CONTRATO DE TRANSPORTE
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
RECUSA DE CUMPRIMENTO
DIREITO DE RETENÇÃO
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
Sumário

1. O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário; Sem prejuízo, o enfoque faz-se no transporte, implicando o exercício de uma actividade ou de um serviço, sendo essa prestação que modela e caracteriza o contrato, de tal sorte que sem convenção de transporte não existe essa figura negocial
2. A entrega da mercadoria pressupõe a emissão do respectivo conhecimento de carga ou de embarque por parte do transportador (Bill of Lading). A recusa em entregar esse título equivale à recusa de entrega da mercadoria.
3. O direito de retenção da mercadoria transportada deve ser exercido em conformidade com o que dispõe o art. 21º do Dec. Lei 352/86 de 21-10 sob pena de ser ilegítima a sua invocação como suporte para a não entrega da mercadoria transportada e que originou o crédito.
4. A fixação do prazo de propositura da acção (nº6 do referido preceito) prende-se com razões de certeza e segurança jurídica, constituindo um prazo de caducidade, estabelecido em matéria excluída da disponibilidade das partes, sendo a excepção de conhecimento ofícioso (arts. 298º, nº2 e 333º, nº1 do Cód. Civil).
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa  
1. RELATÓRIO
A S.A apresentou contra S, Lda, requerimento de injunção, prosseguindo depois os autos a tramitação aplicável à forma de processo ordinário, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 60.702,99€, acrescida de 9.921,58€ a título de juros vencidos e nos vincendos, desde 03/03/2012 até efectivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão invoca, em síntese, que: 
A requerente é uma sociedade anónima que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias, operações de logística e distribuição de mercadorias, gestão de armazéns e terminais e actividade transitária.
A requerida é uma sociedade por quotas que se dedica à actividade de construção.
No âmbito das respectivas actividades comerciais, e pelo menos desde o ano de 2008, a requerente, a pedido da requerida, prestou-lhe diversos serviços de frete e conexos e, à data de 09/10/2009, a requerida apresentava um saldo devedor de conta corrente no montante de 5.697, 61€, referente a facturas emitidas pela requerente e anteriores a essa data.
Posteriormente, a requerente continuou a prestar serviços à requerida e entre 12/11/2009 e 31/12/2009 emitiu facturas correspondentes aos serviços prestados, que a requerida não pagou, sendo certo que nunca reclamou dos valores facturados e reclamados pela requerente.
Interpelada para pagar, na sede da requerente, e por diversas vezes, o montante em divida de 60.702, 99€, esta nada disse nem efectuou qualquer pagamento.
Citada, a requerida apresentou contestação, impugnando alguns dos factos articulados na petição inicial. Invoca, em síntese, que não é devido o valor de 21.449,53€ respeitante à factura nº 9015098, datada de 31/12/2009 uma vez que aquando da colocação da mercadoria (cisternas) no contentor a “cinta do depósito cedeu tendo danificado o depósito”, tendo as partes acordado que o valor de reparação, de 820,00€, seria suportado pela requerente. A requerente dispunha de um prazo de 15 dias a contar de 14-01-2010 (data da entrada da mercadoria na alfândega) para enviar à requerida os originais dos documentos de exportação, designadamente do ARC e o Bill of Landing, sem os quais o destinatário da mercadoria não conseguia efectuar o levantamento das mercadorias, o que a requerente não fez, pese embora a insistência da requerida. Em consequência, o cliente da requerida não lhe pagou a quantia correspondente à aquisição das mercadorias, no valor de 45.218,15€.
Em reconvenção, pede a condenação da requerente a pagar-lhe a quantia de 20.152,69€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a instauração da oposição até à data de prolação da sentença, quantia correspondente à diferença entre o valor devido pela requerida à requerente, de 25.885,46€ e o crédito que esta tem sobre aquela, de 46.038,15€ (45.218,15€ + 820,00€).
A requerente respondeu à reconvenção.
Invoca, em síntese, quanto à factura nº 9015098 no valor de 21.449,53€, com referência ao transporte via marítima, em 24.12.2009, de mercadoria (cisternas) com destino a .., que não entregou os documentos aludidos à requerida porque esta não liquidou os valores em divida acordados com a autora, a saber, o valor daquela factura e ainda o valor da factura aqui peticionada, com o n.º …, datada de 12/11/2009, no valor de € 3.344,85.
Quando, em 13/11/2009, a ré solicitou à autora o transporte marítimo em questão (referente à factura n.º …) a autora informou que o efetuaria mas a ré teria de pagar, pelo menos, o último transporte referente a carga aérea, efectuado em 08/11/2009, tendo em conta o saldo em dívida nessa data, e ainda o valor a faturar do “novo” transporte, este no prazo de 60 dias após a emissão da fatura.
Mais, a autora informou que se tais faturas (n.º … e, posteriormente, nº …) não fossem pagas, a autora não entregaria os documentos referentes ao “novo” transporte, o que impossibilitaria o levantamento da mercadoria na alfândega de .., conforme informou à ré.
A ré concordou com as condições da autora e informou que em Dezembro de 2009 liquidaria o valor de € 3.344,85 (referente à fatura n.º 9012900) e posteriormente o valor da fatura ainda a emitir pelo “novo” transporte, pelo que a autora tratou, então, de efetuar o transporte das cisternas via marítima para ...
Sucede que a ré nunca cumpriu com o acordado, pelo que a autora “usou do seu direito de retenção” – art. 51º da resposta.
Proferiu-se despacho de saneamento do processo, com fixação dos factos assentes e elaboração de base instrutória.
Realizou-se o julgamento.
Proferiu-se sentença que concluiu nos seguintes termos:
 “Face ao exposto:
1- julgo improcedente a excepção da compensação invocada e o pedido reconvencional deduzido pela Ré/Reconvinte S, Lda, dele absolvendo a Autora/Reconvinda A S.A”.
2) julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, condeno a Ré S Lda a pagar à Autora A S.A, a quantia global de 60.702,99 (sessenta mil setecentos e dois euros e noventa e nove cêntimos) acrescida dos juros vencidos sobre as quantias de € 5.697,61 (cinco mil seiscentos e noventa e sete euros e sessenta e um cêntimos), desde 01-10-2009; € 3.344,85 (três mil trezentos e quarenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), desde 13-01-2010; € 16.738,00 (dezasseis mil setecentos e trinta e oito euros), desde 21-01-2010; € 21.449,53 (vinte e um mil quatrocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e três cêntimos), desde 01-01-2010; € 17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 29-01-2009; € 17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 01-04-2009; €17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 10-07-2009; €17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde            10-07-2009; €17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 26-07-2009; € 17,50 (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 26-07-2009; e, € 13.368,00 (treze mil trezentos e sessenta e oito euros), desde 01-08-2010, a taxa legal resultante da Portaria n.° 597/2005, de 19-07, ou a taxa legal que vier a vigorar ate integral pagamento, absolvendo a Ré do remanescente peticionado a titulo de juros.
Custas da acção a cargo da Autora e da Ré na proporção do respectivo decaimento.
Custas da reconvenção a cargo da Ré/Reconvinte.
Registe e notifique”.
Não se conformando, a ré apelou formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
“(…)”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Proferido o despacho de fls. 241, convidando as partes a pronunciar-se sobre questão alusiva à competência material do Tribunal comum, a autora apresentou o requerimento de fls. 246-251, concluindo pela competência do tribunal, ao contrário da apelante, que por requerimento de fls. 253 conclui ser o Tribunal Marítimo o competente para processar e julgar os autos.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
A primeira instância deu por provada a seguinte factualidade:
1) A autora tem por objecto o transporte rodoviário de mercadorias, local ou de longa distância, regular ou ocasional, comércio e aluguer de veículos automóveis, com ou sem condutor, operações de logística e distribuição de mercadorias, gestão de armazéns e terminais, agentes transitários – (cf. certidão permanente junta em documento digitalizado a fls. 125 a 128).
2 - A ré tem por objecto empreitadas particulares e de obras públicas e construção civil; compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; urbanização de terrenos, fabrico e comércio de materiais e equipamentos para a construção civil, importação e exportação dos mesmos, canalizações industriais - «alínea A) da factualidade assente».
3 - No âmbito das respectivas actividades comerciais, pelo menos desde o ano de 2008, a autora prestou diversos serviços de frete e conexos à ré, a solicitação desta - «alínea B) da factualidade assente».
4 - Em 09-10-2009 a ré apresentava um saldo devedor para com a autora, de conta corrente, no montante de € 5.697,61, referente a facturas emitidas pela autora anteriormente a essa data - «alínea C) da factualidade assente».
5 - Posteriormente a autora continuou a prestar serviços à ré, os quais deram origem à emissão das seguintes facturas:
a) – Factura n.º …, com data de 12-11-2009 e vencimento a 60 dias, no valor de € 3.344,85, com referência ao transporte em 08-11-2009 de mercadoria (material sanitário) com destino a ..;
b) – Factura n.º …, com data de 20-11-2009, com vencimento a 60 dias, no valor de € 16.738,00, com referência ao transporte em 20-11-2009, de mercadoria (maquinaria) com destino a .. - «alínea D) da factualidade assente».
6 - Durante os anos de 2009 e 2010 a autora emitiu e enviou à ré as seguintes notas de débito emitidas em virtude das despesas bancárias que a autora suportou em consequência da devolução de cheques emitidos pela ré:
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 28-01-2009, no valor de € 17,50;
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 31-03-2009, no valor de € 17,50;
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 09-07-2009, no valor de € 17,50;.
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 09-07-2009, no valor de € 17,50;
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 25-07-2009, no valor de 17,50;
- N.º …, com data de emissão e vencimento em 25-07-2009, no valor de € 17,50 - «alínea E) da factualidade assente».
7 - A ré contactou a autora para que esta efectuasse o transporte de cisternas de betão armado, de Portugal para .., destinando-se a mercadoria a transportar a um cliente da empresa S .., Lda. -«alínea F) da factualidade assente».
8 - Em 13-11-2009, através de e-mail enviado à autora, a ré efectuou a reserva de dois contentores de 40” OPENTOP para o embarque da mercadoria mencionada em 7 - «alínea G) da factualidade assente».
9 - A mercadoria entrou na alfândega estando em condições de embarque, tendo sido carregados pela autora os contentores com as cisternas de betão armado - «alínea H) da factualidade assente».
10 - Aquando da colocação de uma das cisternas nos contentores, a cinta de suspensão do depósito cedeu, tendo danificado o respectivo depósito - «alínea I) da factualidade assente».
11 - Em 07-12-2009 a ré enviou à autora um e-mail com o orçamento da reparação do depósito, no montante de € 820,00 - «alínea J) da factualidade assente».
12 - Autora e ré acordaram que o valor da reparação, no montante de € 820,00 seria debitado/compensado no montante em dívida na conta corrente, no valor de € 5.697,61 - «alínea L) da factualidade assente».
13 - A autora contratou o serviço de transporte de mercadoria (cisternas) com destino a .. referido em 7, com data prevista do transporte para 24-12- 2009, tendo a mesma debitado à ré a prestação do referido serviço através da factura n.º …, com data de emissão de 31-12-2009, no valor de €21.449,53 – (resposta explicativa à matéria controvertida que integrava o quesito 1º).
14 - O pagamento da factura n.º … devia ser efectuado pela ré à autora na respectiva data de emissão, uma vez que devido à existência de cheques devolvidos por falta de pagamento a ré perdeu o crédito de sessenta dias de que dispunha anteriormente, devendo-se a erro informático a indicação de tal prazo de pagamento na factura, facto do conhecimento da ré. – (resposta explicativa à matéria controvertida que integrava o quesito 1º).
15 - Para além do mencionado em 6, a autora emitiu a nota de débito n.º …, com data de 31-05-2010 e vencimento a 60 dias, no valor de € 13.368,00, referente à anulação da nota de crédito … – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 2º).
16 - Uma vez que a ré tinha perdido o crédito de sessenta dias que dispunha para com a autora, a autora comunicou à ré que apenas enviava à ré os originais dos documentos de exportação em três vias, designadamente o ARC (documento referente aos carregadores de …) e o Bill of Lading, sem os quais o destinatário da mercadoria não conseguiria efectuar o levantamento da mercadoria na alfândega de .., após a ré efectuar o pagamento da factura n.º …, facto do conhecimento da ré (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 7º).
17 - A ré solicitou por diversas vezes à autora a entrega dos referidos documentos, a fim da mercadoria ser levantada em .. pela S .., Lda. e ser entregue ao respectivo cliente – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 8º).
18 - A autora recusou-se a entregar à ré os originais dos documentos de exportação, alegando para tal o facto de a ré ter uma dívida em conta corrente e não ter procedido ao pagamento da factura n.º … – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 9º).
19 - Na sequência do referido em 18, por e-mail enviado em 04-05-2010, a ré informou a autora do valor das multas cobradas pela Alfândega de .., em consequência do não levantamento da mercadoria – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 10º).
20 - Na sequência do referido em 19, por e-mail datado de 04-05-2010, a autora justificou a não entrega da documentação com o valor em dívida em conta corrente e o valor a receber pelo embarque – (resposta à matéria controvertida constante do quesito 11º).
21 - Em 30-08-2010 a ré enviou a S .., Lda. um e-mail, justificando a omissão do envio dos documentos – (resposta à matéria controvertida constante do quesito 13º).
22 - Através da factura n.º …, com data de emissão de 19-11-2009 e vencimento em 18-01-2010, a ré facturou a S .., Lda. as quantias correspondentes às despesas com a aquisição da mercadoria, despesas na origem, seguro e frete marítimo, nos montantes respectivamente de € 11.046,00, € 4.377,10, € 85,05 e € 29.710,00, no valor global de € 45.218,15., não tendo a S .., Lda. efectuado o pagamento da referida quantia à ré, por não ter conseguido proceder ao levantamento da mercadora na Alfandega de .., dada a inexistência dos originais dos documentos de exportação – (resposta explicativa à matéria controvertida constante dos quesitos 15º e 16º).
23 - Em 22-12-2009 a autora emitiu a nota de crédito n.º …, no valor de € 13.368,00, valor que creditou à ré no saldo existente em conta corrente, tendo a ré reclamado do valor da mesma por o considerar insuficiente, motivo pelo qual a autora acedeu ao pedido da ré e emitiu em 31-05-2010 uma nota de crédito no valor de € 17.335,83, valor que creditou igualmente à ré no saldo existente em conta corrente, tendo emitido a nota de débito n.º …, porque se o não fizesse a ré beneficiava de dois créditos, o que não lhe era devido – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 17º).
24 - Ao contrário do acordado, a ré não enviou à autora em Dezembro de 2009 uma nota de débito no valor de € 820,00, acompanhada de cópia da factura referente ao pagamento pela ré da reparação da cisterna, motivo pelo qual a autora não compensou tal valor na conta corrente em dívida – (resposta à matéria controvertida constante do quesito 18º).
25 - Quando em 13-11-2009 a ré solicitou à autora o transporte marítimo das cisternas, a autora informou que o efectuaria mas que a ré teria de pagar, pelo menos, o último transporte referente a carga aérea efectuado em 08-11-2009, tendo em conta o saldo em dívida nessa data, e ainda o valor do novo transporte a efectuar, aquando da emissão da respectiva factura – (resposta explicativa à matéria controvertida constante do quesito 19º).
26 - Tendo ainda a autora informado a ré que se as facturas nºs. … e … não fossem pagas, a autora não entregaria os documentos originais de exportação, o que impossibilitaria o levantamento da mercadoria na alfândega de ... – (resposta à matéria controvertida constante do quesito 20º).
27 - A ré concordou com as condições da autora e informou que em Dezembro de 2009 pagaria o valor de € 3.344,85 referente à factura n.º … e posteriormente o valor da factura n.º …, motivo pelo qual a autora aceitou efectuar o transporte marítimo – (resposta à matéria controvertida constante do quesito 21º).
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C. [ [1] ], diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- da competência material do Tribunal comum para processar e julgar os autos;
- do julgamento da matéria de facto;
- da caracterização do(s) contrato(s) celebrados entre as partes e determinação do Direito aplicável;
- da excepção de não cumprimento do contrato versus o direito de retenção;
- do exercício do direito de retenção no contrato de transporte matítimo de mercadorias;
- do pedido reconvencional.
2. A primeira instância processou e julgou os autos procedendo ao saneamento do processo conforme fls. 108 a 114, proferindo despacho tabelar quanto à competência do tribunal [ [2]  ], sendo certo que a ré não suscitou, em tempo oportuno, excepção alusiva à competência em razão da matéria.
Entendemos, ao contrário do que refere a primeira instância, que o Tribunal comum não é competente para processar e julgar o pleito quanto ao pedido formulado relativamente à factura nº 9015098. Efectivamente, dúvidas não há que, ponderando a posição das partes, a competência para o julgamento – da acção e da reconvenção – pertenceria ao Tribunal Marítimo (art. 4º, alínea c) da Lei 35/86, de 04 de Setembro).
No entanto, os tribunais marítimos são tribunais judiciais de primeira instância e de competência especializada (art. 1º, nº1 da referida Lei) pelo que a violação das regras de competência em razão da matéria só pode ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento, nos termos do art. 97º, nº2 do novo C.P.C. Como se referiu no ac. RC de 02-12-2008, com referência ao art. 102º da lei processual anterior, cujo regime se manteve no novo código, “o legislador estabelece dois graus de gravidade da violação das regras de competência em razão da matéria. Um, menos grave, ocorre quando são violadas regras que respeitem apenas aos tribunais judiciais, caso em que tem aplicação o nº 2 e a excepção só pode ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido o despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento. Outro, mais grave, tem lugar quando a violação incide sobre regras respeitantes a tribunais judiciais e a tribunais não judiciais, hipótese em que se aplica o nº 1 e a excepção pode ser arguida ou oficiosamente conhecida em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa” [ [3]  ].
Assim sendo, e pese embora o convite formulado às partes, a questão mostra-se agora ultrapassada, impondo-se o conhecimento do processo.
3. A apelante pretende que se altere a factualidade dada por assente sob o nº 14, dando-se por provado, em sua substituição, o seguinte facto:
“O pagamento da factura nº … devia ser efectuado pela ré à autora no prazo de sessenta dias”.
A pretensão não tem por base qualquer crítica ao juízo valorativo feito pela primeira instância incidindo sobre os elementos de prova produzidos no processo e reconduz-se, antes, como expressamente indicado na conclusão i), à afirmação de uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, alínea d). Basicamente, a pretendida alteração da decisão de facto (art. 662º, nº1), a ocorrer, impor-se-ia como decorrência inevitável do reconhecimento da apontada nulidade, em sede de sanação do vício e não por discordância relativamente à apreciação da prova feita pela primeira instância.
Vejamos.
No requerimento de injunção a autora invoca que prestou à autora os serviços correspondentes à “[f]actura nº …, de 31/12/2009, com vencimento a sessenta dias e no valor de € 21.449,53, com referência ao transporte, em 24.12.2009, de mercadoria (cisternas) com destino a ..”, peticionando a condenação da ré no pagamento de quantia que inclui esse valor.
Essa alegação, em particular a referência a esse concreto prazo de vencimento, repete-se na resposta à reconvenção – cfr. os arts. 15º, alínea c),  31º, 42º e 46º – e foi vertida no quesito 1º, com a seguinte redacção:
“O serviço de transporte de mercadoria (cisternas) com destino a .. referido em F) foi efectuado pela Autora em 24-12-2009, tendo a mesma debitado à Ré a prestação do referido serviço através da factura nº …, com data de 31-12-2009, e vencimento a 30 dias, no valor de € 21.449,53?”
A referência a “30 dias” e não “60 dias”, como se impunha, traduz mero lapso porquanto esse número nunca foi invocado por qualquer das partes, sendo que o lapso se evidencia do próprio texto da base instrutória – cfr. a redacção dos quesitos 19º e 20º  [ [4]  ] – impondo-se a respectiva rectificação.
A ré impugnou essa matéria, razão pela qual a mesma foi levada à base instrutória, nos precisos termos invocados pela autora.
Ora, as repostas dadas pelo tribunal não confirmaram esta versão, no que concerne ao invocado “prazo de vencimento”, considerando a Meritíssima Juiz que a prova produzida aponta para um prazo de vencimento da obrigação diferente do referido pela autora, isto é, grosso modo, a factura vencia-se não a 60 dias, nas na data de emissão.
A ré não questiona que assim seja mas contrapõe que tendo ocorrido “confissão” da autora quanto a esse prazo, não podia a primeira instância dar outro como assente. Ora, a questão não pode ser assim colocada porquanto obviamente que a autora não pode confessar a sua própria versão dos acontecimentos, maxime um conjunto de factos que lhe são favoráveis. Acresce que não faria sentido o tribunal dar como assente uma realidade inexistente isto é, o tribunal dar como provado o vencimento a 60 dias quando se provou coisa diferente, sendo certo que a resposta dada – vencimento na data de emissão da factura – ainda se contém no período de tempo delimitado pelo quesito – vencimento a 60 dias –, o que só não aconteceria se se desse como provado período de tempo superior a 60 dias. A invocação do princípio da estabilidade da instância (art. 261º) não procede porquanto não se verifica qualquer alteração da causa de pedir, matéria a que adiante melhor se aludirá.
Em suma, não tem cabimento dar como assente que “[o pagamento da factura nº … devia ser efectuado pela Ré à Autora no prazo de sessenta dias”, como a apelante pretende, quando se provou que “[o] pagamento da factura n.º … devia ser efectuado pela ré à autora na respectiva data de emissão”, como a Meritíssima Juiz considerou e a apelante, em substância, não contesta.
Afigura-se-nos, pois, que a questão é de direito e não de facto, ou seja, deve manter-se a resposta dada ao quesito 1º, na parte ora em discussão, sem prejuízo de, em sede de direito, aquando da análise da pretensão da autora, sendo necessário – e não será, como veremos – se atentar em que a pretensão de juros foi formulada com referência a um determinado período de tempo, sendo essa pretensão que baliza a intervenção do tribunal.
Quanto ao mais, considerou-se ainda na resposta que tal aconteceu “uma vez que devido à existência de cheques devolvidos por falta de pagamento a ré perdeu o crédito de sessenta dias de que dispunha anteriormente, devendo-se a erro informático a indicação de tal prazo de pagamento na factura, facto do conhecimento da ré”.
A Meritíssima Juiz considerou que se trata de resposta explicativa.
Lendo o requerimento inicial e a reposta à reconvenção, facilmente se concluiu que nunca a autora invocou essa factualidade, nunca tendo aludido às razões subjacentes à fixação da data vencimento de cada uma das facturas pelo que, ao contrário do que a primeira instância refere, a resposta ao quesito não consubstancia uma resposta explicativa. Efectivamente, a resposta fornece informação factual não compreendida (contida) no quesito e que vai para além dos limites de uma simples explicação ou aclaração. Como se referiu no acórdão do STJ de 11-03-1992, tem este tribunal “entendido que as respostas aos quesitos não têm de ser, necessária e simplesmente afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas, desde que se contenham na matéria articulada. O termo "explicar" pode ser tomado no sentido de "aclarar" ou no sentido de "justificar", mas a resposta explicativa a um quesito só é possível naquele primeiro sentido” [ [5] ].
Nessa medida, estamos perante uma resposta exorbitante, como refere Alberto dos Reis, acrescentando o autor que “[o] tribunal tem por função decidir as questões de facto da causa; mas a sua esfera legítima de acção, a sua competência concreta, digamos, é delimitada pelos quesitos. É chamado a responder a determinados pontos de facto, especificados nos quesitos; não pode ir além disso”. Refira-se que segundo o autor, nesses casos, a cominação é considerar-se que a decisão sobre a matéria de facto não produz efeitos [ [6]  ].
Impõe-se, pois, reformular a resposta ao quesito, sem prejuízo de se ter a alteração por irrelevante. É que a matéria alusiva ao acordo das partes quanto ao momento do pagamento, pela ré, da quantia a que se reporta a factura nº …consta, nomeadamente, da resposta aos quesitos 7º e 19º (cfr., respectivamente, os nºs 16 e 25 dos factos dados por assentes), sendo que a apelante não questionou tais respostas, pese embora sejam, igualmente, respostas “explicativas”, no entendimento da Srª Juiz. 
Em suma, procede parcialmente a impugnação pelo que se altera nessa parte a resposta ao quesito 1º e, consequentemente, atenta a posição das partes [ [7] ], determina-se que o número 14 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:
O pagamento da factura n.º … devia ser efectuado pela ré à autora na respectiva data de emissão.
4. A apelante insurge-se contra a decisão questionando o pagamento do montante de 21.449,53€, alusivo à factura nº ….
Como decorre da factualidade assente – cfr. os números 7 a 9, 13, 16, 17, 19, 22 e 25 a 27 dos factos dados como provados –, a autora obrigou-se perante a ré a diligenciar pelo transporte, por mar, de mercadorias (cisternas) do porto de Lisboa para o porto de Luanda (os documentos juntos aos autos dão conta de que esse era, em .., o porto de desembarque), sendo que as partes são sociedades com sede em Portugal (cfr. os documentos de fls. 8 a 13 e 125 a 128), incumbindo à ré o pagamento do preço respectivo, sendo que o transporte foi efectuado, chegando ao seu destino.
Estamos, inequivocamente, perante um transporte internacional marírimo de mercadorias ao qual é aplicável, ponderando os diversos elementos apontados, a Convenção Internacional Para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas a 25.8.1924, publicada no Diário do Governo, Iª Série, de 2.6.1932, rectificada em 11.7.1932, tomada direito interno pelo DL. 37.748, de 01-02-1950 (art. 8º da CRP) e, subsidiariamente, mormente nos aspectos não reglados pela Convenção [ [8] ], pelo Dec. Lei 352/86 de 21-10 [ [9] ], matéria a que as partes não atentaram [ [10] ], nada obstando à qualificação do contrato, fonte do invocado crédito da autora nesses termos (transporte marítimo), uma vez que o tribunal não está limitado pela qualificação jurídica das partes, sendo o juiz livre na interpretação e aplicação do direito, salientando-se que o tribunal a quo omitiu igualmente essa ponderação [ [11] ].
Assim, temos que o contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada «frete» - art. 1.º do Dec. Lei 352/86 de 21-10 [ [12]  ] [ [13] ] – sendo que se trata de um contrato formal, ainda que não se trate de formalismo rígido porquanto se inclui no âmbito da forma escrita, designadamente, cartas, telegramas, telex, telefax e outros meios equivalentes criados pela tecnologia moderna – art. 3º do mesmo diploma.
No caso, as partes não discutem o formalismo atinente ao contrato, sendo que os documentos juntos aos autos (fls. 28 a 33, alguns reportados na factualidade dada por assente) dão conta, minimamente, da convenção das partes.
A prestação a cargo do transportador – aqui autora/apelada – é uma obrigação de resultado, considerando-se a obrigação cumprida com a entrega da mercadoria ao carregador, expedidor ou, genericamente, ao destinatário [ [14] ] – cfr. o art. 18 do Dec. Lei 352/86. “Em termos civilísticos, o contrato de transporte é uma prestação de serviço. Todavia, não é o serviço em si que interessa ao contratante: releva, para este, apenas o resultado, isto é: a colocação da pessoa ou do bem, íntegros, no local do destino. Por isso, o transporte funciona como modalidade de empreitada. Podemos ainda acrescentar que, justamente por relevar o resultado final, o transporte acaba por assumir um conteúdo lato: abrange todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido”[ [15]  ] [ [16]  ] [ [17] ].       
Sem prejuízo, parece-nos evidente que o enfoque se faz no transporte implicando, pois, o exercício de uma actividade ou de um serviço, sendo essa prestação “nuclear” que modela e caracteriza o contrato, de tal sorte que sem convenção de trasporte não existe essa figura negocial [ [18] ].
A entrega da mercadoria pressupõe a emissão do respectivo conhecimento de carga ou de embarque por parte do transportador (art. 8º), o denominado Bill of Lading. Esse documento pode desempenhar “a tríplice função” [ [19] ] de meio de prova do contrato de transporte celebrado, recibo comprovativo das condições em que a mercadoria foi recebida a bordo e constitui título de crédito e de propriedade da mercadoria, autorizando o levantamento da mercadoria transportada [ [20] ] [ [21] ].
Em suma, trata-se de documento fundamental na relação negocial em presença, sem o qual o carregador ou o expedidor (ou o destinatário) não consegue efectuar o levantamento da mercadoria transportada.
Ora, foi precisamente esse documento que a autora não entregou ao réu, impossibilitando, pois, o levantamento das mercadorias (cisternas) transportadas para .. e a que se reporta a factura aludida – cfr. a factualidade provada e enunciada sob os números 16 a 19. Ou seja, a autora efectuou o transporte, praticando actos de execução do contrato, mas não procedeu à entrega da mercadoria.
5. Como configurar a situação descrita?
A primeira instância considerou que “não tendo a Ré efectuado o pagamento à Autora do preço do serviço de frete relativo ao transporte de mercadoria para .., a que se reportava a factura nº 9015098, nas condições acordadas com a Autora, ao contrário do alegado pela Ré, assisitia à Autora o direito de recusar a entrega dos originais dos documentos de exportação enquanto tal pagamento não fosse efectuado (cfr. art. 428º do Código Civil) (…)”.
Ou seja, considerando que a ré devia cumprir em primeiro lugar, pagando o preço acordado, a primeira instância considerou legítima a recusa da autora em entregar a mercadoria, fazendo operar a exceptio non adimpleti contractus.
Afigura-se-nos que o caminho é outro.
Concordando-se que a recusa de entrega da documentação consubstancia verdadeira recusa de entrega da mercadoria transportada [ [22] ], impõe-se no entanto reconduzir a hipótese em apreço a uma situação de exercício do direito de retenção por parte do credor.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “[a] exceptio, que existe nas relações sinalgmáticas, funda-se no não cumprimento de uma das prestações a que os contraentes ficam adstritos; o direito de retenção funda-se no não cumprimento de uma obrigação que, se bem que conexa com aquelas, não se confunde com elas. Vejamos o caso do transporte: A obriga-se a transportar uma coisa de B, por certo preço. Enquanto A não transportar a coisa, B pode recusar o pagamento, e enquanto B não pagar, A pode recusar o transporte. Funciona aqui a excepção de não cumprimento. Já, porém, o direito que A tem de não entregar a coisa transportada, enquanto lhe não for pago o preço do transporte, se bem que se relacione com o contrato, não se apresenta como o não cumprimento de uma das obrigações recíprovas. É agora o direito de retenção que funciona” [ [23] ].
Foi nesses termos que a autora configurou o seu direito e a demanda da ré. Efectivamente, a autora invocou na petição inicial ser titular de um direito de crédito sobre a ré, por lhe ter prestado “diversos serviços de frete e conexos”, exigindo o pagamento do preço respectivo, o que não se compadece com a invocação da exceptio e, perante a alegação da ré na contestação invoca, expressamente, na resposta, a figura do direito de retenção [ [24] ].
Isto é, a autora nunca perfigurou a acção posicionando-se como devedora da ré e exigindo desta o cumprimento da obrigação para (só) depois efectuar a sua (ainda possível) prestação, posicionou-se, ab inicio, exclusivamente, como credora, configurando a recusa de entrega da documentação aludida como um meio de compelir a ré ao pagamento.
É nesta dimensão funcional que reside a diferença entre o direito obrigacional de retenção e a excepção de não cumprimento: “a exceptio não visa a tutela do direito de crédito do exercente, mas antes, e exclusivamente, a protecção da sua condição de devedor. Alguns elementos da disciplina da excepção só se explicam por estar em causa fazer valer um limite intrínseco dos deveres das partes, e não a concessão de um instrumento compulsório que favoreça o exercício do direito de crédito. Tudo se passa de forma diversa no direito obrigacional de retenção. Este dirige-se a situações em que haja deveres recíprocos, mas não interdependentes. (…) Enquanto a exceptio se destina a proteger as partes na sua condição de devedoras, o direito obrigacional dirige-se à tutela dos seus direitos de crédito, a auxiliar a satisfação do direito à prestação daquele que o exerce” [ [25] ].               
É por isso que a exceptio é basicamente invocada pelo demandado, como forma de obstar ao pagamento (do preço) exigido pelo autor.
Neste contexto, concluindo-se que a autora ao proceder conforme descrito sob os números 16 a 20 da factualidade assente teve uma actuação conforme ao exercício do direito de retenção sobre a mercadoria transportada, temos igualmente de concluir, como a apelante entende, que esse direito foi exercido de forma irregular, como passamos a analisar.
6. A Convenção de Bruxelas de 1924 é omissa quanto a essa matéria mas o Dec. Lei 352/86 de 21-10 dispõe expressamente sobre o direito de retenção, regulando o exercício desse direito no art. 21º (“Direito de retenção”), com a seguinte redacção:
“1 - O transportador goza do direito de retenção sobre a mercadoria transportada pera garantia dos créditos emergentes do transporte.
2 - Sempre que pretenda exercer este direito, o transportador deve notificar o destinatário ou consignatário, dentro dos quinze dias imediatos à chegada do navio ao porto de descarga.
3 - Se o transportador, no exercício do direito de retenção, mantiver a mercadoria a bordo, fica impedido de reclamar dos interessados a indemnização por danos resultantes da imobilização do navio.
4 - No exercício do direito de retenção, o transportador pode, no entanto, optar por proceder à descarga da mercadoria, assegurando com diligência a sua guarda e conservação.
5 - As despesas com a guarda e conservação referidas no número anterior ficam a cargo dos interessados na mercadoria.
6 - O titular do direito de retenção deve propor a competente acção judicial dentro dos 30 dias subsequentes à realização da notificação referida no n.º 2.
A autora não atentou que o contrato de transporte de mercadorias por mar está tipificado, tendo regulamentação própria, pelo que nem sequer invocou os factos pertinentes em ordem a podermos concluir pelo cumprimento das exigências que decorrem do citado preceito que, como a generalidade das normas constantes do diploma, entendemos consubstanciar norma imperativa.
Afigura-se-nos estarem em causa interesses de ordem pública – e não, exclusivamente, a salvaguarda do interesse do transportador – porquanto os portos são locais de trânsito de mercadorias, e não locais de armazenamento, sabendo-se que há prazos máximos de permanência nos terminais portuários, com estipulação legal, inclusivamente, de venda forçada em determinadas circunstâncias – cargas perecíveis que não sejam retiradas no respectivo prazo de validade, mercadorias cujo armazenamento não tenha sido pago …  [ [26] ] –, nessa medida se justificando a específica regulação do exercício do direito de retenção da mercadoria por parte do transportador, em moldes que não têm paralelo na lei civil (cfr. os arts. 754º a 761º do Cód. Civil).
A fixação do prazo de propositura da acção prende-se com razões de certeza e segurança jurídica, constituindo um prazo de caducidade, estabelecido em matéria excluída da disponibilidade das partes, sendo a excepção de conhecimento ofícioso – arts. 298º, nº2 e 333º, nº1 do Cód. Civil.
Ponderando a factualidade assente e o que emana da posição das partes expressa nos articulados e ao longo do processo podemos seguramente afirmar que os procedimentos exigidos por lei para o exercício regular do direito de retenção não foram cumpridos.
Assim, sabe-se que a autora efectuou o transporte contratado, que estava previsto para 24-12-2009, sendo lícito inferir que a mercadoria terá chegado ao destino em princípios de 2010 ponderando que o litígio entre as partes, a propósito da entrega da documentação em causa, se desenrolou exactamente nos primeiros meses do ano – cfr. nºs 16 a 20 da factualidade assente.
Não se discutindo que o crédito da autora legitimaria a retenção porque emergente do transporte da mercadoria respectiva, impunha-se no entanto que a autora desse a conhecer à ré a vontade de exercer o direito de retenção, cumprindo ainda os prazos legais referidos, quer para a efectivação da notificação, quer da instauração da acção judicial – nºs 2 e 6 do referido preceito.
Tendo a presente acção dado entrada em 05-03-2012 – cfr. a data aposta no requerimento de injunção – foi-o manifestamente fora do prazo legal, mostrando-se pois extinto, por caducidade, o direito de judicialmente invocar a faculdade de retenção.
Assim sendo, perante este exercício irregular do direito de retenção, não pode a autora obter da ré o pagamento do preço do transporte de mercadorias que não entregou, procedendo, nesta parte, a apelação da ré.
Impõe-se, pois, a absolvição da ré quanto ao pedido de condenação no pagamento da quantia de 21.449,53 € relativa à factura nº … e juros respectivos [ [27] ].
7. Pretende ainda a apelante a revogação da sentença na parte em que se julgou improcedente a reconvenção, de forma a poder fazer valer a pretendida compensação de créditos.
Não tem razão.
Nos termos convencionados – cfr., nomeadamente, os números 25 a 27 da factualidade assente –, a autora só era obrigada a proceder à entrega da mercadoria transportada depois da ré proceder ao pagamento do frete, o que declaradamente a ré não fez. Assim sendo, não se vislumbra que a autora tenha praticado qualquer ilícito susceptível de fundar a obrigação de indemnizar.
A circunstância da autora não poder reclamar da ré o pagamento, nos moldes e pelas razões aludidas, não significa que a ré lhe posssa assacar a responsabilidade pelos prejuízos que invoca. Saliente-se, aliás, que a formulação da matéria dada como provada sob o nº22 não é clara a esse respeito, porquanto a circunstância da ré ter emitido a factura aludida, apresentando-a a outra entidade, que porventuira pertencerá ao mesmo grupo económico, a avaliar pela denominação das sociedades em causa, não suporta um juízo de inferência de prejuízos.
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, pelo que, revogando em parte a sentença recorrida, condena-se a ré a pagar à autora a quantia global de 39.253,46€ (trinta e nove mil, duzentos e cinquenta e três euros e quarente e seis cêntimos), acrescida dos juros vencidos sobre as seguintes quantias, nos seguintes termos:
- de 5.697,61€ (cinco mil seiscentos e noventa e sete euros e sessenta e um cêntimos), desde 01-10-2009;
- de 3.344,85€ (três mil trezentos e quarenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), desde 13-01-2010;
- de 16.738,00€ (dezasseis mil setecentos e trinta e oito euros), desde 21-01-2010;
- de 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 29-01-2009; 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 01-04-2009; 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 10-07-2009; 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 10-07-2009; 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 26-07-2009 e 17,50€ (dezassete euros e cinquenta cêntimos), desde 26-07-2009;
- de 13.368,00€ (treze mil trezentos e sessenta e oito euros), desde 01-08-2010, sendo todos à  taxa legal resultante da Portaria n.° 597/2005, de 19-07, ou à taxa legal que vier a vigorar ate integral pagamento, absolvendo a ré do remanescente peticionado.
No mais, mantém-se a sentença recorrida (cfr. o nº1 da decisão).
Custas pela apelante e apelada, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
_________________________________________
(Isabel Fonseca)
_________________________________________
(Maria Adelaide Domingos)
_________________________________________
                                                            (Eurico José Marques dos Reis)
[1] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013.
[2] Lê-se nesse despacho que “[o] tribunal é competente”, sem qualquer outra menção.
[3] Proferido no processo nº 1169/05.3TBOBR.C1 (Relator: Artur Dias), acessível in www.dgsi.pt.
[4] Com a seguinte redacção:
19º: Quando em 13-11-2009 a Ré solicitou à Autora o transporte marítimo das cisternas, a Autora informou que o efectuaria mas que a Ré teria de pagar, pelo menos, o último transporte referente a carga aérea efectuado em 08-11-2009, tendo em conta o saldo em dívida nessa data, e ainda o valor do novo transporte a efectuar, no prazo de 60 dias após a emissão da respectiva factura?
20º: Tendo ainda a Autora informado a Ré que se as facturas nºs. 9012900 e 9015098 não fossem pagas, a Autora não entregaria os documentos originais de exportação, o que impossibilitaria o levantamento da mercadoria na alfândega de ..?
[5] Proferido no processo 081555 (Relator: Fernando Fabião), acessível in www.dgsi.pt.
[6] Código do Processo Civil Anotado, Vol. IV, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, ps. 558 e 559):
[7]Como se disse, as partes não discutem, em substância, essa matéria, que nem sequer é juridicamente relevante como resulta do que adiante se analisará.
[8] Como refere Luís de Lima Pinheiro, Direito Aplicável ao Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias, in I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo (6 e 7de Março de 2008), Almedina, 2008, Coimbra, p. 167, para acentuar o carácter muito restrito da Convenção, esta “limita-se a estabelecer o mínimo das obrigações do transportador, o máximo das suas exonerações, o limite da indemnização por avarias de carga e os procedimentos a obsevar no caso de reclamações por avarias de carga”.
[9] Cfr. Luís de Lima Pinheiro, obr.cit. p. 201. 
[10] A apelante só em sede de recurso vem aludir a tal diploma.
[11] Cfr. a este propósito o ac. STJ de 09-07-2014, proferido no processo 7347/04.5TBMTS.P2.S1 (Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), acessível in www.dgsi.pt
[12] Nos termos do art. 2º deste diploma, "este contrato é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições do presente diploma", relevando a citada Convenção de Bruxelas de 1924.
[13] O conceito tem correspondência com as definições constantes do art. 1º da Convenção Bruxelas de 1924. Assim:
“b) “Contrato de transporte” designa somente o contrato de transporte provado por um conhecimento ou por qualquer documento similar servindo de título de transporte de mercadorias por mar e aplica-se igualmente ao conhecimento ou documento similar emitido em virtude duma carta-partida, desde o momento em que este título regule as relações do armador e do portador do conhecimento;
c) “Mercadorias” compreende os bens, objectos, mercadorias e artigos de qualquer natureza, excepto animais vivos e a carga que, no contrato de transporte, é declarada como carregada no convés e, de facto, é assim transportada;
d) “Navio” significa todo o tipo de barco empregado no transporte de mercadorias por mar;
e) “Transporte de mercadorias” abrange o tempo decorrido desde que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas.
[14] Sem preocupação de análise da figura jurídica do destinatário, matéria que não releva para o processo.
[15] Meneses Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª edição, 2009, Almedina, Coimbra, p. 712.
[16] Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias, Contributo para o Estudo da Posição Jurídica do Destinatário no Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, 2000, Coimbra, p. 32. refere: “A obrigação nuclear e carcterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório final ou primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário, ou a chegada do passageiro (e suas bagagens) incólume ao destino”. Veja-se, ainda Mário Raposo, Transporte Marítimo de Mercadorias, Os Problemas in I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo (6 e 7de Março de 2008), Almedina, 2008, Coimbra, p. 63.
[17] Na jurisprudência, acentuando que o transportador assume a obrigação de resultado de entregar a mercadoria, cfr. Ac STJ de 05-06-2012, Processo: 3303/05.4TBVIS.C2.S1 (Relator: Azevedo Ramos), acessível in www.dgsi.pt
[18] “No âmbito do contrato de transporte de coisas, ao lado dos deveres nucleares de deslocação e de pagamento do frete, vem assumindo crescente importância um terceiro elemento fundamental: o direito do destinatário à entrega das coisas (“delivery”, “Ablieferung”, “livraison”, “riconsegna”)” (José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2ª Reimpressão da edição de Setembro/2009, Coimbra, p.752).    
[19] José A. Engrácia Antunes, obr, cit., p. 742. Vide, ainda, Calvão da Silva, Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque, Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do S.T.J., ano II, 1994, tomo I, p. 16 e seguintes.
[20]  Estabelece o art. 11º do citado dec. lei, sob a epígrafe “Natureza, modalidades e transmissão do conhecimento de carga”:
 1 - O conhecimento de carga constitui título representativo da mercadoria nele descrita e pode ser nominativo, à ordem ou ao portador.
2 - A transmissão do conhecimento de carga está sujeita ao regime geral dos títulos de crédito.
[21] Sobre o conhecimento de carga e a sua tríplice função, vide os acórdãos RL de 17-02-2005, processo 5736/2004-6 (Relatora: Fernanda Isabel Pereira), de 22-06-2010, processo 1/08.0TNLSB.L1-7 (Relator: Roque Nogueira) e do STJ de 25-11-2003, processo 03A3624 (Relator: Ponce de Leão), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[22] Como se referiu no Ac. RL de 29-06-2006, proferido no processo: 4856/2006-6 (Relator: Gil Roque), acessível in www.dgsi.pt, “[é] por demais evidente que retendo os documentos, também ficam “ipso facto” retidas as mercadorias”.
[23] Código Civil Anotado, 3ª edição, 1982, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, p.743. 
[24] Lê-se no art. 51º da resposta: “Pelo exposto, a A. teve toda a legitimidade para reter os documentos legais em causa, pois usou do seu direito de retenção o que era legalmente admissível, nos termos do art. 755º, nº1, al) a do C.C.”.
[25] Estudo de Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias (Os direitos de retenção e o sentido da excepção de não cumprimento) para a Revista de Direitos e Estudos Sociais, acessível em 12-10-2014 in http://muriasjuridico.no.sapo.pt/ExceptioVsDtsdeRetencao.pdf 
[26] Cfr., relativamente ao porto de desembarque, o Regulamento de Tarifas Portuárias de .., aprovado pelo Decreto Executivo Conjunto (dos Ministérios das Finanças e dos Transportes) nº 323/08 de 16-12, publicado no DR 1ª série nº 236 (com a alteração constante do Decreto Executivo Conjunto nº 122/11 de 16-08, publicado no D.R., 1ª série, nº156 relativamente às Tabelas IX e X dos nºs 2 e 4 do art. 13º), maxime o disposto nas alíneas c), d) do nº 5 do art. 13º.      
[27] A questão não se coloca relativamente ao montante de 3.344,85€ (factura nº 9012900) porquanto o direito de retenção não foi exercido relativamente a essa mercadoria (material sanitário, por transporte aéreo), que foi entregue, não se vislumbrando razões para a ré não proceder ao pagamento correspondente.