CRÉDITO HOSPITALAR
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
Sumário

- Fazem parte do Serviço Nacional de Saúde todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, designadamente os agrupamentos de centros de saúde, os estabelecimentos hospitalares, independentemente da sua designação, e as unidades locais de saúde, conforme lei orgânica do Ministério da Saúde, Decreto-Lei n.º 124/2011, de 29 de Dezembro, artigo 7º nº 2, e ainda as entidades particulares e profissionais em regime liberal integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando articuladas com o Serviço Nacional de Saúde - cfr. artigo 2.º do Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro e Base XII da Lei de Bases da Saúde, Lei 48/90 de 24.08.
- O regime legal previsto no DL 218/99, de 15.06, cujo objecto visa as dívidas de instituições do SNS, só tem aplicação a créditos reclamados por hospitais privados que tenham convenção com o SNS quando os cuidados de saúde prestados o tenham sido no âmbito de convenção ou articulação com o SNS.
- Cabe ao devedor o ónus de invocar que a prestação de serviços ocorreu no âmbito de convenção ou protocolo com o SNS se quiser prevalecer-se da prescrição de créditos a que se refere o DL 218/99, de 15.06 (artº 342 nº 2 do CC).
(sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

«HOSPITAL C SA», sociedade anónima, com sede em Carnaxide, propôs a  presente ação  que prossegue termos contra os habilitados herdeiros de  A ,nascida a 27/04/1940, contribuinte nº 184 271 134, e que foi  residente em Cascais, e outro, invocando que :

Prestou assistência médica e hospitalar à falecida 1.º Ré., a pedido desta, no seu estabelecimento de saúde denominado «Hospital C»

Os serviços prestados foram no valor de 23.400,62 €, conforme resulta das facturas n.ºs. FISF2007/25462 de 07.02.07, FISF2007/33757 de 19.02.07, FISF2007/36688 4/37 de 23.02.07, FISF2007/36795 de 23.02.07, FISF2007/74357 de 19.04.07, FISF2007/75204 de 20.04.07, FISF2007/87828 de 10.05.07, FISF2007/87893 de 10.05.07, FISF2007/94837 de 21.05.07e FISF2007/94840 de 21.05.07 (cfr docs. n.ºs. , 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 que se juntam e cujo conteúdo se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).

O 2:º Réu declarou responsabilizar-se pela liquidação de todas as despesas inerentes à assistência prestada à 1º Ré.

.Instados para pagar o saldo em dívida, os Réus não o fizeram integralmente, tendo apenas procedido ao pagamento da quantia de 200,00 €.

A dívida de capital dos Réus cifra-se assim em 23.200,62€

            Requereu a condenação dos RR a pagar o capital acrescido de juros  de mora

            Os RR excecionaram (ao que nos interessa )  a prescrição da divida em face do disposto no art º 3º do DL 218/99.

            Foi proferido despacho saneador sobre esta matéria com o seguinte teor (ao que interessa):

«(…) Relativamente ao artigo 3º do DL 218/99 de 15-VI (aplicável à cobrança de dívidas de instituições e serviços integrados no S.N.S.), dispõe que “Os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.” – verificando-se que, tendo os serviços sido prestados antes de 18 de Maio de 2007 (data do óbito da 1ª R.), à data de entrada da presente acção (14-II-11) já havia decorrido o prazo de prescrição invocado.

Pelo exposto, julga-se procedente a excepção peremptória de prescrição – e absolve-se os RR. do pedido».

Deste despacho recorreu o autor que lavrou as conclusões ao adiante:

A Apelante ora Recorrente, não integra o S.N.S., não lhe sendo por isso aplicável aquele regime. E não se lhe aplica o disposto no DL 218/99 de 15 de Junho, designadamente o disposto no seu artº 3º.

O artigo 1º do referido Decreto-lei é aliás claro ao determinar o objeto de aplicação do diploma às instituições do Serviço Nacional de Saúde.

Ao decidir da forma como decidiu, o Tribunal não aplicou corretamente a legislação, sendo que a decisão correcta seria a de não aplicar o disposto no artº 3º do referido diploma. 

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, que julgou procedente a exceção de prescrição, devendo o processo prosseguir os seus termos  pela A. (CPC 527º) - fixando-se o valor da causa

Não houve contra alegação.

Objeto do processo:

 São as conclusões que delimitam a matéria a conhecer por este Tribunal, sem prejuízo das questões  de conhecimento oficioso que cumpra apreciar. Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respetivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B358  e art.º 608, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º nº 2, do mesmo diploma legal e 639 e 640 do NCPC (lei 41/2013).

O recurso  coloca como única questão a de decidir se é aplicável à autora Hospital CUF Sa o disposto no dl 218/99 diploma legal que regula a disciplina da cobrança de dívidas de instituições e serviços integrados no Sistema Nacional de Saúde.

Fundamentação de facto:

Dá-se aqui por reproduzida a factualidade  supra.

Fundamentação de direito.

O DL 218/99 de 15.6 é exclusivamente aplicável à cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados  no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, como resulta perfeitamente expresso no seu artigo 1º

A questão resume-se, pois, a decidir se  a autora é uma instituição que integra o Serviço Nacional de Saúde.

Vejamos como se constitui o  Serviço Nacional de Saúde, doravante (SNS).

O SNS é uma estrutura através do qual o Estado Português assegura o direito à saúde (promoção, prevenção e vigilância) a todos os cidadãos de Portugal. A sua criação remonta a 1979, após se terem reunido as condições políticas e sociais provenientes da reestruturação política portuguesa da década de 1970.

 A Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, criou o Serviço Nacional de Saúde, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, enquanto instrumento do Estado para assegurar o direito à proteção da saúde, nos termos da Constituição.  A publicação desta lei marca a instituição e criação do sistema nacional de saúde, assegurando o acesso universal, compreensivo e gratuito a cuidados de saúde.

O acesso a partir de então é garantido a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social, bem como aos estrangeiros, em regime de reciprocidade, apátridas e refugiados políticos.

O SNS envolve, por vocação legal, todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a reabilitação médica e social. Define que o acesso é gratuito, mas contempla a possibilidade de criação de taxas moderadoras, a fim de racionalizar a utilização das prestações.

O diploma legal respetivo estabelece que o SNS goza de autonomia administrativa e financeira e estrutura-se numa organização descentralizada e desconcentrada, compreendendo órgãos centrais, regionais e locais, e dispondo de serviços prestadores de cuidados de saúde primários (centros comunitários de saúde) e de serviços prestadores de cuidados diferenciados (hospitais gerais, hospitais especializados e outras instituições especializadas).

Até lá, a assistência médica competia às famílias, instituições privadas e aos serviços médico-sociais da Previdência. Ao Estado competia a assistência aos pobres.

A partir de 1979  o sistema de cuidados de saúde português tem sido então baseado na estrutura de um Serviço Nacional de Saúde (SNS),  que  se apresenta como um seguro público, de cobertura universal, acesso quase livre no ponto de utilização de serviços e de financiamento através de impostos.

O objetivo primário do SNS, define-se, como  a persecução por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva.

Por outro lado, nestes últimos trinta anos, o setor da Saúde tem vindo a sofrer mudanças significativas, desde a criação do SNS,  passando pela transferência generalizada dos Hospitais das Misericórdias para a alçada do Estado, publicação da Lei de Bases em Saúde,  transformação do estatuto jurídico dos hospitais públicos para SA (e posteriormente para EPE) e a construção de novos hospitais.

 O SNS, apresenta-se como um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde. (artº cfr. artigo 1º do Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro).

A rede hospitalar em Portugal continental é formada por 212 hospitais, dos quais 91 são privados. Os 363 centros de saúde estão organizados em 74 Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES). Em 2012 estavam em atividade 342 Unidades de Saúde Familiar e 186 Unidades de Cuidados na Comunidade. (Cfra informação constante da wikipedia do http://pt.wikipedia.org/wiki/SNS)

Ao que acresce que a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, (n.º 4 da Base I) estabelece que  “os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado ou, sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades privadas, sem ou com fins lucrativos”, consagrando-se nas diretrizes da política de saúde estabelecidas na mencionada Lei que “é objetivo fundamental obter a igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde, seja qual for a sua condição económica e onde quer que vivam, bem como garantir a equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços” (Base II).

Nos termos do n.º 2 da Base IV da Lei de Bases da Saúde, “para efetivação do direito à proteção da saúde, o Estado atua através de serviços próprios, celebra acordos com entidades privadas para a prestação de cuidados e apoia e fiscaliza a restante atividade privada na área da saúde”.

Assim, “o Ministério da Saúde e as administrações regionais de saúde podem contratar com entidades privadas a prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde sempre que tal se afigure vantajoso, nomeadamente face à consideração do binómio qualidade-custos, e desde que esteja garantido o direito de acesso”;

Daqui decorre que “a rede nacional de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e os estabelecimentos privados e os profissionais em regime liberal com quem sejam celebrados contratos nos termos do número anterior”, no âmbito da qual é aplicável o direito de acesso dos utentes aos cuidados de saúde – cfr. n.º 3 e 4 da Base XII da Lei de Bases da Saúde.

Reforça  este entendimento  o nº 1 da Base XII da lei  de Bases da  Saúde em que se dispõe que “o sistema de saúde é constituído pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam atividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas atividades.”

Em tais casos de contratação com entidades privadas ou do sector social, os cuidados  de saúde são prestados ao abrigo de acordos específicos, por intermédio dos quais o Estado incumbe essas entidades da missão de interesse público inerente à prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS, passando essas instituições a fazer parte do conjunto de operadores, públicos e privados, que garantem a imposição constitucional de prestação de cuidados públicos de saúde (art. 64.º da Constituição da República Portuguesa).

Acresce que , “o Estatuto do SNS”  aplica-se às instituições e serviços que constituem o Serviço Nacional de Saúde e às entidades particulares e profissionais em regime liberal integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando articuladas com o Serviço Nacional de Saúde.” – cfr. artigo 2.º do Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro.

Ora,  O Hospital C  é um prestador de cuidados de  saúde, para efeitos do referido art. 8.º do Decreto-Lei n.º 127/2009, de 27 de Maio, que se encontra registado na ERS, sendo que o próprio se assumiu junto da ERS como (i) “[…]  uma unidade hospitalar privada de cuidados de saúde que, no âmbito da sua atividade, contrata a prestação de serviços de saúde com diversas entidades, desde particulares, a seguradoras, ao serviço nacional de saúde e a subsistemas”; e que (ii) “[…] no exercício da sua atividade de prestação de cuidados de saúde, o Hospital Cuf Infante Santo não faz qualquer tipo de diferenciação clínica, tratando de igual modo todo e qualquer cliente independentemente da entidade financiadora do serviço que o mesmo procura na nossa unidade”;

(https://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/270/ERS_023_09.pdf)

 O Hospital C, na qualidade de estabelecimento prestador de cuidados de saúde convencionado com o SNS para diversas valências integra, assim, a rede nacional de prestação de cuidados de saúde, tal como definida no n.º 4 da Base XII da Lei de Bases da Saúde  esta que dispõe expressamente « A rede nacional de prestação de cuidados de saúde abrange os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e os estabelecimentos privados e os profissionais em regime liberal com quem sejam celebrados contratos nos termos do número anterior».

Acrescentando  o nº5. «Tendencialmente, devem ser adotadas as mesmas regras no pagamento de cuidados e no financiamento de unidades de saúde da rede nacional da prestação de cuidados de saúde».

Certo que,  se atentarmos na lei orgânica do Ministério da Saúde  o Decreto-Lei n.º 124/2011, de 29 de Dezembro verificamos que no artigo 7º nº 2 se prescreve que: « Integram o SNS todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, designadamente os agrupamentos de centros de saúde, os estabelecimentos hospitalares, independentemente da sua designação, e as unidades locais de saúde».

Daqui se exclui  à partida os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde privados.

Só que tais estabelecimentos de saúde privados integrarão atomisticamente o  SNS quando se encontrem na situação de “convencionado” com estes  serviços.

Todavia e não obstante, não se encontra alegado por nenhuma das partes que a prestação de cuidados de saúde cujo pagamento se  requer foi efetuada ao abrigo de convenção celebrada ou articulada com o S.N.S.

A prestação de cuidados de saúde por Hospital privado não se presume efetuada ao abrigo do SNS, pelo que deveria ter sido invocada por quem tem interesse em fazer-se valer dessa qualidade, neste caso o próprio réu que excecionou a prescrição com tal fundamento.

A sua não invocação prejudica e determina pois a improcedência da exceção por falta de prova.

Devem consequentemente os autos prosseguir seus termos designadamente para apuramento da factualidade material com base na qual se demanda o réu que é consubstanciada “na sua declaração da sua responsabilidade pelos custos do tratamento

Procede pois e em tais termos a apelação.

Sumário:

Fazem parte do Serviço Nacional de Saúde todos os serviços e entidades públicas prestadoras de cuidados de saúde, designadamente os agrupamentos de centros de saúde, os estabelecimentos hospitalares, independentemente da sua designação, e as unidades locais de saúde conforme  lei orgânica do Ministério da Saúde  o Decreto-Lei n.º 124/2011, de 29 de Dezembro artigo 7º nº 2 e ainda as entidades particulares e profissionais em regime liberal integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando articuladas com o Serviço Nacional de Saúde.” – cfr. artigo 2.º do Estatuto do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro e Base XII da  Lei de Bases da Saúde lei 48/90 de 24.08.

O  regime legal previsto no DL  218/99 de 15.06 cujo objeto visa as dívidas de instituições do SNS, só tem  aplicação   a créditos reclamados por hospitais  privados que tenham convenção com o SNS quando os cuidados de saúde prestados o tenham sido no âmbito de convenção ou articulação com o SNS.

Cabe ao devedor o ónus de invocar que a prestação de  serviços ocorreu no âmbito de convenção ou protocolo com o SNS se quiser prevalecer-se da prescrição de créditos a que se refere o DL 218/99 de 15.06 (artº  342 nº  2 do  CC)

Segue deliberação:

Na  procedência da apelação revoga-se  o saneador sentença apelado, determinando a prossecução dos autos com as diligencias necessárias para apuramento dos factos concretizadores da causa de pedir contra o aqui réu.

Lisboa, 20-11-2014

Isoleta Almeida Costa

Carla Mendes

Octávia Viegas.