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ALD
LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROCEDIMENTO CAUTELAR
Sumário
- Da afinidade, similitude ou homogeneidade jurídico-estrutural, no plano do direito substantivo, dos regimes jurídicos do contrato atípico de ALD e de locação financeira, não pode extrapolar-se para a aplicabilidade da providência cautelar prevista para a locação financeira, no art.º 21º do DL 149/95, ao contrato de ALD. - Vigora em termos de direito processual um princípio de legalidade, nos termos do qual o direito de acesso aos tribunais e a realização do direito subjectivo deve efectuar-se através da “acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção” (art 2º nº 2 do CPC). - Não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para “acautelar o efeito útil da acção”, quando está em causa o exercício dos direitos conferidos no âmbito de um contrato de ALD, não é possível o recurso à providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 para o contrato de locação financeira, sendo a forma ou via processual adequada o procedimento cautelar comum, previsto no art.º 362º e segs do CPC. - Para aferir do fundando receio de lesão grave e dificilmente reparável não interessa que o requerido possa vir a ser responsabilizado e tenha de vir a reparar os danos que o veículo apresente e sejam da sua responsabilidade ou venha a ter que pagar uma indemnização, no caso de não restituição do veículo. - Para aferir daquele fundado receio o que interessa é poder ser afectado o actual direito de propriedade da requerente ao uso, fruição e disposição do veículo automóvel - Resultando das regras de experiência comum que quanto mais tempo o requerido tiver a viatura na sua posse e a usar maior é o risco de a mesma se estragar e, consequentemente, o direito da requerente à propriedade do veículo poder ser irremediavelmente colocado em causa, podendo até extinguir-se tal direito, pelo perecimento da viatura, deve concluir-se pela verificação do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável. (sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
1. A Requerente instaurou contra o Requerido a presente providência cautelar de entrega judicial[1], pedindo que a mesma seja decretada, sem audiência prévia do Requerido, devendo ser igualmente antecipado o juízo sobre a causa principal, declarando-se como válida a resolução contratual operada pela Requerente. Em alternativa, invertendo-se o ónus do contencioso, pede que seja: decretada a apreensão imediata do veículo automóvel com a matrícula (...) e respectivos documentos, entregando-se os mesmos à Requerente; comunicada a providência às autoridades policiais para efectiva e imediata apreensão do aludido veículo, ainda que o mesmo se encontre em circulação; oficiado às autoridades policiais no sentido de inserirem a matrícula (...) na base nacional de dados de viaturas a apreender.
Alega, em resumo, que celebrou com o requerido um contrato de aluguer de longa duração pelo qual deu em locação ao requerido o identificado veículo automóvel, obrigando-se a proporcionar-lhe o gozo e a fruição do mesmo, assumindo o requerido a obrigação de pagar os alugueres contratados e o respectivo valor residual, em caso de aquisição do veículo. Porém, o requerido não pagou os alugueres de Janeiro a Setembro de 2014 e, não obstante interpelado para proceder à regularização dos valores em dívida, sob pena de o contrato se considerar definitivamente incumprido, o requerido não pôs fim à mora nem procedeu à restituição da viatura.
Conclui que o requerido se mantem ilegitimamente a usar e fruir da viatura locada e pretende a sua restituição imediata, com a presente providência, ao abrigo do artigo 21.º, n.ºs 1 e 7 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, por entender que os factos alegados são subsumíveis no âmbito da providência prevista neste diploma. Caso assim não se entenda pede que a presente providência cautelar seja convolada em providência cautelar não especificada, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 369.º do (novo) C.P.C., dispensando a Requerente do ónus de propositura da acção principal, verificados que estejam os respectivos requisitos.
Indeferida a não audiência prévia do requerido e citado este não foi deduzida qualquer oposição.
2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a providência cautelar e indeferiu a apreensão do identificado veículo.
3. É desta decisão que, inconformada, a Requerente vem apelar, pretendendo a sua anulação e substituição por outra que leve em consideração o exposto nas alegações e decrete a apreensão imediata da viatura objecto do contrato de locação.
Alegando, conclui:
A. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida, que declarou improcedente o procedimento cautelar de entrega judicial intentado pela Requerente e ora Recorrente e que, consequentemente, não decretou a providência requerida.
B. Com efeito, entende a Recorrente, contrariamente ao que foi decidido na douta sentença do Tribunal a quo, que o regime do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.06 deverá ser aplicável ao contrato de aluguer de longa duração celebrado.
C. O contrato de aluguer de longa duração consiste num contrato em que uma das partes concede à outra o gozo temporário de uma coisa (neste caso de um veículo) mediante o pagamento de uma retribuição (aluguer), sendo que, simultaneamente, se convenciona uma opção de compra a favor do locatário.
D. O contrato de ALD celebrado entre as partes prevê expressamente na cláusula 12.ª das Condições Gerais um direito potestativo de aquisição que o locatário pode ou não exercer, sem quaisquer consequências jurídicas, pelo que estamos perante um contrato de crédito similar ao de locação financeira (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25/10/2011, e proferido no âmbito do processo n.º 1320/08.1YXLSB.L1.S1 (in www.dgsi.pt).
E. Não tendo um regime jurídico próprio, previsto na lei, dada a aproximação entre os dois tipos contratuais, a jurisprudência tem entendido serem subsidiariamente aplicáveis ao contrato de ALD, com opção de compra, as regras próprias do contrato de locação financeira, previstas no Decreto-Lei n.º 149/95 de 24.06 (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07/02/2013, e proferido no âmbito do processo n.º 3823/11.1TBSTB.E1)
F. É indiscutível a existência de uma homogeneidade jurídico-estrutural entre o contrato de locação financeira e o contrato de aluguer de longa duração, existindo, inclusive, uma parte da doutrina que qualifica o contrato de aluguer como uma modalidade de locação financeira (cfr. Rui Pinto Duarte, “Escritos sobre leasing e factoring”), ou, pelo menos, como uma operação de natureza similar ou com resultados económicos semelhantes aos da locação financeira (vide Paulo Duarte, “Algumas questões sobre o ALD”, Estudos do Consumidor).
G. O artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, prevê um regime cautelar especial, de acordo com o qual o proprietário de um veículo automóvel não tem de provar a verificação de uma situação de periculum de mora no âmbito de uma providência cautelar de apreensão de veículo.
H. Da aplicação do artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho resulta que a Recorrente não teria que fazer prova (sumária) do periculum in mora, mas apenas dos requisitos previstos no referido normativo,
I. A Recorrente alegou e provou a existência do contrato de aluguer de longa duração, a resolução do mesmo e a não restituição da coisa.
J. Mas mesmo que se considere, tal como o fez o Tribunal a quo, que o regime do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.06 não é aplicável ao caso em apreço - o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, sem conceder - sempre se teria de concluir pelo preenchimento do requisito de verificação de uma situação de periculum in mora que justifique o decretamento da providência cautelar, motivo pelo qual a douta sentença do Tribunal a quo violou o n.º 1 do artigo 362.º do CPC.
K. Efectivamente, e no seguimento de uma parte considerável da jurisprudência portuguesa, defende a Recorrente que, no presente caso, o fundado receio de perda grave e dificilmente reparável não se refere ao direito de crédito - que consiste em obter o pagamento das rendas vencidas e não pagas pela Recorrida bem como o pagamento da indemnização devido pelo incumprimento contratual – mas antes o seu direito de propriedade que incide sobre o veículo não restituído pela Recorrida.
L. Assim, é notório e de conhecimento geral que a utilização do veículo por parte da Recorrida acarretará necessariamente a deterioração e desvalorização do mesmo, mas mais ainda, impedirá que a Recorrente, como proprietária, disponha do seu próprio bem na plenitude das faculdades que integram o direito de propriedade.
M. Por conseguinte, a continuação da utilização do veículo por parte da Recorrida, sem que a mesma tenha título legítimo para o efeito, pode causar danos patrimoniais graves à Recorrente, bastando a matéria de facto indiciariamente provada nos presentes autos para se considerar preenchido o requisito de verificação de uma situação de lesão grave e de difícil reparação do direito de propriedade da Recorrente.
N. No entanto, o Tribunal a quo decidiu não decretar a providência cautelar pelos motivos mencionados no ponto R. das presentes conclusões, ignorando que não se trata de um direito de crédito que a Recorrente pretende ver acautelado por via do decretamento da providência cautelar requerida, mas do direito de propriedade de que a mesma é indiscutivelmente titular.
O. Ora, não fica o direito de propriedade salvaguardado através da tutela dos créditos a que a Recorrente tem direito, esses sim relacionados com a questão do património e situação financeira da Recorrida, questão essa que teria influência para o preenchimento do pressuposto jurídico de periculum in mora numa providência cautelar em que a Recorrente pretendesse ver garantido o seu direito e evitar a perda de tal garantia, o que manifestamente não se verifica no presente caso.
P. Mas mesmo que a Recorrente pretendesse - como aparentemente foi entendido pelo Tribunal a quo - acautelar com a apreensão do veículo um direito de crédito nos moldes referidos, sempre se teria de concluir pelo preenchimento do requisito de periculum in mora.
Q. Em 17 de Março de 2014, foi publicado anúncio de nomeação de administrador judicial provisório no âmbito do Processo Especial de Recuperação que se encontrava a correr termos no Juízo de Comércio de Sintra, do Tribunal de Comarca da Grande Lisboa Noroeste, sob o n.º 4892/14.8T2SNT.
R. O PER resultou em parecer no sentido da insolvência, tendo a sentença de declaração de insolvência do Requerido sido proferida em 11 de Dezembro de 2014, no âmbito do processo n.º 5753/14.6T8SNT, a correr termos na Secção de Comércio – J3, da Instância Central de Sintra do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste
S. Consequentemente, deveria o Tribunal a quo ter considerado como preenchido o requisito de verificação de uma situação de periculum in mora que justifique o decretamento da providência cautelar requerida, motivo pelo qual a douta sentença do Tribunal a quo violou o n.º 1 do artigo 362.º do CPC.
4. O requerido não apresentou contra-alegações.
5. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
A factualidade considerada provada na decisão recorrida é a seguinte:
1. A Requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto, entre outras, a actividade de locação financeira mobiliária e de aluguer de viaturas sem condutor (Cfr. certidão permanente com o código 5347-0528-3701).
2. No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com o Requerido o contrato de aluguer de longa duração a consumidor n.º 57373.
3. Pelo contrato ora junto aos Autos como Doc. n.º 1, a Requerente deu em locação ao Requerido o veículo automóvel da marca MERCEDES-BENZ, modelo E 250 CDI STATION BE, com a matrícula (...).
4. Para a celebração do contrato supra referido, obrigou-se a Requerente a adquirir a referida viatura.
5. Acresce que, a propriedade da referida viatura se encontra devidamente registada a favor da Requerente, conforme resulta da informação da Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa.
6. Ao abrigo do referido contrato de aluguer de longa duração, obrigou-se ainda a Requerente a ceder ao Requerido o gozo e fruição de tal equipamento, o que efectivamente fez (Cfr. Cláusula 3.ª das Condições Gerais do contrato junto como Doc. n.º 1).
7. O Requerido assumiu, entre outras obrigações, a de pagar à Requerente os alugueres contratados e respectivo valor residual, em caso de aquisição do veículo (Cfr. Cláusulas 5.ª e 11.ª das Condições Gerais do contrato junto como Doc. n.º 1).
8. Não obstante se ter obrigado a tais pagamentos, o Requerido não efectuou o pagamento dos seguintes alugueres:
DATA DE VENCIMENTO VALOR
20.01.2014 € 937,44
20.02.2014 € 940,19
20.03.2014 € 940,52
20.04.2014 € 940,52
20.05.2014 € 940,78
20.06.2014 € 941,46
20.07.2014 € 941,65
20.08.2014 € 938,27
20.09.2014 € 936,47
9. Em 8 de Setembro de 2014, a Requerente enviou uma carta registada com aviso de recepção ao Requerido, interpelando-a para o cumprimento pontual das obrigações contratualmente assumidas e concedendo o prazo de 15 (quinze) dias para a regularização dos valores em dívida e com a indicação das respectivas consequências, designadamente a obrigação de proceder à imediata devolução do veículo automóvel objecto do mesmo.
10. O Requerido não procedeu ao levantamento da mesma, não tendo efectuado o pagamento necessário para colocar fim à sua mora, nem tendo procedido à restituição da viatura.
11. O Requerido não recepcionou tal comunicação (AR com nota de “não atendeu”).
12. Nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 da aludida Cláusula 14.ª das Condições Gerais do contrato junto como Doc. n.º 1, resolvido que seja o contrato, deveria o Requerido:
a) Restituir imediatamente o veículo dado em locação em perfeito estado de conservação;
b) Pagar à Requerente todas as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos respectivos juros de mora;
c) Pagar à Requerente uma indemnização por força do incumprimento do contrato e mencionada na referida Cláusula.
13. Até à presente data o Requerido não cumpriu com as obrigações referidas em 12.º destes factos indiciariamente provados.
14. O Requerido não procedeu à entrega da viatura portadora da matrícula (...) e dos respectivos documentos,
15. O Requerido manter-se ilegitimamente a usar e fruir da viatura locada pela Requerente,
16. Apesar das inúmeras tentativas que a Requerente levou a cabo para conseguir recuperar a viatura,
17. Tal conduta ofende o direito de propriedade da Requerente, nomeadamente a possibilidade de esta gozar, fruir e dispor da mesma.
18. A utilização da viatura a deprecia e o mero decurso do tempo determina também a sua desvalorização,
19. Existe ainda o risco de, com o facto de se encontrar a viatura em circulação, poder a Requerente vir a ser responsável pelo risco em qualquer acidente do qual resulte responsabilidade civil,
20. Tanto mais que não pode a Requerente assegurar a existência de quaisquer seguros automóveis subscritos pelo Requerido.
21. Sobre o veículo supra mencionado não estão averbados quaisquer ónus ou encargos.
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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[2]:
Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
1ª – O regime do art.º 21º do DL n.º 149/95, de 24.06 deverá ser aplicável ao contrato de aluguer de longa duração celebrado entre as partes, pelo que não teria a recorrente que fazer prova (sumária) do periculum in mora, mas apenas dos requisitos previstos no referido normativo?
2ª – Mesmo que se considere que tal regime não é aplicável ao caso em apreço, sempre se teria de concluir pelo preenchimento do requisito de verificação de uma situação de periculum in mora, justificando-se o decretamento da providência cautelar, tendo assim sido violado o disposto no nº 1 do artigo 362º?
Vejamos.
2.1. Aplicabilidade do art.º 21º do DL 149/95 ao contrato de aluguer de longa duração
A recorrente considera que a decisão recorrida fez errada aplicação do direito ao concluir e decidir que o contrato celebrado entre as partes não beneficiaria do regime do DL 149/95.
Renovando a tese já constante da p.i., argumenta que o contrato de aluguer de longa duração celebrado entre as partes, vulgarmente designado contrato de ALD, apresenta grandes afinidades com a locação financeira, sendo pois um contrato similar a este e, não tendo um regime jurídico próprio, deve entender-se que lhe são subsidiariamente aplicáveis as regras próprias do contrato de locação financeira, dada a proximidade entre os dois tipos contratuais, até porque, segundo doutrina que invoca, “parece haver uma essencial homogeneidade jurídico-estrutural entre as duas figuras”.
Ponderada a argumentação da apelante, não cremos que lhe assista razão, neste aspecto.
Não que coloquemos em causa as considerações tecidas sobre a afinidade ou similitude entre o contrato de ALD e o contrato de locação financeira, quando é estipulado naquele o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, funcionando então também como contratos de crédito e não meros contratos de aluguer e, nessa medida, também não questionando a jurisprudência do STJ, constante do Ac. de 25.10.2011 (relator Alves Velho)[3], citada pela recorrente na conclusão D) das alegações. Muito pelo contrário não temos dúvidas em aderir a esta jurisprudência, nos termos da qual «o denominado “contrato de aluguer de longa duração (ALD)” configura um contrato atípico, integrado por estipulações dos contraentes no exercício da liberdade e autonomia contratual, que se caracteriza pela revelação de afinidades com o contrato de locação financeira, integrando-se sob os aspectos económico-financeiro e funcional no campo dos contratos de crédito ao consumo ou operações similares».
Afigura-se-nos que situam-se também neste patamar, da afinidade de regimes substantivos entre estas duas figuras jurídicas, as considerações atribuídas pela recorrente, nas suas alegações (pág. 7), ao Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 07.02.2013, o qual porém não indica onde se encontra publicado e, nessa medida, não foi possível consultar.
Mas desse plano, do direito substantivo, sobre a afinidade, similitude ou homogeneidade jurídico-estrutural dos regimes jurídicos do contrato atípico de ALD e de locação financeira, não pode, salvo melhor opinião, extrapolar-se para a aplicabilidade da providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 – diploma que prevê o regime jurídico da locação financeira – ao contrato de ALD.
Por isso não acompanhamos o Ac. do TRÉvora de 08.03.2007 (relator Eduardo Tenazinha), invocado pela recorrente na conclusão E) das suas alegações, até porque no mesmo se parte de um pressuposto, o de que o objecto do contrato invocado era susceptível de locação financeira, para a partir daí basear toda a fundamentação no regime jurídico do contrato de locação financeira. Quando não é esse facto – o objecto, veículo automóvel, poder ser objecto de qualquer dos contratos, ALD e locação financeira – que determina o regime processual aplicável, antes deve tal regime processual ser determinado em face do direito que se pretende fazer valer e do regime jurídico modelador do contrato celebrado entre as partes.
Com efeito, vigora em termos de direito processual um princípio de legalidade, nos termos do qual o direito de acesso aos tribunais e a realização do direito subjectivo deve efectuar-se através da “acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção” cfr. art 2º nº 2.
Assim, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para “acautelar o efeito útil da acção”, quando está em causa o exercício dos direitos conferidos no âmbito de um contrato de ALD, não é possível o recurso à providência cautelar prevista no art.º 21º do DL 149/95 para o contrato de locação financeira.
Com efeito, nesta matéria, se o propósito do legislador fosse o de permitir aos contraentes do contrato de ALD poderem usar do procedimento cautelar que está consagrado para o contrato de locação financeira, não teria deixado de consagrar esse propósito, ou alterando o DL 149/95 ou alterando o regime jurídico da actividade de aluguer de veículos de passageiros sem condutor. Mas não o tem feito, apesar das sucessivas alterações ao referido DL 149/95 e de, ainda recentemente, ter revogado o regime jurídico desta actividade de aluguer de veículos sem condutor, que estava consagrado no DL 354/86 de 26.10 (com sucessivas alterações posteriores) consagrando um novo regime dessa actividade no DL 181/2012 de 06.08, não pode deixar de se concluir que não é esse o propósito do legislador. Aliás, se dúvidas existissem, elas eram dissipadas por este último diploma pois nele o legislador expressamente excluiu a sua aplicabilidade aos “contratos de prestação de serviços de aluguer de longa duração, também designados de ALD ou renting” (cfr. art.º 1º nº 2 al. c) do citado DL 181/2012.
Nesta medida, não existindo um procedimento cautelar típico especialmente previsto para a requerente acautelar o efeito útil da acção, em que visa fazer valer o seu direito emergente de um contrato de ALD, deve concluir-se que a forma ou via processual adequada é o procedimento cautelar comum, previsto no art.º 362º e segs, pelo que improcedem as conclusões A) a I) das alegações da recorrente, sendo negativa a resposta à primeira questão supra equacionada.
* 2.2. Preenchimento do requisito do periculum in mora, violação do art.º 362º nº 1 e consequências
A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida porquanto considera que logrou provar a existência de uma situação de periculum in mora, nos termos exigidos pelo art.º 362º nº 1 e, nessa medida, tendo demonstrado também os demais pressupostos, deve ser decretada a providência cautelar requerida.
Na decisão recorrida, depois de se enunciarem os requisitos exigidos para o decretamento de um procedimento cautelar não especificado e de se afirmar que não restavam dúvidas sobre “a aparência do direito”, concluiu-se que não resultava do acervo documental sumariamente provado quaisquer factos que permitam concluir pelo requisito do “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito”.
Analisada a fundamentação da decisão recorrida afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que nela não foi feita a melhor aplicação do direito, ainda que não seja procedente a argumentação da apelante, que levou às conclusões Q) e R). Com efeito, os factos aí descritos, com base nos quais pretende que se conclua pelo periculum in mora, não foram alegados no requerimento inicial e, consequentemente, não podiam ter sido tomados em consideração na decisão recorrida. Aliás, alguns desses factos, como a sentença de declaração de insolvência do requerido, até são posteriores à decisão recorrida, pois tal sentença foi proferida no dia seguinte à decisão recorrida.
Ressalve-se no entanto, quanto à fundamentação desta decisão, que embora assertivo o considerando dela constante quando aí se refere que “o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora) tem que provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada, regida por critérios de objectividade e de normalidade, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou meros receios subjectivos”, a verdade é que a aplicação concreta desta argumentação ao caso sub judicio não foi a correcta.
Na verdade, considerando que vem provado que o requerido não procede ao pagamento das prestações mensais do contrato desde Janeiro de 2014, não recebe a correspondência da requerente e apesar do contrato ter sido resolvido pela requerente não procedeu à entrega do veículo àquela, como era seu dever contratual, além de que se mantém a usar e fruir da viatura automóvel e a requerente não consegue recuperá-la, apesar das tentativas para o efeito, acrescendo que a utilização da viatura deprecia-a, assim como o mero decurso do tempo a desvaloriza (cfr. nºs 8 e 14 a 18 da fundamentação de facto), não temos dúvidas em concluir que não estamos perante meros receios subjectivos, mas antes perante um fundado receio de lesão efectiva ao direito de propriedade da requerente sobre o veículo automóvel.
E é isso que está em causa e se nos afigura que não foi devidamente valorado na decisão recorrida porquanto não interessa, como ali se argumenta, que o requerido possa vir a ser responsabilizado e tenha de vir a reparar os danos que o veículo apresente e sejam da sua responsabilidade ou venha a ter que pagar uma indemnização, no caso de não restituição do veículo. O que interessa e é relevante, para aferir do fundando receio de lesão grave e dificilmente reparável, é poder ser afectado o actual direito de propriedade da requerente. Claro que as consequências daquela eventual acção do requerido “serão meramente patrimoniais” como se invoca na decisão recorrida. Mas então, levando ao limite esse raciocínio, de que os danos “serão ressarcíveis por via de uma adequada indemnização em dinheiro”, teríamos de concluir que só quando estivessem em causa bens eminentemente pessoais é que poderia ocorrer o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável e mesmo aí poderia objectar-se que também tais danos serão indemnizáveis.
Ressalve-se que, quando acima dissemos que este enfoque da questão “não foi devidamente valorado” na decisão recorrida, não desconhecemos que não há nesta matéria unanimismo jurisprudencial e que tal decisão está acompanhada de decisões dos Tribunais superiores, que aliás cita. Embora, como a recorrente alega, uma outra visão tem tido também acolhimento na jurisprudência.
Situamo-nos efectivamente nesta última, da qual constitui um bom exemplo o Ac. deste TRLisboa de 18.11.2010 (relatora Teresa Prazeres Pais)[4], quando nele se considera que “o periculum in mora tem que ser analisado e apreciado relativamente ao direito que é invocado pelo requerente, e não já em relação a qualquer outro direito que daquele seja sucedâneo ou substitutivo, como o direito à indemnização pelos prejuízos daí decorrentes”.
Também o argumento constante da decisão recorrida de que, no caso, não há “urgência” para justificar a tutela provisória de um direito, como é pressuposto necessário dos procedimentos cautelares, ou aquela urgência não é de tal maneira grande que não possa esperar pela “natural demora da acção”, não se nos afigura correcto.
Na verdade, o que é de esperar, em termos de experiência comum de vida, do requerente em relação à viatura? Que a conserve, nomeadamente através das revisões mecânicas necessárias e proceda ao pagamento do seguro inerente e necessário à sua circulação, já para não falar dos cuidados do dia-a-dia? Ou que, pelo contrário, não se preocupe com esses aspectos, uma vez que deixou de pagar o aluguer mensal da viatura, o contrato foi resolvido e não poderá assim exercer o direito de aquisição da viatura? Não temos dúvidas em concluir que, em termos de experiência comum de vida, a resposta afirmativa é para esta última questão. Daqui decorre, necessariamente, que quanto mais tempo o requerido tiver a viatura na sua posse, maior é o risco de o veículo se estragar e, consequentemente, o direito da requerente à propriedade do veículo poder ser irremediavelmente colocado em causa, podendo até extinguir-se tal direito, pelo perecimento da viatura.
Com efeito, como se argumenta no citado Ac. de 18.11.2010 do TRLisboa, “a utilização do veículo por parte da Requerida até à decisão da acção determina, só por si, … o risco de a Requerente ficar privada, total e definitivamente, do seu direito de propriedade e das utilidades que ao mesmo são inerentes”.
Não podemos deixar de considerar que nem sequer se trata apenas de um direito à restituição do veículo e, muito menos, de essa não restituição poder ser substituída por uma obrigação de indemnizar. Não pode perder-se de vista que trata-se do direito da requerente “de não ver inutilizada a sua propriedade, cujos direitos de uso, fruição e disposição lhe pertencem em exclusivo e, por consequência, poder frui-la”, conforme bem se salienta no referido aresto de 18.11.2010.
À luz deste enquadramento normativo e respectiva teleologia não pode subsistir o entendimento sustentado pelo tribunal "a quo", quanto ao não preenchimento do pressuposto de fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora), procedendo assim as razões que enformam a reacção da recorrente, condensadas nas conclusões J) a O).
Por outro lado, não havendo dúvidas do preenchimento do pressuposto inicial, a probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente, na sequência do contrato de ALD celebrado e da resolução do mesmo, por incumprimento do requerido, assim como dos demais requisitos exigidos pelo art.º 362º nº 1, ou seja, a adequação da providência solicitada a fazer cessar o perigo de lesão do direito, assim como a não aplicabilidade de qualquer uma das providências especificadas e, finalmente, o prejuízo resultante da providência não exceder o dano que com ela se quer evitar, é de concluir pela procedência das pretensões da requerente.
Impõe-se assim responder positivamente à segunda questão supra equacionada e revogar a decisão recorrida, julgando procedente o pedido formulado pela requerente em alternativa, incluindo quanto à inversão do ónus do contencioso, pois se verificam os requisitos exigidos pelo art.º 369º, na medida em que a requerente formulou a sua pretensão logo na p.i. e pode considerar-se segura a convicção do tribunal acerca da existência do direito acautelado, a validade da resolução do contrato de aluguer de longa duração, pela conversão da mora em incumprimento definitivo, assim como o reconhecimento do direito de propriedade da requerente sobre a viatura em causa.
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III- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e decretam a providência cautelar requerida determinando: a apreensão imediata do veículo automóvel com a matrícula (...) e respectivos documentos, entregando-se os mesmos à requerente; a comunicação às autoridades policiais para efectiva e imediata apreensão do aludido veículo, ainda que o mesmo se encontre em circulação; se oficie às autoridades policiais no sentido de inserirem a matrícula (...) na base nacional de dados de viaturas a apreender.
Mais se decide deferir o requerimento da requerente, no sentido de a dispensar do ónus de propositura da acção principal.
Custas da providência cautelar e do recurso a cargo do requerido – cfr. art.º 527º nº 1.
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Lisboa, 26/2/2015
(António Martins)
(Maria Teresa Soares)
(Maria de Deus Correia)
[1] Proc. nº 1617/14.1T8SNT da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra – Instância Local – Secção Cível – J3 [2] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos, por força do disposto no art.º 8º da referida lei, dado que a presente providência foi interposta em 13.10.2014, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação. [3]Proferido no processo 1320/08.1YXLSB.L1.S1 e acessível em www.dgsi.pt [4] Proferido no processo 339/10.7TBSSB.L1-8, acessível em www.dgsi.pt