SEGURADORA
QUITAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
ESTACIONAMENTO
DESPESAS
Sumário

I - Tem sido pacífico nas diversas instâncias, o entendimento, perante recibos semelhantes ao dos autos – em que o lesado se considera integralmente ressarcido de todos os danos emergentes de um sinistro, declarando que a seguradora não têm qualquer outra obrigação a cumprir relativamente ao mesmo - de que, não sendo alegados e provados vícios na formação da vontade, a declaração neles inserta por parte se deve ter como válida e ter eficácia extintiva relativamente a quaisquer deveres de ressarcimento para além daquele(s) a que respeita especificamente a quitação.
II - As declarações em causa, embora o respectivo texto seja previamente elaborado pela seguradora, não constituem cláusula contratual geral por lhes faltar a impossibilidade de negociação, pois se o lesado se acha com direito a ser ressarcido por outros danos que já conhece e de cuja indemnização não pretende prescindir, não a deve assinar, ou deverá fazê-lo com restrições ou reservas.
III- Na situação dos autos, porém, não se lhe deve conferir eficácia extintiva relativamente ao dano de parqueamento do motociclo não reparado cuja indemnização o autor pede na acção, na medida em que foi assinada pelo seu mandatário e os poderes deste não iam além do objecto de acção anterior em que tal dano não estava em causa.
IV - Entende-se ser caso de reduzir a metade a indemnização devida pelo parqueamento, ao abrigo do disposto no art 494º CC, por um lado porque a seguradora só teve conhecimento da existência de tal dano sete anos depois do sinistro e por isso não pôde calcular o risco da acção, e por outro, porque o decurso desse tempo sem que o autor demandasse a seguradora em função desse dano, denuncia claramente a complacência do concessionário quanto ao custeio do mesmo.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:

I – A., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a Companhia de Seguros S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe indemnização no montante de € 65.800,00, acrescida de IVA, e ainda a quantia diária de € 17,50, mais IVA, desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento, bem como os juros de mora devidos a contar da citação.
Alegou que é dono do motociclo 92-81-JB, o qual sofreu um acidente no ano 2000 da integral responsabilidade de segurado da R.. Como esta não aceitou a responsabilidade, o motociclo ficou por reparar sendo que, apenas em 2009, na sequência de condenação judicial lhe entregou a quantia em que foi nessa acção condenada. O A. procedeu então à reparação do motociclo mas a oficina onde o mesmo esteve parqueado durante 9 anos não autoriza o respectivo levantamento enquanto não lhe for paga a sua guarda durante aquele tempo, o que importava, à data da propositura da acção, em 65.800,00 €, acrescidos de IVA, sendo devidos € 17, 50, mais IVA, por cada dia de recolha.

A R. contestou, arguindo a excepção da prescrição e do caso julgado material relativo aos danos materiais, bem como excepção de pagamento, invocando a este nível que o mesmo foi feito ao Ilustre Mandatário do A. contra recibo de quitação plena e sem reserva, por todos os danos sofridos, como nele ficou exarado, pelo que se encontra extinta por pagamento liberatório toda e qualquer responsabilidade relativamente ao acidente sofrido pelo A..  Em sede de impugnação, alega que o veículo era irreparável, constituindo uma perda total e que o valor venal do veiculo foi peticionado e pago ao A., o que se mostra incompatível com a sua guarda e reparação. Acresce que o suposto valor da reparação não a tornaria viável, dado que era equivalente ao preço do veiculo novo à data do evento, sendo aquela no valor de 1.260.444$00 e este no de 1.380.000$00.

O A. replicou referindo relativamente à quitação que a mesma é nula porque não foi ele que a deu mas o seu advogado e que não ratifica a gestão do mesmo, mas que, de todo o modo, o impresso a ela relativo enferma de ilegalidade, sendo a cláusula aí constante nula nos termos das proibições que incidem sobe as cláusulas contratuais gerais. Quanto às demais excepções refere que o pedido formulado na acção é autónomo e diferente do pedido já julgado, motivo pelo qual o tribunal da 1ª instância não aceitou a ampliação do pedido. Põe ainda em relevo que a decisão proferida  não indemnizou o preço do veiculo por perda total, mas acautelou o ressarcimento do preço da reparação.

Teve lugar audiência preliminar, na qual foi decidida a procedência da excepção da prescrição invocada pela R., sendo esta absolvida do pedido.

Na sequência de recurso interposto pelo A. dessa decisão, a excepção de prescrição foi julgada improcedente por acórdão deste Tribunal da Relação.

Na 1ª instância foi então seleccionada a matéria de facto e, tendo tido lugar o julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a acção, condenando a R. a pagar ao A. indemnização no montante de € 65.800,00 acrescida de IVA e de juros a contar da citação, bem como a quantia diária de € 17,50, mais IVA, desde então e até efectivo e integral pagamento.

II – Do assim decidido apelou a R., tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:
1. A Recorrente não se conforma com a sentença proferida que a condenou a pagar ao Autor/Recorrido uma indemnização no montante de 65.800,00 €, acrescido de IVA e juros de mora a contar da citação, bem como a quantia diária de 17,50 €, mais IVA, desde então até ao integral e efectivo pagamento, que corresponde ao valor cobrado a título de parqueamento pela oficina onde o motociclo do A. se encontra há mais de 9 anos.
2. A R. entende que tal sentença padece de diversos vícios, nomeadamente, de nulidade, violação de normas jurídicas e de erro na determinação das normas jurídicas aplicadas, que de seguida se indicam com o sentido em que deviam ter sido interpretadas e aplicadas.
3. A sentença é nula nos termos do art. 615º, nº 1, alíneas b) e d) do CPC;
4. O que sucede dado que a sentença não procede à especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão - violando ainda o disposto no art. 607º, nº 3 e 4 do CPC, no que toca à indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, bem como não declara quais os factos que julga não provados, nem faz a devida análise critica das provas, etc..; como também não se pronuncia sobre todas as questões que devia apreciar - violando os arts. 607º, nº 2, e 608º, nº 2, do CPC -, nomeadamente sobre a questão colocada - por excepção - pela R. nos arts. 15º a 17º, 18º/ nº 4 e 5, 19º/nº 3, e 20º/nº 3 e 4 da sua contestação, relativa à invocada " extinção do direito do A., por
pagamento liberatório dos danos materiais resultantes do acidente, com quitação plena, sem reservas, e com renuncia expressa a quaisquer outros direitos, dada pelo A. à Ré" após o pagamento indemnizatório feito por esta.
5. Conforme resulta dos Factos Provados com os nºs 15 e 16, a R. pagou ao A. as indemnizações arbitradas e juros, no montante global de 404.477,84 €, pelo que o A. foi integralmente ressarcido dos danos materiais e morais sofridos em consequência do acidente ocorrido em 28.01.2000.
6. Tal pagamento foi feito, através do Ilustre Mandatário do A., contra recibo de quitação plena e sem reserva, por todos os danos sofridos, como nele ficou exarado (docs. 4 e 5), constando (Facto Provado nº 16) que “o A. se considera integralmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais passados, presentes e futuros, emergentes do sinistro em referência e, consequentemente, declara que tanto a Companhia de Seguros Tranquilidade como todas as pessoas cuja responsabilidade esteja a coberto do contrato de seguro titulado pela apólice em referência (Apólice 4101061547) não têm qualquer outra obrigação civil a cumprir em relação a este sinistro”.
7. Encontra-se, portanto, extinta pelo pagamento liberatório toda e qualquer responsabilidade imputável à R. relativamente ao acidente sofrido pelo A. – de  acordo com os artºs. 498º, 762º, 763º, 784º e 786º do Cod. Civil e 493º, nº. 3, 497º, nº. 1, 671º e seguintes, do Cod. de Proc. Civil;
8. Que, em consequência, declarou expressamente - na quitação da indemnização que lhe foi paga pela R. - renunciar a quaisquer outros direitos, de acordo com o disposto no art. 800º, nº 2, do Código Civil, o que assim constitui numa "Exclusão convencional de qualquer outra responsabilidade da Ré", obstando a que o presente pedido do A. possa ser considerado procedente.
9. Não existe relativamente ao elevadíssimo e desproporcionado custo do parqueamento do motociclo na oficina (ao contrário do que aconteceria com a sua reparação, se viável) qualquer nexo de causalidade com o acidente de que o segurado na R. foi considerado responsável, pelo que, faltando este requisito da responsabilidade civil, tal dano não pode ser imputado à R. e por esta indemnizado, cfr. arts. 483º e 563º do C. Civil, que como tal foram violados pela sentença proferida.
10. A R. pagou ao A. uma indemnização de 404.477,84 € (cfr. Facto Provado nº 15), à à data em que a oficina apresentou a conta relativa à reparação e parqueamento do motociclo, o A. tinha (e tem) a disponibilidade financeira necessária para liquidar de imediato e integralmente a conta da oficina, que à data era bastante inferior ao valor ora pedido, impedindo desta forma o gradual aumento do valor de parque.
11. Assim, a opção, que coube única e exclusivamente ao A., em manter o motociclo parqueado na oficina, com o consequente acumular do valor de parque, constitui uma atitude de manifesto Abuso de Direito da sua parte, ao exceder completamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico do direito em causa, com o intuito claro de prejudicar a R. com um custo acrescido e desnecessário e mesmo, quiçá, em proveito próprio
12. Ou seja, direito aqui exercido pelo A. é manifestamente ilegítimo, por constituir um manifesto Abuso de Direito que, de acordo com o art. 334º, obsta ao exercício do direito ora peticionado pelo Autor.
13. De resto, o motociclo, cujo valor foi pago, não era recuperável, constituindo uma perda total.
14. A pretensão do A., é baseada não em responsabilidade civil delitual ou aquiliana, mas meramente contratual entre A. e garagem, assente apenas numa opção daquele, sem qualquer razão lógica.
15. O suposto valor da reparação não tornaria esta viável, dado que era equivalente ao preço de veículo novo à data do evento (segundo o orçamento junto pelo A. o custo da reparação – 1.260.444$00 – seria praticamente o do valor do veículo novo – 1.380.000$00, o que tornaria absurda a realização daquela);
16. Como dispõe o artº. 20º-1, do DL 82/2008, de 3 de Maio – desconsiderado pela sentença recorrida - um veículo sinistrado considera-se em perda total, na qual a obrigação de reparação é cumprida em dinheiro e não através da reparação, quando o valor estimado para a reparação, adicionando a dos salvados, ultrapassa 100% do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro.
17. Não pode assim aceitar-se que um veículo irreparável fosse reparado passados dez anos do acidente que o danificou e tão pouco se pode aceitar que o veículo do A. possa ter sido reparado sem que o custo da reparação não cobrisse o da recolha, objecto de retenção do depositário.
18. Ainda que, porventura, assim não se considere, sempre deve a indemnização ser reduzida nos termos do art. 494º do C. Civil.
19. Acrescenta-se igualmente que, ao contrário do que é afirmado na sentença ora recorrida, a responsabilidade atribuída ao segurado na R. não foi com base na sua culpa exclusiva, mas sim pelo risco e no âmbito dos arts. 506º ou 570º do C. Civil, pelo que, sendo considerada procedente a indemnização ora peticionado pelo A., a mesma deve ser reduzida na medida da proporção do risco atribuída no Acórdão do STJ ao veículo do segurado na R. pela sua contribuição para os danos verificados.
20. Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, consequentemente, alterar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que Absolva a Ré/Recorrente do pedido formulado pelo Autor/Recorrido.

O A. apresentou contra alegações, nelas sustentando a manutenção do decidido.

O Exmo Juiz a quo, em face da arguição de nulidades da sentença pela R apelante, referiu ter «a sentença seguido e cumprido o disposto no art 659º/2 e 3 do CPC/61 na sua última versão, como devia»; elencou como «normas jurídicas que interessam à única questão decidenda relativa à responsabilidade pela recolha do veículo até á reparação», as dos arts 562º a 564º e 566º CC; e quanto à nulidade por omissão de pronúncia, referente à extinção do direito do A. por pagamento liberatório dos danos materiais resultantes do acidente, colmatou tal nulidade, nos termos que adiante se mencionarão.
 
III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. O autor é dono do veículo de marca Honda, modelo CBR 600 de matrícula 92-81-JB, registado em seu nome na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa (A).
2. A Ré é uma empresa seguradora que no âmbito da sua atividade se comprometeu, mediante a apólice 1081547, a cobrir as indemnizações rodoviárias arbitradas contra o dono (e segurado) do veículo automóvel matricula OG-08-10 (B).
3. Os dois veículos chocaram no dia 28-01-2000, na Avenida Arlindo Vicente, em Lisboa, com a frente lateral direita do Renault matrícula OG-08-10, contra a frente do motociclo de matrícula 92-81-JB (C).
4. A responsabilidade pelos danos decorrentes do sinistro foi definida por sentença transitada do processo em tribunal, com base na culpa exclusiva do condutor do veículo Renault (D).
5. No âmbito do processo n.º 302/00.6SILSB do 4.º Juízo Criminal de Lisboa, 1.ª Secção (E).
6. Esta sentença versou apenas sobre as avarias e estragos no veículo JB, decorrentes do embate acima referido; e sobre os danos de saúde do autor, que o conduzia na ocasião (F).
7. Em consequência do acidente, o A. intentou, em 23.11.2001 um pedido cível de indemnização contra a contestante, deduzido no 1.º Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, 1ª Secção, Proc. Nº. 302/00.6 SILSB (G).
8. Em tal ação, o A. pediu expressamente o pagamento dos danos sofridos no seu motociclo, estimados em 1.200.000$00 (H).
9. No decurso dos autos o A. veio, em 21.05.07, ampliar o pedido em 66.050,00 €, invocando o custo de armazenagem do veículo, estimado em 3.500$00 + IVA/dia (I).
10. No requerimento de ampliação do pedido, o agora A. reconheceu não ser economicamente viável proceder ao arranjo do veículo e tratar-se de uma perda total (J).
11. A ampliação foi indeferida, nos termos do art. 272 do CPC (K).
12. Em 5.07.2007 foi proferida sentença, julgando na parte que interessa aos presentes autos, procedente o pedido relativo aos danos materiais, incluindo os do motociclo, condenando a Ré no pagamento de 6.400.000$00 ou 31.923,07 € no que a estes concerne, isto num total de 289.153,84 € (L).
13. A decisão foi recorrida para o Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. 58/08.3) que considerou não provados os danos materiais cujo valor não fora determinado, mantendo o relativo ao motociclo – Acórdão de 28.01.2009 (M).
14. Finalmente, no STJ, no Acórdão de 14.05.2009, Proc. 271/09 – 3ª Secção, manteve-se a decisão quanto aos danos materiais, apenas se reduzindo o montante global atribuído pelo Tribunal da Relação (N).
15. A Ré, em cumprimento do decidido, pagou ao A. as indemnizações arbitradas e juros, no montante global de 404.477,84 €, tal como pagou aos Hospitais Civis de Lisboa, no âmbito do pedido formulado no Proc. 115/03.3TVLSB, da 10ª Vara, 1ª Secção, emergente da assistência prestada ao A. em consequência do acidente, o custo desta (O).
16. Consta do título de quitação que “o A. se considera integralmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais passados, presentes e futuros, emergentes do sinistro em referência e, consequentemente, declara que tanto a Companhia de Seguros … como todas as pessoas cuja responsabilidade esteja a coberto do contrato de seguro titulado pela apólice em referência (Apólice 4101061547) não têm qualquer outra obrigação civil a cumprir em relação a este sinistro” (P).
17. Entretanto, o motociclo JB ficou sem poder circular: danos avultados como o empeno do chassis e o bloqueio da roda da frente entre outros (Q).
18. Por isso mesmo este veículo teve de ser rebocado e ficou a permanecer em recinto da J. , concessionário da marca Honda, que passou a prevenir a guarda e recolha do motociclo desde 1 de fevereiro de 2000 (R).
19. A Ré apenas disponibilizou ao A. o montante da indemnização referente ao motociclo em dezembro de 2009 (S).
20. A reparação iniciou-se a partir de dezembro de 2009 e demorou cerca de 3 semanas (1.º)
21. Entretanto o preço da recolha até aqui montou a 65.800 € (sessenta e cinco mil e oitocentos euros) + iva (2.º).
22. O concessionário Honda exige o pagamento para libertar o veículo parado (3.º).
23. O valor da reparação segundo o orçamento junto pelo A. era de 1.260.444$00 (5.º).
24. O A. conhecia o valor da reparação segundo o orçamento por si junto (7.º).

IV – Das conclusões das alegações resultam para apreciação neste recurso, constituindo o respectivo objecto, as questões de saber:
- se a sentença é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e por omissão de pronúncia, no que a esta nulidade respeita por não ter apreciado a questão da extinção do direito do A. em função da quitação plena sem reservas e com renúncia expressa a quaisquer outros direitos dada pelo A.;
- na não verificação dessa nulidade, importa saber se à referida quitação pode ser dada a eficácia pretendida pela R: a extinção de toda e qualquer responsabilidade que lhe seja imputável relativamente ao acidente sofrido pelo A;
- Não ocorrendo a pretendida eficácia extintiva, saber se há responsabilidade da R. quanto à indemnização do dano do parqueamento e na afirmativa se essa indemnização deverá ser reduzida nos termos do art 494º CC, ou pelo menos, nos termos da proporção do risco consoante sentenciado no Tribunal Criminal.

Antes de se iniciar a apreciação das evidenciadas questões – e desde já a propósito desta última - entende-se pertinente explicitar alguns dos factos dados como provados no processo criminal que correu termos na 4ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, bem como a abrangência da decisão do pedido cível enxertado nesse processo e referenciar cronologicamente os acontecimentos processuais relevantes.
 
A presente acção foi interposta em 2/6/2010.
O acidente a que se reportam os autos ocorreu em 28/1/2000.
Tendo tido lugar a instauração de processo crime relativamente à condutora do veículo seguro na aqui R., que correu termos no 4º Juízo Criminal de Lisboa 1ª Secção no âmbito do processo nº 302/006SILSB, o aqui A. constituiu-se nele assistente deduzindo pedido cível, fazendo-o em 23/11/2001.
Na dedução desse pedido, os únicos  danos patrimoniais que invocou no respeitante ao motociclo acidentado foi o de Esc 1.200.000$00 referente à «reparação com o motociclo acima melhor identificado (estimativa)» ( cfr art 41º/a)).
Porém, em 21/5/2007, por requerimento correspondente ao aqui junto a fls 90 dos autos, o A. requereu a ampliação do pedido cível, referindo: «2. Alegou-se que o orçamento do arranjo do motociclo seriam 1.200.000$00; 3. Sabe-se agora volvidos sete anos que não é economicamente viável proceder ao arranjo do motociclo; trata-se de uma perda total; 4. Neste sentido, o assistente terá direito à reconstituição da situação  antes do acidente, isto é,  pelo que como não tem capacidade agora  para conduzir uma mota, requer o valor correspondente e actual  de um motociclo igual, isto é o preço do veiculo actual,  9.800 €; 5. Por outro lado, o motociclo está a ocupar espaço de trabalho desde 10/2/2000, no concessionário H. Saraiva (Honda) sem que a demandada Companhia de Seguros  tenha saldado qualquer quantia por este facto; 6. É responsável a demandada pelo pagamento das despesas do motociclo de 2.940 dias à taxa diária de 17,5 € mais IVA, totalizando até hoje a quantia de 62.254 €; 7. Cujo montante continuará a aumentar até o motociclo ser levantado pela demandada companhia de Seguros  (…)»

No dia 6/6/2007, no início da audiência de julgamento do processo crime, foi proferido despacho indeferindo a ampliação do pedido, por se ter entendido que as despesas de armazenamento não representavam um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, mas uma sua alteração.

Na sentença proferida em 1ª instância- em que a referida condutora foi absolvida do crime que lhe era imputado – foi dado como provado – facto 25 – que «no seguimento do embate, o motociclo sofreu diversos prejuízos cuja reparação foi orçamentada em Esc 1.200.000$00». Tendo sido entendido «não se ter provado a culpa de nenhum dos condutores, e considerando que o embate se deu entre um veículo automóvel ligeiro e um motociclo», fixou-se proporção de responsabilidade em 60% para o veiculo e 40% para o motociclo. A R. foi condenada em 60% da indemnização total dos danos patrimoniais e não patrimoniais, tendo sido incluídos naqueles os referidos Esc 1.200.000$00 destinados à reparação do motociclo.

Só houve recurso – quer do A., quer da R. – relativamente à parte cível.

No Tribunal da Relação foi alterado o juízo sobre a culpa, tendo sido entendido que a culpa exclusiva pelo acidente cabia à condutora do veiculo seguro na R.. E no valor referente aos danos patrimoniais em que se decidiu condenar a R. abrangeram-se os referidos 1.200.000$00 destinados à reparação do motociclo.

O referido juízo de culpa foi mantido no Supremo e igualmente a quantia que a R foi condenada a pagar ao A. abrangeu os referidos 1.200.000$00.
O acórdão do STJ data de 14/5/2009.
Transitada em julgado esta decisão e consoante resulta dos documentos que a R. juntou com a fls 179, o Exmo Mandatário do aqui A. no processo crime – que é também seu mandatário neste processo - dirigindo-se ao Exmo Advogado S. P.,  solicitou-lhe que, «com vista à emissão do cheque por parte de V Excias  para pagamento da indemnização cível referente ao processo supra identificado envio-lhe o recibo legalizado e procuração certificada com poderes para o acto  (…)» – fls 190

A procuração que enviou – extraída do processo crime, como resulta da certidão que a acompanha - está datada de 19/2/2007 e nela o aqui A. conferiu ao referido mandatário, «com os de substabelecer os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos, incluindo os de receber custas de parte, indemnizações, transigir e desistir».

O recibo em causa, datado de 12/11/2009, mostra-se assinado pelo Exmo mandatário do A., nele se referindo, como titular da indemnização, A. e dizendo-se: «O A. considera-se integralmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais passados, presentes e futuros, emergentes do sinistro em referência e, consequentemente, declara que tanto a Companhia de Seguros como todas as pessoas cuja responsabilidade esteja a coberto do contrato de seguro titulado pela apólice em referência (Apólice 4101061547) não têm qualquer outra obrigação civil a cumprir em relação a este sinistro».

Feitas estas referências factuais, cumpre decidir:

Pretende a apelante que a sentença é nula por não ter não procedido à especificação dos fundamentos de direito que justificam a decisão, tendo ainda violado  o disposto no art. 607º/3 e 4 do CPC por não ter procedido à indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes, bem como, por não ter declarado quais os factos que julgou não provados, nem ter feito a devida análise crítica das provas.
Trata-se de uma nulidade improcedente, como o salientou o Exmo Juiz a quo no despacho em que sobre a mesma se pronunciou.
Desde logo, porque a respectiva arguição é feita em função de exigências processuais resultantes do NCPC que lhe eram inaplicáveis à data da respectiva prolação, não fazendo, pois, sentido, à luz do ACPC, referir que a mesma não declarou os factos julgados não provados e não fez a análise critica das provas, sabido como é que no âmbito desse Código a decisão da matéria de facto era feita de forma autónoma relativamente à sentença.
Sempre se acrescentará, no entanto, que mesmo na actual estrutura da sentença, a omissão nela dos factos tidos como provados e da análise crítica da prova não implica nulidade, mas a possível utilização pelo tribunal da Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto.[1]      
No que respeita à pretendida nulidade por falta de especificação dos fundamentos de direito, não tem o apelante em consideração a circunstância de «não ser forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sus decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam»[2] . Tão pouco teve em consideração a circunstância, há muito apontada, de que esta nulidade apenas existe «quando haja absoluta falta de fundamentos, quer estes respeitem aos factos, quer ao direito», sendo que «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente  ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso».
De todo o modo, o Exmo Juiz a quo procedeu, no despacho a que aludia o nº 1 e 5 do art 670º ACPC, à indicação das normas jurídicas em que fundamentou a sua apreciação jurídica.

Já a nulidade por omissão de pronúncia relativamente à questão colocada, por excepção, pela R. na contestação, relativa à invocada «extinção do direito do A., por pagamento liberatório dos danos materiais resultantes do acidente, com quitação plena, sem reservas, e com renúncia expressa a quaisquer outros direitos, dada pelo A. à R.» se verificava, efectivamente, na sentença recorrida mas foi suprida, antes deste recurso subir, pelo Exmo Juiz a quo no já referido despacho do art 670º/1 e 2 ACPC.

 E foi suprida no sentido do respectivo indeferimento, tendo para tanto sido referido, que o recibo e título de quitação junto aos autos «foi assinado aparentemente não pelo A., mas pelo seu mandatário (…) como condição do pagamento pela R. da quantia em que tinha sido condenada em sede de processo criminal. Trata-se de uma cláusula geral, unilateral e previamente inserida pela R. no recibo, que a contraparte se limita a assinar. Qualquer interpretação dessa cláusula que vá além da quitação da quantia recebida reportada ao objecto do processo criminal em que a indemnização foi determinada é abusiva, nula, e deve ter-se por excluída da declaração. Com efeito, são absolutamente proibidas as clausulas contratuais gerais que excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros (arts 18º al b) e 20º da LCCG- DL 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas em 1995 e 1999. O objecto dos presentes autos extravasa o do processo criminal, pelo que não podia o R., de boa fé, exigir do A. que renunciasse a todos os direitos além dos que foram apreciados naquele processo».

Porque o ponto de vista da apelante é naturalmente diverso, cumpre reapreciar esta questão.

Como resulta do que acima se fez constar, ainda que sumariamente no relatório do presente acórdão, o A. na réplica respondeu à referida excepção (art 2º a 4º), referindo que «a quitação não opera, porque pura e simplesmente é nula e não foi o A. que a deu, mas o seu Advogado, e se porventura vier a ser alegada gestão de negócios, desde já a não ratifica. Aliás, nunca lhe foi comunicado nem pela R. nem pelo advogado que tivesse dado quitação nos termos em que a R. alega, isto é, quitação total por ressarcimento dos prejuízos integrais decorrentes do sinistro», acrescentando haver ilegalidade no próprio impresso de quitação, pois, (arts 6º e 7º), «trata-se de um escrito normalizado produzido por uma entidade dominante no mercado, mas em letra de tal modo diminuta para provocar desatenção. E tratando-se o escrito de quitação de uma declaração contratual, justamente acerca de nada mais haver a indemnizar, a cláusula é nula, nos termos das proibições que incidem sobre as cláusulas contratuais gerais».

Tem sido, tanto quanto se conhece, pacífico nas diversas instâncias o entendimento perante recibos semelhantes ao dos autos, de que, não sendo alegados e provados vícios na formação da vontade, a declaração neles inserta por parte dos lesados se deve ter como válida e ter eficácia extintiva relativamente a quaisquer deveres de ressarcimento para além daquele(s) a que respeita especificamente a quitação.[3]
Sendo de evidenciar que nas declarações constantes desses documentos dados a assinar ao lesado, normalmente por companhias de seguros, se devem distinguir duas diferentes declarações: uma primeira, claramente consubstanciadora de quitação [4] e meramente referente à quantia recebida; e uma outra, mais ou menos separada da anterior, que implica do lesado o reconhecimento de que nada mais lhe cabe receber daquela entidade por força do sinistro que gerou aquele ressarcimento.
Naquela primeira parte nenhum problema se põe relativamente aos documentos em referência. É na restante parte – em que o credor de uma maneira ou de outra declara ter recebido todas as prestações a que terá direito – que se colocam problemas.
Em sede de direito de trabalho esse tipo de declarações, desde que emitidas após a cessação da relação laboral - em que já não se coloca o principio da indisponibilidade dos créditos laborais por um lado, e por outro, já se não verifica qualquer constrangimento da entidade patronal relativamente ao trabalhador – são tidas pacificamente como válidas, consubstanciando remissão abdicativa nos termos do art 863º CC, «verdadeiro acordo negocial com interesse para ambas as partes» [5]

Fora do âmbito laboral, e perante a particularidade de ao contrário do que ali  sucede as mais das vezes não se encontrar definida a prestação ainda devida, o reconhecimento pelo credor de que nenhuma outra indemnização lhe cabe, consubstanciará uma renúncia do credor aos seus direitos.
Não se lhe aplicando o disposto do art 809º CC, de acordo com o qual apenas é nula a clausula pela qual o credor renuncia antecipadamente a qualquer dos direitos que lhe são facultados nas divisões anteriores nos casos de não cumprimento ou de mora do devedor – direito de pedir o cumprimento da obrigação, a indemnização pelo prejuízo, a resolução do negócio e o commodum de representação – pois que, nas declarações em referência, não há lugar a uma renúncia antecipada, como resulta da mesma se situar, por definição, após o acontecimento que constitui o sinistro.[6]
Tão pouco, e pelo mesmo motivo, aquela renúncia envolve a prévia exclusão ou limitação da responsabilidade do devedor, a que se refere o nº 2 do art 800º. [7]
Apenas a jurisprudência tem vindo – naturalmente- a ressalvar a circunstância de declarações como a que se tem em referência não poderem abranger a reparação dos danos de que o lesado só venha a tomar conhecimento após subscrever a dita declaração, porque imprevisíveis nesse momento.[8]

Por outro lado, e ao contrário do que o aqui A. refere, as declarações em causa, nem pelo facto do texto integrante da dita declaração ser previamente elaborada pela seguradora e ser normalmente igual em todos os recibos dessa mesma entidade – o que não vem alegado, mas constitui facto do conhecimento comum, extraível no caso dos autos do próprio regime de envio da mesma – se segue que esteja em causa uma cláusula contratual geral. Em qualquer caso sempre lhe faltaria o essencial, enquanto característica das cláusulas contratuais gerais - a rigidez, a impossibilidade de negociação  [9]- sobretudo quando a declaração em causa é enviada pelo correio, em que quem a subscreve tem tempo e espaço próprio para a ler e pensar com cuidado– e note-se que no caso dos autos, as letras  utilizadas na declaração são do mesmo tamanho das demais. Se o lesado se acha com direito a ser ressarcido por outros danos que já conhece  e de cuja indemnização não pretende prescindir, não deve assinar, ou deverá fazê-lo com restrições ou reservas, pois de outro modo – e fora naturalmente situações de vícios de vontade – está disposto a não ter  respeito pela «palavra dada», sendo que como o refere Quirino Sores [10] «fora o generoso propósito de amparar a parte circunstancial ou sócio economicamente mais débil, a lei exalta o cumprimento da palavra dada, não tem apreço pelos que não honram os seus compromissos». 

Do que se veio de dizer, haveria de concluir-se pela eficácia extintiva da “quitação” junta aos autos relativamente à indemnização pelo parqueamento que o aqui A. em 2/6/2010 veio reclamar na presente acção, depois que em 12/11/2009 assinara aquele documento considerando-se integralmente ressarcido e sendo manifesto – desde logo pelo requerimento de ampliação do pedido feito em 21/5/2007 no processo crime – que tinha então perfeito conhecimento daquele dano do parqueamento, bem como da respectiva aptidão para aumentar diariamente.
Sucede que não poderá assim decidir-se por se entender que o Exmo mandatário do A. – que foi quem, indiscutivelmente, assinou o documento de quitação – não tinha poderes para o efeito. 
Com efeito, a procuração que utilizou – extraída do processo crime – conferindo-lhe poderes para «receber indemnizações», e para «transigir e desistir», em rigor apenas lhe permitia receber e correspondentemente dar quitação da quantia fixada no acórdão do STJ 14/5/2009 – mas já não lhe permitia ir além do objecto da acção para a qual o A. o havia constituído mandatário. Tendo embora poderes para desistir (e transigir), esses poderes, por inerência do mandato, só poderiam exercer-se relativamente a pedidos objecto daquela acção.
E já se viu como o dano do parqueamento não está incluído no objecto daquela acção, apenas isso podendo resultar do há muito transitado indeferimento do requerimento de ampliação do pedido.
Pelo que não pode ser atribuída ao aqui A. uma declaração de quitação ampla como a que está em causa – isto é, com renúncia ao dano de parqueamento que nesta acção faz valer.

Donde se segue a improcedência da excepção arguida pela R.

Assim, que há que saber se há responsabilidade da R. quanto à indemnização do dano do parqueamento e, na afirmativa, se essa responsabilidade deverá ser reduzida nos termos do art 494º.
Já se viu que não haverá, em qualquer hipótese, de a reduzir em função da proporção do risco sentenciado no Tribunal Criminal em 1ª instância, pois que esse aspecto do decidido foi revogado, tendo ficado assente nesse processo que a culpa do acidente se ficou a dever exclusivamente à condutora do veiculo seguro na R/aqui apelante.

A primeira das objecções da apelante a respeito do dano de parqueamento prende-se com o nexo de causalidade - e pretende a sua exclusão na medida em que a decisão de manter o motociclo parqueado nessa oficina foi da inteira responsabilidade do A.
Independentemente de outras considerações em redor deste dano e das opções do A. a que adiante se fará melhor referência, não faz qualquer sentido excluir a causalidade – adequada – entre o acidente e o dano aqui em causa.
Lembre-se que «a teoria da causalidade adequada seria arbitrária no mero plano naturalístico, mas não o é no plano jurídico, onde se procura apenas averiguar quando é que é justo ou razoável que o agente responsa por determinado resultado»[11] , devendo entender-se que «um dano é, juridicamente, efeito necessário de certa conduta quando, segundo essas regras, era fortemente provável, quase certo, que tal conduta o determinaria, ou seja, quando esta se mostre causa adequada à sua produção, em vista das circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis».
O custo do parqueamento da viatura sinistrada constitui um dano indemnizável,  porque é ainda consequência directa e adequada  da necessidade da respectiva reparação que ficou por realizar e que resultou do acidente de viação [12].
 
Pretende subsequentemente a apelante que o A. - depois que dela recebeu a indemnização de 404.477,84 - ao não ter optado por pagar o parqueamento – obstando a que tal dano daí para a frente se avolumasse - se constituiu em abuso de direito.
Quererá a apelante dizer que a opção correcta, justa e ponderada por parte do A., se tivesse tido também em consideração os interesses da R., seria ordenar, como ordenou, a reparação do motociclo – pois para isso recebera o valor necessário – mas logo afectar parte da indemnização que recebera para outros efeitos ao pagamento do parqueamento até então ocasionado pela guarda do mesmo, e levanta-lo, sem prejuízo, evidentemente, de vir a reclamar dela, R., a referida despesa.
Não pode deixar de se ser sensível a este argumento,, mas não se poderá  exigir a quem esperou tanto tempo – quase 10 anos -  por uma devida indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais  - e lembre-se que o A.com o acidente, para além de outras consequências muito adversas, perdeu o baço e 70 cm do intestino delgado, fez hemodiálise durante anos e viu totalmente comprometida a actividade profissional que até então desempenhava – que se privasse, ainda que temporariamente, de parte dessa indemnização para pôr cobro a maiores gastos por parte da seguradora. Se, em última análise «é ao autor da lesão (e, consequentemente, à seguradora para quem tenha sido transferida a responsabilidade) e não ao lesado, que compete agir, e de forma diligente, para que o dano seja reparado, de modo que as implicações danosas acrescidas decorrentes do decurso do tempo correm por conta do obrigado à reparação do dano e não por conta do lesado»[13], não pode em coerência sustentar-se que o comportamento do A. que a apelante aqui censura  implicou da parte do mesmo, o exercício ilegítimo ao seu direito ao total ressarcimento, porque o mesmo haja excedido os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito- lembre-se que o abuso de direito implica um «manifesto excesso».

Sustenta ainda a apelante que a indemnização pelo parqueamento não deveria ter sido concedida porque o motociclo acidentado constituía uma perda total e porque não se poderá ter como aceitável que se opte pela reparação de um veículo quando o custo da recolha é muito superior ao dessa reparação.
Nos presentes autos não foi feita prova do art 4º da base instrutória, onde se perguntava se o motociclo não era recuperável constituindo uma perda total. Tão pouco foi feita prova de que o valor do motociclo em novo era de 1.380.000$00 (art 6º da base instrutória).
È, porém, verdade, como resulta do acima já assinalado que foi o próprio autor quem – em 21/5/2007 - no requerimento da pretendida ampliação do pedido referiu duas circunstâncias de facto: por um lado, que «não tinha (agora) capacidade para conduzir uma mota», por outro, que «volvidos sete anos não é economicamente viável proceder ao arranjo do motociclo», «trata-se de uma perda total». E com a invocação destas circunstâncias pretenderia – apesar de não ser muito claro nesse sentido – substituir o pedido de condenação da R. no valor de Esc 1.200.000$00 pelo de condenação da mesma no preço «actual» de um motociclo «igual» em novo, de 9.800 €, além de - pela primeira vez nos autos - dar conta do dano de parqueamento à taxa diária de 17,50 € mais Iva e que na altura totalizava 62.254, 00 €.
Neste contexto, sempre seria natural que a R. estranhasse a mudança de ponto de vista do A. ao vir na presente acção referir que sempre ordenara a reparação do motociclo e que se via confrontada com o direito de retenção por parte do concessionário Honda relativamente ao custo do parqueamento.
Sucede que, em rigor, se afigura legítimo ao A.,que não pôde concretizar a alteração de pedidos a que se propusera em 2007, vir a optar, afinal, pela reparação do motociclo, opção que, não se conhecendo o preço em novo de um motociclo como o dos autos em 2010 (lembre-se a resposta negativa ao art 4º da base instrutória) em face do valor que o A. lhe atribuíra em 2007 não parece merecer ser tida em absoluto como insensata.[14]  A partir do momento em que o A. não poderia retirar o motociclo do local onde há 10 anos se encontrava sem previamente pagar o valor da sua guarda, querendo vê-lo reparado só poderia ter agido como agiu, mesmo sabendo que a reparação do mesmo não lhe permitiria aceder-lhe sem o pagamento do parqueamento.
Esta opção do A. só seria criticável por incoerência se o mesmo alguma vez se tivesse dito prejudicado pela privação do uso, mas não foi o caso. 

Não obstante o que se vem de referir na defesa das opções tidas pelo A. e em função do respeito pelo princípio da reparação integral dos danos sofridos pelo lesado, não pode deixar de se dar razão à R. quando requer a redução da indemnização nos termos do art 494º CC.
 Trata-se da limitação da indemnização no caso de mera culpa aí se referindo que «quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso o justifiquem».

Impressiona-nos particularmente a circunstância de sendo, como acima já se assinalou, à seguradora que compete agir de forma diligente para que o dano seja reparado, e por isso dever ser a mesma a arcar com os maiores prejuízos decorrentes de não ter em tempo custeado a reparação do motociclo, a mesma só ter tido conhecimento da existência e custo do parqueamento sete anos depois do acidente, quando o A. tentou proceder à ampliação do pedido, com o que a impediu até então de calcular o risco da acção.
 Impressiona-nos igualmente a circunstância deste “timing” do A. na demanda da R. pelo dano em causa denunciar manifestamente da parte do concessionário que até então foi procedendo à guarda do motociclo uma significativa complacência no pagamento desse serviço.   
Impressiona-nos também a circunstância de, pese embora, como acima se referiu, não poder ser dada eficácia extintiva à declaração de quitação junta aos autos relativamente à responsabilidade pelo dano que está em causa nestes autos, a aqui R. seguradora ter certamente confiado naquela eficácia extintiva, vindo a ser novamente surpreendida com o dano de parqueamento.
Nestas circunstâncias e em pura sede de equidade tem-se como justo limitar a indemnização devida pelo parqueamento a ½  do respectivo custo.

V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar correlativamente a sentença recorrida, condenando a R. a pagar ao A. indemnização no montante de € 32.900,00 acrescida de IVA e de juros a contar da citação, mantendo o demais decidido na sentença.

Custas na 1ª instância e nesta por ambas as partes na proporção do decaimento. 


Lisboa, 5 de Março de 2015
                                                          
Maria Teresa Albuquerque
José Maria Sousa Pinto                                            
Jorge Vilaça
                                                                                           

[1] - Cfr Ac RC 20/1/2015, cujo sumário, na parte que aqui releva, é o seguinte: II- - Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer uma distinção entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório. III – Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime  diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa  decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (artº 662º, nº 2 do nCPC)».
[2] -  Amâncio Ferreira, «Manual dos Recursos em Processo Civil»,  4ª ed, p  49
[3] - Ac STJ 7/12/1995 (Costa Marques); Ac STJ 28/11/1996 (Joaquim de Matos); Ac STJ 26/3/1998 (Tomé de Carvalho);  Ac STJ  12 /6/2003 ( Quirino Soares); Ac STJ 21/12/2005  (Bettencourt de Faria); Ac STJ 19/1/2006 (Moitinho de Almeida); Ac STJ 16/9/2008 ( Mª dos Prazeres Beleza); Ac RL 25/6/2009 (Fatima Galante); Ac R P 10/5/2012 (Carlos Portela)
[4] - «A quitação constitui um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida e consubstancia uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi em principio cumprida pelo devedor e recebida pelo credor» – Ac STJ 12/5/1999 Victor Devesa  CSTJ II, 281
«A quitação é um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor» - Ac STJ 20/1/2010 (Bravo Serra) 
[5]- No sentido da admissibilidade da remissão abdicativa, na fase de cessação do contrato de trabalho, vejam-se, por exemplo os Ac. do STJ de 6/07/94, Ac-STJ 1994, T. III, pag. 271 (caso em que o contrato cessou por abandono), de 29/1/97 em CJ-STJ, 1997, T. I, pag. 265 (caso de empresa em liquidação), Ac. do STJ de 3/7/96 em www.dgsi proc. 96S248, n° convencional STJOOO132829, Ac. do STJ de 12/5/99 em Ac. Dout., n° 458, pag. 268, Ac. do STJ de 1.10.97 Ac. Dout., 435, pag. 392 e de 16.04.97 em BMJ, n° 466, pag. 343 e, ainda, Ac. da Rel. do Porto de 22/05/2000, CJ, 2000, T. III, pag. 246s e desta Rel. de Lisboa, em www.dgsi.pt, doc. convencional JTRLOO031354, jurisprudência esta citada no Ac STJ 31/3/2004 (Sousa Peixoto). Ac STJ (Sousa Grandão)16/1/2008, e 29/5/2007: «A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem pacificamente entendendo que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando o trabalhador se predispõe a negociar a cessação do contrato de trabalho. Nessa fase – como sublinha o Acórdão desta Secção de 11/10/05 (Proc. n.º 1763/05) – já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho. Mais sublinha o referido aresto: “Qualquer outro entendimento levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes – porquanto o trabalhador nunca poderia dispor dos seus direitos – isto apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades da cessação da relação laboral (cfr. arts. 7º e 8º da L.C.C.T.)”.
[6] -  Ac STJ 26/3/1998 (Tome de Carvalho): «Fixada judicialmente a indemnização por acidente de viação, o lesado pode renunciar a receber mais que ela… »
[7] - Ac STJ 16/9/2008 (Mª dos Prazeres Beleza)
[8] - Ac STJ 19/1/2006 (Moitinho de Almeida); «Os recibos de quitação são validos e impedem o lesado que os subscreveu de pedir reparação de prejuízos que ultrapassem o montante aí fixado, a menos que se trate de danos que só posteriormente vierem a ser revelados e assim imprevisíveis»
No mesmo sentido, Ac STJ 21/12/2055 (Bettencourt de Faria), Ac RL 25/6/2009 (Fátima Galante)
[9] - No Ac R  C 29/5/2007 (Garcia Calejo) está justamente em causa situação de consignação em deposito por parte de seguradora perante sinistrado que se recusou a assinar «declaração de quitação ampla  de sub-rogação e de renuncia, prestando-se a dar quitação da quantia fixada na sentença e nada mais
[10]- Ac STJ  6/2/2003
[11]– Vaz Serra, «Obrigação de Indemnização», BMJ nº 84,
p 36
[12] -  Ac RG 26/4/2012 (António Sobrinho)
[13]-  Citado Ac R G
[14] - Crf Ac RC 3/10/2006 (Virgílio Mateus): «Atento o principio da reparação integral dos danos sofridos pelo lesado, tem o lesado direito à indemnização pecuniária correspondente ao valor da reparação do veiculo acidentado (três vezes sobre o valor venal) dado que o custo do conserto em causa tanto podia ser adequado para um veiculo muito usado como para um novo e é inferior ao de aquisição de qualquer automóvel novo, inexistindo, assim, abuso de direito»