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JUIZ NATURAL
NULIDADE PROCESSUAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário
. O princípio do juiz natural impõe que o processo seja julgado por um tribunal com competência definida previamente na lei, o qual se deverá manter no decurso da instância, só podendo ser afastado nos termos das regras abstractas e gerais da organização judiciária. 2. Não ocorre violação desse princípio, quando não se verifiquem indícios de que a afectação do processo ao juiz tenha sido feita por razões diversas das decorrentes da organização judiciária. 3. A irregularidade processual cometida com a dispensa da audiência preliminar só releva se tiver influência no exame e decisão da causa, nomeadamente conduzindo a uma decisão-surpresa. 4. Não se verifica decisão-surpresa se a decisão proferida tiver incidido sobre as questões versadas nos articulados, sem necessidade de maiores desenvolvimentos argumentativos. 5. É lícito o julgamento antecipado da lide, em sede de saneamento, quando não haja necessidade de produção de prova sobre factos controvertidos no quadro das soluções de direito plausíveis. 6. O contrato-promessa de partilha de bens da herança e subsequente divisão dos mesmos, celebrado pelos respectivos herdeiros, é válido e susceptível de execução específica, nos termos gerais. 7. A cláusula penal pode revestir a dupla função de indemnização a forfait e de sanção compulsória, nomeadamente quando associada à execução específica de um contrato-promessa. 8. A aplicação da cláusula penal compensatória é compatível com a resolução do contrato, fundada em incumprimento definitivo, tendo por finalidade a indemnização complementar emergente da violação do interesse contratual negativo. 9. Incumbe ao devedor o ónus de alegar e provar os factos tendentes a demonstrar que o montante da cláusula penal aplicada é superior ao prejuízo efectivo resultante do incumprimento da obrigação principal ou que, dentro desse limite, é manifestamente excessiva. 10. O pedido de condenação de qualquer das partes como litigante de má-fé não interfere com o valor da causa, não relevando para efeitos de repartição das custas. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. CMU (A.) intentou, em 04/03/2010, junto das Varas Cíveis de Lisboa, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra SC (R.) requerendo ainda a intervenção principal de MT, como associada do A., alegando, no essencial, o seguinte:
- A R. é viúva de CMB, pai do A., que faleceu em 20/10/2003, sendo ambos com a interveniente MT, irmã do A., herdeiros exclusivos do falecido, tendo sido instaurado um inventário judicial para partilha da herança;
- Porém, em 22/01/2009, ainda no decurso do inventário, os herdeiros celebraram um contrato-promessa de partilha, no âmbito do qual se obrigaram a desistir da instância naquele processo e a proceder à partilha extrajudicial dos bens da herança;
- Tendo o A. e sua irmã cumprido os termos a que se obrigaram, entregando os bens móveis e imóveis que não lhes foram atribuídos, nomeadamente mercê de licitações realizadas, a R. recusou-se depois a fazer outro tanto, nomeadamente não comparecendo à outorga da escritura notarial de partilha, de divisão de coisa comum e de adjudicação de bens imóveis, não obstante interpelada para o efeito, não pagando as tornas a que estava obrigada e não ratificando a desistência da instância no referido inventário, feita antes em seu nome pelos respectivos mandatários;
- Em face disso, o A resolveu o contrato-promessa de partilha, mediante carta remetida à R. em 30/07/2009, reclamando por isso nos autos o pagamento da cláusula penal nele expressamente consagrada, no valor de € 250.000,00, para ressarcimento não só das despesas que teve que suportar com o seu próprio cumprimento do contrato-promessa de partilha, como ainda para ressarcimento do desgaste psicológico que todo o processo de inventário já lhe causou, nos seis anos de pendência em juízo.
Concluiu o A. a pedir que se declarasse resolvido o contrato-promessa de partilha celebrado entre ele, a interveniente MT, sua irmã, e a R., por incumprimento definitivo e culposo desta, e se condenasse a mesma a pagar-lhe a quantia de € 250.000,00, a título de cláusula penal fixada no contrato.
2. A R. contestou, a sustentar, em síntese, que:
- Não percebendo a língua portuguesa, nem oral, nem escrita, por ser estrangeira, não compreendeu o conteúdo do contrato-promessa de partilha que outorgou, não tendo, porém, reagido oportunamente contra o mesmo por desconhecimento da lei;
- Não obstante isso, tentou cumprir o contrato, entregando nomeadamente aos demais co-herdeiros os bens imóveis e os bens móveis que lhes couberam em licitação, só não o fazendo quanto ao pagamento das tornas;
- O A. também incumpriu o contrato-promessa de partilha em referência, uma vez que não entregou à herança as rendas dos imóveis que se encontram na sua posse;
- Tendo havido apenas incumprimento parcial da R. e ocorrendo igualmente incumprimento por parte do A., a cláusula penal fixada, de € 250.000.00, é excessiva, devendo ser reduzida segundo juízos de equidade.
Concluiu a R., em primeira linha, pela improcedência da acção com a sua consequente absolvição do pedido e, subsidiariamente, pela redução do montante da cláusula penal, segundo juízos de equidade.
3. O A. replicou, alegando que:
- A R. reside em Portugal desde 1994, nunca tendo revelado não conhecer a língua portuguesa, tendo estado sempre representada por mandatários, advogados bilingues, e revelando ter compreendido as comunicações que lhe foram endereçadas, dando as suas respostas escritas sempre em português;
- O contrato-promessa de partilha foi elaborado e redigido pelos seus advogados e licitou em português os bens imóveis que lhe foram adjudicados, acompanhada de um intérprete;
- Só depois da R. ter tomado posse dos bens móveis que lhe foram adjudicados e se ver obrigada a pagar as tornas pelos bens imóveis que licitou, bem como a prestar contas pela administração da herança, é que veio, pela primeira vez, por em causa o contrato-promessa de parti-lha, tendo, posteriormente, pedido aos demais co-herdeiros uma prorrogação do prazo para o cumprir;
- A cláusula penal aqui exigida foi fixada pelos Ilustres Advogados da R., não tendo fundamento o seu pedido de redução e não sendo a mesma excessiva, já que foi intencionalmente fixada para demover qualquer dos contraentes ao incumprimento, face ao cansaço extremo que os seis anos de pendência do inventário lhes tinham causado;
- Não existe qualquer cumprimento parcial da R., uma vez que a posição que assumiu, de não ratificar a desistência da instância do processo judicial de inventário, levou a que o mesmo prosseguisse, tornando totalmente irrelevante o contrato-promessa de partilha;
- A R. distorceu a verdade dos factos, dela conhecidos, e deduziu uma oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, justificando-se assim a sua condenação como litigante de má fé, numa multa não inferior a € 4.500,00.
Concluiu com a reiteração do petitório, pedindo que a R. fosse condenada como litigante de má fé, em multa não inferior àquele valor.
4. A R. apresentou tréplica a reiterar que:
- Não consegue comunicar em língua portuguesa e que não dispôs de intérprete na assinatura do contrato-promessa de partilha, que não lhe foi traduzido;
- Cada um dos co-herdeiros recebeu rendas mensais no valor de € 2.000,00, de bens imóveis da herança, nunca tendo prestado contadas das mesmas, e ter sido o A. quem deturpou a verdade dos factos, assim se justificando a sua condenação como litigante de má-fé.
5. Por fim, o A. respondeu à matéria respeitante à litigância de má-fé invocada pela R., impugnando os fundamentos para tal alegados.
6. Deferido o incidente de intervenção principal, foi citada a interveniente MT, que veio apresentar articulado próprio (fls. 223 a 225), alegando:
- Em primeira linha, que intentou contra a R., em 30/07/2010, uma acção a correr termos sob o n.º …, na … Vara Cível de Lisboa, em que formulou pedido idêntico ao destes autos, ocorrendo assim uma situação de litispendência, a deduzir nesta acção, uma vez que a R. foi aqui citada posteriormente;
- Subsidiariamente, que a interveniente comunicou à R., mediante carta registada com aviso de recepção, de 12/07/2010, o seu desinteresse no cumprimento do contrato-promessa de partilha, em virtude do seu incumprimento por parte da mesma, tendo por isso direito à cláusula penal que reclama;
Concluiu a pedir que se julgue procedente a excepção dilatória de litispendência e, assim não entendendo, se condene a R. a pagar-lhe a quantia de € 250.000,00, a título de cláusula penal fixada para o incumprimento do contrato-promessa de partilha.
7. O A. veio pronunciar-se quanto à deduzida excepção de litispendência, sustentando que:
- Não ocorre tal excepção por não se verificar identidade de partes nem de pedidos;
- Não obstante isso, os presentes autos foram propostos primeiro e ainda nele foi a R. primeiro citada;
- Se verifica aqui uma situação de litisconsórcio necessário, porquanto é pedida a resolução de um único contrato-promessa de partilha com três contratantes.
8. Findos os articulados, em 22/03/2013, foi dispensada a realização de audiência preliminar pelos fundamentos constantes do despacho de fls. 357, sendo, de imediato, julgada improcedente a invocada excepção de litispendência, fixado o valor da causa e, por fim, proferido saneador-sentença a tomar conhecimento do mérito da causa, julgando-se a acção totalmente procedente e a decidindo-se:
a) - Declarar validamente resolvido “o contrato-promessa de partilha” celebrado entre o A., a Interveniente e a R., em 22 de Janeiro de 2009, onde se pretendia proceder à partilha da herança de CMB e à divisão da fracção denominada «Terraços de B…»;
b) - Condenar a R. a pagar ao A. e à Interveniente, em relação a cada um destes, a quantia de € 250.000,00, a título de cláusula penal prevista no contrato-promessa de partilha referido na alínea a), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal, actualmente de 4% ao ano, contados desde 18 de Março de 2010 até ao seu efectivo e integral pagamento.
9. Inconformada com aquele saneador-sentença, veio a R., em 13/05/2013, apelar dele, formulando as seguintes conclusões: 1-ª - O saneador-sentença proferido pelo Tribunal “a quo” considerou a acção totalmente procedente, e ainda por inexistirem elementos nos autos, decidiu não condenar o A. e a R. como litigante de má fé; declarar validamente resolvido o Contrato-Promessa de Partilha, de 22/01/2009; condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 250.000,00, a título de cláusula penal; condenar a R. a pagar ao mesmo A. juros de mora sobre aquela quantia, vencidos desde 18/03/2010 e vincendos, à taxa de 4% ao ano, até seu efectivo e integral pagamento; condenar a R. a pagar iguais quantias referidas nas alíneas b) e c) à Interveniente, à mesma taxa, pelo que deve a mesma ser declarada nula, ser anulada ou revogada. 2.ª – Não obstante, os argumentos e fundamentos invocados no pedido de escusa pela anterior titular do processo, para os quais se remete, mas que se desconhecem, não terá ocorrido posterior distribuição do processo, de forma aleatória, antes tendo sido entregue o processo, por simples despacho, à nova e actual Mm.ª Juíza, que logo proferiu despacho saneador, com valor de sentença, dispensando a marcação audiência preliminar; 3.ª - Tal facto constitui ofensa ao princípio do juiz natural, que constitui a base e o cerne da isenção e da confiança dos cidadãos na aplicação da justiça. 4.ª - Ao ser violado tal princípio, todas as decisões proferidas “ex post” são ilegais e, ainda, inconstitucionais, conforme art. 2° (estado de direito) da Constituição, o que conduz à nulidade do processo, pelo menos, a partir do saneador-sentença – o que se invoca para todos os efeitos legais. 5.a - O tribunal “a quo”, ao decidir definitivamente a questão de mérito, invocando manifesta simplicidade e a desnecessidade de mais provas, o despacho saneador/sentença teve o efeito de decisão-surpresa, ao não ouvir previamente as partes, designadamente a R., isto é, sem ter previamente marcado qualquer tentativa de conciliação nem mesmo qualquer audiência preliminar (art. 508.°-A, al. b, do CPC), dispensando-a expressamente; 6.ª - Apesar de o anterior Mm.º Juiz “a quo”, entender, e bem, a fls. 301 e seguintes, ordenar a realização da audiência preliminar, nos termos seguintes: "Para a realização de audiência com vista aos fins previstos nas alíneas a), b), d) e e) do n.° 1 do art.º 508.°-A do CPC, designo o próximo dia 9 de Maio, pelas 15,30 horas; 7.ª - Logo, o tribunal a quo devia sempre, e antecipadamente, designar a audiência preliminar “facultar às partes a discussão de facto e de direito, para apreciar as questões dilatórias ou mesmo se quisesse ou tencionasse – como foi essa a decisão última - conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” – o que não fez - diminuindo ou eliminando, dessa forma os direitos processuais de defesa do A., apelante (art.º 508.°-A, alínea b), do CPC; 8.ª - Não são correctos nem verídicos os pressupostos invocados no despacho saneador quanto à dispensa da referida audiência preliminar: a simplicidade da decisão, a articulação dos factos feita pelas partes ser pouco extensa, a fundamentação jurídica ter sido amplamente contraditada pelas partes; 9.ª - Para a boa e justa decisão de mérito, tomava-se imprescindível a junção e consequente apreciação de outras provas, nomeadamente, prova testemunhal, depoimento de parte, a prova pericial, acompanhadas da gravação da audiência final; 10.a – Assim, também foi violado, in casu, o princípio do contraditório e o e igualdade de armas, não sendo lícito ao tribunal “a quo” - salvo manifesta necessidade, o que não é o caso – decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar, não tendo, assim, ficado assegurado o estatuto de igualdade substancial das partes, violando-se, desta forma, também o art. 3.°, n.° 3, e 3.º-A, ambos do CPC; 11.ª – A R., ao longo do processo, alegou e demonstrou que, apesar de proferir e conhecer algumas palavras em português não domina nem acompanha facilmente o português em linguagem falada e escrita e, muito menos, o português jurídico, conforme resulta da certidão de citação de fls. 293: POR A MESMA NÃO FALAR PORTUGUÊS" (sic); 12.ª - Uma das situações em que não pode haver execução específica do contrato-promessa é exactamente a do contrato-promessa de partilhas porquanto, em caso de incumprimento de uma das partes, nenhuma das outras poderá requerer a execução específica desse contrato, pedindo a prolação de uma sentença, em qualquer tribunal, qualquer que ele seja, pelo que o contrato-promessa em causa é nulo; 13.ª - De facto, a partilha de bens por óbito de alguém só se pode fazer, ou pela via extra judicial e com o acordo de todos, através de escritura de partilhas (o que não foi o caso) ou, em alternativa (única) em processo especial de inventário, com termos e formalidades processuais próprias previstas no art.º 1326.º e segs do CPC; 14.ª - Existe não só impossibilidade legal como impossibilidade contratual de cumprir coercivamente o contrato-promessa, nomeadamente, a Cláusula Décima Sexta, tornando assim, nulo e de nenhum efeito o aludido contrato-promessa incluindo aquela cláusula, não só quanto à inexigibilidade da execução específica do contrato quanto ao modo da partilha e divisão da coisa comum, quer, ainda, quanto à inexigibilidade do cumprimento da aludida cláusula penal; 15.ª - A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado - o que agora se requer - e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal e a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, nos termos dos artigos 286.° e 289.° do CC; 16.ª - Invocando-se a nulidade do contrato-promessa, com efeitos “ab initio”, não podia ter ocorrido a resolução de um acto anterior, pois já se encontrava nulo por natureza; 17.ª - Caso tal não se entender, a resolução definitiva do contrato feita pelo Apelado, por carta Reg./AR dirigida à R. constante de fls. 116/117, implica a impossibilidade de os Apelados formularem qualquer pedido de indemnização, incluindo o funcionamento da cláusula penal; 18.ª - Nos termos do n.° 2 do art.º 810.° do CC, a cláusula penal está sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal e é nula se for nula esta obrigação e, nos termos do n.º 3 do art.º 811.º do CC, "o credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal; 19.ª - Os Apelados não tiveram qualquer prejuízo imediato e objectivo pelo facto de a Apelante não ir à escritura, pois, por um lado, não perderam nenhum dos bens a que tinham e têm direito na herança do pai do A., seja através dos bens licitados, seja através das tornas e quaisquer incómodos até ao contrato-promessa atingiram todos os interessados; 20.ª - Os quais não foram comprovados nos autos porque, entretanto, o processo "findou" no meio, na fase do Saneador, não tendo sido dada a possibilidade às partes de apresentarem outras provas, como testemunhas, mais documentos, perícias, depoimentos de parte, incluindo a gravação das provas... 21.ª - O valor da indemnização da cláusula penal, viola o disposto no artigos 811.°, n.° 3, e 812.° do CC, sendo que, se outros danos existissem, os mesmos tinham de ser comprovados em sede de julgamento, com vista ao apuramento da sua eventual existência ou seus limites, o que não chegou a acontecer; 22.ª - Assim, a sentença apelada interfere e impede a concretização e a realização dos direitos de defesa da R., violando ainda o princípio do contraditório, ínsito no estado de direito que urge preservar e defender, deve a mesma, também por este motivo de ilegalidade e inconstitucionalidade, ser revogada ou anulada - arts. 3.º do CPC e 2.° da Constituição; 23.ª - Os Apelados, ao instaurarem a presente acção com pedido de indemnização de € 500.000,00 e juros sem terem tido, nem mesmo demonstrado nos autos, sofrer qualquer dano material e moral, concretos e individualizados, pelo prosseguimento do processo de inventário, em curso há vários anos, pela falta de assinatura da escritura de partilhas e de divisão, por parte da Apelante, exerceram um direito processual de forma abusiva, portanto ilegítima; 24.ª - Os Apelados, sem ficarem minimamente prejudicados no seu direito à herança e partilha dos bens a que têm direito, por morte de seu pai, quer através da adjudicação de bens quer pelo recebimento de tornas no processo de inventário em curso, e tendo sempre ao seu alcance formas de o tornar efectivo, o pedido formulado na acção de indemnização, fundamentado numa cláusula inválida e também abusiva, ultrapassando objectiva e subjectivamente todos os limites da boa fé e do fim social ou mesmo económico do direito que pretendiam exercer (art.º 334.º do CC); 25.ª - O tribunal a quo não deu qualquer razão ao A.: "não se condenando o A. e/ou a R. como litigantes de má fé" (sic). 26.ª - Assim sendo, não tendo o A. almejado a sua pretensão, neste caso, por não ter obtido êxito ou ganho de causa, deveria, também por isso, ter sido condenado em custas, na devida proporção, pelo que, não o tendo feito, a sentença violou as disposições legais processuais aplicáveis quanto a custas, devendo, também por isso, ser revogada – artigos 450.° e 668.°, 1, f), do CPC.
Pede a apelante que seja revogada a sentença recorrida com as legais consequências.
10. Por sua vez, a apelada apresentou contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado, rematando com o seguinte quadro conclusivo: 1.ª - Quer a prova documental constante dos autos quer a prova dos factos por confissão e por acordo das partes impunham, segundo as mais elementares regras da experiência, a decisão condenatória tomada pelo Tribunal a quo; 2.ª - Não tendo sido cometida qualquer nulidade, e deste modo, não tendo nas conclusões de recurso sido invocado qualquer erro de direito quanto ao mérito do decidido, impõe-se confirmar aquela sentença, improcedendo, por isso, a apelação interposta pela ré. 3.ª - No caso em apreço, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha tido dúvidas sobre os factos provados com base na confissão e por acordo das partes; 4.ª - Aliás, o Tribunal a quo indicou, na decisão proferida, os meios de prova em que baseou a sua convicção. O Tribunal a quo não decidiu pois em estado de dúvida, mas sim alicerçando a sua convicção nas regras da experiência, na confissão dos factos por parte da R. e na prova documental fortíssima, não impugnada — muito pelo contrário, confirmada pela própria R..
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objecto do recurso
Como é sabido, no que aqui releva, o objecto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1 e 2, e 685.º-B, n.º 1 e 2, do CPC, na redacção anterior à Reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, em vigor desde 01/09/2013, a que correspondem, na actual redacção, os artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1 e 2, e 640.º, n.º 1 e 2, respectivamente.
Dentro de tais parâmetros, o objecto do recurso interposto incide sobre as seguintes questões:
A – No plano processual:
a) – A nulidade do processo a partir da afectação dos autos à Mm.ª Juíza que proferiu o saneador-sentença recorrido, com fundamento em violação do princípio do juiz natural;
b) – A nulidade processual com fundamento na dispensa injustificada da audiência preliminar, associada ao efeito de decisão-surpresa e à violação dos princípios da igualdade e do contraditório;
c) – A nulidade do processo com fundamento em inoportunidade do julgamento antecipado da lide, sem produção de outras provas, com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, mormente no que toca ao apuramento do prejuízo dos apelados para efeitos de redução da cláusula penal;
B – Em sede de mérito:
a) – A questão da nulidade do contrato-promessa com fundamento em impossibilidade legal do seu objecto, mais precisamente pela impossibilidade de execução específica desse contrato no que respeita à partilha da herança;
b) – Subsidiariamente, no que respeita à cláusula penal:
(i) - a questão da nulidade dessa cláusula por decorrência da invocada nulidade do contrato-promessa;
(ii) - a questão da incompatibilidade da aplicação dessa cláusula com a resolução do contrato;
(iii) - a questão de o montante da cláusula penal aplicada ser excessivo em relação ao prejuízo que terá ocorrido ao A. e à Interveniente;
(iv) – a questão do alegado abuso de direito na exigência da cláusula penal;
c) – A questão da pretendida condenação do A. apelada em custas por decaimento no deu pedido de condenação da R. como litigante de má-fé.
III – Fundamentação
1. Factualidade dada como provada pela na 1.ª Instância
Vem dada como provada pela 1.ª Instância, por acordo das partes e por prova documental, a seguinte factualidade:
1.1. CMB faleceu no dia 20 de Outubro de 2003, no estado civil de casado, sob o regime de separação de bens, com SC, aqui R., tendo-lhe sucedido o dito cônjuge sobrevivo, e os filhos daquele, CMU, aqui A., e MT - escritura de rectificação a prévia escritura notarial de habilitação de herdeiros, que é fls. 35 a 38 dos autos - acordo das partes;
1.2. Para partilha da herança de CMB, a aqui R. instaurou um inventário, o qual corre termos sob o n.º …. no 3.º Juízo Cível de Lisboa, 1a Secção - certidão judicial de fls. 39 e 40 e acordo das partes;
1.3. A R., identificada como «CABEÇA DE CASAL ou PRIMEIRA CONTRAENTE, a aqui Interveniente, identificada como «SEGUNDA CONTRAENTE», e o A., identificado como «TERCEIRO) CONTRAENTE», subscreveram em 22 de Janeiro de 2009, o documento que é fls. 41 a 47 dos autos, epigrafado «CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA», no âmbito do Inventário Judicial n.º … do 3.º Juízo Cível de Lisboa, 1.ª Secção, documento que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde, nomeadamente, se lê:
«(...)
É celebrado o presente contrato de promessa de partilha e de divisão de coisa comum:
Cláusula Primeira
Os herdeiros e contraentes acordam proceder à partilha da herança de CMB e à divisão de fracção denominada "Terraços de B…", nos termos que em seguida se enunciam: (…)
Cláusula Segunda
Os herdeiros e contraentes consideram como legados os seguintes prédios, devendo os seus valores de acordo com as avaliações feitas, ser considerados para efeitos de igualização dos quinhões na partilha, mais concretamente somando-os e dividindo o seu valor em três partes iguais:
- Fracção sita na Rua … – legado a favor de MT;
- Fracção sita na Rua … – legado a favor de CMU;
- Fracção sita em Cascais – legado a favor de ShC.
Cláusula Terceira
A herança será partilhada em três quinhões, correspondendo 1/3 a cada um dos herdeiros e contraentes com as especificidades que em seguida se enunciam: (…)
Cláusula Quarta
Os bens imóveis serão partilhados extra judicialmente, seguindo-se a seguinte metodologia:
a) - Caso se verifique acordo quanto à avaliação dos prédios tentar-se-á em primeira análise a repartição deles por herdeiros e contraentes por acordo;
b) - Não havendo concordância na avaliação ou não sendo possível estabelecer acordo entre os herdeiros e contraentes quanto à adjudicação do prédio ou dos prédios, proceder-se-á à licitação particular entre eles, partindo-se do preço base da avaliação constante dos autos;
c) - A ordem de licitação far-se-á por sorteio e cada lance terá o valor de 10.000, 00 € (dez mil euros)
Cláusula Quinta
Os critérios estabelecidos na cláusula anterior serão aplicados no mesmo acto à divisão da fracção, sita nos "Terraços de B…", em que os herdeiros e contraentes participam em compropriedade.
Cláusula Oitava
Os herdeiros e contraentes aceitam a relação e avaliação dos bens móveis constantes do inventário, procedendo-se à sua divisão de acordo com a seguinte metodologia:
a) - Os bens móveis serão adjudicados, um a um, por escolha feita por cada um dos herdeiros e contraentes, a qual seguirá a ordem que for ditada por sorteio;
b) - Para a atribuição do valor previsível a cada quinhão, no que se refere aos bens móveis, far-se-á o somatório dos valores constantes da relação de bens, dividindo-se o produto final por três o qual corresponderá ao valor de cada quinhão;
c) - Assim que um dos herdeiros e contraentes por efeito da escolha atinja ou ultrapasse o valor do seu quinhão ficará automaticamente excluído da divisão dos móveis a qual continuará com o remanescente e assim sucessivamente até à adjudicação integral dos móveis.
Cláusula Nona
1. Serão devidas tornas para igualizar a partilha, quer quanto aos imóveis qualquer que seja a metodologia utilizada, quer quanto aos móveis, devendo o seu pagamento ser efectuado no acto da escritura de partilha.
2. Serão igualmente devidas tornas quanto à adjudicação da fracção denominada "Terraços de B…", quer a mesma se efectue por acordo ou por licitação particular, devendo as mesmas ser pagas integralmente no acto da escri-tura de divisão de coisa comum.
Cláusula Décima Primeira
A partilha e a divisão de coisa comum segundo a metodologia estabelecida neste contrato deverão realizar-se no prazo máximo de 30 dias a contar da presente data no escritório do mandatário judicial de um dos herdeiros, devendo cada um deles tomar posse dos respectivos bens, quer sejam móveis ou imóveis, no prazo de 30 dias a contar dessa data.
Cláusula Décima Segunda
Os herdeiros e contraentes, comprometem-se a celebrar a escritura notarial de partilha, relativamente aos bens imóveis e a escritura de divisão de coisa comum no prazo máximo de 60 dias a contar da data da divisão dos bens nos termos estabelecidos, dando por efectuada a partilha dos bens móveis nos termos estabelecidos.
Cláusula Décima Terceira
Comprometem-se igualmente os herdeiros e contraentes a desistir do processo de inventário pendente, subscrevendo requerimento para o efeito no próprio dia da divisão dos bens móveis e imóveis.
Cláusula Décima Quarta
Os herdeiros e contraentes obrigam-se a assinar e subscrever tudo o que for necessário em prazo nunca superior a 48 horas, de todos os documentos que forem necessários para dar execução e cumprimento ao disposto no presente contrato.
Cláusula Décima Quinta
A Cabeça de Casal continuará a exercer as suas funções até à data da realização das escrituras indicadas na cláusula 12° competindo-lhe nomeadamente (...) apresentar a prestação de contas final aos restantes herdeiros nos 15 dias anteriores à data da realização da escritura de partilha, procedendo à entrega do respectivo saldo aos herdeiros e contraentes na data da escritura.
A marcação da escritura de partilha caberá ao herdeiro e contraente CMU.
Cláusula Décima Sexta
O não cumprimento pelos herdeiros e contraentes de qualquer uma das obrigações constantes deste contrato fará incorrer o mesmo numa indemnização nunca inferior a 250.000, 00 € (duzentos e cinquenta mil euros) em favor de cada um dos herdeiros e contraentes, sem prejuízo do direito à execução específica deste contrato.
Cláusula Décima Sétima
Caso não venha a ser possível, em tempo útil, proceder à transferência efectivas das contas no estrangeiro, na sua totalidade, para a conta aberta em nome dos três herdeiros, prevista na cláusula sexta, tal situação não prejudicará o cumprimento dos prazos estabelecidos neste contrato, procedendo-se a final, mesmo que em data posterior a celebração da escritura, a divisão dos saldos apurados.
(...)»
- acordo das partes; documento que é fls. 41 a 47 dos autos;
1.4. O «CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA» reproduzido no ponto anterior foi elaborado e redigido pelos Advogados que, à data, patrocinavam a R., tendo-o as partes assinado acompanhadas pelos seus mandatários judiciais - acordo das partes;
1.5. No dia 22 de Janeiro de 2009, em acta de inquirição de testemunhas, no processo de Inventário Judicial n.º … do 3.º Juízo Cível de Lisboa, 1.ª Secção, proposto pela aqui R., para partilha da herança de CMB, e em que eram interessados ela própria e os aqui A. e Interveniente, as ali partes afirmaram «que desistem de todos os incidentes deduzidos e que se encontram pendentes nestes autos» e que «têm intenção de desistir do presente processo de inventário, desistência essa que formalizarão no prazo de 30 dias, a partir desta data», o foi imediatamente homologado por sentença - acordo das partes; acta que é fls. 39 e 40 dos autos.
1.6. Em cumprimento do estipulado no «CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA» reproduzido sob o ponto 1.3, no dia 06 de Fevereiro de 2009, o A., a R. e a Interveniente efectuaram a licitação de todos os bens imóveis pertencentes à herança de CMB, incluindo o imóvel em co-propriedade denominado Terraços de B…, no valor global licitado de € 1.255.750,00, tendo a final sido atribuídos à R. bens imóveis no valor global licitado de € 770.500,00 - acordo das partes; acta que é fls. 48 e 49 dos autos;
1.7. O A., a R. e a Interveniente efectuaram a divisão dos bens móveis pertencentes à herança de CMB - acordo das partes;
1.8. No dia 31 de Março de 2009, o A., a R. e a Interveniente procederam à troca e à entrega de chaves de cada um dos imóveis adjudicados - acordo das partes;
1.9. No dia 31 de Março de 2009, ficaram entregues ao A., à R. e à Interveniente os bens imóveis e os bens móveis que lhes calharam mercê do referido nos pontos 1.6 e 1.7 - acordo das partes;
1.10. No dia 20 de Abril de 2009, a R. apresentou no processo de Inventário Judicial n.° … do 3.º Juízo Cível de Lisboa, 1.ª Secção, o requerimento escrito cuja cópia é fls. 73 e 74 dos autos. que aqui se dá por integralmente reproduzido, não ratificando a desistência ali apresentada em seu nome pelo(s) Advogado(s) que então a patrocinava, e onde nomeadamente se lê:
« (...)
Sua Excelência Senhor Dr. Juiz,
Acuso a recepção da carta de 30/03/09, onde me informam da desistência do processo de Inventário por morte de CMB, meu falecido marido.
Em resposta, venho comunicar que não irei ratificar o acto pois não retendo desistir do processo porque:
1 °) Na altura da assinatura do contrato promessa de partilha, na sua presença, não tinha conhecimento total do conteúdo do mesmo, mas confiei na boa fé dos presentes e quis dar um passo positivo na resolução do processo existente.
2°) Mais tarde, pedi a tradução completa do Contrato-Promessa e tive conhecimento dos pontos negativos e desfavoráveis contra mim.
3°) Fiquei perturbada de ver o meu bem pessoal (o apartamento de Cascais) ter sido apresentado neste Contrato como um apartamento "ligado ". Mas, não quis incumprir o Contrato e preferi aceitar as consequências do mesmo assinado na presença da Sua Excelência Senhor Juiz. Consequentemente, avancei sem qualquer protesto na divisão e partilha dos bens com os outros herdeiros.
(..)
Por todos estes motivos, comunicou, respeitosamente, à Sua Excelência Senhor Juiz que não pretendo desistir do processo de Inventário, porque ainda preciso do apoio e protecção da Justiça. (..)» acordo das partes e comunicação escrita de fls. 73 e 74 dos autos;
1.11. O A. enviou à R., que a recebeu. o original da carta cuja cópia é fls. 67 e 68 dos autos, datada de 20 de Abril de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde nomeadamente se lê:
A (...)
Assunto: Interpelação nos termos da Cláusula Décima Segunda do contrato promessa de Partilha - Herança CMB.
Marcação das escrituras de Partilha e Compra e venda/divisão de coisa comum. (..)
Finalmente concretizada a partilha, adjudicação dos móveis e entrega dos imóveis em 31 de Março de 2009, conforme acordado entre as partes, em cumprimento do estipulado no Acordo de Partilha e de acordo com o disposto na Cláusula Décima Segunda do respectivo contrato, venho informar V.a Ex.a que se encontra agendada para o dia 5 de Maio de 2009, pelas 18 horas, no Cartório Notarial da Dra. …, sito na Rua …, em Lisboa, a outorga das escrituras de partilha/adjudicação e escritura de compra e venda/divisão de coisa comum
Importa recordar, como é do conhecimento dos herdeiros, que consta do clausulado do contrato - especificamente nas Cláusulas Décima Segunda e Décima Sexta - que os herdeiros comprometem-se a celebrar a escritura notarial de partilha relativamente aos bens imóveis e a escritura de divisão de coisa comum, no prazo máximo de 60 dias a contar da data divisão dos bens o que aconteceu no dia 31 de Março de 2009.
Assim, Considerar-se-á incumprimento para o efeito do contrato-promessa de partilha, a não realização da escritura pública de partilha e compra e venda/divisão de coisa comum, por falta injustificada de algum dos contraentes na data agendada para o efeito. Caso algum dos herdeiros contraentes faltar no dia e hora marcada para a realização das escrituras consideraremos incumprido o contrato promessa de partilha assinado entre os herdeiros, ficando o herdeiro Contraente faltoso obrigado a pagar uma indemnização em valor não inferior a e 250.000, 00 (...) a cada um dos herdeiros contraentes não faltosos
- acordo das partes e carta de fls. 67 e 68 dos autos;
1.12. Em resposta à carta reproduzida no ponto anterior, a R. enviou à Exm.ª mandatária do A., que o recebeu, o original do fax cuja impressão é fls. 72 dos autos, de 28 de Abril de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde nomeadamente se lê:
Assunto: Sua referência – Herança CMB.
Por referência ao assunto acima e tendo em conta a sua carta de 20 de Abril de 2009, venho pela presente trazer ao seu conhecimento que me encontro neste momento a tentar reunir o montante com base no qual farei face cio pagamento das tornas no momento da escritura. Apesar de todos os meus esforços, tem sido difícil reunir a referida quantia, pelo que não conseguirei tê-la disponível até ao dia 5 de Maio.
Assim, gostava de lhe pedir o adiamento da escritura para a semana de 18 a 24 de Maio, pois nessa altura parece-me que já conseguirei ter o montante disponível.
Por favor fique com a nota de que tenho feito todos os meus esforços para reunir a referida quantia e estou de boa fé, sendo minha intenção cumprir com todos os meus deveres.
(…)
- acordo das partes e fax de fls. 72 dos autos;
1.13. Em resposta ao fax reproduzido no ponto anterior, o A. enviou à R., que a recebeu, o original da carta cuja cópia é fls. 81 e 82 dos autos, de 29 de Abril de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde nomeadamente se lê:
« (...)
Assunto: Herança CMB
A marcação da escritura foi efectuada nos termos da alínea b) da cláusula Décima Quinta sendo cumpridos todos os requisitos contratuais motivo pelo qual não se vislumbra qualquer razão para o seu adiamento.
O pedido que faz é insólito tanto mais que a minha Advogada acaba de ser notificada do teor do requerimento que V.ª Ex.ª apresentou em Tribunal no qual não ratifica a desistência do processo de Inventário, o que a coloca, desde já e para todos os efeitos legais, em situação de incumprimento, tendo em atenção o previsto na cláusula Décima Terceira do contrato promessa de partilha.
Por outro lado, tal como previsto na cláusula Décima Quinta, conjugada com a cláusula Sexta do mesmo contrato promessa V". Ex" está obrigada a apresentar a prestação de contas final aos restantes herdeiros nos 15 dias anteriores à data da realização da escritura de partilhas e escritura de adjudicação de imóvel "Terraços de B…" procedendo à entrega do respectivo saldo aos herdeiros e contraentes na data da escritura, obrigação essa da qual eu não prescindo.
(...)»
- acordo das partes e carta de fls. 81 e 82 dos autos;
1.14. Uma vez notificados do requerimento da R. reproduzido no ponto 1.9, os então seus mandatários no processo de inventário judicial n.º … do … Juízo Cível de …, 1.ª Secção, apresentaram no mesmo o requerimento escrito cuja cópia é fls. 80 e 81 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde nomeadamente se lê:
« (...)
HC e MD, Advogados com procuração nos autos como mandatários da cabeça de casal ShC, vêm expor e requerer o seguinte:
Com total desconhecimento dos requerentes e à revelia dos mesmos, deu entrada nos autos a 20 de Abril de 2009 una requerimento subscrito pela cabeça de casal.
Independentemente da posição que se vier a tomar, do teor do referido requerimento, avultam considerações sem nexo e inverdades com as quais, os requerentes por dever de patrocínio e no quadro dos mais elementares princípio deontológicos, não podem pactuar e verberam.
Sem prejuízo de se adiantar que a cabeça de casal teve tempo e prévio conhecimento dos termos do contrato promessa de partilha, tendo sido, por via disso propostas alterações à sua redacção original, a verdade é que foi ao abrigo do referido contrato que a cabeça de casal fez as licitações e escolhas que entendeu, não obstante lhe haver sido sugerida prudência, tendo licitado e escolhido mais de dois terços dos bens que compunham a referida herança.
As considerações tecidas pela cabeça de casal quanto à não ratificação da desistência da instância, não só por colidirem com a vontade anteriormente expressa ao assinar o contrato promessa de partilha, mas também por porem em causa a posição dos requerentes que participaram na redacção e cora a cabeça de casal o subscreveram, põem irremediavelmente em crise a relação de mandato.
Aliás, adiante-se, foi intencionalmente provocada pela cabeça de casal, após ver satisfeitas todas as suas pretensões quanto aos bens da herança, e apenas com objectivo de se eximir ao cumprimento das responsabilidades que assumiu quer perante os herdeiros quer perante os requerentes.
Termos em que e nos do art° 39° e seguintes do C.P.C. vêm declarar a renúncia do mandato com as legais consequências.
(...)»
- acordo das partes e comunicação escrita de fls. 80 e 81 dos autos;
1.15. A R. enviou à Exm.ª mandatária do A., que o recebeu, o original do fax cuja impressão é fls. 89 dos autos, de 04 de Maio de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzido, e onde nomeadamente se lê:
« (...)
Eu, ShC, venho junto de V. Exa. dizer o seguinte:
A escritura de partilha dos imóveis está marcada para amanhã, dia 5 de Maio de 2009, conforme sua comunicação.
O requerimento que apresentei ao Tribunal, em 20 de Abril de 2009, solicitando a não desistência do processo, deveu-se ao facto de ainda existirem alguns assuntos não esclarecidos.
Acontece que o montante referente a tornar a entregar aos outros herdeiros apenas estará disponível no final deste mês de Maio.
(...)
Assim, venho solicitar a V. Exa. a alteração da data da escritura para o final do mês, para que me seja possível dispor do montante a entregar naquele acto.
Apelo à compreensão de V. Exa. para esta prorrogação, acreditando que V. Exa. não deixará que eu seja penalizada por alguns dias de atraso.
(...)»
- acordo das partes e fax de fls. 89 dos autos;
1.16. No dia 05 de Maio de 2009, a R. não compareceu no Cartório Notarial de Lisboa da Notária …, sito na Rua …, em …, onde se encontravam o A. e a Interveniente - acordo das partes e certidão notarial de fls. 85 a 87 dos autos;
1.17. O A. enviou à R., que a recebeu, o original da carta cuja cópia é fls. 94 e 95 dos autos, datada de 20 de Maio de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde nomeadamente se lê:
« (...)
Assunto: 2.ª marcação de escrituras – Cláusula Décima Segunda – CPP
(...) Venho informar V. ° Ex.a que se encontram novamente agendadas as supra referidas escrituras para o dia 29 de Maio de 2009, pelas 18 horas, no Cartório Notarial da Dra. …, sito na Rua …, em Lisboa, a outorga das escrituras de partilha/adjudicação e escritura de compra e venda/divisão de coisa comum.
Para o efeito, fica V.ª Ex.ª intimada para a obrigação de outorgar as supra referidas escrituras, conforme o acordo de partilhas e adjudicação, pelo que no acto deverá:
a) - apresentar, impreterivelmente, até ao dia 24 de Maio de 2009 as contas finais da herança, e proceder no acto da escritura ao pagamento do respectivo saldo;
b) - apresentar o documento comprovativo do pagamento do IMT (referente à escritura pública de compra e venda da fracção autónoma denominada “Terraços de B…”);
b) - trazer cheque destinado ao pagamento dos emolumentos notariais;
c) - no acto da escritura deverão ser repartidos (pelos três herdeiros e em três partes iguais) os saldos das contas bancárias disponíveis em Portugal, bem como as a aplicação deverão ser repartidas (pelos três herdeiros e em três partes iguais);
d) - bem como, no mesmo acto da escritura deverá proceder ao pagamento das tornas e preço que me são devidos, em cheque visado, tudo nos termos e de acordo com o estipulado no contrato-promessa partilha assinado em 22 de Janeiro de 2009.
Importa advertir V.ª Ex.ª que caso falta no dia e hora marcada para a realização das escrituras ou não outorgue as escrituras de acordo e nos termos do contrato promessa de partilha e do acordo de adjudicação, consideraremos incumprido definitivamente o contrato promessa de partilha assinado entre os herdeiros, ficando V.ª Ex.ª obrigada a pagar uma indemnização em valor não inferior a € 250.000, 00 (...) a cada um dos herdeiros contraentes não faltosos.
(...)»
- acordo das partes e carta de fls. 94 e 95 dos autos;
1.18. No dia 29 de Maio de 2009, a R. não compareceu no Cartório Notarial de .. da Notária …, sito na Rua …, em …, onde se encontravam o A. e a Interveniente - acordo das partes e certidão notarial de fls. 101 a 103 dos autos;
1.19. Os Exm.ºs mandatários do A. e da Interveniente enviaram à R., que a recebeu, o original da carta cuja cópia é fls. 104 e 105 dos autos, datada de 22 de Junho de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde nomeadamente se lê:
« (...)
Assunto: Interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para cumprimento – contrato-promessa de partilha de 22.1.2009
(...) Mais uma vez V.ª Ex.ª não compareceu às escrituras de partilha/ adjudicação e escritura de compra e venda/divisão de coisa comum que, desta vez, estavam agendadas para o passado dia 29 de Maio de 2009, no Cartório Notarial da Dr.ª …, sito na Rua …, em Lisboa, e para as quais foi devidamente convocada em cumprimento do contrato promessa por si subscrito. Como sabe antes disso, já não havia comparecido às escrituras de partilha e de compra e venda/divisão de coisa comum, igualmente marcadas por nós para o dia 5 de Maio de 2009, e para as quais foi devidamente convocada.
Ficamos a aguardar alguma justificação da sua parte, mas até hoje V.ª Ex.ª remeteu-se ao silêncio.
Já passou quase um mês desde a última data agendada para a outorga das referidas escrituras, sendo este período um prazo mais do que razoável para permitir a V.ª Ex.ª cumprir as obrigações assumidas.
Nestas circunstâncias, vimos comunicar-lhe que as referidas escrituras estão agora marcadas para as 181130 do próximo dia 29 de Junho de 2009, a realizar no Cartório Notarial da Dra. …, sito na Rua …, em Lisboa.
(...) Para o efeito, conforme o acordo de partilhas e adjudicação, V.ª Ex.ª - deverá:
a) - apresentar, impreterivelmente, até ao dia 24 de Maio de 2009 as contas finais da herança nas quais deverá incluir (em forma de conta corrente) os movimentos e liquidação de todas as contas bancárias junto com os respectivos documentos comprovativos, e proceder no acto da escritura ao pagamento do respectivo saldo;
b) - apresentar o documento comprovativo do pagamento do IMT (referente à escritura pública de compra e venda da fracção autónoma denominada “Terraços de B…”);
c) - trazer cheque destinado ao pagamento dos emolumentos notariais;
d) - no acto da escritura deverão ser repartidos (pelos três herdeiros e em três partes iguais) os saldos das contas bancárias disponíveis em Portugal, bem como as aplicações que deverão ser repartidas da mesma forma;
e) - e ainda, no mesmo acto da escritura deverá proceder ao pagamento das tornas e preço que são devidos aos nossos constituintes, em cheques visados, tudo nos termos e de acordo com o estipulado no contrato promessa partilha assinado em 22 de Janeiro de 2009.
Importa advertir V.ª Ex.ª que caso falta no dia e hora marcada para a realização das escrituras ou não outorgue as escrituras de acordo e nos termos do contrato promessa de partilha e do acordo de adjudicação, consideraremos incumprido definitivamente o contrato promessa de partilha assinado entre os herdeiros, ficando V.ª Ex.ª obrigada a pagar uma indemnização em valor não inferior a € 250.000,00 (...) a cada um dos herdeiros contraentes não faltosos
- acordo das partes e carta de fls. 104 e 105 dos autos;
1.20. Em resposta à carta reproduzida no facto anterior, a R. enviou aos Exm.ºs mandatários do A. e da interveniente, que o receberam, o original do fax cuja impressão é fls. 113 dos autos, de 29 de Junho de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde nomeadamente se lê: Assunto: Interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para cumprimento – contrato-promessa de partilha de 22.1.2009
Ao contrário do que V.ª Ex.ªs dizem, eu escrevi a justificar o motivo por que não tinha comparecido no Cartório Notarial para outorga da escritura.
Como V.ª Exas. sabem, o contrato promessa foi assinado por ordem dos advogados, no final de uma reunião, no Tribunal, à qual eu não assisti, tendo estado na presença de V. Exas. apenas quando estava tudo resolvido.
É do conhecimento de V. Exas. que eu não estou familiarizada com a língua portuguesa, designadamente na sua vertente jurídica.
Acresce que a cláusula de penalização que V. Exas. introduziram no contrato promessa é ilegal, por ofender todos os princípios constitucionais de um Estado de direito.
Algum tempo após a assinatura do contrato promessa (sem que eu dele tivesse ciência exacta), V. Exas. atribuíram valores aos bens, sem um critério definido uniformemente por profissional competente, conforme V. Exas. entenderam, com os quais eu não posso estar de acordo. Daí que o valor referente a tornas a entregar por mim aos dois interessados seja extremamente exorbitante.
Por afastamento dos meus advogados, não tenho quem me preste assistência jurídica a qualquer acto.
Logo que eu designe um mandatário, o que ocorrerá muito brevemente, ele entrará em contacto com V. Exas., para ser reformulado o contrato promessa, seguindo-se a outorga da escritura notarial, com valores atribuídos segundo um critério uniforme para todos os bens.
Se, entretanto, V. Exas. entenderem que assim não deverão proceder, apresentarei a minha defesa no local competente, reservando-me o direito de requerer a anulação do contrata promessa, por vício de vontade
- acordo das partes e fax de fls. 113 dos autos;
1.21. No dia 29 de Junho de 2009, a R. não compareceu no Cartório Notarial de … da Notária …, sito na R …, em Lisboa, onde se encontravam o A. e a Interveniente - acordo das partes; certidão notarial e fls. 114 e 115 dos autos;
1.22. O A. enviou à R., que a recebeu, o original da carta cuja cópia é fls. 116 e 117 dos autos, datada de 30 de Julho de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzida, onde nomeadamente se lê:
« (...) Assunto: Resolução – contrato promessa de partilha de 22.1.2009
Na sequência da sua recusa no cumprimento do contrato promessa de partilhas,
. tendo em atenção a violação reiterada das cláusulas contratuais, nomeadamente não ratificação da instância, não comparência nas várias datas agendadas para a outorga das escrituras de partilha e compra e venda para que foi notificada, não tendo procedido à distribuição dos activos e valores existentes nas contas bancárias, não tendo procedido ao pagamento das tornas que são devidas aos restantes herdeiros.
. tendo em atenção o teor do requerimento de 20 de Abril de 2009, apresentado por V.ª Ex.ª, no Processo de Inventário n.° … que corre termos no ..° Juízo Cível do Tribunal de Lisboa,
. tendo em atenção o teor da sua última comunicação datada de 29 de Junho de 2009, atendendo à existência de documentos nos quais manifesta de forma clara não estar "agora" de acordo com os termos acordados e subscritos pelas partes em sede do contrato promessa de partilha assinado em Janeiro de 2009,
. perante as graves insinuações/afirmações comidas nas ditas comunicações bem como a clara afirmação de querer alterar o já acordado entre as partes,
. e perante a "ameaça" de que caso não seja feita a sua vontade, afirmar pretender requerer a anulação do contrato promessa, alegando vício de vontade, venho comunicar a V.Ex.a que perdi definitivamente o interesse na celebração do contrato prometido que se concretizaria com as escrituras de partilhas e compra e venda, resolvendo por este meio o contrato prometido.
Informo que entendo esgotada a via consensual (por ter perdido de forma definitiva a confiança em Vª Ex.ª) pelo que a partilha e divisão de bens seguirá para a via judicial até resolução final.
Por último, o reiterado incumprimento de V.ª Ex.ª fê-la incorrer nas consequências contratuais inerentes, ou seja fez com que V.ª Ex.ª esteja obrigada a indemnizar cada um dos herdeiros (contraentes não faltosos) em valor não inferior a € 250.000, 00 (...), valor que me deverá ser pago no prazo máximo de 30 dias a contar do recebimento da presente carta (…)
A presente resolução do contrato promessa de partilha será comunicada, nesta data, à co-herdeira MT.
- acordo das partes e carta de fls. 116 e 117 dos autos;
1.23. O A. enviou à Interveniente, que a recebeu, o original da carta cuja cópia é fls. 119 dos autos, datada de 30 de Julho de 2009, que aqui se dá por integralmente reproduzida, com uma cópia da carta reproduzida no facto anterior, carta aquela onde nomeadamente se lê:
« (...)
Assunto. Resolução – contrato promessa de partilha de 22.1.2009
(...)
Venho informar V.a Ex.a que nesta data resolvi o contrato promessa de partilhas assinado em 22 de Janeiro de 2009, o que fiz por comunicação em carta registada com AR enviada, nesta data à ShC, conforme carta que envio em anexo....)»
- acordo das partes e carta de fls. 119 dos autos.
2. Quanto ao mérito do recurso
2.1. Quanto às questões de natureza processual
2.1.1. Da nulidade fundada em violação do princípio do juiz natural
A apelante começa por arguir a nulidade do processado subsequente à “distribuição” ulterior dos autos à Mm.ª Juíza que proferiu o saneador-sentença, invocando como fundamento a violação do “princípio do juiz natural” com o argumento de que aquela “distribuição” não teria sido aleatória.
Desde logo, o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição consagra a garantia do processo equitativo, o qual pressupõe, além do mais, a independência dos tribunais, aliás proclamada no art.º 203.º da mesma Lei Fundamental, e a imparcialidade do juiz da causa perante os litigantes.
Por sua vez, da esfera do direito internacional público, que integra prevalentemente a nossa ordem jurídica, nos termos dos artigos 8.º e 16.º da Constituição, decorrem princípios inequívocos a robustecer a garantia da tutela jurisdicional.
Assim, a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada, em 10/12/1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)[1], consigna, no seu art.º 10.º, que: Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações (… ).
No mesmo sentido, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), adoptada no âmbito do Conselho da Europa, em 04/11/1950, que em Portugal foi aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13-10, no seu artigo 6.º, n.º 1, estabelece que: Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá … sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil.
Por sua vez, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7/12/2000, com as alterações introduzidas em 12/12/2007, assim proclamada pelo Parlamento Europeu, Conselho e Comissão, em 14/12/2007[2], com o mesmo valor jurídico dos Tratados por força do art.º 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia (“Tratado de Lisboa”), no seu art.º 47.º, sob a epígrafe “Direito à acção e a um tribunal imparcial”, garante, de forma alargada, o direito de acção em tribunal, ao prescrever que: Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma acção perante um tribunal nos termos previstos neste artigo. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.
Daí decorre o chamado princípio do juiz natural, segundo o qual o processo deve ser julgado por um tribunal com competência definida previamente na lei, que deverá manter-se no decurso da instância, só podendo ser afastado nos termos das regras abstractas e gerais da organização judiciária[3]. E, como se doutrinou no acórdão do Tribunal Constitucional, de 11/03/1997, proferido no processo ACTC00007434[4], o princípio do juiz natural convoca as seguintes dimensões concretizadoras: “a exigência de determinabilidade (prévia individualização por lei geral do juiz competente), o princípio da fixação de competência (observância das competências decisórias legalmente atribuídas a esse juiz) e o respeito das determinações de procedimentos referentes a divisão funcional interna”.
Ora, as garantias de independência dos tribunais cíveis encontram-se salvaguardadas pelo quadro legal que contém os critérios aferidores dos diversos graus de competência – internacional, em razão da matéria, em razão da hierarquia, funcional e territorial – constantes da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e do próprio CPC.
Por sua vez, a imparcialidade do juiz é garantida, em primeira linha, por via dos institutos dos impedimentos e suspeições previstos 115.º a 129.º do CPC e, num segundo plano, pelo mecanismo da distribuição dos processos pelos vários juízes do mesmo tribunal, conforme o regulado nos artigos 203.º e seguintes do mesmo Código, com vista a assegurar a aleatoriedade das operações de distribuição.
A par disso, o princípio da imparcialidade do juiz requer que este actue, ao longo do processo, numa posição de “terciariedade”[5], supra partes, pautando-se por uma postura equidistante em relação aos interesses específicos de cada litigante, assegurando-lhes um tratamento substancialmente igual (art.º 4.º do CPC) e centrando-se no escopo de conseguir a justa resolução do litígio.
No caso vertente, não vem imputada à Mm.ª Juíza da causa qualquer actuação que se revele, em concreto, eivada de imparcialidade, mas apenas se invoca o facto de a afectação do processo que lhe foi feita não se mostrar aleatória.
Ora, dos presentes autos colhe-se que:
- o processo foi, inicialmente, distribuído à Mm.ª Juíza da 1.ª Secção da … Vara Cível de Lisboa, que apresentou escusa, como se refere no despacho de fls. 193, de 19/10/2010, a qual foi concedida conforme o teor de fls. 196, sendo o processo então afecto a uma outra Exm.ª Magistrada (fls. 199);
- desde 06/12/2012, o processo passou a estar afecto a outro Mm.º Juiz da mesma Vara, na sequência do relatado na cota de fls. 300;
- a partir de 13/09/2012, o processo passou a estar afecto, na mesma Vara Cível, à Mm.ª Juíza que proferiu a decisão recorrida, como se alcança de fls. 327, sem que qualquer das partes tenha vindo suscitar a falta de objectividade dessa alteração do titular do processo.
Como se depreende do indicado, o presente processo foi distribuído à 2.ª Secção da … Vara Cível de Lisboa e aí se manteve, não havendo assim lugar a nova distribuição. O que ocorreu foi a mera mudança dos juízes titulares ou afectos a essa unidade orgânica, o que, aliás, sucede com alguma frequência, nomeadamente em virtude da movimentação dos magistrados ou do regresso ao lugar de origem de magistrados em comissão de serviço.
É certo que dos autos não consta a razão pela qual ocorreu a mudança do penúltimo para a última titular do processo, mas também não é menos certo que, diversamente do que afirma a Apelante, essa última titular, antes de proferir o saneador-sentença, datado de 22/03/2013, exarou o despacho de fls. 327, em 13/09/2012, e o de fls. 337, em 07/11/2012, dos quais a própria R. foi notificada sem que tivesse então arguido qualquer irregularidade na afectação do processo ou suscitado qualquer suspeição em relação à nova titular.
Salvo o devido respeito, o que parece é que a Apelante se pretende socorrer de um argumento formal, in extremis, já em sede deste recurso, na base de uma mera suposição de falta de aleatoriedade naquela afectação, sem mostrar sequer ter oportunamente diligenciado junto do tribunal a quo no sentido de se inteirar das razões dessa afectação.
Seja como for, não se descortinam nestes autos quaisquer indícios, nem a ora apelante os invoca, que lancem a mínima suspeita de que o processo foi afectado à sua actual titular por razões que não sejam de ordem meramente funcional, em violação do alegado princípio do juiz natural.
Termos em que improcede a nulidade invocada.
2.1.2. Da nulidade fundada na dispensa da audiência preliminar
Em segunda linha, a Apelante insurge-se com o facto de ter sido dispensada a realização da audiência preliminar, tanto mais que esta já havia sido agendada pelo anterior titular do processo, conforme despacho de fls. 301, de 06/02/2012, embora subsequentemente adiada sine die, nos termos do despacho de fls. 311, pelo mesmo titular.
Além disso, argumenta que tal dispensa se mostra injustificada, dada a amplitude e complexidade das questões solvendas e a necessidade de evitar uma decisão-surpresa e a observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Ora, no âmbito do processo ordinário, o artigo 508.º-A, n.º 1, do CPC, na redacção então em vigor, determinava a realização da audiência preliminar para o fins indicados nas diversas alíneas do seu n.º 1, em que se destacam a delimitação do objecto do litígio, a discussão oral das posições das partes sobre as questões suscitadas ou que se pudessem suscitar e o debate em sede da eventual selecção da matéria de facto.
Porém, o art.º 508.º-B, n.º 1, do mesmo Código previa que o juiz pudesse dispensar a audiência preliminar quando: a) – Destinando-se à fixação da base instrutória, a simplicidade da causa o justifique; b) – A sua realização tivesse como fim facultar a discussão de excepções dilatórias já debatidas nos articulados ou do mérito da causa, nos casos em que a sua apreciação revista manifesta simplicidade.
Assim, no que respeita à dispensa da audiência preliminar, quando se preconize a eventualidade do imediato conhecimento do mérito da causa, cabe ao juiz, dentro de uma certa margem de discricionariedade, aferir da simplicidade manifesta das questões que se suscitem ou que se possam vir a suscitar na tomada de decisão final, tendo sempre em vista facultar o exercício do contraditório prévio das partes e evitar a ocorrência de uma decisão-surpresa, como, de resto, se preceitua no n.º 3 do art.º 3.º do CPC então em vigor.
Não se ignora que ajuizar sobre a simplicidade das questões postas envolve uma apreciação com alguma subjectividade, mas importa ancorá-la, quanto possível, no contexto da controvérsia alegatória já desenvolvida na fase dos articulados, de modo a descortinar se a argumentação aí expendida pelas partes requer mais algum aprofundamento ou se é o suficiente para as prevenir de uma decisão-surpresa.
No caso presente, foi proferido o despacho de fls. 301, datado de 06/02/2012, com o seguinte teor:
“Para a realização de audiência preliminar com vista aos fins previstos nas alíneas a), b), d), e e) do n.º 1 do artigo 508.º-A do CPC, designo o próximo dia 9 de Maio pelas 15h30.”
Acontece que aquela diligência foi adiada sine die, até que se estabilizasse a questão do patrocínio forense da R., conforme despacho proferido a fls. 311, datado de 04/05/2012.
Posteriormente, já quando o processo se encontrava afecto a outro magistrado, logo antes da prolação do saneador-sentença, foi proferido o despacho de fls. 357, de 22/03/ 2013, com o seguinte teor:
Lê-se no art. 508°-B, n° 1, al. b), do C.P.C. que «o juiz pode dispensar a audiência preliminar, quando a sua realização tivesse como fim facultar a discussão (...) do mérito da causa, nos casos em que a sua apreciação revista manifesta simplicidade».
Precisa-se, porém, que não basta a simplicidade da decisão de mérito a proferir: é «preciso também que a perspectiva jurídica que o juiz encara como devendo ser a da decisão tenha sido considerada pelas partes, explícita ou implicitamente», sob pena de consubstanciar urna decisão surpresa, proibida pelo art. 3.°, n.° 3, do CPC (José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.°, 2.a edição. Coimbra Editora, 2008, p. 393).
Concretizando, face à articulação dos factos feita pelas partes (pouco extensa, reportada a uma realidade sem especial complexidade, e suficientemente debatida nos articulados), bem como à exposição dos fundamentos jurídicos das suas pretensões (já amplamente contraditados).entende-se que a decisão de mérito a proferir se reveste de simplicidade, permitindo o estado do processo, sem necessidade de mais provas, a sua prolação.
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, dispensa-se a realização da audiência preliminar.
Ora, a R., quer na sua contestação quer na tréplica, aduziu factos e convocou um quadro normativo tendente a afastar o incumprimento do contrato que lhe vinha imputado e, subsidiariamente, a questionar a aplicação da cláusula penal, que reputava como excessiva. Também, nos mesmos articuladas, a R. aludira à sua falta de domínio da língua portuguesa, não chegando a arguir a anulabilidade do contrato, parecendo antes querer situar aquela alusão no plano da execução do contrato. Nem invocou então qualquer outro vício que determinasse a nulidade do contrato.
Assim, as questões tal como se encontravam formuladas e fundamentadas pelas partes não ofereciam um grau de controvérsia que parecesse requerer maiores desenvolvimentos argumentativos, tanto mais que se tratava de questões amplamente versadas na doutrina e na jurisprudência. E foi com apelo a esse contexto que a Mm.ª Juíza a quo aferiu da dispensa da audiência preliminar.
Mas será que a nova titular do processo se encontrava vinculada à determinação do titular precedente em realizar a audiência preliminar?
Em primeiro lugar, o despacho de fls. 301 acima transcrito não especificou pontos ou temas concretos sobre os quais devesse incidir o debate das partes, limitando-se a indicar, por mera referência às alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do art.º 508.º-A do CPC, os fins ali genericamente previstos - tentativa de conciliação, discussão de facto e direito, prolação do saneador e de selecção da matéria de facto. E note-se que nem sequer se incluiu, naquele despacho, o fim previsto na alínea c), em que se prevê a discussão sobre a delimitação dos termos do litígio ou para eventual suprimento de insuficiência ou imprecisões na exposição da matéria de facto, o que significa ter o juiz do processo por adequadas a configuração e a densificação do objecto da causa traçadas nos articulados.
Nessas circunstâncias, não foi sequer induzida nas partes a expectativa de se poderem remodelar os termos e a substância do já anteriormente alegado, afigurando-se que o sobredito despacho de fls. 301 versa, basicamente, uma medida de agendamento de uma diligência processual sem especificação de conteúdos concretos e portanto sem virtualidade para, por si só, constituir efeito de caso julgado formal sobre a necessidade dessa diligência.
Seja como for, ainda que se pudesse concluir pela irregularidade da dispensa da audiência preliminar, tal irregularidade só relevaria se fosse susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, nos termos do artigo 201.º, n.º 1, do CPC então em vigor.
Com efeito, no saneador-sentença, foram conhecidas todas as questões fundamentais suscitadas pelas partes, nomeadamente em sede de defesa e, não obstante a extensão da respectiva fundamentação, tais questões foram apreciadas dentro do quadro normativo convocado pelas partes com apelo às orientações correntes na doutrina e na jurisprudência, não se vislumbrando que outro enquadramento ou desenvolvimento argumentativo relevante pudesse a R. fazer prevalecer. De resto, nem das próprias alegações recursórias se colhem outras razões substanciais que pudessem ter aproveitado à decisão recorrida no tratamento das questões deduzidas nos articulados.
É certo que a Apelante vem agora invocar novas questões, como sejam a nulidade do contrato-promessa por impossibilidade do seu objecto e o abuso de direito na invocação da cláusula penal, mas, no quadro alegatório traçado pelas partes nos articulados, não era sequer de presumir que tais questões, embora de conhecimento oficioso, se viessem a colocar.
Nessa conformidade, não se vislumbra que o eventual debate das partes, em sede de audiência preliminar, sobre as questões litigiosas, já equacionadas nos articulados, viesse a influir no exame e decisão da causa, não se mostrando que a decisão que foi tomada não fosse expectável, não constituindo assim uma decisão-surpresa para a R..
Termos em que se julga improcedente a invocada nulidade.
2.1.3. Da nulidade por inoportunidade do julgamento antecipado da lide
Vem ainda a Apelante, em sede processual, invocar a inoportunidade do julgamento antecipado da lide por considerar que o estado da causa impunha que se prosseguisse para a fase de produção de prova em audiência final, mormente para apurar o prejuízo suportado pelos ora apelados, tendo em vista a pretendida redução da cláusula penal aplicada.
Segundo o disposto no artigo 510.º, n.º 1, alínea b), do CPC na redacção então em vigor, o juiz pode “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas …”.
No entanto, importa notar que o estado do processo relevante para o efeito deve ser perspectivado na óptica do quadro das soluções de direito plausíveis, o que significa que, havendo factos controvertidos pertinentes para a apreciação dalgumas daquelas soluções plausíveis, deve o processo prosseguir para necessária instrução e julgamento em audiência final.
Na situação dos autos, perante as pretensões deduzidas, a R. invocou, na sua contestação:
(i) – Em primeira linha, a falta do domínio da língua portuguesa, questão, embora tivesse tentado “por todos os meios levar a porto o cumprimento do contrato”, apesar de não ter conseguido “reunir condições para cumprir o contrato como estava estipulado, nomeadamente no que concerne às tornas”;
(ii) – O incumprimento do contrato também por parte do A. por não terem sido entregues quaisquer montantes à herança por conta das rendas recebidas pelos arrendamentos dos imóveis que se encontravam na posse dos restantes herdeiros;
(iii) – A manifesta excessividade da cláusula penal, nos termos do n.º 1 do art.º 812.º do CC;
(iv) – A execução parcial do contrato por parte da R., que determinaria a redução da cláusula penal, ao abrigo do art.º 812.º, n.º 2, do CC.
Ora, relativamente à questão da falta do domínio da língua portuguesa (i), cujos factos se encontravam controvertidos, o certo é que a R. não chega sequer a invocar, nem expressa nem implicitamente, a anulabilidade do contrato nessa base, afirmando mesmo que “tentou por todos os meios, levar a bom porto o cumprimento do contrato” (art.º 22.º da contestação) e que, apesar disso, “não conseguiu reunir as condições para cumprir o contrato como estava estipulado, nomeadamente no que concerne às tornas” (art.º 24.º da contestação).
Nessa medida, os factos controvertidos mostram-se irrelevantes mesmo na perspectiva do incumprimento que lhe vem imputado, sendo também irrelevante, como causa de exclusão da culpa, o facto de não ter reunido condições para pagar as tornas devidas.
Relativamente à questão do incumprimento contratual (ii) também imputado ao A., seria porventura questão juridicamente discutível mas a depender de prova dos factos a esse propósito alegados, questão essa que foi versada na sentença recorrida, mas em relação à qual a Apelante nada alegou no presente recurso.
No que respeita a questão da excessividade da cláusula penal (iii), a Apelante não aduziu quaisquer factos concretos tendentes a provar a superioridade do prejuízo efectivo ou a natureza excessiva da cláusula, ónus probatório que lhe competia.
Com efeito, a Apelante pugna pela necessidade de produção de prova sobre o prejuízo que teria ocorrido aos Apelados para efeitos de apurar a alegada excessividade da cláusula penal aplicada, na suposição de que o ónus de alegação e prova desse prejuízo recaía sobre os Apelados.
No entanto, a alegação e prova desse prejuízo ou daquela excessividade constituem fundamento de redução da referida cláusula, em benefício da R., o que se reconduz a uma defesa por excepção peremptória, nos termos conjugados dos artigos 324.º, n.º 2, 811.º, n.º 3, e 812.º do CC, bem como do art.º 487.º, n.º 2, parte final, correspondente ao actual art.º 571.º do CPC.
Sucede que a R. nada de factualmente concreto alegou sobre tal matéria, ancorada como estava na tese de que o respectivo ónus probatório incumbia aos Apelados.
Assim sendo, na falta de uma tal alegação factual por parte da R., nada havia a submeter a instrução em sede de audiência.
Por fim, quanto à invocada execução parcial do contrato para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 812.º do CC (iv), também a R. nada de relevante invocou, mormente sobre as obrigações que cumpriu, para que, a provar-se, se possa concluir por essa execução parcial.
A par disso, Apelante não questionou nenhum dos factos dados por assentes na sentença recorrida nem se mostra que devam ser tidos, oficiosamente, por controvertidos.
Vem também agora a Apelante suscitar a nulidade do contrato com fundamento em impossibilidade legal do seu objecto, bem como o abuso de direito em sede da exigência de aplicação da cláusula penal, mas trata-se de questões que nem tão pouco chegaram a ser suscitadas na contestação e que, embora se trata de questões meramente jurídicas de conhecimento oficioso, nada fazia supor que viessem a ser ulteriormente suscitadas, como já foi dito.
Ora, o saneador-sentença recorrido versou sobre todas as questões equacionadas nos articulados, mormente pela R. servindo-se da factualidade já tida por assente, tratando-as na linha do que correntemente vem sendo doutrinado.
Só quanto à questão do alegado incumprimento imputado ao A. é que se poderia porventura discutir a necessidade de produção de prova sobre os factos controvertidos a ela respeitante, o que, todavia, se tornou irrelevante, na medida em que a Apelante não inclui essa questão no objecto do presente recurso, nem sob o ponto de vista estritamente jurídico nem sequer quanto à necessidade de prova dos factos controvertidos a ela pertinentes, deixando assim cair esse fundamento de defesa.
Nestas circunstâncias, não se afigura que a decisão recorrida, no que ao presente recurso interessa, tenha induzido qualquer efeito de surpresa relevante em relação ao que fora alegado pelas partes nos articulados e com que a R. não pudesse contar, dentro do panorama da doutrina e jurisprudência mais correntes.
Não se mostram, pois, violados os princípios do contraditório e do tratamento igual das partes, proclamados, respectivamente, nos artigos 3.º e 4.º do CPC, nem tão pouco as directrizes constantes dos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição.
Termos em que se conclui pela improcedência do alegado vício de inoportunidade do julgamento antecipado da lide.
2.2. Das questões de fundo
2.2.1. Quanto à invocada nulidade do contrato-promessa por impossibilidade legal do seu objecto
Neste capítulo, vem a Apelante, já em sede de recurso, arguir a nulidade do contrato-promessa de partilha com fundamento em impossibilidade legal do seu objecto, mormente considerando que seria impossível a execução específica do mesmo.
Antes de mais, há que ter presente a jurisprudência unânime do STJ no sentido de que, “sendo válido o contrato-promessa de partilha, em tese geral, o mesmo será sujeito à execução específica, no condicionalismo do art.º 830.º do CC”[6].
Sucede que a Apelante não invoca sequer que o contrato-promessa em causa viole, em qualquer das suas cláusulas, norma imperativa, nem se descortina que ocorra uma tal violação.
O que a Apelante sustenta é que a invocada nulidade, prescrita no art.º 280.º, n.º 1, do CC, decorreria da impossibilidade legal de execução específica da partilha.
Ora, podendo a partilha de herança ser realizada extrajudicialmente, por acordo dos interessados, nos termos do art.º 2012.º, n.º 1, do CC, sem prejuízo das normas imperativas pertinentes, podem também os mesmos interessados vincular-se à realização da partilha mediante celebração de um contrato-promessa, em conformidade com o disposto no artigo 410.º do mesmo Código. E podem ainda, nas mesmas condições, associar-lhe a promessa de divisão dos bens a partilhar, a coberto do disposto no art.º 1413.º daquele diploma.
Embora não esteja aqui em causa a execução específica do contrato-promessa de partilha para que cumpra ajuizar sobre uma impossibilidade que se tenha porventura decorrente da natureza da obrigação assumida, nos termos e para os efeitos da parte final do n.º 1 do artigo 830.º do CC, o certo é que nem essa impossibilidade se verificaria, como decorre do que ficou dito.
De resto, mesmo que ocorresse impossibilidade de execução específica por se lhe opor a natureza da obrigação, nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 830.º do CC, tal não implicaria necessariamente impossibilidade legal do próprio contrato-promessa, sabido como é que mesmo os contratos-promessas com obrigações dessa natureza são perfeitamente válidos, podendo ser resolvidos com fundamento em incumprimento definitivo, havendo lugar à retenção ou restituição do sinal em dobro ou à aplicação de cláusula penal, conforme os casos, como se depreende do disposto nos artigos 442.º, n.º 2, e 830.º, n.º 2, do CC.
Assim sendo, conclui-se que o contrato-promessa ajuizado não versa sobre objecto legalmente impossível, não se mostrando afectado pela invocada nulidade. E, pelas mesmas razões, a cláusula penal nele estipulada não se encontra também afectada de nulidade.
Termos em que improcedem as razões da apelante nesta parte.
2.2.2. Quanto da cláusula penal
2.2.2.1. Preliminar
Vem a Apelante impugnar a aplicação da cláusula penal estipulada na cláusula 16.ª do contrato-promessa com base nos seguintes fundamentos:
a) – A nulidade daquela cláusula por decorrência da invocada nulidade do contrato-promessa fundada em impossibilidade legal do seu objecto;
b) – A incompatibilidade de aplicação dessa cláusula com a resolução do contrato;
c) – A excessividade da cláusula aplicada, face ao prejuízo sofrido com o alegado incumprimento contratual;
d) – A exigência abusiva da referida cláusula.
Como se depreende do confronto entre a grelha de questões enunciadas pela A. e o alegado na contestação em sede de defesa por excepção peremptória, a R. não impugnou, no presente recurso, a decisão recorrida na parte em que apreciou e concluiu pela improcedência da questão da alegada excessividade da cláusula em foco com base no alegado cumprimento parcial do contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 812.º do CC, não havendo, pois, nos ocupar dessa questão.
Além disso, a questão da nulidade da sobredita cláusula já foi apreciada sob o ponto precedente, ao se concluir que o contrato-promessa não padecia da nulidade arguida com fundamento em impossibilidade do seu objecto.
Resta assim apreciar as demais questões acima formuladas, importando, antes disso, proceder à caracterizar da cláusula em apreço.
Ora, o artigo 810.º do CC consigna que: 1. As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal. 2. A cláusula penal está sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal, e é nula se for nula esta obrigação.
Por sua vez, o artigo 811.º do mesmo Código prescreve que: 1 – O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação; é nula qualquer estipulação em contrário. 2 – O estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes. 3 – O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.
Por fim, o artigo 812.º estatui que: 1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.
A cláusula penal tem normalmente em vista permitir ao que dela beneficia uma indemnização a forfait emergente dos danos que possam vir a decorrer de um incumprimento contratual, dispensando assim o lesado do ónus de provar o prejuízo efectivo, o que se torna num meio particularmente expedito nos casos em que tal determinação revele especiais dificuldades[7].
Assim, a cláusula penal tanto pode ser estabelecida a título de sanção para as situações de incumprimento temporário, designando-se então por cláusula penal moratória, como para situações de incumprimento definitivo, chamando-se cláusula penal compensatória.
Mas não pode ser exigida cumulativamente o cumprimento da obrigação principal e a cláusula penal compensatória, já que esta visa precisamente indemnizar a forfait o credor pela falta de cumprimento definitivo daquela obrigação, sendo substitutiva dela
Também quando o credor opte pela resolução do contrato com fundamento em incumprimento definitivo tem ainda direito a uma indemnização complementar fundada na violação do interesse contratual negativo podendo, para tal, socorrer-se da cláusula penal compensatória que tenha sido estipulada[8].
Embora a função principal e mais corrente da cláusula penal seja a fixação prévia e automática da indemnização devida pelo não cumprimento, temporário ou definitivo, do contrato, ela visa, por vezes, também compelir o dever à realização específica da prestação. Nas palavras de Almeida e Costa[9], “nada impede que, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, desempenhe uma função coerciva, destinada a pressionar o devedor ao cumprimento, na medida em que a sua falta autoriza o credor ao à exigência alternativa de uma prestação mais gravosa”.
Além disso, admite-se ainda que possa ser convencionada com carácter puramente compulsório, quando as partes pretendam que acresça à execução específica ou à indemnização calculada nos termos gerais, não relevando a referência a eventuais prejuízos decorrentes do incumprimento.
No caso dos autos, as partes estipularam na cláusula 16.ª do contrato-promessa de partilha o seguinte:
Cláusula Décima Sexta
O não cumprimento pelos herdeiros e contraentes de qualquer uma das obrigações constantes deste contrato fará incorrer o mesmo numa indemnização nunca inferior a 250.000, 00 € (duzentos e cinquenta mil euros) em favor de cada um dos herdeiros e contraentes, sem prejuízo do direito à execução específica deste contrato.
Estamos assim perante uma cláusula penal estabelecida para a ocorrência do não cumprimento do contrato sem que prejudique a execução específica desse contrato.
Como se refere na decisão recorrida, dessa ressalva da execução específica parece resultar que as partes pretenderam também que ela funcionasse como meio de compelir as partes à realização do contrato prometido, ou seja, à celebração do acordo de partilha da herança e divisão dos bens partilhados.
Nessa linha, o A. alegou, sob os artigos 76.º a 83.º uma série de implicações de natureza patrimonial e até psicológica decorrentes da falta de cumprimento por parte da R.. E convém recordar que uma das obrigações assumidas era a desistência da instância no inventário já instaurado, que aquela acabou por não ratificar.
Tendo, pois, em conta todo o leque de obrigações assumidas dirigidas à celebração da realização do acordo de partilha/divisão visado, bem como o particular destaque dado à execução específica, afigura-se que a cláusula penal aqui em apreço assume a natureza mista, não só contemplando os danos, algo difusos e de difícil determinação, decorrentes do incumprimento definitivo do contrato-promessa, mas também para compelir as partes à execução específica deste contrato.
2.2.2.2. Da alegada incompatibilidade da cláusula penal com a resolução do contrato
Como já ficou dito, se o credor optar pela resolução do contrato, com fundamento em incumprimento definitivo, poderá ainda exigir uma indemnização complementar pela violação do interesse contratual negativo, para o que pode lançar mão da cláusula penal compensatória que tiver sido estipulada. Só o não poderá exigir se optar antes pela execução específica do contrato.
Ora, o facto de a resolução do contrato deixar aberta a possibilidade de as partes virem a efectuar a partilha, seja por acordo ou por via de inventário judicial, não significa que do incumprimento do contrato-promessa imputado à R. não advenham prejuízos para os demais interessados tanto pelas despesas já suportadas e frustradas pela resolução, como por outras vantagens, que não a do cumprimento especifico da obrigação, que deixaram de ter, não fora essa frustração, como por exemplo, o próprio retardamento na realização da partilha.
Nessa conformidade, não se mostra que a aplicação da referida cláusula seja incompatível com a resolução do contrato.
2.2.2.3. Quanto a alegada excessividade da cláusula
Vem também o apelante alegar que a cláusula aplicada excede o valor do prejuízo resultante do incumprimento imputado à R., nos termos do art.º 811.º, n.º 3, do CC.
A este propósito, importa ter presente, em caso de cláusula penal com função meramente indemnizatória, que o artigo 811.º, n.º 3, do CC, estabelece como limite máximo o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.
Por sua vez, o art.º 812.º, n.º 1, do mesmo Código prevê a redução da cláusula indemnizatória, de acordo com a equidade, quando ela se mostre manifestamente excessiva.
Para tanto, recai sobre o devedor o ónus de alegar e provar que o montante fixado na cláusula é superior ao valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal, como também que, ainda dentro desse limite, este montante se mostra manifestamente excessivo.
Sucede que se limitou a uma invocação genérica nesse sentido, sustentada na argumentação de que os apelados, não ficaram minimamente prejudicados no seu direito à herança e partilha dos bens a que têm direito, por morte de seu pai, quer através da adjudicação de bens quer pelo recebimento de tornas no processo de inventário em curso, e tendo sempre ao seu alcance formas de o tornar efectivo.
De concreto, sabe-se apenas que:
- no dia 06/02/2009, o A., a R. e a Interveniente efectuaram a licitação de todos os bens imóveis pertencentes à herança de CMB, incluindo um imóvel em compropriedade, denominado Terraços de B…, no valor global licitado de € 1.255.750,00, tendo a final sido atribuídos à R. bens imóveis no valor global licitado de € 770.500,00;
- no dia 31/03/2009, ficaram entregues ao A., à R. e à Interveniente os bens imóveis e os bens móveis que lhes calharam;
- a R. não se dispôs a efectuar o pagamento das tornas, no valor de € 351.916,67, conforme o alegado no art.º 15.º da petição inicial e não impugnado.
Porém, nada de mais concreto alega a R. que permita concluir que o prejuízo decorrente da resolução do contrato seja igual ou inferior ao prejuízo causado, ou mesmo excessivo, sendo que, como já acima foi referido, era à R. que competia o ónus de alegar e provar os factos demonstrativos.
Tendo em conta os valores envolvidos e que, como já se referiu, aquela cláusula teve ainda em vista compelir os interessados à execução específica do contrato-promessa, não se encontram elementos que levem a concluir pela excessividade da cláusula penal em apreço.
Termos em que improcedem as razões da Apelante neste particular.
2.2.2.4. Quanto ao alegado abuso de direito
Sustenta a apelante, por fim, que se mostra abusiva a exigência da cláusula penal, nos termos do art.º 334.ºdo CC, fundamento que só invoca em sede de recurso, mas que, sendo de conhecimento oficioso, poderá ainda assim ser aqui ponderado, a título de qualificação da relação material controvertida.
Acontece que a Apelante nada alegou que permita enquadrar a conduta do A. e da Interveniente em qualquer dos parâmetros constantes do citado normativo.
Com efeito, nem a Apelante impugnou neste recurso a situação de incumprimento definitivo que lhe foi imputado e reconhecido na sentença recorrida, nem alegou factos susceptíveis de qualificar a cláusula penal como excessiva.
Nestas circunstâncias, não se divisa como possa ser imputado ao A. e à Interveniente um exercício abusivo da aplicação daquela cláusula penal.
2.3. Quanto à repartição das custas
Sustenta a apelante que o A. deve ser condenado em custas por ter decaído no seu pedido de condenação da R. como litigante de má-fé.
Mas sem qualquer razão.
Como é sabido, o que releva para efeitos de condenação em custas é o decaimento nas pretensões deduzidas, não assumindo tal natureza o pedido de condenação de uma parte como litigante de má-fé, pedido este que nem tão pouco interfere com o valor da causa.
IV - Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida
As custas do recurso são a cargo da apelante.
Lisboa, 11 de Novembro de 2014
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho [1] Publicada na 1.ª série do Diário da República n.º 57, de 9 de março de 1978. [2] JOUE, C, 303, de 14-12-2007, pp. 1-16. [3] Sobre o princípio do juiz natural, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 15/09/2010, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Armindo Monteiro, no processo 133/10.5YFLSB, e o acórdão da Relação de Coimbra, de 24/11/2004, relatado pela Exm.ª Juíza Desembargadora Alice Santos, no processo n.º 1245/ 04, ambos disponíveis na Internet, respectivamente http://www.dgsi.pt/jstj e http://www.dgsi.pt/jtrc. [4] Relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Sousa Brito, disponível na Internet - http://www.dgsi.pt/atcol. [5] A este propósito, vide Prof. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, p. 665. [6] Por todos, vide acórdão do STJ, de 22/02/2007, disponível na Internet. [7] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1997, pp. 73 e 80. [8] Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição2007, p. 144. [9] Vide Direito das Obrigações, 11.ª Edição, 2008, p. 794.