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INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Sumário
I. O incidente de liquidação de sentença destina-se a obter a concretização do objecto de condenação da decisão proferida na acção declarativa, dentro dos limites do caso julgado, tendo sempre e necessariamente que conduzir a um resultado concreto e objectivo. Por outras palavras, o incidente de liquidação nunca poderá vir a ser julgado improcedente por “falta de prova”, pois tal desfecho, resultando na absolvição da Ré do pedido, inutilizaria a decisão proferida na acção declarativa e contraria a finalidade do incidente. II. Precisamente por isso, quando a prova produzida pelos litigantes se mostre insuficiente para fixar a quantia de vida, a lei impõe ao juiz o dever de a procurar completar, “mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial” [n.º 4, do art.º 360.º CPC]. III. Mais, se ainda assim não for possível fixar a quantia devida, isto é, se o juiz através da indagação oficiosa não conseguir reunir outros elementos que lhe permitam decidir, num último recurso, sempre deverá o tribunal julgar de acordo com a equidade, por imposição do n.º3, do art.º 566.º do CC, dispondo que “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
(Sumário e laborado pelo Relator)
Texto Parcial
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I. RELATÓRIO:
I.1 Na acção acima identificada, que correu termos na Comarca da Grande Lisboa – Noroeste, Juízo do Trabalho – Juiz 1, o Autor AA deduziu incidente de liquidação de sentença, contra a Ré BB, SA., pedindo que seja liquidado em € 7.994,84 (sete mil novecentos e noventa e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos) o valor a ser-lhe pago pela Ré, acrescido de juros de mora à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma das prestações, até efetivo e integral pagamento.
Como fundamento do seu pedido o Autor alegou, em síntese, as circunstâncias em que fez uso da sua viatura particular e das despesas que suportou, no período entre 21.05.2002 e 07.09.2004, despesas que não teria se a Ré lhe tivesse atribuído viatura da empresa tal como estava contratualmente estabelecido. Na tese do Autor a liquidação deverá operar por referência ao prejuízo económico que teve com a utilização do veículo de que era proprietário.
A Ré contestou o articulado de liquidação e sustentou, em síntese, que há insuficiência de factos alegados pelo Autor que permitam ao Tribunal tornar quantificável o valor pecuniário correspondente ao custo do uso da sua viatura pessoal.
Mais disse que não é legítimo o recurso a critérios de equidade – critérios que a sentença proferida afastou – pelo que, não demonstrando o Autor o efetivo prejuízo económico pelo uso de veículo particular, deve ser negado provimento ao incidente.
O Autor respondeu, pugnando pela improcedência das exceções suscitadas e concluiu, a final, nos termos sustentados no articulado inicial.
I.2 Foi proferido despacho saneador e dispensada a seleção de factos assentes e controvertidos.
Procedeu-se à audiência de julgamento, culminada com a prolação de despacho que dirimiu a matéria de facto controvertida.
Subsequentemente foi proferida sentença, dela constando a fundamentação de direito e decisão seguintes:
- «(..)
3.2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
3.2.1. Da liquidação da prestação Conforme resulta da sentença proferida nestes autos na fase declarativa, a Ré foi condenada a pagar ao Autor “o benefício que este retiraria pela utilização do veículo automóvel para fins automóveis entre 21 de Maio de 2002 e 7 de Setembro de 2004, a liquidar em execução de sentença”. A liquidação em execução de sentença foi justificada nos seguintes termos: “ (…) o autor não logrou demonstrar, como lhe competia, qual o valor pecuniário dessa prestação em espécie. Com efeito, verifica-se que o autor apenas alegou, e ficou assente, até 8 de Setembro de 2004 o autor utilizou a sua viatura pessoal numa média 28 Kms diários, nas deslocações da sua casa, no Cacém, para o trabalho e vice-versa, aos fins-de-semana e férias, bem como nas deslocações em serviço, sem quantificar esse custo. Ora, em rigor, a expressão monetária do uso do veículo deverá traduzir o benefício económico que o trabalhador retira dessa utilização, tendo em atenção as características da mesma; ou, a contrario, podemos dizer que essa privação de uso corresponde a um valor quantificável em termos pecuniários. Sobre esta questão o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o valor dessa retribuição em espécie é o correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal da viatura, competindo ao trabalhador o ónus de alegar e provar aquele valor, nos termos do disposto no artº 342º, nº 1 CC. E ainda, que, quando não são apurados factos suficientes que permitam apurar o valor exacto desse benefício económico, deve o tribunal proferir condenação ilíquida, com a consequente remissão do seu apuramento para a execução de sentença, mesmo quando o autor tenha formulado pedido líquido (vide Ac. 4ª Secção, datado de 22.03.2006, na revista n.º 3729/05; de 10.05.2006, revista n.º 3490/05 e de 08.11.2006, revista n.º 1820/06). Destarte, pensamos, não há lugar à fixação por equidade de qualquer valor pecuniário, tendo antes de ser relegado para liquidação em execução de sentença o valor correspondente ao benefício económico que representava para o autor o uso do veículo automóvel nos períodos peticionados, no período em causa”. Ora, segundo a argumentação jurídica acima expendida cabia ao Autor o ónus de alegar e provar o valor real, concreto daquele benefício económico, entendendo-se na aludida decisão que não deveria o Tribunal recorrer a critérios de equidade. Na interpretação que fazemos daquela decisão não é possível recorrer à legislação (Portarias) indicadas pelo Autor pois tal seria desvirtuar o sentido da decisão da fase declarativa. A opção pela aplicação das Portarias nºs 88/2002, de 28.01; 303/2003, de 14.04; e 205/2004, de 03.03, podia ter sido equacionada na sentença e não o foi. Quer isto dizer que, não tendo o Autor provado o real benefício/prejuízo económico (dependendo da perspetiva) decorrente do uso do seu veículo pessoal ao serviço da Ré, tem a sua pretensão que improceder.
4. DECISÃO:
Pelo exposto, julgo totalmente improcedente, por não provado, o presente incidente e, em conformidade, absolvo a Ré BB, S.A., do pedido». Custas pelo Autor (cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC). (..)».
I.3 Inconformado com essa decisão, o Autor apresentou recurso de apelação, arguindo no respectivo requerimento, expressa e separadamente, a nulidade da sentença por “violação dos artigos 360.º n.º4 e 195.º n.º1, ambos do NCP”).
O tribunal admitiu o recurso com o modo de subida e efeito próprios.
As alegações de recurso foram concluídas nos termos seguintes:
(…)
I.4 A Recorrida apresentou contra alegações, finalizadas com as conclusões seguintes:
(…)
I.5 O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se pela procedência do recurso.
I.8 Foram colhidos os vistos legais.
I.9 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento, as questões que se colocam para apreciação consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito, ao julgar totalmente improcedente o incidente de liquidação e absolver a R. do pedido.
II. FUNDAMENTAÇÃO:
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal a quo, na consideração da sua relevância para a apreciação e decisão da causa, fixou a factualidade seguinte:
(…)
II.2. Nulidade da sentença:
O recorrente vem arguir a nulidade da sentença, fazendo-o expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso dirigido ao Juiz do Tribunal a quo, sustentando que face à insuficiência de prova invocada na decisão, deveria a Senhora Juíza ter feito uso do regime constante do artigo 360º nº 4 do NCPC, ordenando as diligências de prova necessárias e possíveis para alcançar a quantificação visada pelo incidente em causa; não procedendo assim, omitiu um acto que influiu, de forma irremediável, na decisão da causa, o que constitui nulidade à luz do artigo 195º do NCPC.
Como é sabido, a arguição de nulidades da sentença em processo laboral apresenta especificidades em relação regime regra do processo civil, estando sujeita a um regime especial.
Com efeito, o artigo 77º do Código de Processo do Trabalho, estabelece o seguinte:
“[1] A arguição da nulidade da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.
[2] Quando da sentença não caiba recurso ou não se pretenda recorrer, a arguição das nulidades da sentença é feita em requerimento dirigido ao juiz que a proferiu.
[3] A competência para decidir sobre a arguição pertence ao tribunal superior ao ou juiz, conforme o caso, mas o juiz pode sempre suprir a nulidade antes da subida do recurso”.
Sendo pertinente assinalar que este regime próprio do processo laboral provém já do CPT de 1963, onde constava consagrado no art.º 72.º, para depois ter sido mantido no CPT de 1981, (aprovado pelo Decreto-lei n.º 272-A/81 de 30 de Setembro), aí constando também no art.º 72.º, em cujo n.º 1 se dizia que “A arguição da nulidade da sentença é feita no requerimento de interposição do recurso”.
Entendia-se já então, pacificamente, que “Em processo laboral a arguição de nulidade de sentença deve ser feita logo no requerimento da interposição do recurso (artigo 72 n.º 1 do Código do Processo de Trabalho). Arguida apenas nas alegações, não pode conhecer-se de tal nulidade” [Cfr. Acórdão do STJ de 09-03-1994, proc.º 003832 CHICHORRO RODRIGUES, disponível em www.dgsi.pt/jstj].
No mesmo sentido, o Acórdão, também do STJ, de 23-04-1998, onde se explica que a razão da norma radica no “princípio da economia e celeridade processuais para permitir ao tribunal que proferiu a decisão a possibilidade de suprir a arguida nulidade” [BMJ 476, 1998, 276].
Posteriormente, a mesma regra passou a constar no n.º1 do art.º 77.º do CPT/99 (aprovado pelo Decreto-lei n.º 480/99, de 9 de Dezembro), embora com alteração de redacção, aditando-se-lhe a expressão “expressa e separadamente”, de modo a tornar mais evidente a interpretação da norma, mas no preciso sentido do entendimento que vinha sendo sufragado pelos tribunais superiores. Assim, a norma passou a dispor “A arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”, redacção que se mantém intocável, já que as alterações introduzidas ao CPT pelo Decreto-Lei nº 259/2009, de 13 de Outubro, não incidiram sobre este artigo.
Em suma, decorre deste normativo, como já decorria dos correspondentes artigos das versões anteriores do CPT, que a arguição das nulidades da sentença em processo laboral deve ser feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso. Tal exigência, é ditada por razões de celeridade e economia processuais e destina-se a permitir ao Tribunal recorrido que detecte, rápida e claramente, os vícios arguidos e proceda ao seu eventual suprimento. Quando assim não se proceda, sendo a arguição feita apenas nas alegações, a arguição é inatendível, porque intempestiva, o que significa que o tribunal superior não deve dela conhecer.
Como se afirma no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-02-2013, este é o entendimento firmado, reiterada e pacificamente, pela jurisprudência dos tribunais superiores [proc.º 2018/08.6TTLSB.L1.S1, FERNANDES DA SILVA www.dgsi.pt/jstj].
Revertendo ao caso, o A. cuidou de observar minimamente esse ónus, alegando a nulidade da sentença expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso e indicando os respectivos fundamentos.
Proceder-se-á, pois, ao conhecimento da arguida “Nulidade da Sentença” por alegada “Violação dos artigos 360º nº 4 e 195º nº 1, ambos do NCPC”.
Começaremos por deixar algumas noções elementares e gerais a propósito da nulidade da sentença. Dispõe o artigo 615.º do CPC, com a epígrafe (Causas de nulidade da sentença), na redacção do NCPC, aqui aplicável, que a sentença é nula quando (n.º1): a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar -se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Como é sabido o artigo 615.º do NCPC corresponde ao art.º 668.º do pretérito Código de processo civil, sem que lhe tenha sido introduzidas alterações de fundo. Releva esta observação para deixar claro que mantém inteira validade as posições doutrinárias e jurisprudenciais adiante citadas.
Como primeira nota, importa assinalar que deve distinguir-se entre nulidades da sentença e nulidades processuais. Como elucida o sumário do Acórdão do STJ de 26-09-2002 [Proc.º 2B2281, Conselheiro FERREIRA DE ALMEIDA, disponível em www.dgsi.pt]: II - Aquelas só ocorrerão, como causa invalidante típica, nas diversas hipóteses taxativamente contempladas no n. 1 do art.º 668º do CPC, possuindo um regime próprio de arguição plasmado nos arts. 668º, n. 3, 716º e 721º n.3 do mesmo diploma. III - Já quanto às nulidades processuais propriamente ditas e respectivos regimes, efeitos e prazos de arguição, encontram-se as mesmas elencadas e reguladas nos arts. 193º e ss 201º e ss do mesmo corpo normativo. IV - O regime de arguição das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas vem contemplado nos arts. 193º a 200º a 202º a 204º do CPC, sendo que as nulidades secundárias, atípicas ou inominadas -, genericamente contempladas no nº 1 do art.º 201º -, só produzem nulidade quanto a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame e discussão da causa, possuindo o respectivo regime de arguição regulado pelo art.º 205º do mesmo diploma.
Por conseguinte, as nulidades da sentença susceptíveis de serem arguidas em recurso são as referidas no n.º4, do art.º 615.º e só ocorrerão desde que se verifique uma das situações taxativamente contempladas nas alíneas b) a e) do nº 1 do mesmo artigo, nomeadamente, por falta de fundamentação de facto ou de direito, por oposição entre os fundamentos e a decisão, por omissão de pronúncia ou por excesso de pronúncia.
Acontece que os fundamentos invocados pelo A. não se enquadram em qualquer uma dessas hipóteses. Há aqui um equívoco conceptual do recorrente, pois com o fundamento invocado o que poderá verificar-se será antes a ocorrência de uma nulidade processual.
Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a nulidade processual consiste sempre num desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efectivamente seguido nos autos, traduzindo-se esse vício de carácter formal, num dos três tipos: a) prática de um acto proibido; b) omissão de um acto prescrito na lei; c) realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 387].
A lei distingue entre duas modalidades ou variantes distintas: as nulidades principais e as nulidades secundárias.
As primeiras são as que se encontram especificamente previstas na lei e às quais se refere o art.º 195.º, por remissão para as respectivas disposições legais, nomeadamente, a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a falta de citação (art.º 188.º) ou a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194.º).
As segundas, são as genericamente referidas na fórmula do art.º 195.º n.º1, onde se dispõe o seguinte:
- “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Nas palavras daqueles mesmos autores, “todos os demais casos de desvio na prática (ou omissão) do acto processual constituirão nulidades secundárias, desde que relevantes. Serão relevantes, segundo o critério estabelecido, quando a lei especialmente o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão da causa” [Op. cit., pp. 391].
Por conseguinte, no caso concreto, se porventura existisse uma nulidade processual apenas poderia ser secundária. De resto, note-se, o próprio A. assim alega, ao dizer que o tribunal a quo omitiu um acto que influiu, de forma irremediável, na decisão da causa, o que constitui nulidade à luz do artigo 195º do NCPC.
Contudo, também não há qualquer nulidade secundária, pois, como acima ficou explicado, para que exista é necessário que seja cometido um vício de carácter formal, resultante de um desvio entre um determinado formalismo prescrito na lei e aquele que foi seguido no processo.
Ora, o n.º 4 do art.º 360.º do CPC, não prescreve um procedimento formal. A norma impõe ao juiz um dever, mais precisamente o de procurar completar a prova para fixar a quantia devida, “mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial”, quando verificar que a produzida pelos litigantes se mostra insuficiente para atingir aquele fim. A omissão desse dever é susceptível de conduzir ao erro de julgamento, realidade jurídica que não deve ser confundida com qualquer nulidade processual.
Pronunciando-se sobre questão com contornos próximos, no sumário do Acórdão de 10-07-2001, do Supremo Tribunal de Justiça [proc.º n.º01A2039, Conselheiro AFONSO DE MELO, disponível em www.dgsi.pt] concluiu-se o seguinte: [1] Se não se apurou, no incidente de liquidação em execução de sentença, o montante indemnizatório requerido, impunha-se que o juiz ordenasse oficiosamente a liquidação por árbitros, nos termos do art. 809 n.º 1 do CPC, estando-lhe vedado absolver o réu do pedido. [2] A omissão da liquidação por árbitros não constitui nulidade que tinha de ser arguida pelas partes.
Para que melhor se entenda o alcance da citação não é despiciendo esclarecer que no Código de Processo Civil de 61, antes das alterações introduzidas ao processo executivo pelo Decreto-Lei º 38/2003, de 8 de Março, esta matéria constava regulada no art.º 809.º, dispondo, no que aqui interessa, o seguinte: [1] A liquidação é feita por um ou mais árbitros, além dos casos em que a lei especialmente o determine ou as partes o convencionem: [a] Quando a prova produzida pelos litigantes seja insuficiente para fixar a quantia devida e não seja possível completá-la mediante indagação oficiosa”.
Concluindo, improcede a arguida nulidade da sentença.
II.3. MOTIVAÇÃO DE DIREITO:
Para o caso se não ver atendida a arguida nulidade da sentença, veio o A. defender que “[A]inda que se assim não se entenda, a não utilização dos mecanismos e meios previstos no artigo 360º nº 4 do NCPC, constituirá uma situação similar ou próxima das previstas na alínea c) do nº 2 do artigo 662º do NCPC (antigo 712º nº 4) sempre o efeito será a anulação da sentença, com vista à produção de outros meios de prova suplementar pelo Tribunal a quo”.
Vejamos então.
O n.º2, do artigo 609.º do actual CPC, dispõe: “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte em que seja líquida”.
A norma corresponde, apenas com ligeira alteração de redacção, ao n.º 2 do artigo 661.º do anterior CPC, o qual, por seu turno, teve como antecedente o segundo período do art.º 661.º do CPC 1939, onde se dispunha “(..). Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, a sentença condenará no que se liquidar em execução”.
Sobre esta disposição elucida o Professor Alberto dos Reis o seguinte: “O tribunal encontra-se perante esta situação: verificou que o réu deixou de cumprir determinada obrigação ou praticou certo facto ilícito; quer dizer, reconhece que tem de o condenar; mas o processo não lhe fornece elementos para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face destes factos, nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução de sentença” [Código de Processo Civil anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 70/71].
Como se retira do extracto da sentença que segue, foi justamente o que aconteceu nos presentes autos:
-«(..) a atribuição ao autor de veículo automóvel assume natureza retributiva, uma vez que a empregadora, ao conferir àquele o direito de utilização do veículo na sua vida particular, incluindo em dias feriados, fins-de-semana e férias, e ao suportar os respectivos encargos com combustível, manutenção, reparações e seguros, ficou vinculada a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa prestação. Assim, constituindo o uso do veículo automóvel por parte do autor nos termos acordado em 21 de Maio de 2001, a realizar em 21 de Maio de 2002, uma componente da sua retribuição, assiste ao autor o direito ao ressarcimento dessa não atribuição no período em referência. Com base neste pressuposto, vejamos se são devidos os valores peticionados e segundo a fórmula do autor.~
1.1. Do valor dessa prestação:
Neste segmento fáctico afigura-se-nos que o autor não logrou demonstrar, como lhe competia, qual o valor pecuniário dessa prestação em espécie. Com efeito, verifica-se que o autor apenas alegou, e ficou assente, até 8 de Setembro de 2004 o autor utilizou a sua viatura pessoal numa média 28 Kms diários, nas deslocações da sua casa, no Cacém, para o trabalho e vice-versa, aos fins-de-semana e férias, bem como nas deslocações em serviço, sem quantificar esse custo. Ora, em rigor, a expressão monetária do uso do veículo deverá traduzir o benefício económico que o trabalhador retira dessa utilização, tendo em atenção as características da mesma; ou, a contrario, podemos dizer que essa privação de uso corresponde a um valor quantificável em termos pecuniários. Sobre esta questão o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o valor dessa retribuição em espécie é o correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal da viatura, competindo ao trabalhador o ónus de alegar e provar aquele valor, nos termos do disposto no artº 342º, nº 1 CC. E ainda, que, quando não são apurados factos suficientes que permitam apurar o valor exacto desse benefício económico, deve o tribunal proferir condenação ilíquida, com a consequente remissão do seu apuramento para a execução de sentença, mesmo quando o autor tenha formulado pedido líquido (vide Ac. 4ª Secção, datado de 22.03.2006, na revista n.º 3729/05; de 10.05.2006, revista n.º 3490/05 e de 08.11.2006, revista n.º 1820/06). Destarte, pensamos, não há lugar à fixação por equidade de qualquer valor pecuniário, tendo antes de ser relegado para liquidação em execução de sentença o valor correspondente ao benefício económico que representava para o autor o uso do veículo automóvel nos períodos peticionados, no período em causa».
Nessa consideração, o Tribunal a quo condenou a R. a pagar ao Autor “o benefício económico que este retiraria pela utilização do veículo automóvel para fins pessoais entre 21 de maio de 2002 e 7 de setembro de 2004, a liquidar em execução de sentença”.
O incidente de liquidação de sentença destina-se a obter a concretização do objecto de condenação da decisão proferida na acção declarativa, dentro dos limites do caso julgado, tendo sempre e necessariamente que conduzir a um resultado concreto e objectivo. Por outras palavras, o incidente de liquidação nunca poderá vir a ser julgado improcedente por “falta de prova”, pois tal desfecho, resultando na absolvição da Ré do pedido, inutilizaria a decisão proferida na acção declarativa e contraria a finalidade do incidente.
Precisamente por isso, numa solução que remonta ao CPC de 1939, quando a prova produzida pelos litigantes se mostre insuficiente para fixar a quantia de vida, a lei impõe ao juiz o dever de a procurar completar, “mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial” [n.º 4, do art.º 360.º CPC].
Mais, se ainda assim não for possível fixar a quantia devida, isto é, se o juiz através da indagação oficiosa não conseguir reunir outros elementos que lhe permitam decidir, num último recurso, sempre deverá o tribunal julgar de acordo com a equidade, por imposição do n.º3, do art.º 566.º do CC, dispondo que “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Em suma, como é entendimento firmado na jurisprudência dos tribunais superiores, o dever de indagação oficiosa imposto pelo n.º4, do art.º 360.º e, como último reduto, o julgamento de acordo com a equidade (art.º 566.º n.º3, do CC), evidenciam que o incidente de liquidação jamais poderá ser julgado improcedente. Nesse sentido, entre outros, no Acórdão de 17/01/2005, do Tribunal da Relação do Porto [proc.º n.º 456877, Desembargador Sousa Lameira, disponível em www.dgsi.pt], concluiu-se o seguinte: «[I] Se na acção declarativa os requeridos tiverem sido condenados a pagar à requerente a quantia que se liquidar em execução de sentença, relativamente ao valor de certos prejuízos por esta sofridos e sendo na fase executiva a prova produzida pelos litigantes (Requerente) insuficiente para fixar a quantia devida, deve o tribunal completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (artigo 807 n.3 do Código de Processo Civil).II - E, se em todo o caso não for possível determinar em concreto qual o valor do dano deve o tribunal fixar tal valor segundo as regras da equidade».
Contudo, note-se, tal não significa que o requerente esteja dispensado de alegar e procurar provar os factos necessários para apuramento e liquidação da quantia devida. Acontece é que no incidente de liquidação de sentença as regras do ónus de prova não funcionam “no sentido de que a insuficiência de prova pelo credor teria como consequência a fixação do crédito apenas no montante provado, com a improcedência da parte restante - mas, e sobretudo, que nunca poderá o incidente de liquidação vir a ser julgado improcedente, por falta de prova. Não sendo a prova produzida pelas partes suficiente para proceder à liquidação do crédito em causa, deverá o julgador levar a efeito a prossecução de tal objectivo oficiosamente, ultrapassando a situação de non liquet com a produção de prova (suplementar) que julgue adequada para o efeito (vg. pericial), e se mesmo depois não for, assim, possível atingir tal desiderato, deverá sempre então, e a final, julgar de acordo com a equidade, ou seja, fazendo um julgamento ex aequo et bono” [Acórdão de 04-12-2007 do Tribunal da Relação de Coimbra, proc.º n.º 249/2000.C1, Desembargador Isaías Pádua da Relação, disponível em www.dgsi.pt].
Revertendo ao caso, o Tribunal a quo julgou o incidente de liquidação improcedente na consideração de que “não tendo o Autor provado o real benefício/prejuízo económico (dependendo da perspetiva) decorrente do uso do seu veículo pessoal ao serviço da Ré, tem a sua pretensão que improceder”.
Por conseguinte, à luz do que se veio expondo logo se alcança que a decisão não pode ser mantida. Não tendo o Autor feita a prova necessária para se fixar a quantia devida, deveria o Tribunal a quo procurado colher outros elementos mediante indagação oficiosa, realizando as diligências que entendesse mais adequadas, se necessário, ordenando a produção de prova pericial (n.º 4 do art.º 360.º CPC). E, se porventura viesse a verificar-se que ainda assim não se lograva completar a prova com os elementos indispensáveis para a decisão, sempre lhe caberia decidir com recurso à equidade (art.º 566.º n.º3).
Sobre este último ponto importa deixar uma nota. Como se constata da decisão recorrida (cfr. Ponto II do relatório), a dado passo, reportando-se à sentença proferida na acção declarativa, consta o seguinte:“(..) entendendo-se na aludida decisão que não deveria o Tribunal recorrer a critérios de equidade”. Se bem a interpretamos, dela parece resultar implícito ter-se partido do pressuposto de que não era já possível julgar segundo a equidade, em razão de na sentença proferida na acção declarativa ter sido feita aquela afirmação.
Ora, se a nossa leitura é correcta, não tem razão o tribunal a quo ao partir desse pressuposto. A sentença proferida na acção declarativa é clara: entendeu-se que não deveria recorrer-se à equidade para fixar o valor pecuniário, na medida em que tal seria possível (em abstracto) e teria o seu lugar próprio no incidente de liquidação de sentença.
Por conseguinte, no incidente de liquidação ficaram em aberto todas as possibilidades, nomeadamente: i) a prova dos elementos suficientes para se fixar a quantia devida; na falta dessa prova e para a completar, a indagação oficiosa do Tribunal; ii) e, caso ainda assim não se lograsse obter os elementos necessários para a decisão, o recurso ao julgamento segundo as regras de equidade.
Importa esclarecer que a indagação oficiosa de prova complementar não é sempre forçosa, pois poderá haver casos em que o julgador conclua justificadamente, elucidando-o na fundamentação da decisão, que a realização de outras diligências, inclusive a produção de prova pericial, não conduzirá a um resultado útil e, logo, que deverá, sem mais, julgar segundo as regras da equidade.
Mas não é esse o caso dos autos. Senão vejamos.
Atentos os termos da condenação, o objecto da liquidação consiste na quantificação do “benefício económico que (o A.) retiraria pela utilização do veículo automóvel para fins pessoais entre 21 de maio de 2002 e 7 de setembro de 2004”.
Estáprovado que o A., naquele período de tempo residia na Praceta (…), no Cacém (facto 2) e que esteve sempre alocado ao cliente HP cujas instalações se situavam na Rua (…), Paço de Arcos (facto 3); entre a sua residência e aquele local distam, em percurso de ida e volta, 24 kms (facto 4).
Assim como se sabe que ao fim de semana o Autor usava a sua viatura para ir buscar a atual companheira a casa desta, sita em Alfragide, na Avenida (…), Amadora, saindo depois para passear nos concelhos de Lisboa e Oeiras (facto 5) e, findo o passeio, regressando a sua casa (facto 6), sendo que entre esta e da sua companheira, num percurso de ida e volta, distam 22 km (facto 7).
Sabe-se igualmente que nas férias o Autor usava a sua viatura para se deslocar para as praias de Sesimbra (ida e volta), Costa da Caparica (ida e volta) e Vilamoura-Vale Garrão (ida e volta), numa média diária de 62kms (facto 8)
Assim como está apurado que em todas essas deslocações o Autor usou a viatura de marca Volkswagen, modelo Pólo, de matrícula (…), de que era proprietário (facto 9).
Por último, consta igualmente provado que as deslocações em viatura própria implicavam o pagamento de combustível, desgaste da viatura, Seguro, pneus e portagens (facto 10).
Portanto, deste conjunto de factos conhece-se a rotina do A. em termos de deslocação na viatura, sendo possível concluir que, em regra, nos dias úteis daquele período fazia o percurso para o trabalho; nos fins-de-semana pelo menos desloca-se a casa da actual companheira, passeavam e voltava; e nas férias – que se poderá considerar o período normal aula de 22 dias úteis – deslocava-se para a praia.
Assim, sendo certo que também se conhecem quais as distâncias para realizar qualquer um daqueles percursos, conjugando esses elementos não oferecerá dificuldade estimar o valor total de quilómetros percorridos com o veículo no período de tempo em causa.
Por outro lado, conhece-se a marca, modelo e ano do veículo (face à matrícula); não se sabe qual a gama do modelo, designadamente a cilindrada, mas é possível sabê-lo face aos dados constantes do registo automóvel. Logo, é igualmente possível determinar, naturalmente em valores aproximados, o seguinte: i) o consumo médio de combustível e, atendendo aos quilómetros percorridos e aos preços à época, o valor estimado dos custos suportados com combustível; ii) a desvalorização média do veículo, atento o tempo e os quilómetros percorridos; iii) o valor médio de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, atenta o tipo de veiculo e antiguidade; iv) o número de pneus que terá sido consumidos naqueles quilómetros e o preço médio, atento o tipo de pneus que equipava o veículo de origem.
Finalmente, seguindo a mesma linha de raciocínio é também possível estimar o valor despendido em portagens durante as férias, tomando por base um percurso normal.
Por conseguinte, crê-se que nesse caso terá plena aplicação o disposto no n.º4, do art.º 360.º, sendo possível reunir outros elementos de prova que complementem a já produzida e apontada, de modo a conseguir-se fixar a quantia devida.
Não é despiciendo assinalar que todos esses factos bem poderiam ter sido alegados pelo A. no requerimento inicial, ao invés de se limitar a invocar as Portarias nºs 88/2002 de 28.01, 303/2003 de 14.4 e 205/04 de 03.03, estabelecendo o preço por km, mas aplicável a situações específicas, designadamente às deslocações em serviço de funcionários públicos fazendo uso autorizado de veículo próprio.
Porém, reafirma-se, a falta de alegação desses factos não pode conduzir ao desfecho que o incidente teve, isto é, a improcedência. O Tribunal a quo errou ao não ter cumprido o dever imposto pelo n.º 4, do art.º 360.º do CPC.
Do disposto no art.º 662.º n.º 2 al. c) do CPC, resulta que a Relação pode anular o julgamento, mesmo oficiosamente, quando “(..) repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”, e não constem do processo todos os elementos que, nos termos do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto.
Consequentemente, sendo a prova produzida pelos litigantes insuficiente para fixar a quantia devida, nos termos da disposição acima referida entende-se impor-se a anulação do julgamento para que o tribunal a quo complete aquela prova mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (art.º 360.º n.º4, do CPC).
Conclui-se, pois, pela procedência do recurso.
III. DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, anulado o julgamento e actos posteriores, sentença incluída, para que o tribunal a quo complete a prova produzida mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial (art.º 360.º n.º 4 do CPC).
A repetição do julgamento não abrange a prova produzida e a decisão que a fixou.
- Custas a cargo da recorrida.
Lisboa, 15 de Abril de 2015
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes
Maria Celina de J. Nóbrega