RECLAMAÇÃO
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário

- A chamada reclamação do despacho que não admite o recurso ex artigo 643.º do nCPC é um verdadeiro recurso, razão pela qual não se deve dispensar que as alegações concluam pela formulação de conclusões, sob pena de indeferimento.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

Acordam em Conferência no Tribunal de Relação de Lisboa:


I-RELATÓRIO:


P. reclamou do despacho de 29.04.2015 que não admitiu recurso por si interposto.

Na sua minuta o reclamante não formulou conclusões.

Precisamente por falta de conclusões , o relator não admitiu o recurso.

Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, cuja minuta concluiu da seguinte forma:

««I.A presente reclamação para a conferência é admissível por duas ordens de razão: por um lado, porque a decisão ora em crise não se trata de uma verdadeira decisão sobre a admissibilidade (ou não) do recurso interposto pelo ora reclamante , pois, por não terem sido formuladas conclusões, nem sequer conheceu dos fundamentos da mesma , e, por outro, porque actualmente é pacífico que a decisão do relator é susceptível de reclamação para a conferência , nos termos do disposto nos artigos 643.º , n.º 4 e 652. N.º 3 do CPC.
II. A decisão ora em crise merece o mais veemente protesto, porque é frontalmente contrária à lei.
III. O meio de impugnação jurisdicional legalmente adequado para se reagir contra o despacho que não receba o recurso é a reclamação, estando previsto o seu regime processual no artigo 643 do CPC.
IV. Quem lança mão da reclamação contra o indeferimento do recurso não tem a necessidade de formular conclusões no requerimento que em que tal mecanismo processual, dado que tal não resulta do artigo 643.º do CPC.
V. Ao contrário do que resulta da decisão ora em crise a referência a ‘’tribunal recorrido’’ plasmada na referida norma não resulta do facto de ser aplicável o regime dos recursos, mas apenas e tão-somente do facto de o regime processual aí plasmado se referir à não admissão ou retenção de um recurso pelo tribunal.
VI. O ónus de concluir no final das alegações é próprio e exclusivo do regime do recurso jurisdicional (apelação e revista) e é inaplicável à reclamação. Consequentemente, nunca poderia o senhor Desembargador Relator decidir no sentido de não admissão da reclamação com fundamento na falta de conclusões.
VII. A interpretação adotada pelo Senhor Desembargador Relator, para além de ilegal, é inconstitucional por violação do princípio do direito ao processo equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
VIII. A decisão ora em crise viola o artigo 643.º do CPC , artigo 6.º da Convenção dos Direitos do Homem e artigo 20.º, n.º 4 da CRP’’.

Não assiste razão ao recorrente.

A impugnação das decisões judiciais reparte-se por duas espécies: o recurso e a reclamação (artº 628).

A lei é terminante na declaração de que despacho que não admita o recurso é impugnável por meio de reclamação (artº 643, nº 1).

No entanto, se se tiver presente que a reclamação consiste no pedido de reapreciação de uma decisão dirigida ao tribunal que a proferiu e que o recurso é um pedido de reapreciação de uma decisão, em regra não transitada, dirigido a um tribunal de hierarquia superior, com a finalidade de a revogar ou substituir por outra mais favorável ao recorrente, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que a reclamação contra o despacho que não admita o recurso não é uma reclamação mas verdadeiramente - um recurso.

Para isso nos alertava já Castro Mendes quando nas suas lições sustentava que «formal ou legalmente esta reclamação não é um recurso; materialmente é-o sem dúvida (o anterior recurso de queixa, do Código de 1939)»[1].

Posição seguida por Miguel Teixeira de Sousa, quando afirma que «apesar de o artigo 688.º a qualificar como reclamação, a impugnação do indeferimento ou da retenção do recurso pelo tribunal a quo é realmente um recurso, porque ela é dirigida ao presidente do tribunal superior que seria competente para conhecer do recurso não admitido ou retido»[2]. No mesmo sentido, também Pessoa Jorge se pronuncia. Este autor, nas suas lições de 73/74[3], refere que «a palavra reclamação aparece, todavia, em sentido diferente nos artigos 688.º e 689.º, a designar a impugnação do despacho de indeferimento de um recurso; esta «reclamação» é verdadeiramente um recurso, que na legislação anterior se chamava recurso de queixa ou simplesmente queixa»[4], tratando, consequente e coerentemente do «recurso de reclamação» no âmbito dos recursos ordinários em especial: a chamada reclamação não era, como não é, uma verdadeira reclamação, «mas sim um recurso em sentido próprio e até mesmo um recurso ordinário, embora não referido explicitamente na enumeração do artigo 677.º»[5]. E ainda, na mesma linha, mais próximo de nós, José João Baptista, quando classifica a reclamação para o Presidente do Tribunal Superior como recurso ordinário, utilizando para o designar a expressão tradicional (recurso de queixa)[6]. Esta natureza de verdadeiro recurso da impugnação do despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso explica, de resto, a razão pela qual na regulação do respectivo procedimento, a lei se refira repetidamente ao tribunal recorrido e não, como se impunha em estrita coerência com o nomen iuris com que o designou, ao tribunal reclamado. Este meio específico de reagir contra o despacho que não admita o recurso interposto sucedeu ao recurso de queixa do Código de 1939, que por sua vez correspondia à carta testemunhável do Código que o antecedeu.

Para compreendermos melhor o novo regime importa recordar a evolução havida quanto a esta matéria. Sem desenvolvimentos excessivos, que extravasam a economia deste texto, diremos que no Código liberal de 1876 da decisão que não admitisse o recurso de agravo havia recurso através de carta testemunhável.

Inserido no Título VII do Livro II, relativo aos recursos interpostos em primeira instância, o artigo 981.º daquele Código preceituava que os recursos «são os embargos, a apelação, os agravos e as cartas testemunháveis».

Se o juiz de primeiro grau obstasse a que interpusesse recurso de agravo, a parte protestava em audiência, na presença de duas testemunhas, e o escrivão passava carta testemunhável, copiando nela as peças que a recorrente lhe apontasse (artigo 1022.º, proémio).

Podia também a parte, em 10 dias, requerer ao presidente do tribunal superior que mandasse «escrever o agravo» (artigo 1022.º, § 1.º).

Dispunha, por sua vez, o artigo 1023.º que «a Relação ou o juiz de direito, em vista da carta testemunhável, mandará escrever o agravo quando for caso disso».

Tratando-se de um verdadeiro recurso, as cartas testemunháveis eram distribuídas na Relação na 7.ª espécie (artigo 1029.º).

Por outro lado, das decisões proferidas nas Relações competiam os recursos de apelação, de agravo e cartas testemunháveis, de embargos e de revista (artigo 1129.º), dispondo os artigos 1140.º e 1141.º que sendo negada por acórdão a interposição do agravo, a parte protestará no cartório do escrivão na presença de duas testemunhas, e o escrivão passará carta testemunhável, em vista da qual o Supremo Tribunal de Justiça mandará escrever o agravo, quando for caso disso.

Da decisão que não admitisse o recurso de apelação ou de revista, o recurso a interpor era o agravo.

Com o Código de 1939 o recurso de carta testemunhável transformou-se em recurso de queixa.

De acordo com o artigo 677.º daquele novo diploma «os recursos são ordinários e extraordinários. Os recursos ordinários são a apelação, a revista, o agravo, a queixa e o recurso para o tribunal pleno. Os recursos extraordinários são a oposição de terceiro e a revisão».

O novo recurso de queixa passou a servir para se impugnar a decisão que não admitisse qualquer recurso, fosse ele a apelação, a revista, o agravo, a revisão ou a oposição de terceiro. Na síntese de José Alberto dos Reis, «a carta testemunhável do Código velho era, no fundo um agravo com outro nome; a queixa do Código novo é um recurso que segue termos diferentes dos do agravo e é decidido pelo presidente do tribunal superior»[7].

Como traços salientes deste recurso (artigo 689.º), podemos destacar os seguintes:

i) A queixa era interposta para o presidente do tribunal superior a que competia conhecer do recurso negado;
ii) A queixa era um recurso misto. Perante as razões apresentadas pelo queixoso o tribunal poderia reconsiderar e admitir o recurso que anteriormente negara;
iii) O facto de o presidente atender à queixa não obstava a que mais tarde o tribunal superior decidisse em sentido contrário;
iv) Como a queixa era interposta nos termos referidos em i), não era objecto de distribuição nos tribunais superiores[8].

A reforma de 1961 alterou este regime. Cabe salientar, no essencial, duas alterações:

i) O «recurso de queixa» passou a chamar-se reclamação. 
ii) o processamento da reclamação deduzida no tribunal da Relação sofreu modificação. Na versão primitiva do Código de 39, só podia usar-se de recurso de queixa no segundo grau, depois de proferido acórdão que negasse a admissão do recurso ou o retivesse. Com a aludida reforma, proferido o despacho do relator, passa a haver uma única reclamação: a dirigida ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Como explica Eurico Lopes Cardoso «esta reclamação vai à conferência, não para os fins do artigo 700.º, n.º 3, mas para ser proferido acórdão que admita ou mande seguir imediatamente o recurso ou que mantenha o despacho reclamado.

Se a conferência mantiver o dito despacho, seguem-se os termos do n.º 4 do artigo 688.º»[9].

A reforma de 95/96 simplificou ainda mais a tramitação do julgamento da reclamação no segundo grau, eliminando a possibilidade da sua sujeição à conferência.

Com o novo regime dos recursos (DL 303/20007) alterou-se uma vez mais e significativamente o regime do recurso de reclamação mantido , no essencial na reforma de 2013.

Ora, como dissemos no despacho recorrido, Dispõe o artigo 643.º  do nCPC que do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de dez dias contados da notificação da decisão (1); o recorrido pode responder à reclamação apresentada pelo recorrente , em prazo idêntico ao referido no número anterior (2); a reclamação, dirigida ao tribunal superior, é apresentada na secretaria do tribunal recorrido, autuada por apenso aos autos principais e é sempre instruída com o requerimento de interposição e as alegações, a decisão recorrida e o despacho objecto de reclamação (3).

Como vimos o recurso do despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso é materialmente um verdadeiro recurso (ordinário, agora a acrescentar à apelação e à revista) e não uma mera reclamação.

Esta natureza explica a razão pela qual a lei se refira repetidamente ao tribunal recorrido e não apenas, como se impunha, em coerência com o nomen juris que o designou, ao tribunal reclamado.

Quando tenha a forma escrita, o requerimento de interposição do recurso deve incluir a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade ((artigo 637, n.º 2, CPC). 

As alegações devem fechar com a apresentação de conclusões, isto é, de proposições sintéticas que contenham, por súmula, resumidamente, as razões por que se pede o provimento do recurso (artigo 639 CPC).

No regime pretérito, a falta de conclusões era suprível, dado que a lei vinculava o relator do tribunal ad quem a convidar o recorrente a apresentá-las e só no caso de aquele não aceder ao convite é que mandava aplicar-lhe a sanção de não conhecimento do recurso (artigo (690.º, n.º 4, CPC).

A Reforma de 2007 optou por um regime mais radical: a falta de conclusões impede irremissivelmente o conhecimento do objecto do recurso (artigo 685.º - C, n.º 2, CPC; cfr. também artigo 685.º-A, n.º 3).

Este regime manteve-se no actual Código (artigos 641.º, n.º 2, alínea b), e 639.º n.º 3).

Não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade neste regime.

***

Pelo exposto indefere-se a reclamação.
Custas pelo recorrente.

Lisboa-17.09.2015

(Luís Correia de Mendonça)
(Maria Amélia Ameixoeira)
(Rui Moura)

[1]  João de Castro Mendes, Recursos, AAFDL, op.cit:71.
[2]  Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…,:371.
[3]  Fernando Pessoa Jorge, Direito Processual Civil (Recursos), AAFDL, Lisboa, 1973/1974.
[4]  Op. cit.:5.
[5]  Op. cit.: 61 ss.
[6] José João Baptista, Dos Recursos, Universidade Lusíada, Lisboa, 1988:67 ss..
[7]  José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, explicado, Coimbra editora, Coimbra, 1939:424
[8]  Op. Cit.: 438.
[9]  Eurico Lopes Cardoso, Código de Processo Civil, Anotado, op. cit.:480.