FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA
Sumário

- Constitui falsificação grosseira aquela que é patente numa observação sem esforço do documento, por parte de qualquer pessoa comum, ou seja, em que a desconformidade com a realidade é imediatamente apreensível por qualquer observador
-O que justifica a não punibilidade da falsificação grosseira é a insusceptibilidade de ela causar qualquer prejuízo ou benefício ilegítimos, não se verificando (nem mesmo em abstracto) o perigo que a criminalização da falsificação pretende afastar. Por isso, mesmo que uma falsificação de um documento (ou um uso de documento falso) se consume, mesmo que não estejamos perante simples tentativa, poderá tal falsificação (ou uso de documento falso) não ser punível se estivermos perante uma falsificação grosseira. Por esta ser notória para qualquer pessoa comum, não representa qualquer perigo, independentemente de ter sido consumada (sem qualquer resultado danoso, ou sequer qualquer perigo de resultado danosos) a falsificação do documento ou o uso do documento falso.
- No caso em apreço, o arguido não se limitou a identificar-se verbalmente com uma falsa identidade, tendo aposto no local da assinatura de ambos os documentos, pelo seu próprio punho, no local de assinatura, os dizeres “N.O.”, como se do seu nome se tratasse e tal correspondesse à sua assinatura, o que fez com o supra assinalado objectivo, sabendo que tal não era o seu nome e que estava a declarar por escrito um facto que sabia não ser verdade, pelo que não se trata esta situação de “falso grosseiro”.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:



            I – Relatório:


1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º671/10.0GCMFR, procedeu-se ao julgamento de N..., melhor identificado nos autos, pela imputada prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e de um crime de falsificação de documento, p. e p, pelo art. 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

No decurso da audiência de julgamento, o tribunal procedeu a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido relativamente ao crime de falsificação de documento, considerando-se correcto o enquadramento na al. c) não na al. a), do n.º 1, do art. 256.º do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a acusação pública e, em consequência, decido:
a) absolver o arguido N.D.S.F. da prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256.º, n.º 1 al. a) do C.P.;
b) condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de condução de veiculo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 2/98 de 3/1, na pena de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros);
c) condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256.º, n.º 1 al. c) do C.P. na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros);
d) em concurso real e efectivo e efectuando o cúmulo jurídico das penas concretamente aplicadas, condenar o arguido na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), o que perfaz a multa global de 1200,00 € (mil e duzentos euros);
(…)»

2. Inconformado, o arguido recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

I – O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de dois crimes, em concurso efectivo, um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, nºs 1 e 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro e um crime de falsificação de documento, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea c) do C.P.
II – O Recorrente foi absolvido da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
III - O Tribunal deu como provado na parte III, a) da Douta Sentença recorrida que:

1. Da acusação e da discussão da causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1– No dia 13 de Junho de 2010, na EN 116, nos Salgados, em Mafra o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 52....
2– Na sequência de uma acção de fiscalização rodoviária, o arguido foi mandado para por militares da GNR. Nessa acção, constatou-se que o documento único do veículo não estava regularizado, pelo que se procedeu à apreensão do mesmo e à autuação do arguido/condutor.
3– Nessa altura o arguido identificou-se verbalmente como sendo “N.M.E.O.” e assinou o auto de apreensão nº 0011482 e o auto de contra-ordenação nº 271027509, neles apondo, pelo seu punho, a assinatura com os dizeres “N.O.”.
4– Com a conduta acima descrita quis o arguido eximir-se ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação e desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo com a matrícula 52....
5– O arguido, aquando da assinatura, apôs com o seu punho, os dizeres “N.O.”, como se da assinatura deste se tratasse, imitando-a.
6– Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 52.., sem que fosse possuidor de carta de condução.
7– O arguido quis conduzir o veículo sem ser possuidor de documento que o habilitasse a essa condução e sabia que cometia um crime.
8– Agiu livre, deliberadamente e consciente de ser a sua conduta proibida por lei.
9– No certificado de registo criminal do arguido consta averbada a sua condenação pela prática em 20-7-2007 de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença de 11-6-2008, transitada em julgado em 30-6-2008, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 4,00 €, a qual se mostra extinta pelo seu pagamento.
10– O arguido encontra-se desempregado, não auferindo qualquer rendimento.
11– Vive com sua companheira e sua filha, com 11 anos de idade, em habitação cedida pelo pai daquela.

IV– O arguido identificou-se verbalmente perante o agente de autoridade com a identidade de outra pessoa, de N.M.E.O. , com vista a encobrir a prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, nºs 1 e 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro.
V– O enquadramento jurídico estabelecido na parte III, a), 1.2 da Douta Sentença é incorrecto na medida em que não se procedeu à autuação do Recorrente como arguido, mas sim e apenas como condutor do veículo, visto que a responsabilidade pela prática da contra-ordenação a que se refere o Auto nº 271027509 é do proprietário(a) do veículo, nos termos do artigo 135.º, nº 3, alínea b) do Código da Estrada.
VI- O arguido não foi constituído arguido no referido processo de contra-ordenção, apenas intervindo como condutor, para efeitos de notificação desse processo, nos termos do artigo 176.º, nº 9 do Código da Estrada (na redacção do Código da Estrada aplicável à data dos factos, a que corresponde o actual nº 10, pela redacção introduzida pela Lei nº 72/2013, de 3 de Setembro).
VII– Deve o ponto 1.2 da alínea a) da Parte III da Douta sentença ser revogado, na medida em que considere o Recorrente como condutor do veículo e não como arguido do processo de contra-ordenação; e consequentemente
VIII- Também terá de ser revogado o ponto 1.4, da alínea a) da Parte III – Fundamentação, da Douta Sentença, na medida em que o arguido não se quis eximir ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação nº 271027509, uma vez que esse pagamento da coima apenas era, única e legalmente, exigível à pessoa do proprietário do veículo, nos termos do artigo 135.º, nº 3, alínea b) do Código da Estrada, bem assim como se extrai do referido auto de contra-ordenação, constante no processo, onde se encontra indicada outra pessoa como arguida nesse mesmo processo;
IX- No dia 13 de Junho de 2010, o Recorrente, ao ser fiscalizado pelos agentes de autoridade, identificou-se verbalmente como “N.M.E.O.”, e deu a data de nascimento desta pessoa aos agentes de autoridade, por sua vez;
X– Os agentes da autoridade, em pesquisa ao sistema informático, extraíram os outros elementos pessoais do N.M.E.O., como carta de condução, Bilhete de Identidade, e preencheram o auto de contra-ordenação e o auto de apreensão com esses dados;
XI– O Recorrente limitou-se a assinar “N.O.”, com a sua própria letra, o seu modo próprio de assinar (do Recorrente), sem ter intenção de imitar a do legítimo N.O..
XII- As conclusões do relatório de perícia científica de fls. 78-80 provam o afirmado pelo Recorrente.
XIII- O Recorrente não tinha qualquer documento de identificação pessoal do N.M.E.O..
XIV– O Recorrente tentou, dessa forma, eximir-se à responsabilidade criminal inerente à condução do veículo sem habilitação legal, e não ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação, porque não lhe podia ser imputada, nem desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo com a matrícula 52..;
XV– Contrariando assim o que refere o ponto 1.5, da alínea a) da Parte III – Fundamentação, da Douta Sentença, devendo esta ser revogada nos termos indicados.
XVI- Verifica-se pelo depoimento do senhor N.M.E.O., prestado em audiência de julgamento, que aquela nem sequer era a sua assinatura.

A Digníssima Procuradora-Adjunta perguntou expressamente:

Não é a sua assinatura?
O senhor N.M.E.O. respondeu peremptoriamente: Não.

Deve extrair-se do depoimento, e da forma como foram respondidas as perguntas, que aquela assinatura aposta no auto de contra-ordenação nº 271027509 e do auto de apreensão nº 11482 nem sequer era a assinatura do senhor N.M.E.O..

XVII– A existir falsificação de assinatura por parte do Recorrente, esta seria sempre grosseira, porque qualquer homem médio pode detectar num mero exame perfunctório, sem qualquer esforço, por confronto entre as assinaturas apostas no auto de contra-ordenção e no auto de apreensão e a assinatura do N.M.E.O.; Pelo que
XVIII- A conduta do Recorrente não é sancionada criminalmente.
XIX- O Recorrente, ao apresentar identificação de outra pessoa no momento da fiscalização por agente de autoridade, pretendeu eximir-se à responsabilidade criminal e pôr em causa o interesse punitivo do Estado, pois o Recorrente não era portador de título legal de habilitação para conduzir.
XX- O Recorrente não logrou eximir-se à responsabilidade criminal, tendo sido condenado pela prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, nºs 1 e 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro (não contestado pelo Recorrente), não tendo posto em causa o interesse punitivo do Estado, quanto a esses factos.
XXI– Um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-05-2012, proferido no âmbito do processo nº 26/11.9GAMCN.P1, cujo Relator foi Pedro Vaz Pato, esclarecer o que se deve entender por falsificação grosseira, no ponto IV 1. do Acórdão, afirmando o seguinte: Não revelará, assim, tanto o facto de a testemunha inquirida nestes autos se ter apercebido de imediato, ou não, da falsificação em causa, mas antes se isso ocorreria, ou não, com qualquer pessoa comum, para o que será relevante analisar, tão só, o próprio documento …
O que justifica a não punibilidade da falsificação grosseira é a insusceptibilidade de ela causar qualquer prejuízo ou benefício ilegítimo, não se verificando (nem mesmo em abstrato) o perigo que a criminalização da falsificação pretende afastar. Por isso, mesmo que uma falsificação de um documento (ou um uso de documento falso) se consume, mesmo que não estejamos perante simples tentativa, poderá tal falsificação (ou uso de documento falso) não ser punível se estivermos perante uma falsificação grosseira. Por esta ser notória para qualquer pessoa comum, não representa qualquer perigo, independentemente de ter sido consumada (sem qualquer resultado danoso, ou sequer qualquer perigo de resultado danoso) a falsificação do documento ou o uso do documento falso.
XXII- O agente de autoridade autuante deveria ter pedido ao Recorrente a apresentação de um documento legal de identificação pessoal para confrontar a assinatura, não o tendo feito;
XXIII- O agente autuante limitou-se a fazer pesquisa no sistema informático pelo nome de N.M.E.O. e data de nascimento (únicos dados conhecidos pelo Recorrente), tendo sido utilizado os restantes dados constantes no sistema informático para preencher o auto de contra-ordenação, na parte respeitante ao condutor do veículo;
XXIV–A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, estabelecida no Acórdão do TRP de 03-10-2007, em que foi Relatora Olga Maurício, proferido no âmbito do processo nº 743314, em audiência, na 2ª Secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto, estabeleceu o seguinte:
Não comete o crime de falsidade de declaração, por não haver ainda sido constituída arguida, a pessoa que, encontrada a conduzir um veículo automóvel sem possuir a respectiva habilitação, dá ao agente da autoridade que a interpela uma falsa identidade.
Deverá ser tido em consideração a fundamentação aduzida neste Douto Acórdão, nomeadamente na parte transcrita para o artigo 27.º das presentes Alegações de Recurso.
XXV- A conduta do Recorrente não é enquadrável no artigo 359.º do Código Penal, essencialmente porque o Recorrente não foi constituído arguido no processo de contra-ordenação nº 271027509.
XXVI- O Recorrente apenas assinou os documentos auto de contra-ordenação nº 271027509 e do auto de apreensão nº 11482, na qualidade de condutor do veículo.
XXVII- Não é aplicável o art. 22 do DL 33.725, de 21 de Junho de 1944 porque esta norma foi revogada pelo artigo 53.º da Lei nº 33/99, de 18 de Maio.
XXVIII– Pelo exposto, a prova produzida nos presentes autos impunha ao tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da sentença recorrida, considerando que o recorrente não praticou o crime de crime de falsificação de documento, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea c) do C.P.
XXIX – O Recorrido deverá ser absolvido da prática do crime de falsificação de documento, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea c) do C.P.
(…)

3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que a sentença recorrida não merece censura, concluindo (transcrição das conclusões):

1. Resulta da prova produzida que o arguido na sequência de fiscalização de trânsito, identificou-se verbalmente perante os militares da GNR como “N.M.E.O.”.

Nessa altura foi elaborado pelos militares da GNR auto de contra-ordenação n.º 271027509 e auto de apreensão de veículo n.º 0011482.

Em ambos os documentos o arguido apôs no local de assinatura do visado “N.O.”, como se do seu nome se tratasse e tal correspondesse à sua assinatura.

2. Também resulta da factualidade provada que o arguido fez isso com dois objectivos distintos: o primeiro, de ocultar das autoridades o facto de não possuir licença de condução que o habilitasse a conduzir veículos automóveis; o segundo, de não ser responsabilizado pela contra-ordenação praticada e pela apreensão do veículo.

3. Temos que, o arguido assinou os documentos com o nome de outra pessoa e tinha por objectivo encobrir a prática de um crime de condução sem habilitação legal, bem como causar prejuízo ao Estado, eximindo-se do pagamento de uma coima.

Ao que acresce que o arguido sabia que tal não era o seu nome e que estava a declarar por escrito um facto que sabia não ser verdade.

4. Nem se diga que o arguido não podia eximir-se do pagamento da coima, porquanto o responsável pela contra-ordenação era o titular do documento de identificação do veículo. Essa é a regra geral, mas tal responsabilidade pode ser afastada, se essa pessoa provar que o condutor do veículo na data da prática dos factos utilizou a viatura indevidamente ou infringiu ordens e instruções. Nesse caso o responsável é o condutor do veículo.

5. Recorda-se que constitui falsificação grosseira aquela patente numa observação sem esforço do documento, por parte de qualquer pessoa comum. Ou seja, imediatamente apreensível por qualquer observador.

6. A falsificação grosseira não é punível, porquanto não é passível de causar qualquer prejuízo ou benefício ilegítimos. Isto é, não existe o perigo daquela falsificação induzir qualquer pessoa em erro.

7. O falso grosseiro decorre de uma observação do próprio documento. Não decorre de uma observação do documento, em comparação com um documento verdadeiro. Pois tal já não pode ser efectuado por um homem médio, mas sim, um homem que conheça a assinatura verdadeira em causa e requer uma observação atenta.

8. A falsificação dos autos foi de tal forma credível, que os militares da GNR que efectuaram a fiscalização nela acreditaram e apenas souberam que não correspondia à verdade posteriormente. E não resulta dos autos que esses militares tivessem uma capacidade de discernimento inferior à média e, portanto, fossem facilmente enganados.

9. Deste modo, a factualidade dada como provada, que resulta de toda a prova produzida em audiência de julgamento, contém todos os elementos típicos do ilícito, tanto a nível objectivo, como a nível subjectivo. Não existindo dúvidas que o ilícito foi praticado
(…)

4. Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), aderiu à posição do Ministério Público junto da 1.ª instância.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

            II – Fundamentação:

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Atentas as conclusões apresentadas, as questões a apreciar são:

- impugnação de decisão sobre a matéria de facto;
- saber se os factos provados integram a prática pelo recorrente do crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, al. c), do C.P., por que foi condenado.
           
            2. Da sentença recorrida:

2.1. O tribunal a quoconsiderou provados os seguintes factos:

1- No dia 13 de Junho de 2010, na EN 116, nos Salgados, em Mafra o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 52...
2- Na sequência de uma acção de fiscalização rodoviária, o arguido foi mandado parar por militares da GNR. Nessa acção, constatou-se que o documento único do veículo não estava regularizado, pelo que se procedeu à apreensão do mesmo e à autuação do arguido/condutor.
3- Nessa altura o arguido identificou-se verbalmente como sendo "N.M.E.O." e assinou o auto de apreensão n.º 0011482 e o auto de contra-ordenação n.º 271027509, neles apondo, pelo seu punho, a assinatura com os dizeres "N.O.".
4- Com a conduta acima descrita quis o arguido eximir-se ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação e desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo com a matrícula 52....
5- O arguido, aquando da assinatura, apôs com o seu punho, os dizeres "N.O.", como se da assinatura deste se tratasse, imitando-a.
6- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 52..., sem que fosse possuidor de carta de condução.
7- O arguido quis conduzir o veiculo sem ser possuidor de documento que o habilitasse a essa condução e sabia que cometia um crime.
8- Agiu livre, deliberada e consciente de ser a sua conduta proibida por lei.
9- No certificado de registo criminal do arguido consta averbada a sua condenação pela prática em 20-7-2007 de um crime de condução sem habilitação legal, por sentença de 11-6-2008, transitada em julgado em 30-6¬2008, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 4,00 €, a qual se mostra extinta pelo seu pagamento.
10- O arguido encontra-se desempregado, não auferindo qualquer rendimento.
11- Vive com sua companheira e sua filha, com 11 anos de idade, em habitação cedida pelo pai daquela.

2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):

Com interesse para a decisão da causa não ficou por provar qualquer facto.

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
           
A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma conjugada e crítica à  luz de regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
O arguido não prestou declarações quanto à matéria da acusação, nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. d) do C.P.P., apenas declarando a sua condição sócio económica, a qual assim foi assente pelo Tribunal.
Da conjugação do depoimento dos militares da GNR DJ e MN, ficou assente que o arguido conduziu o mencionado veículo automóvel sem que fosse titular de carta de condução para o efeito.
Igualmente se apurou, sem que dúvidas assomassem ao Tribunal, que foi o arguido quem assinou os mencionados documentos, porém com o nome de outra pessoa – N.M.E.O..
Esta pessoa, ouvida como testemunha, referiu conhecer o arguido por terem sido colegas de escola em Mafra, asseverando não ter nada que ver com a factualidade descrita na acusação, nem ter assinado qualquer auto elaborado pela autoridade policial.
Concatenando os testemunhos ouvidos com a documentação que consta dos autos, mormente o auto de contra-ordenação n.º 271027509 e o auto de apreensão n.º 0011482, ambos de 13 de Junho de 2010, a informação de serviço de fls. 12-13, o comprovativo de pesquisa junto do IMTT de fls. 18, e as conclusões do relatório de perícia científica de fls. 78-80, não podem restar dúvidas algumas da prática de toda a factualidade pelo arguido.
O conteúdo e valor probatório do auto de notícia – art. 169° e 243° do C.P.P. e Acs. RC de 2-11-2005, RP 5-1-2011 e RL 3-11-2011 - o qual não foi por qualquer modo infirmado em audiência de julgamento, antes confirmado cabalmente pelas testemunhas, na sua qualidade de o.p.c.s, que vivenciaram os factos relatados no mesmo e vertidos na acusação.
O Tribunal louvou-se no CRC do arguido, a fls. 167-169, quanto à condenação prévia já sofrida pelo arguido.
        
            3. Apreciando:

3.1. Alega o recorrente que o recurso tem como objecto toda a matéria da sentença condenatória que se reporta à imputação do crime de falsificação de documento p. e p. pelo 256.º, n.º 1, al. c), do C.P., «nomeadamente a impugnação da matéria de facto dada como provada na Douta sentença na parte III – Fundamentação, alínea a), 1.2., 1.4. e 1.5.».

Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt].

Como se diz no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt):

«Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»

            Os pontos de facto em causa têm o seguinte teor:

2- Na sequência de uma acção de fiscalização rodoviária, o arguido foi mandado parar por militares da GNR. Nessa acção, constatou-se que o documento único do veículo não estava regularizado, pelo que se procedeu à apreensão do mesmo e à autuação do arguido/condutor.

4- Com a conduta acima descrita quis o arguido eximir-se ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação e desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo com a matrícula 52....

5- O arguido, aquando da assinatura, apôs com o seu punho, os dizeres "N.O.", como se da assinatura deste se tratasse, imitando-a.
Relativamente aos pontos 1.2. e 1.4. da matéria de facto provada, alega o recorrente no corpo da motivação que.
«(…)não se procedeu à autuação do Recorrente como arguido, mas sim e apenas como condutor do veículo, visto que a responsabilidade pela prática da contra-ordenação a que se refere o Auto nº 271027509 é do proprietário(a) do veículo, nos termos do artigo 135.º, nº 3, alínea b) do Código da Estrada.

O arguido não foi constituído arguido no referido processo de contra-ordenção, apenas intervindo como condutor, para efeitos de notificação desse processo, nos termos do artigo 176.º, nº 9 do Código da Estrada (na redacção do Código da Estrada aplicável à data dos factos, a que corresponde o actual nº 10, pela redacção introduzida pela Lei nº 72/2013, de 3 de Setembro).
9.º
Pelo exposto, o ponto 1.2, da alínea a) da Parte III da Douta Sentença deverá ser revogado, implicando necessariamente que.
10.º
Também terá de ser revogado o ponto 1.4, da alínea a) da Parte III – Fundamentação, da Douta Sentença, na medida em que o arguido não se quis eximir ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação nº 271027509, uma vez que esse pagamento da coima apenas era, única e legalmente, exigível à pessoa do proprietário do veículo, nos termos do artigo 135.º, nº 3, alínea b) do Código da Estrada, bem assim como se extrai do referido auto de contra-ordenação, constante no processo, onde se encontra indicada outra pessoa como arguida nesse mesmo processo.»

No caso, provou-se que o arguido, na sequência de acção fiscalização de trânsito em que se verificou que o documento único do veículo que conduzia não estava regularizado, identificou-se verbalmente perante os militares da GNR como “N.M.E.O.”.

Nessa altura, foi elaborado pelos militares da GNR o auto de contra-ordenação n.º 271027509 e o auto de apreensão de veículo n.º 0011482.

Em ambos os documentos o arguido apôs no local de assinatura do visado os dizeres “N.O.”, como se do seu nome se tratasse e tal correspondesse à sua assinatura.

Pela mera verificação dos documentos em causa, constata-se que as assinaturas apostas pelo arguido nos referidos documentos o foram: no auto de contra-ordenação n.º 271027509 nos termos do artigo 176.º, n.º9, do Código da Estrada, ou seja, como condutor do veículo («Quando a infracção for da responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, a notificação, no acto de autuação, pode fazer-se na pessoa do condutor»); no auto de apreensão de veículo n.º 0011482, como condutor e fiel depositário.

Porém, não se pode dizer que o arguido não podia querer eximir-se ao pagamento de coima, porquanto o responsável pela contra-ordenação era o titular do documento de identificação do veículo e não o arguido, enquanto condutor.

Com efeito, a regra geral constante do artigo 135.º, n.º3, do Código da Estrada, é que o titular do documento de identificação do veículo é o responsável quanto às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito na via pública.

Mas tal responsabilidade pode ser afastada, se essa pessoa provar que o condutor do veículo na data da prática dos factos utilizou a viatura indevidamente ou infringiu ordens e instruções. Nesse caso o responsável é o condutor do veículo.

Daí que o juízo de que o arguido pretendeu eximir-se ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação e desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo seja inteiramente fundado, acrescendo, a nosso ver, face à lógica e regras da experiência, o intuito de encobrir o facto de estar a conduzir sem habilitação para o efeito.

Assim, a única alteração que o ponto 1.2. dos factos provados merece, para que se introduza maior precisão, é a necessária para que passe a constar:

«2 - Na sequência de uma acção de fiscalização rodoviária, o arguido foi mandado parar por militares da GNR. Nessa acção, constatou-se que o documento único do veículo não estava regularizado, pelo que se procedeu à apreensão do mesmo e ao levantamento de auto de contra-ordenação, em que o arguido figura como condutor.»

O que em nada altera o juízo (ponto 1.4.) de que o arguido pretendeu eximir-se ao pagamento da coima aplicável à contra-ordenação e desresponsabilizar-se pela apreensão do veículo, prevenindo o eventual afastamento de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo por via do qual responsável passa a ser o condutor.

Por outro lado, quanto ao ponto de facto 1.5., não há qualquer dúvida, não sendo questionado no recurso, que o arguido identificou-se verbalmente como sendo «N.M.E.O.» e, além disso, apôs com o seu punho, naqueles autos de apreensão e de contra-ordenação, os dizeres «N.O.», como se da sua assinatura se tratasse.

Contrapõe o recorrente que se limitou a assinar «N.O.» com a sua própria letra e modo de assinar, inexistindo semelhanças entre a dita assinatura e a do próprio N.O., para o que se socorre do relatório de perícia científica e do depoimento da testemunha N.M.E.O., a qual, conforme se confirma pela audição da gravação do seu depoimento, disse não ter assinado os documentos em causa.

Como é evidente, se a testemunha disse não ter assinado os documentos, necessariamente teria de dizer que aquela não era a sua assinatura: como poderia ser se a testemunha os não assinou?
O que importa, a nosso ver, é que o arguido integrou, pelo seu punho, nos documentos em causa, o nome de outra pessoa, como se fosse o seu próprio nome, ou seja, querendo passar por quem não era.

Neste contexto, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, com a ressalva acima assinalada, deve manter-se a factualidade provada.

3.2. Diz-se na sentença recorrida:

«O arguido foi ainda acusado da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256.º, n.º 1, alínea c), atentando na alteração da qualificação jurídica em tempo comunicada, do Código Penal.

Nos termos deste preceito, quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

O conceito de documento encontra-se plasmado no art. 255.º daquele diploma legal, considerando-se documento "a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante (…); e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta" - e é este segundo segmento da definição que mais interessa à matéria dos autos.

Destarte, por facto juridicamente relevante deve entender-se aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. Por documento tem-se a declaração, a representação do pensamento humano, e não o objecto em que esta é incorporada, o material que a corporiza - cfr. Helena Moniz, in "Comentário Conimbricense ao Código Penal", vol. II, págs. 667 e 676.

Oscila a doutrina quanto à ratio do preceito, na identificação do bem jurídico protegido pelo âmbito normativo, encarando-o uns como a verdade intrínseca do documento enquanto tal (Prof., Figueiredo Dias e Costa Andrade, citado por Helena Moniz,), e outros como a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório (Helena Moniz, in ob. cit., pág. 680 e pela mesma, em "O crime de falsificação de documentos", 1999, pág. 67).

Helena Moniz esclarece ainda que não será qualquer documento aquele capaz de abalar a segurança do tráfico jurídico, mas apenas aqueles que pela sua força probatória se revistam de um valor tal, a nível da confiança jurídica que a sociedade neles deposita, a ponto de abalar a tráfico jurídico.

Ou seja, (como lembram Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos - Código Penal Anotado, 2.º VoI., pág. l087 - podem revestir as mais diversas formas, como marcas, desenhos, cores, números, letras, chapas, ou, como é o caso dos autos, carimbos, ou seja, todo e qualquer símbolo seja qual for a forma de materialização), o que interessa é que pressuponham o requisito essencial da idoneidade relativamente à prova do facto que levou à sua inserção no objecto (Leal Henriques e Simas Santos, op.cit., loc. cit.).

Ainda no plano doutrinal, a falsificação tem sido classicamente distinguida como sendo de origem intelectual ou material. Na primeira o documento é inverídico, é falsificado na sua substância integrando uma declaração falsa, na segunda deixa de ser genuíno ou autêntico, imitando o agente, ou alterando algo que está feito segundo uma forma pré-determinada, querendo dar a aparência de que o documento é autêntico, e portanto falsificando o documento na sua essência material, ocorrendo uma alteração, uma modificação total ou parcial do documento - cfr. Helena Moniz, Comentário ob. cit., pág. 676.

Sendo este ilícito um crime intencional, integra o tipo subjectivo a intenção específica de obter um benefício ilegítimo, ou de causar um prejuízo a outrem ou ao Estado. Isto significa que enquanto a intenção compreende a previsão do facto e a vontade de o executar, o benefício assume as vestes da ilegitimidade se não tiver correspondência com qualquer direito.
(…)

Como se antolha da descrição típica de cada um dos ilícitos de que foi o arguido acusado, terá o mesmo que ser condenado em concurso real e efectivo dos dois tipos de crime, porquanto foram diversas e consecutivas as respectivas resoluções criminosas, bem como diversos os bens jurídicos violados.

Nas circunstâncias de tempo e lugar supra apuradas o arguido, sabendo não ser titular de carta de condução para o efeito, decidiu conduzir veículo automóvel na E.N. 116 e, com o patente objectivo de não ser responsabilizado seja por este crime, seja pela infracção estradal pela qual foi levantado auto de contra-ordenação, seja ainda pelas obrigações que decorrem da qualidade de fiel depositário na sequência da apreensão do veículo, assinou os autos de contra-ordenação e de apreensão em nome de N.O., ou seja, de N.M.E.O., pessoa que conhecia de infância.

Logo das regras da experiência decorre com evidência que estas condutas constituem crimes, o que o arguido não desconhecia, ainda assim mantendo a sua conduta, pelo que será condenado por ambos os ilícitos.»

O recorrente, louvando-se em jurisprudência que cita, sustenta que os factos não integram o crime de falsificação por que foi condenado e que sempre se trataria de uma falsificação grosseira.
No crime de falsificação de documento previsto no artigo 256.º, n.º1, do Código Penal (1995), pune-se:

«Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
           
Assim, e em suma, o documento é falso quando não corresponde à realidade, o que tanto pode ocorrer com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica). A integração no documento de uma assinatura de outra pessoa inclui não apenas o caso de o assinante não ser o autor do documento e assinar com o nome de “outra pessoa”, mas também o caso de o assinante ser o autor do documento, mas assinar com o nome de “outra pessoa”, condutas que constituem uma fraude na identificação (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 673, nota 9 ao artigo 256.º sobre «o abuso de assinatura de outra pessoa»).

No caso em apreço, o arguido não se limitou a identificar-se verbalmente com uma falsa identidade, tendo aposto no local da assinatura de ambos os documentos, pelo seu próprio punho, no local de assinatura, os dizeres “N.O.”, como se do seu nome se tratasse e tal correspondesse à sua assinatura, o que fez com o supra assinalado objectivo, sabendo que tal não era o seu nome e que estava a declarar por escrito um facto que sabia não ser verdade.

Diversamente do que alega o recorrente, não estamos perante uma falsificação grosseira.

Constitui falsificação grosseira aquela que é patente numa observação sem esforço do documento, por parte de qualquer pessoa comum, ou seja, em que a desconformidade com a realidade é imediatamente apreensível por qualquer observador.

O que justifica a não punibilidade da falsificação grosseira é a insusceptibilidade de ela causar qualquer prejuízo ou benefício ilegítimos, não se verificando (nem mesmo em abstracto) o perigo que a criminalização da falsificação pretende afastar. Por isso, mesmo que uma falsificação de um documento (ou um uso de documento falso) se consume, mesmo que não estejamos perante simples tentativa, poderá tal falsificação (ou uso de documento falso) não ser punível se estivermos perante uma falsificação grosseira. Por esta ser notória para qualquer pessoa comum, não representa qualquer perigo, independentemente de ter sido consumada (sem qualquer resultado danoso, ou sequer qualquer perigo de resultado danosos) a falsificação do documento ou o uso do documento falso.

No caso dos autos, não estamos claramente perante um falso grosseiro. Pois ao olhar para aquele documento qualquer pessoa acreditaria tratar-se da assinatura do arguido.

O falso grosseiro decorre de uma observação do próprio documento. Não decorre de uma observação do documento, em comparação com um documento verdadeiro. Pois tal já não pode ser efectuado por um homem médio, mas sim um homem que conheça a assinatura verdadeira em causa, requerendo uma observação atenta.

Como observa o Ministério Público, a falsificação em causa «foi de tal forma credível, que os militares da GNR que efectuaram a fiscalização nela acreditaram e apenas souberam que não correspondia à verdade posteriormente.  E não resulta dos autos que esses militares tivessem uma capacidade de discernimento inferior à média e, portanto, fossem facilmente enganados».

Assim, a factualidade dada como provada contém todos os elementos típicos do ilícito em apreço, tanto a nível objectivo, como a nível subjectivo, pelo que deve ser mantida a condenação, apesar da correcção introduzida na matéria de facto, totalmente irrelevante para efeitos de subsunção jurídico-penal.
           

            III – Dispositivo:

Nestes termos, acordam os Juízes da ...ª Secção desta Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso pelo arguido N.D.S.F. interposto e, em consequência, alteram a matéria de facto provada vertida no ponto 1.2. dos factos provados, que passa a ter o seguinte teor:

«2 - Na sequência de uma acção de fiscalização rodoviária, o arguido foi mandado parar por militares da GNR. Nessa acção, constatou-se que o documento único do veículo não estava regularizado, pelo que se procedeu à apreensão do mesmo e ao levantamento de auto de contra-ordenação, em que o arguido figura como condutor.»

No mais mantém-se a matéria de facto provada e a condenação nos seus precisos termos.
Sem tributação.

Lisboa, 15 de Setembro de 2015

(o presente acórdão, integrado por de dezoito páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)                               
(Maria José Machado)