EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ÓNUS DA PROVA
DESPACHO LIMINAR
Sumário

SUMÁRIO:

I - A omissão da apresentação à insolvência no prazo de seis meses após a verificação dessa situação (de insolvência) expõe o devedor à possibilidade de lhe ser liminarmente denegado o benefício de exoneração do passivo restante, se adicionalmente se provar que com isso causou prejuízo aos credores e que sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE).
II - O ónus da prova desses factos, impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração e fundamentadores do indeferimento liminar dessa pretensão, não recai sobre o devedor mas sobre os credores ou o administrador de insolvência, sem prejuízo do conhecimento oficioso que deles tenha o juiz.
III – A lei não faz depender a admissibilidade liminar do incidente de exoneração do passivo restante de um juízo positivo de prognose sobre a perceção futura de rendimentos por parte do insolvente.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:

Em 24.01.2013 Rosa apresentou-se à insolvência nos Juízos Cíveis de Lisboa, requerendo que fosse declarada a sua insolvência, com exoneração do passivo restante.
Foi proferida sentença em que se declarou a requerente em situação de insolvência.
Ouvidos sobre o requerimento de exoneração do passivo restante, o administrador de insolvência pronunciou-se a favor e os credores não se opuseram.
Em 23.10.2014 foi proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
A requerente apelou desta decisão, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:

A - Recurso – Matéria de facto
A Recorrente entende que não podem ser dados como provados os seguintes factos do despacho recorrido:
Alínea G) - indica que a Insolvente estava obrigada ao pagamento de prestação do Condomínio, na verdade essa era uma dívida comum do casal e não da exclusiva responsabilidade da Insolvente.
Alínea H) – na data referida o crédito em causa estava em fase de negociação com vista à restruturação, ambas as partes tinham aceite a situação, tanto que como é referido na alínea I) acordaram na reestruturação da dívida.
A situação não pode como tal ser apresentada como mora.
Alínea M) esta decisão está em conflito com o facto provado da alínea D), mais uma vez a dívida não era da exclusiva responsabilidade da Insolvente.
Alínea N) esta decisão está em conflito com o facto provado da alínea L), mais uma vez a dívida não era da exclusiva responsabilidade da Insolvente.

B - Recurso – Matéria de Direito
Verifica-se que o despacho recorrido violou as seguintes normas legais:
1. art.º239.n.º2 do CIRE - A decisão de indeferir em crise, enquanto fundamentada na falta de rendimentos disponíveis ou perspetivados para satisfazer as dívidas é contraria à letra e ao espírito da lei,- é mesmo a completa inversão da lei, já que faz acrescer ilegalmente um motivo para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, quando esses motivos são apenas os taxativamente previsto no art.º 238.º do CIRE. Em nenhuma das alíneas desse preceito legal está indicada a obrigatoriedade de cessão de um valor efetivo a título de rendimento disponível; e mesmo no caso das obrigações do insolvente durante o período de cessão verifica-se que o legislador, no artigo 239.º, n.º 4, b) do CIRE, estipula que o devedor fica obrigado a “exercer uma profissão remunerada…e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto” e daqui só se poderá concluir que é admissível a inexistência de rendimento, não podendo pois ser baseado o indeferimento liminar nos termos em que foi, na falta de rendimentos ou na perspetiva de falta destes.
Este artigo deve ser lido em conformidade com o que expressa e dele não decorre o requisito de que para deferir a exoneração do passivo tenha que haver expectativa de rendimentos, o que a lei afirma é que, tendo o insolvente rendimento disponível deve ser cedido a um fiduciário, não o havendo não será possível essa transferência, mas estabelece como consequência desta incapacidade a possibilidade e muito menos a necessidade de indeferir a exoneração, como pretende o tribunal “a quo”.
Mais o art.236.º do CIRE estabelece os requisitos a respeitar na apresentação do pedido de exoneração e nada diz quanto a ter ou perspetivar rendimentos para cessão, pelo que não faz qualquer sentido decidir esse mesmo pedido com base num critério sobre o qual não se exigiu ou permitiu que o devedor se pronunciasse, até para que pudesse apresentar provas de que o respeitava.
Em termos factuais também a decisão do tribunal não tem qualquer fundamento, nada no processo permite ao Juiz “ a quo” chegar com legitimidade à conclusão que nos próximos 5 anos a Insolvente não terá rendimentos a trazer para o processo, e hoje mesmo a “ antevisão” feita pelo tribunal é desmentida pois a ora Recorrente aufere rendimentos, como o próprio despacho recorrido refere.
A correta interpretação da lei implica que não pode ser considerado para efeitos de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante o rendimento disponível do devedor, devendo apenas as condições previstas nas alíneas do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE ser analisadas para essa decisão, considerando-se estas como taxativas, caso contrário, o legislador teria formulado uma norma genérica e depois indicaria os casos mais significativos, como acontece em casos semelhantes. Atendendo ao elemento literal da norma, como devemos, a afirmação: “é liminarmente indeferido se”, só pode querer dizer que isso só sucederá nos casos aí elencados, dado até ao cuidado que foi colocado em elencar variadas situações, quer em termos quantitativos, quer de assuntos. Pelo que a adequada aplicação do nº1 do art.238.º terá que ser no sentido de que o indeferimento liminar só é legal quando baseado nas condições taxativas ali previstas, qualquer outro motivo será sempre ilegítimo.
2. Artigo 13.º da Constituição da Republica Portuguesa – o despacho recorrido viola o princípio constitucional de igualdade quando recusa deferir a exoneração do passivo porque a Insolvente não tem rendimentos disponíveis ou perspetivados para satisfazer as dívidas no período de cessão de 5 anos. Ao desta forma decidir utiliza a lei para tratar de forma diferente os cidadãos exclusivamente com base nas suas capacidades financeiras; a exoneração do passivo passaria a ser um benefício dos financeiramente mais favorecidos, indisponível precisamente àqueles em relação aos quais mais se justificaria que fosse aplicado, ou seja, àqueles que nada têm ou têm muito pouco, e aplicar-se-ia apenas àqueles que tivessem rendimentos superiores ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Distinguir cidadãos nas mesmas circunstâncias apenas porque têm diferentes capacidades financeiras é inaceitável, roçando o abuso quando essa distinção financeira não é sequer atual mas resulta de uma premonição do julgador.
Para respeitar este princípio constitucional não pode a decisão quanto ao pedido de exoneração do passivo considerar o facto de o insolvente ter ou não rendimentos disponíveis restante.
3. Art.º238.º n.º1 do CIRE, alínea d), a interpretação feita pelo despacho recorrido é violadora da lei, na medida em que, contrariamente ao que devia, não considera os requisitos da norma – a abstenção de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; prejuízo para os credores; e o conhecimento, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica - como cumulativos .
3.1 A norma foi erradamente aplicada quando decidiu que a Insolvente não respeitou o prazo para apresentação à insolvência fixado em 6 meses, pois até ao limite do prazo estabelecido as dívidas incumpridas pela Recorrente eram apenas duas e correspondentes a cerca de 8% das suas responsabilidades. Todas as restantes dívidas, as restantes obrigações para com os credores, se encontravam, em julho de 2012, a ser cumpridas em conformidade com o acordado com os mesmos e apenas deixaram ser cumpridas nos 5 meses imediatamente anteriores à apresentação do pedido judicial de insolvência - do próprio despacho de indeferimento se retira que a primeira dívida incumprida que, pelo seu montante, podia indiciar a insolvência da Recorrente data de agosto de 2012, alínea M) , pelo que só aí se poderia iniciar a contagem do prazo de 6 meses para efeitos da conclusão de violação do “dever” de apresentação. A situação de insolvência, enquanto impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, só se pode dar como indiciada em agosto de 2012 –até essa data mais de 90% dos credores estavam a ser pagos em conformidade com o acordado com os mesmos.
A interpretação correta deveria ser no sentido de a ora Recorrente ter até fevereiro de 2013 para apresentar o seu pedido de insolvência sem estar “fora de prazo” para efeitos da excussão do passivo restante e como tal que o fez atempadamente quando o apresentou no mês de janeiro de 2013, perfeitamente “dentro prazo” do art.º 238.º n.º1 do CIRE.
3.2 A norma foi erradamente aplicada quando determinou que a Insolvente provocou prejuízo aos credores e que tal resultou automaticamente do, suposto, facto da insolvente não se ter apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
3.3 O tribunal recorrido fez “tábua rasa” do princípio do ónus da prova e impôs-se aos credores e administrador de insolvência que não alegaram, nem provaram prejuízos, como lhes competia no âmbito do ónus da prova, e determinou oficiosamente a existência desse prejuízo. No despacho recorrido não é feita prova do prejuízo, não se apresentou, como deveria: nem o tipo, nem quais os credores afetados e em que proporção e nem sequer o montante global dos prejuízos ocorridos, e como têm esses prejuízos impacto ao ponto de se admitir a sua relevância para uma tão séria decisão face ao devedor como é o indeferimento da exoneração do passivo – para que existisse prejuízo suficiente para justificar o indeferimento liminar da exoneração do passivo, o Juiz “a quo” teria que demonstrar objetivamente que o prejuízo erra irreversível e grave. A aplicação da lei realizada vai contra a letra da lei, que autonomizou os critérios “prejuízo” por um lado e “atraso na apresentação por outro”, se assim está expresso assim deve ser interpretado. Acresce que presume uma atuação de má-fé da Insolvente que não tem fundamento no concreto e é ilegítima a generalização.
A interpretação correta do artigo deveria ser a de que, mesmo que se verifique uma apresentação tardia à insolvência por parte de devedores particulares, tal não é razão necessária e automática para que se possa considerar haver prejuízo para os credores e que o mesmo tem que ser concretamente apurado, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção de prejuízo, já que este carece sempre de demonstração efetiva quer do seu montante, quer da sua gravidade e irreversibilidade ao ponto de, ponderados os interesses em causa, serem adequados para indeferir o pedido de exoneração do passivo.
3.4 A norma foi erradamente aplicada quando decidiu que a Insolvente sabia ou atuou com culpa grave ao não entender que inexistia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica, porquanto as dificuldades económicas da Insolvente resultaram de uma diminuição muito sensível do seu rendimento por causas que nada tiveram a ver com atitudes suas; a conjuntura de crise económico-financeira do país que não deixou de ter um duro impacto na sua vida, por conta do aumento do custo de bens essenciais como água, luz, gás e alimentação, as decisões do governo ao nível do aumento das taxas do IRS e de pagamento de subsídios de férias e Natal afetaram-na sem que obviamente tivesse qualquer culpa nas mesmas ou as pudesse prever. E veja-se que as dificuldades económicas da Recorrente passaram a assumir gravidade capaz de levar à insolvência quando a sua entidade patronal deixou de cumprir pontualmente a obrigação de pagamento de salários e pelo facto de a sua filha e neta passarem a estar na sua dependência financeira, uma e outra situações que legitimamente pensou serem transitórias. Se quanto a todos os outros fatores julgamos que basta apelar ao critério do bom sendo do “ homem médio” e não viver apático da realidade do país para concluir que eram incontroláveis e imprevisíveis pela Insolvente e como tal não lhe podem ser imputados a qualquer título e muito menos de culpa grave. Quanto aos últimos dois, mais particulares da devedora, há que ter em conta que
- Quanto à situação profissional, a insolvente limitou-se a fazer como o tribunal que apreciou a situação de dificuldade da empresa, como os credores que aceitaram o PER, como a maioria dos seus trabalhadores que se manteve na empresa e acreditou que a situação iria melhorar e esta crença não pode, seja qual for o prisma que se considere, ser taxada como uma atuação com culpa grave.
- A outra razão para as suas dificuldades foi o acolhimento da filha e neta, que passaram a viver em sua casa e com base no seu rendimento, sendo que julgou, com legitimidade e lógica, ser esta situação temporária e apenas até que a filha voltasse a reorganizar a sua vida e retomasse a sua independência - pensamento que apenas o senso comum basta para julgar como adequado, face, mormente, à juventude da sua filha e ao historial de empregabilidade desta.
Pelo exposto a correta aplicação da norma aos factos deveria ter levado a concluir que também não se verifica qualquer culpa, (muito menos grave), na atuação da Insolvente, o intérprete médio faria o mesmo enquadramento da situação, pois não lhe pode ser exigido que soubesse ou perspetivasse que a sua situação económica não iria melhorar em data anterior a julho de 2012 e muito menos em 2011, como pretende o despacho recorrido.
4. Arts. 3.º, n.º 1, e 20.º n.º 1 b) do CIRE, são normas violadas, na medida em que o tribunal recorrido não atende à melhor interpretação da noção de insolvência, que será a de que esta é a situação do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, pois da decisão resulta que é entendimento que qualquer divida é suficiente para um particular estar insolvente e que apesar de o devedor – o como nos autos - estar a cumprir 90% das suas obrigações para com os credores se deve considerar o mesmo insolvente.
A correta interpretação deverá seguir no sentido que o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado, no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência do obrigado em continuar a cumprir a generalidade dos seus compromissos e não o facto de ter uma ou algumas dívidas em incumprimento.
5. Art.º 238, nº2 e 236.º n.º3 e nº4 do CIRE e 342 n.º2 do Código Civil – o despacho recorrido viola a lei na medida em que faz inversa interpretação deste acervo normativo, na medida em que competindo aos credores e administrador de insolvência alegarem e fazerem prova de que estão reunidas as condições para o indeferimento da exoneração, o despacho acaba por decidir por esse mesmo indeferimento sem que qualquer credor ou o administrador de insolvência se tenham oposto ao deferimento e muito menos alegado ou provado que existiam condições para o mesmo. O despacho recorrido ignora as regras legais do ónus da prova e emite decisão sem que para a mesmas tenham os onerados carreado provas, ou sequer que tenham vindo ao processo peticionar essa decisão, é portanto uma decisão ilegal e emitida sem provas.
A aplicação correta dos normativos implicaria que, face à inexistência de oposição à concessão do benefício de exoneração do passivo; por falta de alegação e prova pelos credores ou administrador de insolvência de que se verificam factos impeditivos do direito à exoneração, i.é, de que se verifiquem as condições legais para o indeferimento liminar do pedido do devedor, deveria a decisão ser de aceitação da exoneração do passivo restante.
Art.º 235.º do CIRE –quando interpreta no sentido de que este “exige o requisito de que o devedor tenha perspetivas de rendimentos disponíveis para satisfação de parte maior ou menor (das dívidas)” o despacho faz uma interpretação da norma contrária ao propósito do legislador já que este pretendeu, de forma inovadora e face a mecanismos já existente em outros países, atribuir “ (…) aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa- fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. “ O despacho recorrido vem interpretar esta norma em conformidade com os interesses dos credores e não como um benefício especial para os devedores singulares e sem sequer fazer a ponderação destes dois interesses ou o da sociedade em atribuir a estes Insolvente uma derradeira oportunidade de terem uma vida digna e com alguma normalidade. Veja-se que na fundamentação para o indeferimento se referem exclusivamente as supostas lesões dos credores (credores esses que não se opuseram à exoneração), não há uma palavra para o impacto da decisão na insolvente ou na comunidade.
Esta norma deverá ser interpretada no sentido de que o legislador pretendeu dar aos insolventes uma 2.ª oportunidade, e promover a solidariedade da sociedade (e aqui incluem-se também os devedores) para com pessoas singulares, que pela primeira vez e sem intenção, se veem em dificuldades económico/financeiras e que caso não sejam beneficiadas por esta exoneração acabarão por ver toda a sua vida hipotecada e destruída pelo acumular de juros sobre dívidas e juros sobre juros que nunca vão conseguir pagar. Aliás esta interpretação tem impacto em todos nós, na medida em que arrasa com os objetivos de recuperação dos devedores para a comunidade e veremos por parte destes o recurso aos subsídios e a outros apoios do Estado Social e crescer as pendências em tribunal de processos de execução que resultarão em despesa para o erário público.
A correta interpretação desta norma deve seguir no sentido de que o legislador só em situações excecionais e especialmente apertadas - previstas no art.º 238.º do CIRE - permite o indeferimento liminar da exoneração do passivo. Como tal, deverá esta norma ser entendida na perspetiva de ser o único beneficio real que é oferecido ao insolvente particular e o único mecanismo existente para uma sociedade coerente permitir uma 2.ª oportunidade aos seus concidadãos, que pela primeira vez e sem culpa se encontram em situação difícil, e simultaneamente evitar que subsistam dividas, só por subsistir, mas sim utilizar esta possibilidade para eliminar dividas e conflitos delas resultantes quando se sabe que não vão ser cumpridas, permitindo com isso um retomar de uma vida normal ao devedor e da comunidade. Este artigo deve ser lido em conformidade com o que expressa e dele não decorre o requisito de que para deferir a exoneração do passivo tenha que haver expectativa de rendimentos, o que a lei afirma é que, tendo o insolvente rendimento disponível deve ser cedido a um fiduciário, não o havendo não será possível essa transferência, mas estabelece como consequência desta incapacidade a possibilidade e muito menos a necessidade de indeferir a exoneração, como pretende o tribunal “a quo”.
Artigos 17.º A a 17.ª –I Art.º e 236, n.º3 do CIRE – O despacho recorrido viola a lei, na medida em que aplica à situação em causa, julgamos por analogia, o cenário normativo para o Instituto de Revitalização quando não faz qualquer sentido o recurso a tais normas; existem regras legais especificamente aplicáveis à situação pelo que não é legitimo decidir o caso excluindo estas e aplicando outras, só porque as da figura jurídica “ao lado” são as que mais favorecem o resultado final que se pretende dar ao requerimento – objetivamente artigos 17.º A a 17.ª –I do CIRE não se aplicam ao processo.
A interpretação efetuada no despacho em crise implica acrescer aos requisitos previstos no art.º236, n.º3 do CIRE um outro, que o legislador não pretendeu; não aceitar que o requerente tenha direito “(…) à abertura de incidente de exoneração do passivo restante, sem alegar ter indiciariamente condições para satisfazer parte dos créditos de que é devedor, parte a negociar no diálogo com os credores.” Ora é inadmissível que se acresça requisitos a uma regra legal, a construção do normativo pelo legislador deve ser respeitada e nenhuma interpretação permite que se crie ou retire aquilo em oposição ao ali expresso pelo legislador. Mas mais, o requerimento da devedora foi aceite sem que se tivesse pedido a sua correção para que alegasse as condições para satisfazer parte dos créditos, pelo que vir agora, “a posteriori” vir invocar tal conceito é ainda mais ilegítimo.
Assim, a interpretação correta será a de que as normas dos Artigos 17.º A a 17.ª –I Art.º do CIRE não têm qualquer aplicabilidade no caso dos autos e que o 236, n.º3 apenas exige que do requerimento de exoneração do passivo restante conste expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes, não sendo necessário alegar condições para satisfazer parte dos créditos e nem devendo estas ser consideradas na avaliação do pedido de exoneração.

C - Pedido
Por todo o exposto deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela devedora.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
A apelante suscita, neste recurso, as seguintes questões: alteração da matéria de facto; não verificação dos pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante.
Primeira questão (alteração da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte

Matéria de facto
A) A Insolvente nasceu em 27.12.1958, e desde 11.10.1981 é casada com José, sem precedência de convenção antenupcial.
B) Em 27.07.2000 a Requerente adquiriu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Renault modelo Clio. Matrícula (…), de que se mantém dona.
C) Em 13.05.2002 a Insolvente e o marido José, adquiriram por compra o direito de superfície do imóvel fracção autónoma designada pelas letras "…", a que corresponde o 3° andar esquerdo (com parqueamento n°69 da cave), do Bloco (…) do prédio sito na Rua (…), Lisboa.
D) Para pagamento de cujo preço então contrataram com Montepio Caixa Económica, mútuo na quantia de € 66.988,56, (Contrato de Crédito à habitação n°1), a amortizar em 300 prestações mensais iguais incluindo capital e juros, ajustáveis anualmente, com o valor inicial de € 260,74, para cuja garantia de cumprimento foi constituída hipoteca sobre o direito vendido, a favor da mutuante, até ao valor de € 92.712,17.
E) Com efeitos a partir de 13.01.2010, no âmbito do Contrato de crédito à habitação n°1, a Insolvente e o cônjuge José, acordaram com Montepio Caixa Económica a suspensão por 6 meses o pagamento das prestações mensais de reembolso do mesmo, incorporando os juros remuneratórios desse período no capital em dívida.
F) De 2010 a 2013 a Requerente foi trabalhadora da empresa SA, onde em Janeiro de 2013 desempenhava funções de Encarregada de Loja, com uma remuneração bruta base mensal de € 1375,00, e considerando adicionais variáveis e subsidio de alimentação, com um valor líquido de cerca de € 1.300,00 (em 14 meses por ano).
G) Em 2011 a Insolvente estava obrigada ao pagamento de prestação periódica mensal de € 38,00 ao Condomínio da fracção autónoma sua pertença, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento daquela, acumulando divida no ano de 2012 no valor de € 1.623,97.
H) Em 23.09.2011 a Insolvente estava em mora para com Banco Credibom, no âmbito de operações de crédito anteriores, de importâncias somando € 7.595,35.
I) E então, Banco Credibom como mutuante a a insolvente como mutuária, acordaram, a consolidação da dívida de € 7.595,35 e a sua reestruturação, na celebração de mútuo nesse valor, designado contrato de crédito pessoal n°8, a restituir em 60 prestações mensais, sucessivas e iguais, incluindo capital, juros remuneratórios e encargos, cada uma no valor de € 187,30.
J) No primeiro trimestre de 2012 a Requerente constituiu-se em mora no cumprimento do mútuo de 23.09.11 com Banco Credibom, sendo a dívida de capital e juros moratórios em 14.02.13 de € 9186,58.
L) Em 28.06.2012 a Insolvente e o cônjuge José, como mutuários, acordaram com Montepio Caixa Económica, mutuante, mútuo da quantia de € 25.000,00 (Contrato n° 2), para financiamentos diversos não especificados, a reembolsar em 180 prestações mensais, sucessivas e do mesmo valor (incluindo capital, juros remuneratórios e encargos), ajustável, com o valor inicial de € 196,04, crédito garantido por hipoteca sobre o imóvel (direito de superfície) sua pertença, até ao valor de e 40.647,25.
M) Em 13.08.2012 no Contrato de crédito à habitação n° 1, a Insolvente era devedora para com Montepio Caixa Económica, da importância de € 49.458,95, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento, vencendo-se entretanto até 14.02.13, juros moratórios, indemnização e encargos, no montante de € 1.525,13.
N) Em 28.09.2012 no Contrato n° 2, a Insolvente era devedora para com Montepio Caixa Económica, da importância de € 24.751,76, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento, vencendo-se entretanto até 14.02.13, juros moratórias, indemnização e encargos, no montante de € 965,91.
O) Em 07.02.13 a Insolvente mantinha com Montepio Caixa Económica, relação de mútuo (Contrato n° 3), na modalidade de descoberto em conta à ordem da importância de € 2.126,52, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento, vencendo-se entretanto até 14.02.13 juros moratórios e imposto no montante de € 11,50.
P) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, em mútuo com Millenium BCP (Contrato de crédito pessoal ILS), da importância de € 897,71.
Q) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, em mútuo com Millenium BCP com utilização de cartão de crédito, da importância de € 245,61.
R) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, em mútuo com Banco BNP Paribas Personal Finance,SA, da importância de € 29.644,81.
S) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, em mútuo com Cofidis,SA da importância de € 2.339.30.
T) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, em mútuo com Barclays Bank, PLC, da importância de € 11.846,13.
U) Em Janeiro de 2013 a Insolvente era devedora em mora, a Fazenda Nacional, a título de IMI da importância de € 75,77, e de € 19.10 de juros moratórios.
V) Desde 14.11.13 e em função de restruturação da empresa da entidade patronal, a Requerente está em situação de desemprego, por um período máximo de 1080 dias (36 meses), com um subsídio diário de € 33,23 por dia, reduzido de 10% a partir do 181° dia.
X) A Requerente não tinha outra fonte de rendimento além do salário.
Z) Desde há vários anos a Requerente separou-se do cônjuge e com ele não tem qualquer convivência.
A1) O agregado familiar da Requerente é composto por si, pela filha e pela filha desta, ainda menor.
B1) Os mútuos provados em H) a J) e O) a T), destinaram-se a fazer face a despesas para sustento da família da Requerente.:
C1) Os bens de que a Insolvente era titular em Janeiro de 2013 e que foram apreendidos para a massa, são o imóvel e o automóvel referidos em B) e C)
D1) (em 28.03.14) O imóvel (direito de superfície) foi objecto de licitação para venda, que atingiu o valor de € 37.000,00.
E1) Em 24.01.2013 a Insolvente requereu a acção de insolvência, com incidente de aprovação de plano de pagamentos, este que foi rejeitado.

O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A apelante entende que não devem ser dados como provados os seguintes factos, considerados na decisão recorrida:
G) “Em 2011 a Insolvente estava obrigada ao pagamento de prestação periódica mensal de € 38,00 ao Condomínio da fracção autónoma sua pertença, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento daquela, acumulando divida no ano de 2012 no valor de € 1.623,97.”
H) “Em 23.09.2011 a Insolvente estava em mora para com Banco Credibom, no âmbito de operações de crédito anteriores, de importâncias somando € 7.595,35.”
M) “Em 13.08.2012 no Contrato de crédito à habitação n° 1, a Insolvente era devedora para com Montepio Caixa Económica, da importância de € 49.458,95, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento, vencendo-se entretanto até 14.02.13, juros moratórios, indemnização e encargos, no montante de € 1.525,13.
N) “Em 28.09.2012 no Contrato n° 2, a Insolvente era devedora para com Montepio Caixa Económica, da importância de € 24.751,76, e nessa data constituiu-se em mora quanto ao seu cumprimento, vencendo-se entretanto até 14.02.13, juros moratórias, indemnização e encargos, no montante de € 965,91.”
Alega a apelante, quanto às alíneas G), M) e N), que as dívidas aí referidas eram dívida comum do casal e não exclusivamente da responsabilidade da insolvente, estando as alíneas M) e N) em conflito com os factos provados nas alíneas D) e L) (que têm a seguinte redação: D) “Para pagamento de cujo preço então contrataram com Montepio Caixa Económica, mútuo na quantia de € 66.988,56, (Contrato de Crédito à habitação n°1), a amortizar em 300 prestações mensais iguais incluindo capital e juros, ajustáveis anualmente, com o valor inicial de € 260,74, para cuja garantia de cumprimento foi constituída hipoteca sobre o direito vendido, a favor da mutuante, até ao valor de € 92.712,17”; L) “Em 28.06.2012 a Insolvente e o cônjuge José, como mutuários, acordaram com Montepio Caixa Económica, mutuante, mútuo da quantia de € 25.000,00 (Contrato n° 2), para financiamentos diversos não especificados, a reembolsar em 180 prestações mensais, sucessivas e do mesmo valor (incluindo capital, juros remuneratórios e encargos), ajustável, com o valor inicial de € 196,04, crédito garantido por hipoteca sobre o imóvel (direito de superfície) sua pertença, até ao valor de e 40.647,25”).
Já no que concerne à alínea H), a apelante alega que na data referida o crédito em causa estava em fase de negociação com vista à reestruturação, reestruturação essa em que vieram a acordar como é referido na alínea I) (“E então, Banco Credibom como mutuante a a insolvente como mutuária, acordaram, a consolidação da dívida de € 7.595,35 e a sua reestruturação, na celebração de mútuo nesse valor, designado contrato de crédito pessoal n°8, a restituir em 60 prestações mensais, sucessivas e iguais, incluindo capital, juros remuneratórios e encargos, cada uma no valor de € 187,30”), pelo que a situação em causa não pode ser apresentada como mora.

Vejamos.
A apelante não nega a existência de qualquer uma das dívidas em causa. Apenas nega, quanto às dívidas mencionadas nas alíneas G), M) e N), que elas sejam da sua exclusiva responsabilidade. Ora, a verdade é que na decisão de facto não se atribuiu à A. a exclusiva responsabilidade pelas referidas dívidas. Se nas mencionadas alíneas apenas a A. é mencionada, é tão só porque é ela a requerente e é da sua situação de solvabilidade económica que o tribunal se ocupa. De todo o modo, das alíneas C), D) e L) da matéria de facto se infere a co-responsabilização do marido da A., sem que haja entre elas qualquer contradição.
Quanto à alínea H), dos autos não colhemos elementos que desmintam o aí dado como provado. Pelo contrário, a “consolidação” e “reestruturação” dadas como provadas na alínea I) poderão ter sido a saída encontrada pelas partes para fazer face a uma situação de incumprimento do lado da ora A..
Em suma, não vislumbramos razões para alterar a decisão de facto.
Segunda questão (verificação dos pressupostos do indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante)
O processo de insolvência é, nos termos da formulação legal original do CIRE, “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”(art.º1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, - CIRE - aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de março).
A Lei n.º 16/2012, de 20.4, introduziu algumas alterações ao CIRE, procurando, conforme se realça na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, “reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.
Porém, já na forma inicial do CIRE, em termos que permanecem intocados, no que respeita aos insolventes pessoas singulares, e no dizer do Preâmbulo do Código, este “conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
O referido regime, assim exposto no preâmbulo do CIRE, está regulado nos artigos 235.º a 248.º do CIRE.
Dele resulta que no caso da insolvência de pessoa singular de boa-fé a proteção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o objetivo de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. O requerente assumirá o compromisso de não ocultar os rendimentos que aufira e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma “profissão remunerada” (n.º 4 do art.º 239.º do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível.
O pedido de exoneração deve ser feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e nunca após a assembleia de apreciação do relatório apresentado pelo administrador de insolvência, podendo o juiz decidir livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio (n.º 1 do art.º 236.º do CIRE).
Além da extemporaneidade do pedido de exoneração, este será indeferido liminarmente se se constatar que nos últimos 10 anos o devedor já usufruíra deste benefício (alínea c)) do n.º1 do art.º 238.º), ou nos três anos anteriores agira fraudulentamente tendo em vista obter créditos ou subsídios de instituições públicas (alínea b) do n.º 1 citado), ou protelara a sua apresentação à insolvência, com prejuízo dos credores e apesar de saber ou não poder ignorar que não existia perspetiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d) do n.º 1 citado), ou existirem indícios seguros de que a insolvência é culposa (alínea e) do n.º 1 citado), ou o devedor tiver sido condenado, nos últimos 10 anos, pelos crimes de insolvência dolosa, frustração de créditos, insolvência negligente ou favorecimento de credores (alínea f) do citado n.º 1), ou o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso do processo de insolvência (alínea g) do citado n.º 1).
Na decisão recorrida ajuizou-se que a insolvente se havia apresentado tardiamente à insolvência, com prejuízo para os credores, ou seja, havia incorrido no fundamento de indeferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE.
O devedor que seja pessoa singular e não seja titular de empresa, não está obrigado a apresentar-se à insolvência (n.º 2 do art.º 18.º do CIRE). Porém, a omissão da apresentação à insolvência no prazo de seis meses após a verificação dessa situação (de insolvência) expõe o devedor à possibilidade de lhe ser liminarmente denegado o referido benefício de exoneração do passivo restante, se adicionalmente se provar que com isso causou prejuízo aos credores e que sabia, ou não podia ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Sendo certo que o ónus da prova de todos esses factos, impeditivos do direito do devedor à pretendida exoneração e fundamentadores do indeferimento liminar, não recai sobre o devedor mas sobre os credores ou o administrador de insolvência (art.º 342.º n.º 2 do Código Civil; v.g., STJ, 14.02.2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt), sem prejuízo do conhecimento oficioso que deles tenha o juiz.
Nos termos do n.º 1 do art.º 3.º do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.” Considerando-se como indicativas dessa situação, nomeadamente, a “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” (alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” (alínea b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor” (alínea e) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE), “incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de “prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência” (parágrafo iv) da alínea g) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE).
Resulta das alíneas C), D), L), M) e N) da matéria de facto que a partir dos meses de agosto e setembro de 2012 a requerente e o seu marido cessaram o pagamento dos dois empréstimos bancários que haviam contraído, no valor total de cerca de € 74 000,00, com constituição de hipoteca sobre a casa de morada de família, de que a requerente era proprietária e onde residia. Assim, decorridos seis meses sobre a cessação desses pagamentos, ou seja, em março de 2013, verificar-se-ia, objetivamente, uma situação indicativa de que a requerente se encontrava em estado de insolvência. Ora, a requerente apresentou-se à insolvência antes dessa data, mais precisamente em janeiro de 2013.
Porém, antes da cessação do pagamento dos aludidos créditos hipotecários já a requerente havia deixado de pagar, desde o primeiro trimestre de 2012, um crédito que havia contraído junto do Banco Credibom, no valor de € 7 595,35 (alíneas I) e J) da matéria de facto). Essa dívida constituía, por sua vez, resultado da consolidação e reestruturação de dívida anteriormente contraída pela requerente para com o Credibom (alínea H) da matéria de facto). Sendo certo que se tratava de compromissos assumidos para fazer face a despesas para sustento da família da requerente, composta por si, pela sua filha e pela sua neta (alíneas A1) e B1) da matéria de facto). Ora, se a requerente, poucos meses após a celebração do aludido acordo de reestruturação da dívida celebrado com a Credibom, deixou de a pagar, é porque nessa altura se encontrava impossibilitada de cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações (alínea b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE). O que de resto foi confirmado pela circunstância de logo em junho de 2012 a requerente ter celebrado, com o seu marido, mais um contrato de mútuo com o Montepio Caixa Económica, no valor de € 25 000,00, “para financiamentos diversos não especificados” (alínea L da matéria de facto), permanecendo por pagar a dívida junto da Credibom e entrando em incumprimento, perante o Montepio, quanto à nova dívida, três meses depois (alínea O) da matéria de facto). Mais, desde 2011 que a requerente e o marido não pagavam as despesas do condomínio (alínea G) da matéria de facto), e já em 2010 a requerente e o seu marido haviam negociado com o Montepio a suspensão, por seis meses, do pagamento do empréstimo para aquisição de habitação (alínea E) da matéria de facto).
Todo este circunstancialismo demonstra que pelo menos desde o primeiro trimestre de 2012 que a requerente se encontrava em situação de insolvência. Pelo que o requerimento de insolvência, apresentado em janeiro de 2013, ultrapassou o prazo de seis meses que temos vindo a analisar.
Há então que verificar se ocorrem os outros dois pressupostos do motivo de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE: prejuízo para os credores; conhecimento pelo devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, de que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Quanto ao prejuízo causado aos credores em virtude da demora na apresentação à insolvência, a jurisprudência tem entendido, cremos que acertadamente, que o simples alongamento da situação de mora no cumprimento das obrigações, obrigações que em regra se traduzem em prestações pecuniárias, que a lei automaticamente comina com o vencimento de juros de mora (art.º 801.º do Código Civil), não basta para dar por corporizado o prejuízo relevante para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, sob pena de o aludido requisito, expressamente destacado pelo legislador, ser reputado de inútil, em colisão com a presunção de adequabilidade da expressão do pensamento legislativo consagrada no n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil (cfr., v.g., acórdãos do STJ, de 21.3.2013, processo 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e de 14.02.2013, processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1). Para além da mora no cumprimento das obrigações, que automaticamente decorre do atraso na apresentação do devedor à insolvência, deverá o tribunal convencer-se de que o atraso do devedor na sua apresentação à insolvência implicou prejuízos para os credores, factos que poderão, por exemplo, ser a constituição de mais dívidas por parte do devedor ou a dissipação ou consumo de ativos do seu património.
Ora, in casu está demonstrado que a requerente, após a manifestação de impossibilidade de solver os seus compromissos ocorrida no primeiro trimestre de 2012, em lugar de se apresentar à insolvência contraiu em 28.6.2012 um novo empréstimo hipotecário, no valor de € 25 000,00, junto do Montepio (alínea L) da matéria de facto). Ou seja, agravou a sua situação deficitária, com evidente prejuízo dos credores, seja a Credibom, seja o condomínio (alínea G) da matéria de facto), seja o próprio Montepio, sendo certo que logo em 28.9.2012 deixou de pagar as prestações emergentes do novo crédito obtido junto do Montepio.
Afigura-se-nos, pois, que a requerente protelou a sua apresentação à insolvência com prejuízo para os credores. E fê-lo quando sabia, ou deveria saber, pelo menos desde o primeiro trimestre de 2012, que a situação era irreversível, face ao patente desequilíbrio existente entre os seus rendimentos (alíneas F) e X) da matéria de facto) e o volume dos seus encargos (alíneas D), G), I), A1) da matéria de facto).
Na decisão recorrida faz-se ainda referência ao facto de que a situação económica da requerente não lhe permitia pagar sequer parte das dívidas, o que sempre tornaria inútil o incidente de exoneração do passivo restante (aí se diz, a dado passo: “em suma, quando nos autos não há elementos que facultem concluir pela capacidade do insolvente para pagar/negociar com os credores parte das suas dívidas, no período da disponibilização de rendimentos, (…), então o incidente de exoneração do passivo restante converte-se num acto inútil, que nos está vedado”).
No caso da insolvência de pessoa singular de boa-fé, como se viu, a proteção dos credores não esgota a finalidade do processo, havendo também, caso tal tenha sido requerido pelo devedor, o desiderato de lhe possibilitar um recomeço da sua vida, exonerando-o das dívidas que, passado um período de esforço sério de pagamento do devido, ainda subsistam. A lei não faz depender a admissão liminar do incidente da efetiva existência de rendimento disponível por parte do devedor: este assumirá tão só o compromisso de não ocultar os seus rendimentos e o seu património e de diligenciar pelo exercício de uma “profissão remunerada” (n.º 4 do art.º 239.º do CIRE), entregando ao fiduciário todos os rendimentos que venha a auferir e que constituam rendimento disponível, sendo certo que se trata de obrigação cujo contorno concreto só se definirá durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo (cfr., neste sentido, acórdãos da Relação do Porto, 18.6.2009, processo 3506/08.0TBSTS-A.P1, e de 31.3.2011, 2347/10.9TBVCD.P1, da Relação de Coimbra, 23.02.2010, 1793/09.5TBFIG-2.C1, da Relação de Guimarães, 07.4.2011, 1101/10.2TBVVD-A.G1, da Relação de Lisboa, 30.01.2014, 180/13.5TBCDV-C.L1-6, todos na Internet, dgsi-itij).
Veja-se que o encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente, não inutiliza o incidente da exoneração do passivo restante, conforme resulta expressamente do disposto no n.º 6 do art.º 232.º e no n.º 1 do art.º 248.º do CIRE (neste sentido, cfr. acórdãos da Relação do Porto, de 05.11.2007, processo 0754986 e de 14.6.2011, processo 4196/10.5TBSTS.P1, ambos consultáveis na Internet, dgsi-itij).
Assim, in casu o indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante não se funda num suposto juízo de prognose de inexistência futura de rendimentos a afetar ao pagamento das dívidas subsistentes, mas na verificação de um comportamento objetiva e subjetivamente qualificável de má-fé por parte da devedora, a qual protelou injustificadamente, com prejuízo dos credores, a sua apresentação à insolvência.

DECISÃO:

Pelo exposto julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, que nela decaiu.

Lisboa, 05.3.2015

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Jorge Leal
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Ondina Carmo Alves
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Eduardo Azevedo