FRAUDE FISCAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Sumário

I-O crime de fraude fiscal previsto e punido no artº 103º do RGIT constitui um crime de perigo, bastando para a sua consumação que se comprove que o agente quis a respectiva acção ou omissão e que elas eram adequadas e preordenadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição das receitas, não se exigindo que se efective a obtenção indevida de tais vantagens patrimoniais em prejuízo do fisco.
II-Estando em causa o cometimento do crime (qualificado) através de facturas falsas, tratando-se de um crime de perigo, o momento relevante para o efeito da consumação do crime é o da data de emissão das facturas em que o agente, com intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidas na relação Fisco-contribuinte. Para a punição do agente basta comprovar que ele quis incorporar aquelas facturas na sua contabilidade e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.

            RELATÓRIO:

1. No processo comum com intervenção de Tribunal Singular com número supra identificado, a correr termos na Comarca da Madeira Funchal -Inst. Local -Secção Criminal -J1, o Ministério Público deduziu acusação, além do mais, contra “A..., Ldª, actualmente com a firma “S, Ldª”, imputando-lhe a prática em co-autoria material de dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, al. a) e 104º, nº 2 do RGIT, cujo procedimento criminal veio a ser declarado extinto, por prescrição, pelo despacho proferido a 20.10.2014, certificado a fls. 103 a 105.

2. O Ministério Público, não se conformando com esta decisão veio interpor recurso, terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões:
“1. A decisão recorrida é, salvo o devido respeito e melhor opinião, equívoca na interpretação que faz dos arts. 103°, 104°, n.° 2 e 21°, n.°s 1 e 2 todos do RGIT, quer quanto ao momento em que considera consumados os crimes imputados à sociedade arguida, quer quanto ao prazo prescricional.
2. No que concerne ao momento de consumação do crime, entendeu-se na douta decisão recorrida que este ocorrerá na data ostentada na factura "falsa".
3. Entendemos, todavia, que o crime de fraude fiscal qualificada não se consuma no dia da emissão das facturas como se entendeu (apoiado na jurisprudência indicada e muita outra que não desconhecemos mas com a qual não concordamos) no douto despacho recorrido.
4. Desde logo, tratando-se de factura falsa, é desconhecida a data da sua emissão. O facto de a factura ostentar uma determinada data nada garante que a mesma tenha sido emitida nesse dia.
5. Relembre-se que, as facturas "falsas" têm exactamente como objectivo reduzir o montante de imposto a pagar num determinado período, pelo que, o normal será que as mesmas sejam SEMPRE emitidas com uma data de "conveniência" o que, obviamente, não lhe atribui o mínimo de certeza jurídica quanto à data da sua emissão (que poderá até ser - como a realidade o demonstra - vários anos após a data que a factura ostenta).
6. Por outro lado, o facto de alguém ter uma factura falsa em sua posse não é suficiente, só por si, para demonstrar que tivesse como objectivo a prática do crime de fraude fiscal qualificada ou qualquer outro.
7. Poderá acontecer que, uma determinada sociedade (ou empresário em nome individual), embora tenha na sua posse uma factura "falsa" não a declara nem na declaração de IVA respeitante ao período a que corresponde a data da factura nem, posteriormente, na declaração de IRC (ou IRS) do ano em referência.
8. Neste caso, é possível afirmar que o crime se encontra consumado? É possível demonstrar que o detentor da factura tinha intenção de lesar patrimonialmente o Estado? Pensamos que não... Como é que se demonstraria a intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida se o seu detentor nunca a fez "sair da gaveta"?
9. Na verdade, o crime de fraude fiscal qualificada terá necessariamente de se consumir quando tais facturas são inseridas nas respectivas declarações à Autoridade Tributária, quer seja em sede de IVA, quer seja em sede de IRC e isto antes e independentemente da produção do resultado pretendido mas já  com uma actuação objectivamente apta a produzir esse resultado e a  demonstrar a intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida.
10. E mais assim é se aceitarmos (como nós entendemos, estribados não só em análise própria do tipo de crime e da sua evolução histórica como na jurisprudência que pensamos cada vez mais dominante) que a vantagem patrimonial (superior a 15.000,00€) é um elemento típico para a verificação do crime que terá de ser objectivável e isso só pode acontecer depois de apresentada a respectiva declaração.
11. Ora, no caso concreto dos autos, os crimes de fraude fiscal qualificada imputados à sociedade arguida referem-se às declarações de IRC dos anos de 2004 e 2005 que, foram entregues (voluntariamente e no prazo legal - art. 120° CIRC), respectivamente, em 31-05-2005 e 31-05-2006, pelo que, nenhum dos crimes imputados à sociedade arguida se encontra, como se demonstrará infra, prescrito.
12. Ainda que assim não se entenda, como resulta do despacho recorrido, estão em causa dois crimes de fraude fiscal qualificada, p.p., pelos arts.103° e 104°, n.° 2 RGIT que têm por base as declarações de IRC dos anos de 2004 e 2005 apresentadas voluntariamente pela sociedade arguida em 31-05-2005 e 31-05-2006, respectivamente.
13. Os crimes em causa são puníveis com pena de prisão de um a cinco anos (arts. 103° e 104°, n.°1 e 2 do RGIT).
14. Estatui o art. 21°, n.°s 1 e 2 RGIT que "1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos. 2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos (sublinhado e negrito nosso).
15. Ora, estatui o art. 118°, n.° 1, al. b) CP "O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (..) b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos”.
16. Assim e por remissão directa do RGIT (art. 21°, n.° 2), é de aplicar (atenta a moldura penal), neste tipo de crime não o disposto no seu art. 21°, n.° 1 mas antes o disposto no art. 118°, n.° 1, al. b) CP, sendo, pois, o prazo de prescrição de 10 anos e não 5 anos.
17. E assim é, segundo entendemos, independentemente de se tratar de pessoa singular ou de pessoa colectiva, não obstante a esta última apenas poder ser aplicada pena de multa (parece resultar do despacho uma interpretação diferente,  uma vez que, aí se faz referência ao art. 12°, n.° 2 RGIT).
18. Ora, mesmo entendendo que o prazo de 10 anos começava a contar da data da "emissão" da última factura (entendimento do qual discordamos conforme abordámos supra), não poderia a Mma. Juiz a quo entender que ambos crimes imputados à sociedade arguida estavam prescritos.
19.Na verdade:
- Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada respeitante ao ano de 2005 não poderia dar como prescrito desde logo porque, ao contrário do que transparece o despacho recorrido, a última factura respeitante a esse ano não é, obviamente, 30-11-2004 mas 29-12-2005 como resulta dos documentos juntos aos autos e do próprio teor do despacho de acusação.
- Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada respeitante ao ano de 2004 não poderia, igualmente, dá-lo como prescrito porque à data da prolação do despacho (reafirmamos que apenas na eventualidade de se entender que o crime se consuma na data ostentada na factura, entendimento que não perfilhamos) ainda não haviam decorridos 10 anos sobre a data aí referida: 30-11-2004.
21- Em conclusão, deverá a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que declare não prescritos os crimes e ordene o prosseguimento dos autos contra a arguida A..., Lda., actualmente com a firma “S... Ldª” pela prática dos dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103º e 104º, nº 1 e 2 do RGIT que lhe foram imputados no despacho de acusação.
22. O Tribunal pode conhecer em substituição, não devendo o processo baixar à primeira instância para novo julgamento, uma vez que, dos autos constam todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão (arts. 426º, nº 1 e 431º, nº 1, al. a) CPP).
Em consonância com as considerações expendidas, o Ministério Público impetra que esse Venerando Tribunal revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outras que declare não prescritos os crimes e ordene o prosseguimento dos autos contra a arguida A..., Ldª, actualmente com  a firma “S..., Ldª” pela prática dos dois crimes de fraude fiscal”.

4. Este recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

5. A arguida não apresentou resposta ao recurso.

6. Neste Tribunal, a Exmª Procuradora Geral Adjunta apôs Visto.
 
Cumpre, agora, decidir.
           
            II-FUNDAMENTAÇÃO.
           
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, e neste caso, vem colocada uma única questão: saber se o procedimento criminal instaurado contra a arguida se extinguiu por prescrição.

            2. Do despacho recorrido.
           
2.1. Importa, antes de mais, atentar na fundamentação do despacho recorrido do qual consta o seguinte:
   “A arguida “A..., Ldª, actualmente com a firma “S... é imputada a prática de dois crimes de fraude fiscal qualificada, p.  e p. pelos arts. 103º e 104º, nº 1 e 2 do RGIT.
    O prazo de prescrição do crime de que a arguida sociedade vem acusada é de 5 anos, de harmonia com o disposto no artº 118º, nº 1, alínea c), do Código Penal e 21º, nº 1, do RGIT (vide, ainda, artº 12º, nº 2 do RGIT).
O artº 119º nº 1 do C. Penal, aplicável ex vi da al. a) do  artº 3º do RGIT, que estabelece que “o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”.
Temos agora de saber do momento da consumação do crime, atendendo a que o prazo de prescrição se inicia nesse momento (nº 1 do artº 119º do C. Penal.).
O crime de fraude fiscal, na modalidade de utilização de  facturas de venda a que não corresponde verdadeira transacção (que é, indiscutivelmente, a dos autos), consuma-se no dia da emissão das facturas (neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão da Relação do Porto, de 05/01/2011).
A consumação ocorreu na data da prática da última conduta (emissão da última factura): 30.11.2004.
A sociedade não chegou a prestar Termo de Identidade e Residência nestes autos, nem foi constituída arguida na pessoa do seu representante legal.
Assim, não tendo ocorrido qualquer facto interruptivo nem suspensivo da prescrição, em relação à sociedade “A..., Ldª”, actualmente com  a firma “S..., Ldª”, o prazo prescricional do procedimento criminal ocorreu em 30.11.2009 (aliás, antes de ter sido proferida a acusação).
Pelo exposto, declaro extinto, por efeito da prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida “A..., Ldª, actualmente com  a firma “S..., Ldª”.
Notifique”.

 2.2. Na acusação deduzida pelo Ministério Público, em 30.11.2011, foram indiciados com relevo para a questão a decidir, os seguintes factos:
 Com o objectivo de privar a administração fiscal dos tributos que resultariam da aplicação da lei, nem que com isso implicasse ficcionar custos mediante a utilização de meios que anteviram idóneos em ordem a tal propósito.
Assim e com o objectivo referido, na contabilidade da sociedade arguida  A..., Ldª foram registadas e contabilizadas como custos e deduzidas em sede de IRC as seguintes facturas emitidas pelas arguidas F... & P..., Ldª, E.C..., Ldª e pela sociedade PM..., Ldª (facturas com data de emissão entre 28/10/2004 a 30/11/2004 e 22/04/2005 a 29/2/2005).
Tais facturas foram preenchidas pelo punho dos arguidos JJ... JP... e ES e PS..., que previamente concertavam com a sociedade arguida A..., Ldª, a data e o valor que deveriam constar das mesmas, que fazem de tal actividade modo de vida, recebendo uma contrapartida monetária correspondente e uma percentagem variável do valor de cada factura.
As referidas facturas não correspondem a quaisquer serviços prestados pelas referidas sociedades.
Não existe qualquer comprovativo de pagamento das facturas emitidas.
A contabilização do IVA supostamente pago e dos custos supostamente suportados pela sociedade arguida A..., Ldª, como era propósito dos arguidos, determinou a diminuição do valor do imposto a pagar em sede de IRC em €106.565,39 no ano de 2004 e €19.916,77 no ano de 2005, o que consequentemente levou a um imposto (IRC) a pagar em menos de €126.482,16.
Todos os arguidos agiram de modo livre e consciente de forma previamente concertada, de forma a ludibriarem o Estado, já que todas as facturas referidas, não tiveram subjacente quaisquer transações efectivamente realizadas entre o citado sujeito passivo e os arguidos.
Termos em que, à sociedade arguida A..., Ldª foi imputada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois (2) crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103º, nº 1, al. a) e 104º, nº 2 do RGIT.

3. Apreciando.
          
3.1. De uma forma simplificada podemos dizer que o instituto da prescrição atribui ao decurso do tempo sobre a prática de um facto razão suficiente para que o direito penal se abstenha de intervir ou de punir, assentando tal razão, conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias ”...na consideração de que a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, e por outro lado, e com maior importância, as exigências de prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos, encontrando ainda fundamento ao nível processual, porquanto o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados duvidosos a investigação do facto e da culpa do agente”(in, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.699/670).

O Digno recorrente veio insurgir-se contra a decisão que declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida “A..., Ldª, discordando em dois pontos fulcrais atinentes à questão da prescrição: quanto ao momento da consumação dos crimes imputadas à sociedade arguida, e quanto ao prazo prescricional em causa.

a) Quanto ao momento da consumação dos crimes.
O momento em que se consuma o crime constitui questão importante a resolver, dada as implicações que tal resposta tem em termos de prescrição.
Desde logo, o momento da consumação do crime marca o início da contagem do prazo prescricional, assim o determina o artº 119º, nº1 do Código Penal quando estabelece que “O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”.
 Mas para a resolução desta questão importa que se caracterize, ainda que de forma sucinta, o tipo de ilícito em causa.
A fraude fiscal materializa-se numa defraudação que visa a obtenção de um benefício fiscal ou de causar um prejuízo ao fisco.
Trata-se de um crime de execução vinculada que só pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas a), b) e c) do artº 103º do RGIT, ou seja, o tipo objectivo apenas se preenche com a adopção de condutas que visem a obtenção de uma situação tributária mais favorável, como sejam o não pagamento de um imposto, a sua redução ou a obtenção de benefícios fiscais, de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Assim, para a punição do agente basta comprovar que este quis as respectivas acção ou omissão e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e á consequente diminuição da receita tributária.
O artigo 104º do RGIT acolhe a forma qualificada do crime de fraude fiscal, prevendo o nº 2 “a fraude que tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”, sendo esta a forma de fraude fiscal imputada aos arguidos em co-autoria no caso dos presentes autos.

Quanto á natureza do crime de fraude fiscal, o STJ tem entendido tratar-se de um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão. Isto porque não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do fisco, mas apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem ou prejuízo. Deste modo, o crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente.
É o que resulta da expressão “susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias” (corpo do nº1 do artº 103º do RGIT).
Também a doutrina tem referenciado o crime de fraude fiscal como um “crime de resultado cortado”, na medida em que a obtenção de vantagem patrimonial não é elemento do tipo, bastando apenas que as condutas sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante em sede de aplicação da medida concreta da pena[1].
           
  b) Apesar deste entendimento jurisprudencial pacífico acerca da natureza deste ilícito, classificado como crime de perigo, têm apesar disso surgido algumas divergências relativamente ao momento determinante para efeitos de estabelecer o início de contagem do prazo prescricional.
   A falta de consenso está patente no caso do presente recurso.
  Como vimos, a acusação descreve factos que consubstanciam uma situação de facturas de favor[2]imitidas em resultado de um acordo do utilizador (a sociedade A..., Ldª) que as incorporou na sua contabilidade fiscal com vista a obter vantagens patrimoniais, recebendo os emitentes das facturas uma contrapartida monetária correspondente a uma percentagem do valor de cada factura.
  O Ministério Público veio a entender em sede de recurso que o momento relevante para o efeito da consumação do crime é aquele em que o contribuinte dá conhecimento ás autoridades fiscais da declaração fraudulenta, já que só aí as induz em erro susceptível de provocar prejuízo patrimonial para as receitas, ou ainda quando a administração fiscal efectue a liquidação.
  Discorda assim o recorrente que o momento da consumação da infracção ocorra no dia da emissão das facturas como se entendeu no despacho recorrido.
   O recorrente invoca a seguinte argumentação:
-Tratando-se de facturas falsas, a data da sua emissão é desconhecida, pois sendo falsa a factura nada garante que tenha sido emitida na data que dela ficou a constar.
   - A posse de uma factura falsa só por si não é suficiente para demonstrar que o agente tivesse como objectivo a prática do crime de fraude fiscal qualificada ou qualquer outro, exigindo o crime em causa a utilização de facturas não se bastando com a mera detenção das mesmas pelo sujeito passivo.
   - E sendo o dano patrimonial enquanto tal estranho ao tipo, a verdade é que está a ele associado pela mediação de um específico elemento subjectivo, figurando o dano patrimonial como uma referencia expressa à intervenção do agente e a produção efectiva de um dano ao património fiscal ou à obtenção de um beneficio fiscal ilegítimo, que se configura como indispensável à consumação da infracção
E conclui que o crime de fraude fiscal qualificada terá necessariamente de se consumar quando as facturas se tornam relevantes, relevância que do seu ponto de vista só ocorre no momento em que tais facturas são inseridas nas respectivas declarações à Autoridade Tributária, quer seja em sede de IVA, quer seja em sede de IRC.
Não desconhecemos a orientação de alguma jurisprudência e doutrina neste sentido, referindo  Augusto Silva Dias que “A regra é que a consumação se verifica no momento da liquidação, se esta é realizada pela administração financeira ou, no caso de auto liquidação, quando o contribuinte entrega a declaração na repartição de finanças”. No mesmo sentido refira-se Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, in Comentário das Leis Extravagantes, vol 2, Lisboa, 2011, pág. 456.

Permitimo-nos, contudo, discordar, com o devido respeito, desta posição.
Em primeiro lugar as facturas tornam-se relevantes logo que emitidas porque cumprem um objectivo querido pelo agente: o de serem incorporadas na contabilidade com vista à obtenção de vantagens fiscais ilegítimas. A data que vem aposta na factura serve o objectivo visado pelo agente, tendo por isso um significado preciso. Neste quadro, estando em causa um crime de perigo, para a punição do agente basta comprovar que ele quis incorporar aquelas facturas na sua escrita, e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição da receita tributária.
Por outro lado, como dissemos, a obtenção de vantagem patrimonial não é elemento do tipo, bastando apenas que as condutas do agente sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem, não sendo de exigir para a consumação do crime que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação da consequência da diminuição da receita fiscal.
Deste modo, o ilícito consuma-se quando o agente, com a intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidas na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação, previstas no artº 103º, nº 1 do RGT. Deste modo, o momento a partir do qual começa a contar o prazo de prescrição é o momento da acção delituosa, com vista ao não pagamento da prestação tributária.
 Assim, a verificação do crime não só não depende da liquidação como necessariamente a precede.
Perfilhamos então o entendimento que julgamos ser dominante nos tribunais superiores de que o crime de fraude fiscal com recurso a facturas falsas se consuma na data da emissão dessas facturas, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte (declaração periódica do IVA ou a entrega anual da declaração do IRC, sendo para efeitos de consumação irrelevantes tais declarações). Neste sentido, entre outros, o ac. da Rel. do Porto de 5/01/2011 e de 3.12.2012 e  ac. do TRG de 3.11.2014).
Também a liquidação se revela absolutamente desnecessária do nosso ponto de vista, no entendimento que perfilhamos de não ser aplicável à fraude fiscal qualificada, o nº 2 do artº 103º (limite dos 15.000€ para ser punível), nomeadamente quando a execução do crime passa pela utilização de facturas falsas (v. neste sentido, entre outros, o ac.TRG de 18.05.2009).
Em conclusão, consumando-se o crime de fraude fiscal com a emissão da factura, é a sua data de emissão relevante para o início do prazo de prescrição do procedimento criminal.

b) Qual o prazo de prescrição?
O recorrente entende que neste caso, o crime de fraude fiscal qualificada, sendo punível de 1 a 5 anos de prisão, o prazo de prescrição é de 10 anos e não de cinco como se entendeu no despacho recorrido.
Entendeu-se no despacho recorrido que “o prazo de prescrição do crime de que a arguida sociedade vem acusada é de 5 anos, de harmonia com o disposto no artº 118º, nº 1, alínea c), do Código Penal e 21º, nº 1, do RGIT (v. ainda, artº 12º, nº 2 do RGIT)”.

Vejamos:
Estabelece o artº 21º do RGIT, o seguinte:
1.O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2.O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
O crime de fraude qualificada é punível com prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas (artº 104º, nº 1, do RGIT).
Estando em causa pena de prisão cujo limite máximo é igual a 5 anos, importa  atentar nos prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal, mais concretamente no artº 118º, nº 1, al. b) que “extingue o procedimento criminal, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido 10 anos”.
E estabelece o nº 3 o seguinte: “Se o procedimento criminal respeitar a pessoa colectiva ou entidade equiparada, os prazos previstos no nº 1 são determinados tendo em conta a pena de prisão, antes de se proceder à conversão prevista nos nos. 1 e 2 do artigo 90º-B”,
Entendemos que o prazo de prescrição aplicável é de 10 anos, mesmo estando em causa pessoa colectiva, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal determinado em função do limite máximo da pena de prisão.
Assiste assim razão ao recorrente nesta parte.

3.2. Importa então apreciar se o procedimento criminal pelos factos pelos quais está a arguida acusada, pela prática de dois crimes de fraude qualificada, p. e p. pelos arts.103º e 104º, nº 2, do RGIT, está ou não extinto, por prescrição?
Conforme consta da acusação “...na contabilidade da sociedade arguida  A..., Ldª foram registadas e contabilizadas como custos e deduzidas em sede de IRC as seguintes facturas emitidas pelas arguidas FP, Ldª, ES, Ldª e pela sociedade PS, Ldª (facturas com data de emissão entre 28/10/2004 a 30/11/2004 e 22/04/2005 a 29/12/2005).
A consumação ocorreu na data da prática da última conduta (emissão da última factura) sendo que a última factura relativa ao exercício do ano de 2004 foi emitida em 30/11/2004 e no exercício relativo ao ano de 2005, a última factura foi emitida em 29/12/2005.
Assim, não tendo ocorrido qualquer facto interruptivo nem suspensivo da prescrição em relação à  sociedade “A...,Ldª o prazo prescricional relativamente ao exercício do ano de 2004 ocorreu em 30/11/2014, importando assim declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida pelo imputado crime de fraude qualificada p. e p. pelos arts. 103º e 104º, nos. 1 e 2, da RGIT, referente àquele exercício do ano de 2004.
Relativamente ao exercício do ano de 2005, considerando que a última factura emitida data de 29/12/2005, o procedimento criminal instaurado contra a mesma arguida, pela prática de um crime de fraude qualificada, p. e p. pelos arts. 103º e 104º, nº 2 do RGIT, não se mostra prescrito, devendo os autos prosseguir para julgamento quanto à mesma sociedade, e relativamente a este crime.

Procede, assim, parcialmente o recurso.
 
                                                     *                     
III-Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, julgando parcialmente procedente o recurso, em declarar extinto o procedimento criminal, por prescrição, instaurado contra a arguida “A...,Ldªrelativamente ao imputado crime de fraude qualificada, referente ao exercício do ano de 2004, revogando-se quanto ao mais a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos contra a mesma arguida, pela prática do crime de fraude fiscal qualificada, p e p. pelos arts. 103º e 104º, nºs. 1 e 2 do RGIT, referente ao exercício do ano de 2005, por se não mostrar prescrito.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique.

Lisboa, 25/02/2015.

Relatora: Conceição Gonçalves.
Adjunta: Maria Elisa Marques.
                                         

[1] Entendimento sufragado por Figueiredo Dias e Costa Andrade (in Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português, págs. 432 a 434). No mesmo sentido de que se trata de um crime de perigo, Susana Aires de Sousa, “Os Crimes Fiscais”, Coimbra Editora, p. 73.
[2] Nuno Sá Gomes (in Relevância Jurídica Penal e Fiscal das Faturas .....Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, nº 377, DGI –Jan-Mar. 1995, p.9) refere três modalidades de faturas falsas: a) faturas falsas stricto senso -conferidas pelo emitente –utilizador a empresas inexistentes; b) faturas forjadas –conferidas pelo emitente-utilizador a empresas existentes mas sem conhecimento destas últimas, e c) faturas de favor- emitidas por um terceiro em resultado de um acordo do utilizador que as incorpora na sua contabilidade fiscal, existindo pagamento de uma quantia ao emitente ou mediante faturas emitidas gratuitamente.