-A legitimidade da mãe do menor para suscitar o incidente de incumprimento da prestação de alimentos, fixada no âmbito do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais pactuado entre os seus pais, durante a sua menoridade, decorre do nº 1 do artigo 181º da OTM.
- A legitimidade para a cobrança desse crédito é-lhe conferida por sub-rogação legal, de acordo com o estabelecido no artigo 592º nº 1, do Código Civil, quer no caso de o filho ser ainda menor, quer mesmo no caso de o filho ter entretanto atingido a maioridade.
- Embora as prestações caibam iure próprio ao filho, o progenitor convivente, que tenha custeado, total ou parcialmente, as despesas de sustento e a manutenção que ao outro obrigavam, possa subrogar-se nos direitos (de crédito) do filho.
- As prestações vencidas durante a menoridade não se convertem em crédito próprio do filho após a maioridade deste, mantendo a mãe, que exerceu o poder paternal, legitimidade, em nome próprio ou em representação do filho, para as exigir do devedor.
(sumário do Relator)
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de Promoção e Protecção de Menores, em que é requerente o Ministério Público, sendo menor J…, nascido a 03 de Maio de 2002, filho de V… e de E…, por DECISÃO de 04.04.2014, (fls 730-743), a título provisório, foi fixado o seguinte regime:
“- O menor ficará a residir com o pai que exercerá as responsabilidades parentais deforma exclusiva;
- As visitas à progenitora deverão ser estudadas pelo Instituto de Solidariedade Social, após a integração do menor no agregado familiar do pai, considerando as necessidades do mesmo;
- O Companheiro da progenitora está proibido de contactar o menor;
- O menor visitará os avós deforma aberta, cabendo ao pai permitir e agendar essas visitas com bastante frequência, devendo também ser efectuadas em casa dos avós, mesmo com dormida, em termos a acordar entre os pais e os avós, sem prejuízo das obrigações escolares;
- O menor deverá continuar a ser acompanhado em pedopsiquiatria no Hospital D. Estefânia, ou em psicologia, de acordo com a avaliação a efectuar pelo Instituto de Solidariedade Social e pelo pai;
- Os avós, atenta a disponibilidade demonstrada, assegurarão o pagamento do colégio até ao fim do presente ano lectivo, mantendo-se o menor a frequentar o mesmo estabelecimento de ensino;
- A medida terá acompanhamento executivo a cargo das técnicas sociais do ISS da área de residência do pai, deverá ser efectuada no início com muita proximidade, devendo, designadamente, ser remetida informação num prazo de 15 dias, com proposta para fixação de visita do menor à mãe, caso as mesmas se mostrem já do interesse do menor."
Em 12.05.2014, foi proferida a seguinte DECISÃO:
“Tudo visto, ao abrigo do disposto no artigo 37° da LPCJP (aprovada pela lei 147/99, alterada pela lei 31/2003, de 22-8) e 1905° e 1906°, 2033° e ss do Código Civil, adita-se ao regime provisório aqui fixado, o seguinte quanto a visitas e alimentos:
- A progenitora estará com o menor em dois domingos seguidos, com início no próximo, indo para o efeito buscar o menor pelas 10 horas a casa do progenitor, entrega-o pelas 18 horas desse mesmo dia e no mesmo local.
- A progenitora pagará a título de pensão de alimentos para o sustento do menor a quantia mensal de € 200,00, através de transferência bancária para a conta do progenitor, até ao dia 8 de cada mês”.
Quanto ao incidente de incumprimento deduzido pela mãe para cobrança coerciva das prestações de alimentos devidos ao menor e não pagas pelo pai, decidiu suspender tal cobrança com os seguintes fundamentos:
“O regime alimentar, de vistas e a guarda, ficou todo ele suspenso com a decisão já proferida nos autos, e agora também com a presente decisão, sendo certo que a prestação alimentar, mesmo os valores atrasados que estavam a ser liquidados pelo pai, o credor é o próprio menor, e eram entregues à mãe na qualidade apenas de representante legal do mesmo. Discutiu-se esta questão aqui, defendendo o patrono da progenitora que há uma transferência do crédito para a progenitora, pois ela liquidou as quantias em substituição do progenitor durante o tempo em que não o fez.
Bem conhecemos as duas posições que a jurisprudência tem vindo a adoptar, mas não acolhemos a da transferência da posição de credor do filho para o guardião, em que se simula, o que configura como uma prestação de contas, e se conclui, sem mais, que o guardião liquida, para além da sua obrigação alimentar, a do devedor, ficando assim com o crédito do filho a seu favor.
Este entendimento, que se respeita, tem um conjunto de falácias:
Não tem qualquer enquadramento jurídico, antes de mais, e depois, parte de um princípio que não se alega ou prova, que é o de que o guardião suportou as quantias que eram devidas pelo devedor de alimentos. Foi assim? Qual ê a obrigação alimentar do guardião (como se sabe se não é fixada)? Foi o guardião ou terceiros (e neste processo há fortes indícios de que os avós muito ajudaram a criar esta criança, alimentando-o desde praticamente que nasceram até a filha sair de casa para iniciar o relacionamento com o Sr. M…)? A criança deixou de ter determinados cuidados por força da ausência da pensão alimentar devida, mantendo-se assim como credor nessa parte?
Isto é, como se pode chegar ã conclusão da transferência do crédito alimentar da criança para, neste caso, a mãe, sem qualquer análise ou resposta a estas questões do for de uma prestação de contas"?
Este caso suscitou-nos ainda outra reflexão: a entendermos, sem mais, que há transferência do crédito, achamos a forma da criança receber alimentos apenas de um dos progenitores durante a menoridade, metade do que lhe era devido, pois na prática o agregado da criança, primeiro, o da mãe, e agora, o do pai, não receberia qualquer valor para o filho; o pai, agregado onde o menor está a ser alimentado, estaria agora a pagar a pensão que era dele e se transferiu para a mãe, por força desse entendimento, funcionando aqui como *compensação”, pois o valor, equiparando-se, daria como resultado que a criança não estaria mais uma vez a receber qualquer pensão do progenitor não residente, agora da mãe, e primeiro do pai.
A isto chama-se instrumentalização da criança, tomando-a objecto, impedindo-a, na nossa percepção sem qualquer regime jurídico que possa ser chamado, de ser credora de alimentos de ambos os progenitores, como o exige a lei.
O credor é pois sempre e só menor, e os progenitores serão sempre e só representantes dos menores também para esse efeito”.
Não se conformando com a decisão de 12.05.2014, no tocante à suspensão da cobrança coerciva das prestações de alimentos devidos ao menor e não pagas pelo pai, no âmbito do incidente de incumprimento deduzido pela mãe, esta recorreu, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª - O dever de prestar alimentos aos filhos menores recai sobre ambos os pais em conjunto.
2ª - Porém, no caso de os pais do menor não coabitarem maritalmente ou terem cessado essa coabitação, as responsabilidades parentais devem ser reguladas judicialmente, como, aliás, aconteceu “in casu”.
3ª - E o progenitor que fica com a guarda do filho, como titular do exercício do poder paternal e, consequentemente, dos poderes-deveres que lhe são inerentes, detém legalmente o direito e o dever de, no interesse do filho, velar pela sua saúde e segurança, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação e representá-lo.
4ª - E é ao progenitor, com a guarda do menor, que incumbe custear as despesas do menor inerentes ao exercício do poder paternal e enunciadas no artigo 1878° do C. Civil, sem prejuízo da contribuição do outro para a satisfação dos mesmos encargos, nos termos e com as quantias em que tiver sido fixada a respectiva repartição, quantias estas a entregar ao progenitor que detém a guarda do menor para por este serem utilizadas na satisfação das mencionadas despesas.
5ª - Assim, o beneficiário da prestação alimentar é o menor, mas é o progenitor a quem foi confiado que goza da respectiva titularidade.
6ª - Aliás, neste sentido convergem as normas vertidas nos artigos 186° n° 1 e 181° da OTM, pois é ao progenitor com guarda que cabe a legitimidade para, em substituição processual do menor, pedir os alimentos, a sua alteração ou exigir o cumprimento coercivo da obrigação.
7ª - Consequentemente, se o progenitor condenado a entregar ao outro prestações alimentares a título de alimentos devidos ao filho menor não cumpre, este fica onerado e passa a custear despesas que obrigavam aquele, despesas que só ele pode exigir do devedor, seja no exercício de um direito próprio, seja, quando assim se entenda, por via sub-rogatória (cfr. art° 592° n° 1, do Código Civil),
8ª - O titular da guarda do filho menor é, consequentemente, o titular dos correspondentes poderes-deveres, e é quem satisfaz as respectivas obrigações e custeia os inerentes encargos, pelo que se compreende que possa exigir do co-obrigado os encargos a que esse cumprimento deu origem e lhe assista legitimidade para exigir a parte dos encargos que, na repartição efectuada, o outro obrigado deixou de lhe prestar.
9ª - Assim, na esteira de Remédio Marques, embora as prestações caibam “iure proprio” ao filho, o progenitor convivente que tenha custeado (total ou parcialmente) as despesas que ao outro obrigavam, pode subrogar-se nos direitos (de crédito) do filho, na medida em que cumpriu para além do que lhe competia, em lugar do outro progenitor, enquanto teve o menor à sua guarda (cfr. Ac. RL, de 4 de Março de 2010, in CJ 2010, T.II, pg. 73 e Ac. RP, de 15 de Janeiro de 2013, in CJ, T.l, 2013, pg. 168).
10ª - Refira-se que “os atrasados”, reportam-se à falta de pagamento pelo pai do menor das prestações de alimentos vencidas e não pagas de Fevereiro de 2008 e Dezembro de 2011, em que o menor esteve à guarda da mãe, encontrando-se, ainda, em dívida o montante de € 4.900,00, sendo que tais prestações foram fixadas no âmbito da regulação judicial do exercício do poder paternal como contrapartida devida pelo pai ao filho menor, que não estava à sua guarda.
11ª - O incumprimento do acordado em matéria de regulação das responsabilidades parentais, por qualquer dos progenitores, com o simultâneo desrespeito da decisão proferida pelo tribunal, tem uma sanção específica estatuída na lei.
12ª - De facto, prevê o artigo 181° da OTM que possa existir condenação do remisso em multa e, ainda, em indemnização a favor do menor, ou do requerente ou de ambos.
13ª - Ora, as prestações de alimentos vencidas (enquanto o menor esteve à guarda da ora recorrente) e não pagas pelo pai do menor, respeitam a um período em que a mãe custeou, sem qualquer comparticipação do pai, o sustento, a manutenção, a segurança, a saúde e a educação do menor J….
14ª - Assim, cessar o pagamento dessas prestações ainda em dívida constituiria uma penalização para a recorrente e um prémio para o pai incumpridor, que durante um longo período de 4 anos não só incumpriu as suas obrigações enquanto pai, como as de cidadão, ao não acatar as obrigações decorrentes de uma decisão judicial.
15ª - E, como já referido, durante o período temporal a que se referem “os atrasados”, a recorrente foi titular exclusiva do poder paternal, pelo que, será, por isso, também a titular dos alimentos fixados ao filho menor, seu beneficiário, durante esse período, e, também por isso, será ela a titular do direito a exigir do pai do menor as prestações que este lhe não entregou durante o período em que o menor esteve à sua guarda.
16ª - E também a recorrente que pode reclamar ou renunciar à exigência dessas prestações vencidas, sem as quais proporcionou ao menor as condições de vida que teve por convenientes ou possíveis, prestações que, dada a natureza da obrigação alimentar relativa a menor a expensas do progenitor, não se apresentam como crédito próprio e exclusivo do filho menor (cfr. Ac. STJ, de 25 de Março de 2010, in CJ, T 1, 2010)
17ª - Por outro lado, a cessação do pagamento dessas quantias atrasadas permitiria que o pai do menor se locupletasse com as quantias de que é devedor.
18ª - Assim, salvo o devido respeito, que muito é, ao contrário do douto despacho recorrido, o entendimento, ora, sufragado, tem todo o enquadramento jurídico, nos termos alegados, designadamente nos artigos 181° e 186° da OTM; 592° n° 1 e 1879°, ambos do C. Civil e 250° do C. Penal, sendo que o que efectivamente não tem enquadramento jurídico é a posição defendida pelo douto despacho recorrido.
19ª - A asserção do douto despacho recorrido de que não vem alegado nem provado que o guardião do menor suportou as quantias que eram devidas pelo devedor de alimentos, acaba por inverter e subverter a natureza da obrigação alimentar relativa a menor, para além de que é no momento em que se fixa a prestação alimentícia que se aferem as necessidades do menor e as possibilidades dos obrigados a alimentos, nos termos dos artigos 2003° e 2004° do C. Civil.
20ª - A partir daí, forma-se um crédito que não se pode discutir nos termos em que o faz o douto despacho recorrido, sem o mínimo suporte legal, e sendo neste momento, absolutamente irrelevante, salvo o devido respeito e consideração.
21ª - Aliás, não se compreende que o douto despacho recorrido fale em transferência para a mãe, quando se sabe que as prestações de alimentos em apreço deviam ter sido pagas, mensalmente (€ 150,00) de Fevereiro/2008 a Dezembro/2011, tendo havido incumprimento total, sendo que neste período foi a recorrente que proporcionou ao menor as condições de vida.
22ª - A seguir-se o raciocínio do douto despacho recorrido, estar-se-ia a beneficiar o infractor, o que contraria o disposto na lei, designadamente, nos artigos 181° da OTM, que inclusivamente impõe uma multa ao incumpridor, e o artigo 250° do Código Penal que criminaliza a violação do dever de alimentos.
23ª - Por outro lado, na esteira do douto despacho recorrido, a natureza do dever de alimentos deixaria de constituir um verdadeiro e autêntico dever, para passar a ser uma mera faculdade, e isso, sim, é que seria a instrumentalização da criança tornada objecto.
24ª - Assim, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 181° e 186° n° 1 da OTM; 250° do Código Penal, 592° n° 1, 1878°, 2003° e 2004°, do C. Civil.
Termina, pedindo que seja revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que acolha a tese da recorrente e determine que a recorrente tem direito a receber do pai do menor o montante relativo às prestações de alimentos não pagas durante o período de Fevereiro/2008 a Dezembro/2011, em que a recorrente teve o menor à sua guarda.
O Ministério Público contra-alegou, entendendo que não merece provimento o recurso, nem censura a decisão recorrida.
F… e mulher C… também responderam às alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
A primeira instância considerou assente a seguinte matéria de facto:
1º Após o menor ser confiado ao pai, deixou de tomar qualquer ansiolítico, como e dorme bem, tendo o médico que o acompanha, após se deparar com esta situação, retirado a prescrição anteriormente efectuada enquanto a criança estava à guarda da mãe.
2ª - A vinculação do menor aos avós é forte, ao ponto de pedir para ir viver com os avós, tendo agora pedido nos seus anos que a sua festa fosse feita com eles, ainda que sem a mãe.
3ª - A progenitora continua centrada nos conflitos, tendo-se recusado a estar na festa de anos do filho com os seus pais, avós maternos.
4ª - O pai, no dia dos anos do menor, acabou por arranjar uma solução, de promover um encontro com a mãe à hora de almoço, e depois ao lanche fez a festa de anos, como o filho pediu, com a presença dos avós maternos (só pôde estar a avó, pois, por questões de saúde, o avô teve de ir a uma consulta – ter-lhe-á sido diagnosticado cancro, ao qual foi já operado) e paternos, pai e madrasta, e os amigos da banda filarmónica.
5ª - No dia de anos a mãe do menor esteve com o filho à hora de almoço.
6ª - O menor vive um período de adaptação, tendo melhorado a relação com o pai e a madrasta, depois de na última conferência lhe ter sido pedido que respeitasse essas pessoas e explicado os contornos dos conflitos e objectivo traçado pela decisão aqui proferida na sua defesa, trazer paz à sua família.
7ª - A progenitora não tem disponíveis os dias de semana ao fim do dia, por estar alegadamente a desenvolver um projecto, que não identificou.
8ª - A progenitora, funcionária da CM de Loures, tem um vencimento aproximado de 1.100,00 euros, e deixou de pagar o colégio do menor, em valor de cerca de € 350,00 mensais.
9ª - O pai recebe cerca de € 1.200,00 mensais.
10ª - Aos sábados o menor vai com o pai para o Conservatório da música, acompanhando-o nessas actividades.
B) Fundamentação de direito
A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se o pai continua a ter a obrigação de entregar à mãe do menor, ora apelante, as prestações de alimentos devidos por pai ao filho menor, enquanto este esteve a cargo da mãe.
Os fundamentos da decisão recorrida constam do relatório que antecede e ali se mostram transcritos.
Cumpre decidir.
Para além dos facto provados acima transcritos, na decisão de 04.04.2014 ficou provado, além dos mais, que:
– O J… foi criado com muita proximidade pelos avós maternos, C… e F…, pois a filha vivia junto aos pais e, portanto, foram sempre estes avós que cuidaram do J… até Março de 2011, altura em que a progenitora foi buscar o J… a casa dos avós, passando o menor a viver com ela e o companheiro (Nº 23 – fls 733).
Entende a mãe do menor, ora apelante, que lhe são devidas prestações “atrasadas” e que se reportam à falta de pagamento pelo pai do menor das prestações de alimentos vencidas e não pagas de Fevereiro de 2008 e Dezembro de 2011, em que o menor esteve à guarda da mãe, encontrando-se, ainda, em dívida o montante de € 4.900,00, sendo que tais prestações foram fixadas no âmbito da regulação judicial do exercício do poder paternal como contrapartida devida pelo pai ao filho menor, que não estava à sua guarda.
È dever de ambos os pais proverem pelo sustento do seu filho enquanto este for menor de idade, pois este tem necessidades que cumpre aos pais satisfazer (artigo 2009º alª c) do Código Civil, artigo 36º nº 5 da Constituição da República e artigo 27º nº 1 da Convenção dos Direitos da Criança).
Estabelece o artigo 1878º nº 1 do Código Civil que: “Compete aos pais, no interesse dos filhos, (…,) prover ao seu sustento.
Este artigo 1878º do CC define, nas suas linhas gerais, o conteúdo das responsabilidades parentais e tem, como princípio mais elementar, o interesse dos filhos, e não o interesse egoístico dos pais.
Do preceito imediatamente subsequente (artº 1879º) resulta que os pais apenas se desobrigam de prover ao sustento dos seus filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação «na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos”.
A satisfação do interesse dos filhos surge, assim, para os progenitores como um dever constitucional, em que a obrigação de prestação de alimentos assume um carácter primordial, no leque de relações que aquele exige que se estabeleçam.
Dos dispositivos legais acima referidos resulta que é intrínseca à condição de “pais” a obrigação natural e jurídica de proporcionar alimentos aos seus filhos menores, garantindo o seu sustento (cfr. o citado artº 1878º). Todos os progenitores têm o dever jurídico e moral de alimentar os seus filhos, devendo sempre a medida dessa prestação ser fixada, tendo em conta o que se dispõe no artº 2004º do Código Civil, de forma equitativa, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso.
A legitimidade da mãe, ora apelante, para suscitar o incidente de incumprimento da prestação de alimentos, fixada no âmbito do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais pactuado entre os seus pais, durante a sua menoridade, decorre do nº 1 do artigo 181º da OTM que se transcreve:
“Se, relativamente à situação do menor, um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até 50.000$00 e em indemnização a favor do menor ou do requerente ou de ambos”.
O artigo 189° da Organização Tutelar de Menores dispõe que, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida, dentro de dez dias depois do vencimento, proceder-se-á a pagamento das prestações de alimentos vencidas e vincendas, através de desconto no vencimento, ordenado, salário do devedor, ou de rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos e comparticipações que sejam processadas com regularidade.
Dever-se-á, no entanto, atentar nas circunstâncias muito próprias em que tal legitimidade foi conferida. Apenas determinada pela incapacidade do menor e em termos de suprimento desta, como preconizado nos artigos 16º e 18º do Código de Processo Civil. Já que, como lapidarmente decorre dos preceitos dos artigos 1874º e 1879º do Código Civil, os filhos são os verdadeiros titulares do direito a alimentos que lhes são devidos pelos seus pais. O progenitor que se apresenta em juízo, durante a menoridade do filho, a requerer a sua fixação de alimentos (ou a sua cobrança coerciva), fá-lo-á não na qualidade de titular do direito, mas de representante daquele, suprindo essa incapacidade.
O pai do menor, V…, estava judicialmente vinculado a prestar alimentos a seu filho J… no montante mensal de € 150,00, conforme acordo celebrado com a mãe na Conferência de 27.11.2012, homologado por sentença - (fls 199).
Na mesma Conferência o pai reconhecendo o incumprimento da pensão de alimentos, acordou com a mãe em “ aumentar o valor que se encontra a ser pago, a título dos valores vencidos, para o montante de € 100,00, até perfazer o montante de € 6.500,00 ainda em dívida”.
Assim, é efectivamente devido o montante de € 150.,00 (cento e cinquenta euros) mensais por referência ao período temporal compreendido entre Abril de 2011[1] e Dezembro de 2011, já que foi a mãe quem, nesse período, colmatar a omissão do progenitor relapso, assumindo os encargos com o filho que ele não custeou.
E é nessa linha de pensamento que lhe poderá ser conferida legitimidade para a cobrança desse crédito, por sub-rogação legal, de acordo com o estabelecido no artigo 592º, nº 1, daquele código, quer no caso de o filho ser ainda menor, quer mesmo no caso de o filho ter entretanto atingido a maioridade[2].
Pronunciando-se sobre a questão, Remédio Marques submete-a ao seguinte enquadramento: “Admite-se que, embora as prestações caibam iure próprio ao filho (…), o progenitor convivente, que tenha custeado (total ou parcialmente) as despesas de sustento e a manutenção que ao outro obrigavam, possa subrogar-se nos direitos (de crédito) do filho”[3].
Maria Clara Sottomayor, defende que solução contrária prejudica o progenitor que se sacrificou financeiramente pelo filho, suprindo durante a menoridade deste, a omissão do outro progenitor, propugna que “as prestações vencidas durante a menoridade não se convertem, portanto, em crédito próprio do filho após a maioridade deste, mantendo a mãe, que exerceu o poder paternal, legitimidade, em nome próprio ou em representação do filho, para as exigir do devedor”[4].
No acórdão desta Relação de 05.12.2002[5] decidiu-se: “Sendo também certo que o filho menor é o beneficiário e titular das quantias pagas a título de alimentos pelo progenitor que o não tem à sua guarda – progenitor não convivente, tal não significa, porém, que o progenitor convivente, que teve o filho à sua guarda até este atingir a maioridade (…) e que cumpriu o seu dever de assistência (…) fique privado de legitimidade processual para exigir o cumprimento das prestações fixadas em decisão judicial vencidas e não pagas durante a menoridade, uma vez atingida a maioridade. Na verdade, se em tal caso o filho maior não requer a realização coactiva da prestação alimentar contra o progenitor que a ela estava obrigado, tem de aceitar-se que o progenitor que dele cuidou e lhe prestou, exclusivamente, alimentos, provendo ao seu sustento, segurança, saúde e educação na medida das suas capacidades durante a sua menoridade, possa tornar efectivas as prestações em dívida, mesmo que fixadas em sentença proferida durante a menoridade do alimentando, ao abrigo da figura da sub-rogação leal, de harmonia com o disposto no artº 592º nº1 do Código Civil”.
E o mesmo acórdão concluiu que do nº 2 do artº 1412º do CPC deriva, claramente, que a maioridade não obsta à continuação dos processos relativos a alimentos devidos antes daquela ser atingida, o que vale igualmente para a fase de carácter executivo regulada no artº 189º da OTM, e que o disposto nesta norma “não impede que o referido processo se conclua, quer por impulso processual do filho (credor da prestação de alimentos) que atingiu a maioridade, quer do progenitor que o teve à sua guarda durante a menoridade e lhos prestou para além do que lhe cumpria”.
Voltando ao caso em apreço, e tendo em conta o explanado, diremos que a decisão recorrida não interpretou correctamente os preceitos legais acima mencionados, pelo que se considera verificado o incumprimento do requerido no que concerne ao pagamento das prestações alimentícias devidas ao menor, por referência apenas ao período de Abril de 2011 a Dezembro de 2011, o que perfaz o montante global de € 1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros), ou seja, €150,00x9.
EM CONCLUSÃO
- A legitimidade da mãe do menor para suscitar o incidente de incumprimento da prestação de alimentos, fixada no âmbito do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais pactuado entre os seus pais, durante a sua menoridade, decorre do nº 1 do artigo 181º da OTM.
- A legitimidade para a cobrança desse crédito é-lhe conferida por sub-rogação legal, de acordo com o estabelecido no artigo 592º nº 1, do Código Civil, quer no caso de o filho ser ainda menor, quer mesmo no caso de o filho ter entretanto atingido a maioridade.
- Embora as prestações caibam iure próprio ao filho, o progenitor convivente, que tenha custeado, total ou parcialmente, as despesas de sustento e a manutenção que ao outro obrigavam, possa subrogar-se nos direitos (de crédito) do filho.
- As prestações vencidas durante a menoridade não se convertem em crédito próprio do filho após a maioridade deste, mantendo a mãe, que exerceu o poder paternal, legitimidade, em nome próprio ou em representação do filho, para as exigir do devedor.
III - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, alterando-se a decisão recorrida nos seguintes termos: considera-se verificado o incumprimento do requerido no que concerne ao pagamento das prestações alimentícias devidas ao menor, por referência ao período de Abril de 2011 a Dezembro de 2011, o que perfaz o montante global de € 1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros), ou seja, €150,00x9.
Custas pela apelante e apelado na proporção do vencimento.
Lisboa, 02 de Outubro de 2014
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida Costa
[1]Foram sempre os avós que cuidaram do João Pedro até Março de 2011, conforme ficou provado.
[2] Cfr Ac. RP de 16.01.2014, Procº nº 262/13.3TBALJ.P1.
[3] Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores) “Versus” o Dever de Assistência dos Pais para com os Filhos (Em Especial Filhos Menores)”, Centro de Direito da Família, FDUC, Coimbra Editora, Pág. 311.
[4] “Regulação do Exercício das Responsabilidade Parentais nos casos de Divórcio”, 5ª ed., Almedina 2011, pág. 344.
[5] CJ V/2002, pág. 90-91