir uma variedade de situações que, genericamente, se podem designar de acordos intermédios» e não obstante «(…) (não haver) noticia que as partes prosseguiram as negociações relativamente a aspectos não tratados neste ajuste, estamos em presença de um acordo parcial, i.e. da formalização imodificável de um consenso das partes em relação a aspectos correntemente tidos como fundamentais na economia de um contrato que se viria a formar, i.e. de um futuro contrato promessa de compra e venda. Trata-se, como é evidente, de um acordo que transcende a mera reserva –geralmente tida como um pré-sinal (neste sentido, v. o Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Fevereiro de 1991, C.J. tomo I/1991 pág. 171) cuja entrega visa garantir a posição de adquirente num futuro contrato promessa de compra e venda – que o “nomen iuris” empregue pelas partes no dito escrito poderia inculcar. Pode-se, pois, sinteticamente qualificá-lo como um prolegómeno de um contrato promessa de compra e venda que viria a ser outorgado entre a “D– Ambiente eUrbanização, Lda.” (ou segundo se crê ser mais verosímil, pela Ré, na qualidade de representante desta) e os Autores».

Concorda-se com as estas considerações produzidas na 1ª instância, afigurando-se-nos, efectivamente, que o acordo em causa corresponde a um acordo intermédio, parcial que, como ali é observado, transcende, no entanto, a mera reserva, e que - não chegando a configurar uma promessa unilateral de venda com contraprestação, como não deixa de ser possível, no entanto, de se equacionar[2] –  se configurará como aquilo que Santos Júnior (no artigo citado na sentença recorrida [3]) designa por «acordo instrumental de transição», a cujo propósito, este autor observa: «Este tipo de acordo ocorre acessória ou instrumentalmente no decurso de uma negociação, estabelecendo, para diversas situações, um regime transitório, em trânsito para aquele que definitivamente as regulará (…) Tais acordos, além de, instrumentalmente servirem «medio tempore», à criação de bases materiais para a consecução do objectivo pretendido pelo contrato final, relevarão, fundamentalmente por fazerem vigorar para as situações provisórias ou transitórias de que se trate, uma regulamentação querida pelas partes, evitando, no caso das negociações se gorarem, um possível litigio sobre essas situações, para cuja resolução houvesse de apelar-se a figuras legais  - que se aplicariam, pois, na falta desse acordo – como a da própria responsabilidade pre- contratual ou a do enriquecimento sem causa».

Parece, de facto, que ambas as partes – ou, porventura, apenas os AA. -  não se terão querido logo vincular a concluir, sequer, um contrato promessa de compra e venda do referido lote, visto que o mesmo se encontrava então bem longe de existir física e legalmente. Os AA. terão sentido que não seria conveniente a sua vinculação à compra de um lote que estava todo ele por definir e para cuja definição não lhes cabia  minimamente contribuir. Conviria a ambas as partes ou pelo menos, seguramente, aos AA, e pese embora o juízo de probabilidade favorável ao negócio que os animava e que lhes permitiu desde logo definir os termos essenciais da compra e venda, não se comprometerem logo com a realização do contrato definitivo.

No entanto, terão sentido ambas as partes a necessidade de recorrerem a este «acordo instrumental de transição», a R. para “segurar” aqueles possíveis compradores – tanto mais que estava vinculada junto da D a vender também esse lote a terceiros - os AA para “segurarem” aquela realidade física que lhes agradaria para a sua futura moradia.

Daí que - e pese embora o desenvolvimento que logo atingiram as respectivas negociações relativamente a um futuro contrato de compra e venda  - mas, como se disse, para se precaverem relativamente a um circunstancialismo evolutivo a que sobretudo os AA. eram alheios, hajam recorrido à “reserva” com o conteúdo que a mesma implica: não vinculação à efectivação sequer de uma promessa contratual e, por isso, com a inerente possibilidade de, a todo o tempo – ainda que sujeitando-se a consequências compensatórias, como se verá – se retratarem, repensarem a situação, arrependerem-se, darem o dito por não dito.

È que, um acordo como o dos autos, inserindo-se num processo negocial já adiantado, cujas conclusões logo cristaliza, mas não implicando nenhuma vinculação à realização do contrato definitivo em função das indefinições do objecto contratual, oferece a vantagem de manter incólume a decisão de, afinal, não se contratar, sabendo-se de antemão o que se perde com essa liberdade – no caso daquele que tem a intenção de comprar, a perda da importância dada em reserva, no caso de quem tem a intenção de vender, a obrigação de devolver essa importância em dobro àquele outro.

A reserva tem aqui uma função semelhante à que é usualmente atribuída ao sinal penitencial, na dicotomia que no âmbito de um contrato promessa o opõe ao sinal (penal) confirmatório [4] . É que o sinal (meramente) penitencial é “o preço da liberdade” de não contratar, sem a sujeição a outras consequências, é o correspectivo da faculdade de arrependimento que as partes se reservam.

O estabelecimento de um preço para esta liberdade, quer no âmbito de um contrato promessa, quer no âmbito de um mero “contrato de reserva” como o presente, faz igual sentido, quer quando se perspective o interesse de quem pretende (se obriga a) vender – tratando-se aí de reparar ou compensar o prejuízo que representa a imobilização do bem na sua esfera jurídica onde fica guardado durante determinado prazo para quem o pretende (se obrigou a) comprar – quer quando se perspective o interesse desta parte – compensando aqui as expectativas que se vêem frustradas com a decisão de não vender.

E são as partes, com este mero sistema de reserva, no domínio ainda pré contratual (ou com o regime do sinal no contrato promessa e a respectiva presunção de exclusão da execução especifica do mesmo), quem, no âmbito da sua liberdade contratual e em função do preço que encontram para reserva (ou para o sinal), acabam por valorar as consequências da respectiva responsabilidade pré contratual, (ou contratual), ali, quando fazem abortar as negociações recusando-se a celebrar o contrato a que as mesmas tendiam, aqui, quando deixam de cumprir as respectivas obrigações.

Porém, o que se veio de dizer até aqui – confirmando, como já se acentuou, a qualificação do contrato feita na 1ª instância – em quase nada resolve a situação que está em causa nos autos.

È que, o que afinal cabe decidir é, até que ponto, a circunstância de quem se propõe comprar no âmbito de um “acordo de reserva” como o dos autos, não conseguir um financiamento bancário para o qual se empenhou seriamente, constituirá uma opção de não levar avante o propósito de comprar em que a contraparte confiou e que, por isso, deva ser sancionada com a perda da quantia entregue a titulo de reserva.

Sendo que a resposta a essa questão não muda grandemente quer se esteja (apenas) em sede de negociações e de acordos intermédios firmados nas mesmas, como é o caso [5], ou se esteja em sede de verdadeiro contrato promessa [6], embora os termos concretos desses contratos a respeito da obtenção ou não desse financiamento possam interferir.

Note-se que para a questão acima referida – que é verdadeiramente o cerne do objecto deste recurso – em nada releva aquilo que os AA. referem – de forma, aliás, inconsistente -  como incumprimentos da R., como seja a ultrapassagem do prazo para o destaque do lote, ou  a circunstância de à data da petição, porventura, a R. ainda não ter vendido ou comprado os dois outros lotes de terreno, ou a circunstância do lote que lhes era destinado ter menos 30 e tal m2 do que  pretendiam.  Ali porque, em última análise, aqueles prazos apenas vinculavam a R. perante a “D”, aqui, porque resultou provado que a concretização do negócio após 23/9/2010, dependia exclusivamente da circunstância dos AA. obterem financiamento bancário, o que só pode significar que os AA. ultrapassaram a questão daquela (pequena) diferença de áreas, e que, o que verdadeiramente obstou à realização do negócio, foi o facto de não terem obtido financiamento bancário como necessitavam.

Ora, resulta da factualidade provada que tanto AA., como a própria R., se empenharam para a obtenção do necessário financiamento bancário, fazendo-o, ao que parece por cerca de um ano, sendo aceitável que se diga que o mesmo não foi conseguido na medida em que em meados de 2010 era já consabidamente difícil o acesso ao crédito.

Ter-se-á de concluir que os AA. não procederam à realização da compra e venda  por (livre) opção sua, mas porque não conseguiram ultrapassar o impedimento da falta de crédito.

 Isto é, não dependeu da vontade dos mesmos a não realização desse negócio. Eles não se arrependeram, não deram o dito por não dito. Foi por motivos alheios à sua vontade que não reuniram condições para a realização da (ainda) desejada compra e venda.

Pelo que não têm de ser sancionados com a perda da importância dada em reserva que, como acima se viu, constitui na sua ratio, um “preço” fixo para a livre opção de não contratar.

E que, o não têm – no circunstancialismo fáctico dos autos – resulta desde logo do teor da clausula 5ª do dito acordo. Recorde-se o que aí é dito:

«Se, por alguma razão, que de momento não se vislumbra, não for possível realizar o objecto deste negócio a Primeira obriga-se a devolver de imediato todas as quantias recebidas:

 a. Em dobro, no caso do incumprimento ser da responsabilidade exclusiva da Primeira.

 b. Em singelo, no caso do incumprimento se ficar a dever a razões alheias à vontade da Primeira.

Como é evidente, a expressão «não for possível realizar o objecto deste negócio» refere-se ao objectivo último do consenso – a realização da escritura publica de compra e venda. Qualquer razão que obstasse a esse resultado – veja-se a amplitude da expressão «se, por alguma razão, que de momento não se vislumbra» - desde que  a vontade dos AA. fosse alheia à mesma, provocava a resolução do acordo com a consequência da devolução pela R. aos mesmos dos 20.000 €.

A referida expressão objecto do negócio está empregue num sentido amplo abrangedor de objecto do contrato em sentido imediato e mediato, como, aliás, o terá entendido a 1ª instância quando referiu a esse propósito: «Terão tido as partes em mente a impossibilidade (legal ou física) do destaque do lote de terreno e/ou outras circunstâncias que tornassem inviável a celebração do contrato promessa de compra e venda (ou, eventualmente, da escritura de compra e venda)».

Assim, podendo dizer-se que se concorda com todo o raciocínio expendido na sentença recorrida, apenas se discorda da mesma quando entende que a não obtenção de empréstimo bancário não é circunstância alheia aos AA.

Deste modo e pelo que se disse, há que julgar procedente a apelação e, consequentemente a acção, condenando a R. a devolver aos AA. a importância dos 20.000 €, e porque esta o havia de ter feito «de imediato»,  a tal quantia acrescerão juros a contar desde a propositura desta acção, como vem pedido.

V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a acção, revogar a sentença recorrida e, em consequência, condenar a R. a proceder à devolução aos AA. da quantia de 20.000,00 € acrescida de juros desde a data da interposição da acção.

Custas na 1ª instância e nesta pela R. 

Lisboa, 24 de Setembro de 2014                                         
Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto

[1] - Cfr Ac RC 7/2/2006 (Cura Mariano), in www.dgsi.pt

[2] -  A respeito desta modalidade de contrato promessa unilateral, cfr Calvão da Silva, «Sinal e Contrato Promessa», p 14 a 22
[3] - «Acordos Intermédios: entre o início e o termo das negociações para a celebração de um contrato» - em “Estudos em homenagem ao Banco de Portugal, 150º aniversario”, p 215 a 249
[4]  - A respeito desta dicotomia, cfr Calvão da Silva, obra acima citada,  p 190. Mencionando esta dicotomia, Ac RL 14/11/2013 (Carla Fonseca) www dgsi pt

[5] - Cfr Ac RL 12/7/2007 (Fátima Galante), em www dgsi pt, em cujo sumário de diz: «A reserva de loja (em centro comercial) poderá ser encarada como que um pré-sinal, no âmbito das negociações preliminares, que se .forem interrompidas por acto culposo de um dos intervenientes podem dar lugar a indemnização para ressarcimento dos danos causados por esse comportamento culposo, nos termos do que dispõe o artigo 227 do Código Civil.Embora, em regra, as negociações preliminares não sejam vinculativas, podendo ser alteradas até à conclusão do negócio e gerando, em caso de ruptura, responsabilidade apenas quando houver abuso de direito, pode suceder que as partes queiram conferir autonomia ao acordo, que, assim, será gerador de recíprocos direitos e obrigações (v.g., quantia entregue como sinal e princípio de pagamento na reserva de prédio a prometer comprar e a comprar)»
[6] - Cfr Ac RL 17/1/2012 (Manuel Marques), www dgsi pt, em cujo sumário se diz: «Para afastar a presunção de culpa estabelecida no art 799º/1 CC, o devedor necessita apenas de provar a existência de circunstâncias que eliminem a censurabilidade da conduta, ou seja, que actuou com  a diligência exigível. Tendo no caso concreto o devedor (promitente comprador) provado ter solicitado a concessão de um empréstimo bancário, a sua não concessão e a essencialidade do financiamento para efeitos do cumprimento do contrato promessa, tem-se por afastada aquela presunção, sendo não culposo o incumprimento da obrigação principal. Verificando-se a impossibilidade não culposa de cumprimento, o promitente comprador tem direito à devolução do sinal entregue»