1. É ilegal a busca domiciliária nocturna, não consentida, realizada por órgão de polícia criminal, após o arguido estar na esquadra policial há cerca de duas horas e formalmente detido há 34 minutos, por já não estar abrangida pelo flagrante delito.
2. A ilegalidade da busca domiciliária transforma-a num meio proibido de prova, por violação do direito à privacidade e do domicílio e, consequentemente acarreta a nulidade da prova obtida com a mesma, a qual pode ser sanada com o consentimento posterior do titular dos direitos violados.
I Relatório
Nos autos de Processo de Inquérito supra identificado, que correm termos nos Serviços do Ministério Público do DIAP de Loures, 1ª Secção, a Exma. Juiz de Instrução Criminal da Comarca da Grande Lisboa - Norte, Loures, Instância Central, Secção de Instrução Criminal, Juiz 2, a fls. 6 a 8 dos presentes autos, proferiu o seguinte despacho: (transcrição)
«A detenção do arguido foi efectuada em flagrante delito, tendo sido observado o prazo previsto na lei, pelo que a julgo legal e válida.
A revista ao arguido e busca ao veículo que conduzia foram legalmente efectuadas nos termos do art. 174º nºs 1 e 5 c) do Código de Processo Penal.
A busca domiciliária foi realizada após a detenção do arguido, em fragrante delito, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, dado que o arguido foi surpreendido pelos agentes da PSP na posse de 10,96 gramas de haxixe. Tal busca foi realizada pelos agentes da PSP, sem despacho judicial a ordená-la e sem o consentimento do visado, tendo sido realizada à 1 hora e 10 minutos.
Conforme resulta do disposto no art. 177º nº 3 b) do Código de Processo Penal, as buscas domiciliárias podem ser efectuadas por órgão de polícia criminal, entre as 21 horas e as 7 horas com o consentimento do visado ou em caso de flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão no máximo de 3 anos.
No caso dos autos, não existindo consentimento do visado, apenas poderia ser realizada busca nos termos em que foi se existisse flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão no máximo de 3 anos. Ora, pese embora o arguido tenha sido detido em flagrante delito pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, crime esse punido com pena de prisão até 5 anos, certo é que o flagrante delito ocorreu muito antes da busca, pelas 22 horas e 20 minutos, tendo o arguido sido encaminhado para a esquadra onde foi elaborado o auto e só horas depois foi realizada a busca (cfr. auto de notícia de fls. 2 e 3). Assim sendo, a busca não foi efectuada no momento do flagrante mas sim posteriormente, quando o arguido já estava detido.
Conforme é salientado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Dezembro de 2009 (in www.dgsipt), que decidiu pela nulidade das buscas efectuadas nestas condições, só em casos muito excepcionais se poderá aceitar, face aos preceitos e direitos constitucionais em vigor, a realização de buscas não autorizadas pelo juiz durante o período nocturno, pois as mesmas comprometem seriamente o princípio da inviolabilidade do domicílio.
No caso dos autos, tal como no caso relatado no Acórdão mencionado, os agentes da PSP poderiam ter aguardado e solicitado a competente autorização para a realização das buscas uma vez que o arguido já se encontrava validamente detido e não existiria, à partida, perigo para a aquisição da prova.
Assim, face ao exposto, verificando-se a nulidade das buscas domiciliárias, a apreensão resultante das mesmas não poderá ser considerada, por ser método proibido de prova.
Do teor do auto de detenção de fls. 2 a 6, do auto de apreensão a fls. 12, resultante da revista ao arguido e veículo, do teste rápido de fls. 15, fotografias de fls. 22, resultam suficientemente indiciados os seguintes factos:
- O arguido, no dia 29 de Setembro de 2014, cerca das 22h020m, conduzia a viatura de matrícula xx-xx-xx, na Avenida da República, em Loures, quando foi objecto de fiscalização por parte da PSP, por circular a velocidade elevada.
- Naquela ocasião, quando o arguido foi confrontado se possuía substâncias ilícitas na viatura o mesmo respondeu afirmativamente e entregou ao agente policial uma caixa metálica, que se encontrava acondicionada na porta do condutor com diversas "línguas" de haxixe, com o peso bruto de 10,96 gramas.
- O arguido adquiriu a referida substância em circunstâncias não apuradas e por preço não apurado.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ciente das características estupefacientes do produto que detinha, e sabia que a sua detenção é proibida e punida por lei.
Os factos em apreço integram a prática, pelo arguido, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 21º nº 1 e pelo artº 25º al a), Do DL 15/93, com referência à Tabela l-C, anexa ao referido diploma legal. Na verdade, não tendo o arguido prestado declarações e sendo a quantia detida superior a 10 doses médias diárias para consumo, não pode o tribunal presumir, de modo algum, que o produto estupefaciente se destinava para consumo do arguido. Sendo a mera detenção de produto estupefaciente, que não seja destinada exclusivamente para consumo, um acto tipificado no art. 21º do diploma legal citado, verifica-se que a conduta do arguido integra a prática do crime mencionado.
Considerando que o arguido é estudante, aufere poucos rendimentos e vive num agregado que, claramente, passa por dificuldades económicas (só a mãe trabalha e tem uma irmã a estudar), é de supor o perigo de continuação de prática de condutas criminosas, nomeadamente proceder à venda do produto em causa, com o qual pode obter mais meios económicos.
Face à idade do arguido e o facto de não ter antecedentes criminais, é previsível que, em julgamento, lhe venha a ser aplicada pena não privativa da liberdade, nomeadamente pena de prisão suspensa na sua execução.
Em face do exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito a TIR, que já prestou e à obrigação de se apresentar duas vezes por semana, no posto policial da respectiva área de residência, medidas estas que se mostram proporcionais ao grau de indiciação e aptas a afastar o perigo em causa – artºs 191° a 193°, 196°,198° e 204° aI. c), todos do CPP.
Comunique à entidade policial competente.
Notifique e oportunamente restitua os autos aos Serviços do M.º Público.
Restitua o arguido de imediato à liberdade.» (fim da transcrição)
2. No passado dia 28 de Setembro de 2014, pelas 22 horas e 20 minutos, o arguido Diogo Alexandre Carvalho Santos transportava um produto que evidenciava tratar-se de estupefaciente, e, pelo modo como se apresentava, destinado ao tráfico, pelo que o órgão de polícia criminal diligenciou pela sua entrega para teste na Divisão de Investigação Criminal da P.S.P., em Lisboa, a fim de confirmar (ou não) as suspeitas acerca da sua natureza.
3. Quando às 00 horas e 01 minuto foi conhecido o resultado positivo do teste rápido ao produto (haxixe, com o peso bruto de 10,96 gramas), os agentes da P.S.P. deram voz de detenção ao arguido.
4. Na sequência desta detenção em flagrante delito pela indiciação da prática de um crime de tráfico, e pelas 00 horas e 35 minutos, os agentes policiais iniciaram uma busca domiciliária à residência do arguido, sem o seu consentimento, local onde encontraram outros produtos relacionados com o crime indiciado e que lhe servem de prova (como mais pedaços de produtos da mesma natureza, uma balança de precisão, uma faca, notas do Banco Central Europeu no total de €635).
5. Perante esta factualidade a Meritíssima Juiz declarou verificada a nulidade da busca domiciliaria, alegando, em síntese, que " ( ...) , a busca não foi efectuada no momento do flagrante mas sim posteriormente, quando o arguido já estava detido ",que"(...) só em casos muito excepcionais se poderá aceitar, face aos preceitos constitucionais em vigor, a realização de buscas não autorizadas pelo juiz durante o período nocturno (...)" e que "os agentes da PSP poderiam ter aguardado e solicitado a competente autorização para a realização das buscas uma vez que o arguido já se encontrava validamente detido e não existiria, à partida, perigo para a aquisição da prova”.
6. É certo que aquando a realização da busca domiciliária o arguido já se encontrava detido e que da leitura do artigo 177.º, nº 3, alínea b), do CPP, não resulta se perante este flagrante delito deve ser desde logo dada voz de detenção ao arguido e só depois efectuada a busca domiciliaria (ou o contrário), mas não podemos esquecer que em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, compete à entidade policial proceder a detenção do agente, bem como que a interpretação das normas não deve cingir-se a letra da lei (cfr. artigos 255º e 256º do CPP e 9º do Código Civil).
7. Também não ignoramos que uma busca domiciliária é uma medida restritiva de direitos e que está necessariamente sujeita aos limites impostos pela necessidade, adequação e proporcionalidade, mas é exactamente perante um tipo de crime como ao de tráfico que deve prevalecer o interesse publico na realização da justiça em detrimento do princípio da inviolabilidade do domicílio.
8. Na verdade, resulta das regras da experiência que é na residência, ou em outra dependência fechada, que os agentes do tráfico de estupefacientes desenvolvem a sua actividade e guardam os objectos relacionados com o crime e os que lhe servem de prova, e que quando encontrados na via pública apenas se fazem acompanhar de quantidades diminutas e prontas a ser distribuídas e/ou vendidas.
9. Por outro lado, entendemos que agir de modo diferente é que inviabilizaria, à partida, a aquisição da prova, já que entre a detenção do arguido e o deferimento da busca domiciliária aquele podia contactar com pessoas da sua confiança, mantendo-se livre o acesso aos objectos que lá se encontravam.
10. Importa também realçar que a norma do artigo 177º nº 3, alínea b) do CPP foi introduzida em 2007 a fim de adequar o regime das buscas domiciliárias como artigo 34.º nº 3, da Constituição da Republica Portuguesa, e que este preceito "lido a luz dos trabalhos de revisão constitucional, permite a busca domiciliária nocturna em caso de flagrante delito sem restrições relativamente ao tipo de crime indiciado (...) e o limite de três anos escolhido pelo legislador ordinário é suficientemente elevado para restringir o exercício destes poderes a crimes graves".
11. No presente caso o órgão de polícia criminal actuou em conformidade e ao abrigo da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 177º, nº 3, alínea b) do CPP, por referencia à alínea c) do numero anterior, efectuando uma busca domiciliária sem o consentimento do arguido mas com o fundamento e na sequência de elementos objectivos que evidenciavam uma situação de flagrante delito, por crime punível com pena superior a três anos, acrescendo que no caso em apreço, atenta e natureza e características de execução do crime indiciado, só uma intervenção imediata permitiria apreender objectos relacionados com o crime e que lhe pudessem servir de prova (como aconteceu), pelo que a diligência realizada se mostra legal, adequada e proporcional.
12. Ao ter declarado a nulidade da busca domiciliaria efectuada nos autos o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 177º nº 3, alínea b), 178º, nº 1, 255º e 256º, todos do CPP, bem como nos artigos 9º do Código Civil, 18º, nº 3 e 34º, nº 3, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, o despacho recorrido ser substituído por outro que declare válida a busca domiciliária efectuada nos autos.
Assim se fazendo JUSTIÇA!” (fim de transcrição)
“Perante tudo o acima se expôs, consideramos que a busca domiciliária realizada por órgão de polícia criminal foi efetuada não se verificando qualquer situação de flagrante delito, tendo este ocorrido, é certo, mas horas antes das referidas buscas e, nessa medida não se encontravam preenchidos os necessários requisitos do citado artigo 177.º, n.º 3, alínea b), por referência à alínea c) do número anterior, devendo as mesmas considerarem-se inválidas, sendo todas as provas através delas obtidas, declaradas nulas, nos termos dos artigos 126.º, n.º 3 e 122.º, n.º1, do Código de Processo Penal, porquanto a busca policial domiciliária noturna foi feita sem que o pudesse ser, concretizando-se assim num meio proibido de prova, pelo que o despacho recorrido deverá ser mantido nos exatos termos em que foi proferido.
Termos em que, e nos melhores de direito, deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser considerado improcedente e, em consequência, ser o despacho recorrido mantido nos precisos termos em que foi proferido”. (fim transcrição)
***
A Exma. Juiz deu cumprimento do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal e manteve o despacho recorrido.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o visto.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
II Fundamentação
1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.
Da leitura das conclusões do recorrente extrai-se que o mesmo pretende que este tribunal considere válida a busca domiciliária nocturna, seguida à detenção de arguido e sem o seu consentimento, efectuada por órgão de polícia criminal.
Vejamos.
2. Para poder aferir o que está em causa e para uma melhor compreensão do problema, impõe-se, antes de mais, estabilizar a factualidade que deu origem à busca domiciliária nocturna, sem o consentimento do arguido e sem mandado, efectuada pelo órgão de polícia criminal.
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
- O arguido, no dia 28 de Setembro de 2014, cerca das 22horas e 20 minutos, conduzia a viatura de matrícula xx-xx-xx, na Avenida da República, em Loures, quando foi objecto de fiscalização por parte da PSP, por circular a velocidade elevada.
- Naquela ocasião, quando o arguido foi confrontado se possuía substâncias ilícitas na viatura o mesmo respondeu afirmativamente e entregou ao agente policial uma caixa metálica, que se encontrava acondicionada na porta do condutor com diversas "línguas" de haxixe, com o peso bruto de 10,96 gramas.
- Levado o arguido para a esquadra foi o mesmo detido pelas 00 horas e 01 minuto do dia 29 de Setembro de 2014;
- Pelas 00 horas e 35 minutos, sem o consentimento do arguido, os agentes da PSP iniciaram busca domiciliária à sua residência onde vieram a encontrar produto estupefaciente, objectos e notas do Banco Central Europeu;
Feito este enquadramento factual, vejamos agora a previsão normativa no que respeita às buscas efectuadas por orgão de policia criminal, iniciando a sua análise pelo texto constitucional.
A Constituição da República no seu artigo 26º, nº 1 consagra, entre os direitos fundamentais, a reserva de vida privada e no seu artigo 34º a inviolabilidade do domicílio. Os direitos fundamentais apenas podem ser restringidos, “nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” (artigo 18º da Constituição da República).
O legislador ordinário, na densificação da salvaguarda dos referidos direitos fundamentais, ao nível do Código Processo Penal, consagra que as buscas são ordenadas, “ (...) Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público” e podem ser efectuadas por “órgão de polícia criminal nos casos:
a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou
c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.” (artigo 174º, nº 2 e nº 5 do Código de Processo Penal (CPP).
No que respeita às buscas domiciliárias, as mesmas são ordenadas pelo juiz, podendo também ser, “ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal:
a) Nos casos referidos no n.º 5 do artigo 174.º, entre as 7 e as 21 horas;
b) Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas.”, isto é, nos casos de “consentimento do visado, documentado por qualquer forma” ou “flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.” (artigo 177º nº 3 e nº 2 alíneas b) e c) do Código Processo Penal).
Da leitura dos preceitos resulta que só é possível a busca domiciliária nocturna, isto é, entre as 21 e as 7 horas, ordenada pelo Ministério Público ou por órgão de polícia criminal, nas situações de “ consentimento do visado, documentado por qualquer forma” ou “flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.” Compreende-se que assim seja pois, no caso do consentimento, o lesado prescinde do seu direito (inviolabilidade do domicílio e reserva da vida privada) e no caso de flagrante delito o mesmo está estribado no artigo 34º, nº 3 da Constituição que permite a realização de buscas domiciliárias nocturnas em caso de flagrante delito e sem qualquer limitação quanto ao tipo de crime em causa.[2]
Tendo em conta o estabelecido pelo legislador para as buscas domiciliárias nocturnas, efectuadas pelo Ministério Público ou órgão de polícia criminal, impõe-se pois aferir da noção de flagrante delito, tal como o mesmo se encontra na lei processual penal, para se poder ajuizar da validade da busca efectuada.
O legislador considera flagrante delito, “todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer” e ainda “ (…) o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar” e no caso de crime permanente “(…) o estado de flagrante delito só persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente está nele a participar” (artigo 256º do CPP).
Ora, tendo em conta a definição legal de flagrante delito dúvidas não existem que o flagrante delito, no caso dos autos, ocorreu ao momento da abordagem do arguido no seu veículo e terminou, na mais benevolente das interpretações, no momento em que é formalmente detido na esquadra da PSP pelas 00 horas e 01 minuto do dia 29 de Setembro de 2014.
Detido o arguido pelo órgão de polícia criminal terminou o flagrante delito.
Mesmo que se considere que o crime de tráfico de estupefacientes é de execução permanente, enquanto o produto estupefaciente estiver na disponibilidade presumida do arguido, (no caso dos autos, na sua residência), nunca poderia o flagrante delito manter-se pois o agente está, fisicamente, impossibilitado de no mesmo participar por já estar detido.
Não podemos esquecer que o legislador constitucional ao consagrar, excepcionalmente, a busca domiciliária nocturna o faz balizando expressamente o seu âmbito de modo a comprimir ao mínimo estritamente indispensável os direitos fundamentais, para salvaguarda de outros direitos (segurança, realização da justiça) em cumprimento do artigo 18º do mesmo texto constitucional.
A realização da justiça através da perseguição dos criminosos e da procura da verdade material, só pode ser feita dentro e de acordo com as regras do processo. Não existe justiça fora do processo e das suas regras num Estado de Direito Democrático. Só nesta visão democrática e garantística do processo, cumpridora das regras democraticamente sufragadas, se cumpre a República baseada na “dignidade da pessoa humana” em todas as suas dimensões.
Perante tudo o que fica dito, entendemos, salvo melhor opinião, que uma busca domiciliária nocturna efectuada, por um órgão de polícia criminal, 34 minutos depois de o arguido estar formalmente detido na respectiva esquadra policial, já não está abrangida pela definição legal de flagrante delito.
Aqui já não se trata de saber se a busca domiciliária é necessária, adequada ou proporcional, tal como o exige a lei processual penal ao nível dos pressupostos da sua determinação. Aqui esses princípios são irrelevantes por a busca não ser permitida por lei. A verificação dos pressupostos de determinação pressupõe que a busca seja legal, isto é, que a lei a permita naquelas específicas circunstâncias, o que não acontecia.
Não desconhecemos as dificuldades da investigação criminal neste tipo de processos e a argumentação expendida no que respeita ao modo de actuação dos suspeitos e arguidos, em relação à detenção e ocultação do estupefaciente. Porém, tais dificuldades, diga-se, bem piores no passado não muito longínquo, não podem levar-nos a relaxar os critérios legais em matéria de prova, pelas razões supra aduzidas no que respeita aos preceitos constitucionais e processuais penais.
Em resumo, a busca domiciliária nocturna, não consentida, realizada pelo órgão de polícia criminal, nas concretas circunstâncias constantes dos autos, isto é, após o arguido estar na esquadra policial há cerca de duas horas e formalmente detido há 34 minutos, não está abrangida pelo flagrante delito sendo por isso ilegal.[3]
Esta ilegalidade reconduz a busca domiciliária a um meio proibido de prova, por violação do direito à privacidade e do domicílio e, consequentemente, à nulidade da prova obtida com a mesma, a qual pode ser sanada com o consentimento posterior do titular dos direitos violados (artigos 126º, nº 3, 125º, 118º, nº 1 e 3, todos do Código de Processo Penal).
Bem andou pois a Mmª Juiz de Instrução Criminal ao considerar a nulidade da busca domiciliária efectuada.
Em resumo e sem necessidade de mais considerandos, por despiciendos, improcede o recurso interposto pelo Ministério Público.
III Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por onze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)
Lisboa, 22 de Janeiro de 2015
(Antero Luís)
(Trigo Mesquita)
Voto de vencido
Entendo que devia considerar-se válida a busca aqui em causa e, portanto, procedente o recurso, pelas seguintes razões:
O flagrante delito verifica-se quando o crime se está cometendo ou se acabou de cometer ou quando o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar (art.º 256º/1/2 do CPP).
A mera detenção de droga integra os diferentes tipos de tráfico de droga.
Por isso, entendemos que, enquanto o Arg. tiver na sua disponibilidade a droga, como era o caso, está em flagrante delito de tráfico.
O facto de estar formalmente detido não altera a sua relação com a droga.
Ou será que um Arg. que esteja cumprir pena de prisão e, da cadeia, consiga coordenar uma operação de tráfico de droga, que manda armazenar em sua casa, não está em flagrante delito?
E um Arg. que tem em sua casa, em Lisboa, 500 kg de cocaína e se desloca ao Algarve, para a negociar, sendo preso no regresso, por conduzir embriagado, para ser apresentado em tribunal no dia seguinte, deixou de estar em flagrante delito enquanto esteve preso?
Cremos, pois, como já dissemos, que o Arg. que mantém na sua disponibilidade droga, ainda que esteja preso, está em flagrante delito de tráfico, como era o caso.
(João Abrunhosa)
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[1] Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2] Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 483. Em sentido oposto citado pelo mesmo autor Gomes Canotilho e Vital Moreira.
[3] No mesmo sentido acórdão deste Tribunal de 22-12-2009, proferido no Proc. Nº 0/09.PJCSC-A.L1-5in www.dgsi.pt