PENA DE MULTA SUBSTITUTIVA
LIMITE MÁXIMO DA PENA
Sumário

A pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão não tem de ter, necessariamente, correspondência aritmética e está sujeita ao limite previsto no art. 47º, nº 1 do Cód. Penal, considerando a remissão feita no art. 43º, nº 1, do mesmo Código.
(Sumário elaborado pela Relatora).

Texto Integral

Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Sumário nº 52/14.6XELSB que corre termos na Secção de Pequena Criminalidade (J3) da Inst. Local de Lisboa, Comarca de Lisboa, foi o arguido J. condenado, como autor de um crime de especulação, p. e p. pelo art. 35º, nº 1, al. b), do D.L. nº 28/84, de 20 de Janeiro, por referência às Cláusulas 6ª e 7ª da Convenção para as Tarifas de Táxi, na pena de 1 (um) ano de prisão e 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), sendo que a pena de 1 (um) ano de prisão, foi substituída, nos termos do art. 43º do Cód. Penal, por igual período de pena de multa - 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

Da sentença veio o Ministério Público interpor o presente recurso, pedindo que se determine a sua revogação na parte em que viola o disposto nos arts. 43º, nº 1 e 47º, nº 1, ambos do Cód. Penal, e se ordene a fixação da pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão com respeito pelos limites legalmente estabelecidos.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

1. O arguido J. foi condenado, por sentença depositada em 18/06/2014, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros) e pena de 1 (um) ano de prisão substituída por igual período de pena de multa – 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias – à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
2. Ora, a divergência que explica o presente recurso prende-se, fundamentalmente, com a determinação da medida concreta da pena de substituição aplicada ao arguido na douta sentença proferida nos presentes autos, a qual extravasa e desrespeita os limites legais.
3. Dispõe o artigo 43º, nº 1, do Código Penal que «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º».
4. E refere o artigo 47º, nº 1, do Código Penal que «A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no nº 1 do artigo 71º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360.»
5. No presente caso, a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão extravasa o limite previsto no artigo 47º, nº 1, o qual é aplicável por força do disposto no artigo 43º, nº 1, ambos do Código Penal.
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Não houve contra-alegações.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer em que acompanha a posição do Ministério Público junto da primeira instância.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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Fundamentação:

A decisão sob recurso é o segmento da sentença que determina a substituição da pena aplicada, de 1 (um) ano de prisão, por 365 dias de multa.

Apreciando…

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.

Em questão está saber se a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão não tem que ter necessariamente correspondência aritmética e está sujeita ao limite previsto no art. 47º, nº 1 do Cód. Penal, considerando a remissão feita no art. 43º, nº 1, do mesmo Código.

Nos termos do nº 1 do art. 43º do Cód. Penal, “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º”.

Por seu turno, o nº 1 deste art. 47º estabelece que “a pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no nº 1 do artigo 71º, sendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360”.

Como resulta claramente da sentença recorrida, a pena de prisão de um ano ali fixada foi substituída pelo número de dias aritmeticamente correspondente: 365.

A correspondência aritmética na fixação da multa substitutiva da prisão tem tradição legislativa.

Com efeito, embora na sua formulação inicial, o Cód. Penal de 1886 (aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886) não configurasse a possibilidade geral de substituir penas (a substituição apenas podia operar nos casos em que a lei autorizasse), a partir da alteração ao Código determinada pelo D.L. 39688, de 5 de Junho de 1954, estabeleceu-se que “a pena de prisão aplicada em medida não superior a seis meses poderá sempre ser substituída por multa correspondente” (art. 86º).

No domínio do Cód. Penal de 1982 (onde a pena de multa como substituição da prisão até 6 meses que até então era facultativa, passou a ser regra) o nº 1 do art. 43º mantinha a correspondência aritmética, determinando que “a pena de prisão não superior a 6 meses será substituída pelo número de dias de multa correspondente, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir a prática de futuros crimes”.

Contudo, após a revisão operada pelo D.L. 48/95, de 15 de Março, o citado art. 43º foi alterado, passando a configurar o art. 44º, com a seguinte redacção no nº 1: “a pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º”. Ou seja, deixou de constar na norma a palavra “correspondente” na substituição da prisão por multa – a remissão para o art. 47º já era feita no anterior art. 43º (nº 3).

Actualmente, após a Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o artigo em causa voltou a ter o número 43º, dispondo o nº 1 que “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º”.

Assim, verifica-se que desde 1995 deixou de estabelecer-se que a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão seria “substituída pelo número de dias de multa correspondente”, passando a prever-se apenas a substituição da prisão por multa.

Coloca-se então a questão de saber se a eliminação da palavra “correspondente”, passados 41 anos, foi intencional.

A Comissão de Revisão do Código Penal que deu origem às alterações de 1995, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, discutiu a redacção do nº 1 do art. 43º (cfr. a acta nº 3 dessa Comissão, em 30.01.1989), assentando em seguir a doutrina defendida por aquele ilustre Professor, constando da acta que «Quanto à questão do afastamento da correspondência automática entre a pena de prisão e a pena de multa (traduzida pelo termo “correspondente”), a Comissão acordou que, dada a alteração da filosofia do artigo 43º, tornava-se obrigatória a modificação do seu nº 3. Segundo sugestão do Sr. Procurador-Geral da República, a sua redacção passaria a ser a seguinte: “3 - À determinação da multa que substituir a prisão e ao seu regime aplica-se disposto nos artigos 46.º e 47.º”. Deste modo ficaria vincada a ideia da eliminação da correspondência automática, reenviando-se o juiz para os critérios enunciados nesses artigos».
A intenção de eliminação da correspondência automática mantinha-se em 23.09.1990 (cfr. a acta nº 40), ali constando que «Quanto ao nº 2 (do art. 44º), pretende-se que não fique estabelecido qualquer critério aritmético, aplicando-se os próprios limites da pena de multa. A ideia é que, para evitar a prisão, o juiz pode ter que aplicar uma pena de multa mais elevada do que a que corresponderia pela aplicação de um critério meramente aritmético. O objectivo final do artigo é pois evitar a todo o custo a aplicação de penas curtas de prisão. A Comissão aprovou a manutenção da redacção vigente quanto à excepção e à remissão para o artigo 49º nº 2».

Todavia, consta da acta nº 41 (em 22.10.1990) que foi aprovada pela Comissão uma orientação diferente, aparentemente motivada por razões meramente pragmáticas, ali se referindo: «art. 44º - O Senhor Professor FIGUEIREDO DIAS propôs que a Comissão se debruçasse de novo sobre a matéria da substituição das penas curtas de prisão, frisando que a intenção primordial da Reforma é procurar que o Código Penal de 1982 entre finalmente em vigor, nomeadamente através da aplicação das penas de substituição. Tendo isso presente entendeu repor alguns problemas. O primeiro prende-se com uma sua sugestão que levará à eliminação, no nº 1, da referência à substituição da pena de prisão pelo número de dias correspondentes. Pretendia-se uma correspondência normativa e não automática. Não se irá, no entanto, suscitar alguma confusão, podendo originar novamente uma não aplicação da pena substitutiva? A Comissão pronunciou-se favorável a uma alteração que voltasse à ideia de correspondência (mais certa, com tradição e por isso mais convidativa à substituição). Em consequência foi aprovada a seguinte redacção: nº 1 – “A pena de prisão…é substituída por multa, pelo igual número de dias de multa ou por outra pena…”».

Esta redacção mantinha-se na acta nº 51 (em 15.01.1991).

Porém, da proposta de lei de autorização legislativa para o Governo alterar o Cód. Penal constava a intenção de “modificar o artigo 43º, que passará a ser o artigo 44º, de modo a prever que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, sendo correspondentemente aplicável o disposto no futuro artigo 47º”. E foi esta a redacção consagrada no D.L. 48/95, de 15 de Março.

Ora após tão ampla discussão sobre a norma, o facto do legislador ter decidido alterar a redacção aprovada no Projecto parece apontar para uma vontade, deliberada, de modificar a regra da correspondência aritmética.

E é precisamente esta a tese defendida no Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência nº 8/2013 de 14.03.2013, publicado na Série I do DR em 19.04.2013, onde se estabelece que “a pena de multa que resulte, nos termos dos atuais artigos 43.º, n.º 1, e 47.º do Código Penal, da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, deve ser fixada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º e não, necessariamente, por tempo igual ou proporcional ao estabelecido para a prisão substituída”.

Na fundamentação deste Acórdão pode ler-se que:
«Para os defensores da tese de que, na substituição da prisão por multa, se tem de proceder a uma equivalência aritmética de 1 dia de prisão por 1 dia de multa, só existe, nos nossos dias, um único bom argumento: o da tradição. Com efeito, essa regra aritmética vigorou de modo consolidado, pelo menos, entre 1954 e 1995, não só porque a lei o indicava de modo suficientemente claro, mas também porque a jurisprudência de então nunca acolheu a tese, adiantada pelo Professor Figueiredo Dias nos seus ensinamentos, de que a correspondência mencionada na lei não era de ordem aritmética, mas normativa. Já o argumento da “certeza” na operação de substituição, que foi usado (…) para incentivar a substituição das penas curtas de prisão, era exacto na altura, mas já não procede nos nossos dias. Com efeito, à época, a substituição da prisão por multa devia ser feita nas penas de prisão até 6 meses, portanto, entre 30 e 180 dias de prisão, limites que eram comportados pelos admitidos para a pena de multa, pois esta fixava-se entre um mínimo de 10 e um máximo de 360 dias. Nos dias de hoje, porém, a substituição da prisão por multa deve ser feita nas penas de prisão até um ano (365 dias) e, portanto, como os limites da pena de multa se mantêm inalterados, já não é possível substituir por igual número de dias de multa as penas de prisão fixadas entre 361 e 365 dias.
(…) os Códigos Penais comentados de Maia Gonçalves, Paulo Pinto de Albuquerque e Simas Santos – Leal Henriques referem que a multa de substituição se apura por número de dias correspondentes aos da prisão substituída. Porém, todos eles se apoiam na redacção aprovada pelo Projecto de Revisão que esteve na origem da reforma do Código em 1995, mas não explicam qual a razão por que a versão da norma em causa se afastou ostensivamente daquela redacção.
(…) A melhor interpretação da lei é (…) através da interpretação literal do preceito. Não só porque desapareceu qualquer menção à correspondência entre a prisão e a multa, mas também porque, ao se declarar que à multa de substituição “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º”, norma onde se determina que “a pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º”, se está a apontar para critérios de fixação da pena muito diferentes dos da de qualquer correspondência aritmética. Ainda no domínio da interpretação literal, é bom não esquecer que a norma em causa não se limita a impor, por regra, a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano por pena de multa, mas também, em alternativa, por outra pena não privativa da liberdade aplicável. Ora, essa outra pena não privativa de liberdade, que venha a ser aplicada em substituição da pena de prisão, pode não ter equivalência numérica com a de prisão (por exemplo, a pena de admoestação) ou, tendo-a, pode não ser em termos de igualdade (cf., por exemplo, o n.º 3 do próprio art.º 43.º e também o n.º 3 do art.º 58.º do C. Penal). Note-se, a propósito, que o «sacrifício» imposto pelo cumprimento de um dia de prisão não tem qualquer correspondência com o que resultaria de se impor um dia de multa, pelo que se pode concluir que a equivalência de 1 dia de prisão por 1 dia de multa só parece resultar de uma utilidade prática na operação de conversão. Na verdade, se tivesse de existir qualquer correspondência, seria a de que por cada dia de prisão corresponderiam muitos mais dias de multa, tudo dependendo da situação económica do condenado. Também há boas razões de ordem histórica para apoiar a tese do acórdão fundamento, pois a mudança da lei operada em 1995, ao romper com uma tradição de 41 anos, não foi fruto do acaso. Por fim, há também um apoio de ordem sistemática, pois, na filosofia da reforma de 1995 do C. Penal, as penas de substituição têm uma autonomia própria, distinta das penas principais e umas não dependem das outras quando são fixadas, embora entre elas possa haver alguma correspondência «normativa», já que são determinadas com base nos mesmos critérios do art.º 71.º do C. Penal. Em suma: por regra devem ser substituídas as penas de prisão aplicadas em medida não superior a um ano, por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. Caso a substituição se faça por multa, esta obedece aos limites impostos pelo art.º 47.º e é fixada de acordo com os critérios do art.º 71.º, n.º 1, do C. Penal, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e não, necessariamente, com obediência a regras de proporcionalidade.»
Já neste sentido, e também citada neste Acórdão, Sónia Fidalgo (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 20, nº 1, Janeiro-Março 2010), ensinava que “a determinação da medida da pena de multa de substituição é uma operação levada a cabo “de forma autónoma, sendo este o sentido da remissão que o nº 1, 2ª parte do artigo 43º do CP faz para o artigo 47º”. Deste modo, após ter determinado uma pena de prisão em medida não superior a 1 ano e depois de ter concluído que a pena de multa de substituição satisfaz as exigências de prevenção manifestadas no caso (artigo 70º do CP), o juiz terá de determinar autonomamente a pena de multa de substituição, dentro da moldura dada pelo nº 1 do artigo 47º - com o mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias. Dentro desta moldura, o juiz fixará a medida concreta da pena de multa de substituição de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no nº 1 do artigo 71º, a culpa e as exigências de prevenção”.

Assim, considerando o teor do Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência nº 8/2013 de 14.03.2013 e os argumentos ali expendidos, podemos concluir que a substituição da prisão por multa deve ser feita, nas penas de prisão até um ano, por multa até 360 dias, por ser esse o limite máximo da pena de multa (art. 47º 1 do Cód. Penal) e porque a substituição da pena de prisão por multa não tem que se cingir a uma correspondência matemática.

No caso em análise, e de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no nº 1 do art. 71º do Cód. Penal, a culpa e as exigências de prevenção, deve a pena de multa substitutiva fixar-se no limite máximo, ou seja, 360 dias (à taxa diária fixada na sentença).
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Decisão:

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando parcialmente a decisão recorrida e determinando-se que a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão seja fixada em 360 (trezentos e sessenta) dias.
Sem custas.


Lisboa, 26-05-2015

(processado e revisto pela relatora)
(Alda Tomé Casimiro)
(Cid Geraldo)