ARRENDAMENTO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Sumário

- Inexistindo qualquer violação do contrato de arrendamento, tanto nas prestações principais, como nos deveres acessórios, por bando do R, apenas haverá lugar à responsabilidade civil extracontratual.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Parcial

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I-RELATÓRIO:

           

P…- Lda. Intenta ação declarativa de condenação com processo ordinário contra F….,peticionando a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de € 56.747,76, acrescida de juros de mora a contar da citação.

Alega em resumo:
--O R é senhorio da A.
 O r/c por cima da fracção do A foi arrendado pelo R . O uso que foi feito desse locado originou infiltrações para a fracção do A, provocando graves danos.

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O Réu contestou, arguindo a exceção dilatória da ilegitimidade da Autora e a exceção perentória da prescrição.

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FACTOS PROVADOS:

1- A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção de materiais publicitários, serviços de marketing e publicidade;
2- O Réu é proprietária do prédio urbano sito na Rua da ….. Concelho de …, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 1621;
3- O Réu, na qualidade de senhorio, deu de arrendamento à Autora a "Cave" do mencionado imóvel, conforme contrato de arrendamento junto a fls. 16 a 19, cujo teor se dá por reproduzido;
4- O contrato de arrendamento celebrado entre Autora e o Réu teve o seu início em 1.4.2007;
5- A renda era de € 800 por cada mês, sofrendo atualizações legais, conforme previsto na Cláusula Terceira;
6- Na última semana de 2008, o Réu cedeu a uns indivíduos o espaço correspondente aos rés-do-chão do referido imóvel;
7- Tal rés-do-chão fica, precisamente, por cima da cave arrendada pelo Réu à Autora;
8- Durante a cedência referida em 6, houve uma rutura do esgoto das sanitas do rés-do-chão, na sequência da qual ocorreram infiltrações no pavimento e que, posteriormente, vieram a manifestar-se na cave arrendada à Autora;
9-  Devido às infiltrações, o espaço arrendado à Autora ficou com grandes manchas no teto;
10- Caiu água do teto (laje do rés-do-chão) para a cave arrendada à Autora;
11 - Caíram águas sujas e ácidas, incluindo urina, um pouco por toda a cave;
12 - Apesar de nessa semana a Autora se encontrar encerrada para férias, o sócio da Autora foi ao local, no dia 1 de janeiro de 2009, onde constatou o referido em 8 a 11;
13 - A cave ficou com uma inundação de águas residuais, inclusive com urina, e com mau cheiro;
14- Caiu água e urina em cima de uma máquina industrial utilizada pela Autora. Em decorrência disso, a máquina - apesar de ainda ter sido reparada - ficou a trabalhar de forma incompleta e imperfeita, apondo riscos nas telas feitas;
15- Essa máquina era imprescindível à atividade desenvolvida pela Autora;
16- Se o sócio não tivesse ido do local, os danos seriam maiores;
17- O mandatário do autor enviou, em 12.5.2009, uma primeira carta ao Réu (e este recebeu-a) a reclamar uma indemnização pelos danos sofridos;
18 - Uma vez que não foi dada qualquer resposta, foi enviada mais uma carta com aviso de receção;
19 - A máquina referida em 14 foi objeto de um "Contrato de locação financeira" celebrado entre a Autora e o BBVA, com data de 27.2.2008, sendo o valor total da máquina de € 96.800
(documento de fls. 44-50, cujo teor se dá por reproduzido);
20 - À data do sinistro, o seguro atribuiu uma desvalorização de 16,667 sobre o equipamento;
21- NO entanto, apenas foi considerado o valor do equipamento sem o extrator de fumos e, por isso, apenas foi contabilizado pela seguradora o valor de € 88.390;
22- E, retirando a percentagem desvalorização, foi considerando o valor do equipamento à data do sinistro em € 73.658,03;
23- A este montante foi deduzido o valor de € 23.500 a título de retoma o que totaliza € 50.158,03 e foi ainda deduzido o valor da franquia de 10, a que corresponde € 5.015,80;
24- Assim, sobre o montante de € 96.800, a seguradora apenas liquidou à Autora a quantia de € 45.142,23;
25- Deste modo, em termos efetivos, entre os valores despendidos com os alugueres decorrentes do contrato referido em 19 (que findou em 25.23.2012), desvalorização, a retoma e a franquia, a Autora sofreu um prejuízo de € 43.247,76;
26- A Autora ficou privada da máquina desde 1 de janeiro de 2009 ao fim de julho de 2009;
27- Caso estivesse a funcionar, a máquina em questão teria proporcionado à Autora um lucro líquido mensal não inferior a mil euros;
28 - Durante o período referido em 26, a Autora pagou os alugueres do contrato referido em 19 no montante mensal de € 1.600;
29 - Durante o período referido em 26, a Autora não teve capacidade financeira para adquirir outra máquina;
30 - A Autora mandou reparar a máquina;
31- Todavia, a máquina só trabalhou da forma descrita em 14 e durante um período de três meses.

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A final, a acção foi julgada improcedente por não provada e, em consequência foi o R absolvido do pedido.

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O A impugna esta decisão, formulando estas conclusões:
 
a)Os presentes autos decorrem de uma ação interposta pela A., ora Apelante, P…Lda., que moveu contra o R F….;
b)As partes celebraram, entre si, um contrato de arrendamento sobre uma cave onde a A.exercia a sua atividade;
c)Sucede que o R., na última semana de 2008, cedeu o R/chão, por cima da cave arrendada pelo R. à A.;
d) Consequência de tal cedência, ocorreram infiltrações na cave, que avariaram uma máquina da A. que lhe havia custado, alguns meses antes, €95.000,OO (mais IV A);
e)A A. avançou com a competente ação civil contra o R, tendo a douta sentença recorrida considerado que o R na sua qualidade de proprietário é responsável e, por isso, responde pela infiltração e subsequentes danos sofridos pela A.;
f)No entanto, o tribunal “a quo”, apesar de considerar que o R. é o responsável, julgou a ação improcedente por entender que o direito da A. em reclamar o prejuízo pelo dano sofrido prescreveu;
g)O presente recurso reporta-se apenas à análise da figura da prescrição;
h)A douta sentença entende que é uma situação de "responsabilidade civil extracontratual" e, por isso, entende que o prazo de prescrição é de 3 anos, conforme disposto no art." 498° n° 1 do CC;
i)Antes de analisarmos a figura da prescrição aplicável ao caso concreto, importa indagar se a responsabilidade civil do R. pelos danos causados é de natureza contratual, ou extracontratual;
j)Conforme referido, a A. e R. celebraram entre si um contrato de arrendamento, pelo que o R. tinha obrigação de cumprir, e garantir, o bom cumprimento do contrato;
k)Ora, ao arrendar o referido espaço, e provocando danos no locado, e no bem da A. que ali se encontrava, dúvidas não há, conforme refere, e bem, a doutra sentença, que é ele o responsável pelos graves danos causados na máquina da A.;
I)Sendo assim, salvo melhor entendimento, a situação concreta será um caso de "responsabilidade civil contratual" logo, aplica-se o prazo geral de prescrição que é de 20 anos;
m) Por outro lado, admitindo-se apenas, e só por mero raciocínio hipotético, que o caso em análise se trata de "responsabilidade civil extracontratual " , ainda assim, somos do modesto entendimento que não ocorreu a figura da prescrição;
n)O dano verificado no equipamento da A. prolongou-se por mais dois anos após o incidente, ou seja, sensivelmente, até Setembro de 2011. E só nesta data a A. teve conhecimento da extensão dos danos sofridos pois, até ali ainda aproveitou a máquina embora, com graves limitações;
o)Deste modo, sempre com todo o respeito, e salvo melhor entendimento, o prazo prescricionaI contar-se-ia a partir de Setembro de 2011, altura em que a A. foi "obrigada" a prescindir da máquina;
p)Ora, admitindo-se que se trata de um caso de "responsabilidade civil extracontratual", também pelo exposto, não decorreu o prazo de prescrição de 3 anos do art.º 498~ 1103 do Código Civil (“CC”)
q)Acresce que, também nos termos do art.º 498 nº3, o prazo da A. não prescreveu;
r)Com efeito, diz-nos o art.º 498 do CC, no seu n° 3, que:”… Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável…”
s)Quanto ao facto ilícito, dúvidas não há que se trata de um "dano";
t)Este dispositivo refere que o art." 212° do CP diz que:..... Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia... ", - E, determina uma pena de prisão até 3 anos (art." 212° do CP);
u)O crime de "dano" passa a ser considerado "dano qualificado" quando se trata de coisa alheia "s… de valor consideravelmente elevado ... " (Vide alínea a) n" 2 do art; o 213° do CP);
- O valor da máquina da A. que sofreu danos tinha um valor de €95.000,00 (mais IVA);
v)Prevendo-se, para o "dano qualificado", uma pena de prisão de 2 a 8 anos (n° 2, in fine do art." 213° do CP);
w)Os prazos de prescrição vêm consagrados no art.° 118° do CP, sendo que, quando se tratam de crimes puníveis com pena de prisão, cujo limite máximo for igual, ou superior, a 1 ano, a prescrição é de 5 anos;
x)E, quando se trata de crimes puníveis com pena de prisão, cujo limite máximo foi igual, ou superior, a 5 anos, a prescrição é de 10 anos;
y)Assim, quer seja crime de "dano", quer seja "dano qualificado", verifica-se que o direito da A., aqui Apelante, não prescreveu, na medida em que tal prazo é de 5 e/ou 10 anos;
z)Deste modo, admitindo-se que a situação em causa é de "responsabilidade civil extracontratual", o prazo não prescreveu por força do n° 3 do art.º 498°, do CC conjugado; 
aa) Neste sentido existe vasta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, conforme Acórdãos de 6-7-1993, 22-2-1994 e 8-6-1995, CoL Jurisp .. S, Ano I, tomo lI, pág. 180 e Ano lI, tomo 1, pág. 126 e BoI. Min. Just. N° 448, pág. 363;
bb)Nos termos do art." 639 do Código do Processo Civil, a douta sentença recorrida, com todo o respeito, viola entre outras normas e princípios jurídicos, o art.o 498° n° 3 do CC;
ee)E, caso fosse aplicado este dispositivo legal, não poderia ter colhimento a figura da prescrição, independentemente de se considerar que a responsabilidade civil seja de natureza contratual ou extracontratual;
dd)Com efeito, deveria ter sido aplicado aquele normativo do Código Civil e, bem assim, conjugado com os art.º/s 118°, 212°, e 213°, todos do CP, aplicando-se ao caso sub-júdice o prazo de prescrição de 5 ou 10 anos.

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Não foram juntas contra-alegações.

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Tendo em conta que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.º/s 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do CPC 2013, a única questão a decidir é saber se o direito de indemnização do A .prescreveu ,ou não.

O A não coloca em causa que o R responde “…por infiltração decorrente de rebentamento de canalização nos termos do art.º 493 nº1 do CC…”.
Porém, foi em função deste enquadramento que o Sr. Juiz considerou haver lugar à prescrição.

O apelante entende que existe alargamento do prazo por força do art.º 498 nº3 do CC, ou por aplicação do instituto da responsabilidade civil contratual.

Vejamos …

Sendo a responsabilidade de natureza extracontratual, o prazo de prescrição é de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa responsável e da extensão integral dos danos ( art.498 nº1 do CC ).

Porém, estabelece o nº3 do citado artigo - “Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo de prescrição aplicável”.

Entendeu o legislador que se os factos integram ilícito criminal e o prazo de prescrição do crime for superior não faria sentido restringir a possibilidade do exercício do direito antes que decorresse o prazo mais longo da prescrição criminal.

 Na verdade, para que a acção cível seja admitida nos termos do art. 498 nº3 do CC, basta que o facto ilícito constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento penal esteja sujeito a um prazo mais longo que o previsto para aquela, não estando subordinada à condição de simultaneamente correr procedimento criminal contra o lesante, pelos mesmos factos. É que o alongamento do prazo prescricional radica na especial qualidade do ilícito e não na circunstância de se demonstrar, em sede penal, o respectivo crime, tornando-se indiferente a amnistia[1] 

Questão mais controversa é a de saber se o alongamento do prazo de prescrição, previsto no art. 498 nº3 do CC é comunicável aos responsáveis meramente civis. 

Acolhemos, contra a posição de ANTUNES VARELA ( RLJ ano 123, pág. 25 e ano 124, pág. 30 e segs. ), o entendimento de que o prazo mais longo é aplicável também aos responsáveis meramente civis ;o  argumento essencial, com base na unidade do sistema jurídica, não arranca tanto do regime da solidariedade, postulando antes uma nova metodologia, cujo enfoque se situa nos termos em que respondem os responsáveis meramente civis.[2]

No entanto, a situação em análise escapa aos contornos do quadro conceptual aqui desenhado, como iremos explicar.

Como questão prévia, há que atentar no seguinte:

-o juiz cível não vai julgar criminalmente o responsável. O destino do processo – crime que se tenha, eventualmente, instaurado, é-lhe completamente indiferente. O que ele vai, apenas, fazer para o exclusivo fim de apreciar a arguida excepção da prescrição é o determinar se aqueles factos integram ou não certo crime que, em conformidade com a lei penal, deva ou não considerar-se prescrito.

Decisivo apenas é que o juiz cível entenda, se sim ou não, os factos articulados, tais como os desenha a autora, em abstracto e potencialmente, integram crime passível de certa pena.

Tal prazo só será efectivamente aplicável se a recorrente demonstrar o preenchimento do tipo objectivo e subjectivo daquele crime[3]

Voltemos, pois ,à factualidade.

-Na última semana de 2008, o Réu cedeu a uns indivíduos o espaço correspondente ao rés-do-chão do referido imóvel; Tal rés-do-chão fica, precisamente, por cima da cave arrendada pelo Réu à Autora; Durante a cedência referida em 6, houve uma rutura do esgoto das sanitas do rés-do- chão, na sequência da qual ocorreram infiltrações no pavimento e que, posteriormente, vieram a manifestar-se na cave arrendada à Autora.

Só podemos concluir que  está apurada a ruptura de esgotos, desconhecendo-se o modo e o porquê de tal ter ocorrido.

Ora, como bem é sabido o crime de dano é doloso, ou seja, exige-se o dolo. E este não está apurado.

É que o R, contra quem a acção foi interposta, não praticou qualquer facto ilícito do foro criminal, antes pelo contrário, ele é também lesado e tão-somente lesado.

Daí que não haja qualquer alongamento do prazo prescricional.

Finalmente, estaremos perante uma causa de pedir que traduza a responsabilidade extracontratual ou contratual?

Já demos conta que o Ex Sr. Juiz enquadrou os factos à luz da responsabilidade civil extracontratual, mas o apelante para que a prescrição não seja aplicável, entende que há lugar à responsabilidade contratual: o R é senhorio do A.

Coloca-se, assim, a questão de saber se ocorre concurso de responsabilidades.

No sentido afirmativo temos a solução extrema de Vaz Serra que preconizava a consagração legal da possibilidade do lesado optar por aquele tipo de responsabilidade que entendesse, podendo até escolher parte de uma e parte de outra. Em tais casos, gozará o credor da faculdade de optar pelo tipo de responsabilidade que mais lhe convier. Naturalmente a responsabilidade contratual que, por princípio - no mínimo quanto à prescrição e quanto à prova da culpa - lhe é mais favorável.[4] .

Em sentido inverso Almeida Costa defende que o que existe é apenas um concurso aparente legal ou de normas, “consumindo” o regime da responsabilidade contratual o regime da responsabilidade extracontratual:

"nas hipóteses de concurso das duas variantes da responsabilidade civil, há-de convir-se que qualquer delas, a funcionar isoladamente, esgotaria a protecção que a ordem jurídica pretende dispensar a casos desse tipo. A integração de tais hipóteses num ou noutro esquema - e que equivale à correspondente qualificação como ilícito contratual ou extracontratual - depende, portanto, da perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações. Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes fixarem a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos. Assim, parece que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual. Sintetizando: de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da consunção".[5]  

Concordamos com esta última posição, porquanto não existem dois danos distintos, nem duas condutas diferentes, nem do ponto de vista naturalístico, nem no plano jurídico. O que há são dois regimes legais de protecção do lesado que prevêem tal conduta e visam reparar tal dano, mas cada regime com a sua teleologia própria.

Porém, mesmo nos casos em que ocorre um dano, aparentemente, estranho à relação contratual (por parecer não decorrente da própria prestação debitória)…só ocorrerá responsabilidade contratual, por violação dos deveres laterais, independentemente do dever primário de prestação (violação essa que desencadeia responsabilidade contratual)[6]

Ora, estes deveres não podem deixar de ser aqueles impostos pela boa fé, como iremos justificar.

Seguindo de perto o Acórdão do STJ relatado pelo Sr. Conselheiro Lopes do Rego de 17-05-2012[7] podemos concluir que o conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos e perfeitamente diferenciados: no sentido de boa fé objectiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa fé subjectiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e respectivas exigências éticas.

Como afirma, por exemplo, Almeida Costa, ( Direito das Obrigações, 2006, pag. 120), neste último caso, a boa fé reconduz-se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação. Algo de diverso sucede com o ditame da boa fé, ele próprio uma regra jurídica que, inclusive, assume o alcance de princípio geral de direito.

Na situação dos autos, o que releva decisivamente para a composição do litígio é obviamente o conceito de boa fé objectiva, que atravessa toda a vida do contrato, desde as negociações preliminares ( art. 227º do CC), à integração do contrato ( art. 239º do CC) e ao cumprimento das obrigações dele emergentes ( art. 762º, nº2 do CC) – de particularíssimo relevo em toda a vida da relação contratual de seguro, desde o momento da celebração do contrato, acompanhando-a ao longo do respectivo desenvolvimento e execução.

No caso em análise, a principal prestação debitória a cargo do R consiste no facto de ter que assegurar ao A. o gozo do locado para o fim a que destina. Por isso, são suas obrigações entregar ao locatário a coisa locada, assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina ( art.ºº 1022 e 1031 do CC ).

Daí que nos termos do art.º 1033 do CC o locador seja irresponsável.

“….O disposto no artigo anterior não é aplicável:

a) Se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa;
b) Se o defeito já existia ao tempo da celebração do contrato e era facilmente reconhecível, a não ser que o locador tenha assegurado a sua inexistência ou usado de dolo para o ocultar;
c) Se o defeito for da responsabilidade do locatário;
d) Se este não avisou do defeito o locador, como lhe cumpria…”.

Perante este quadro conceptual como enquadrar a actuação do R ?

O que se apura é que caiu água do teto (laje do rés-do-chão) para a cave arrendada à Autora; caíram águas sujas e ácidas, incluindo urina, um pouco por toda a cave; A cave ficou com uma inundação de águas residuais, inclusive com urina, e com mau cheiro;
Caiu água e urina em cima de uma máquina industrial utilizada pela Autora.

Em decorrência disso, a máquina - apesar de ainda ter sido reparada - ficou a trabalhar de forma incompleta e imperfeita, apondo riscos nas telas feitas. Essa máquina era imprescindível à atividade desenvolvida pela Autora;
Por este facto, a A pede uma indemnização ao R a título de danos na máquina e lucros cessantes.

No entanto, estes factos tiveram origem num episódio estranho à relação contratual entre A e R ,ou seja, a sua causa teve origem numa ruptura de esgotos, imprevista e pontual. E que afectaram equipamentos da A.

Não podemos, pois, concluir que no decurso de toda a relação contratual o R não tenha agido de boa fé, tal como explicitamos este conceito .Mais, não podemos concluir que tivesse havido qualquer violação de uma prestação acessória da relação contratual: esta decorreria sem qualquer incidente , caso não tivesse surgido esta causa estranha a esta relação.

Significa isto, em resumo, que o R enquanto senhorio não deu causa aos danos do A: inexiste qualquer violação das prestações contratuais, tanto principais como deveres acessórios, ou laterais. 
Porém, inegável é que o A teve danos por causas que não lhe são imputáveis e que terá direito a ser indemnizado.

Mas, o responsável por esta indemnização terá que ser quem deu causa aos danos, ou quem por eles é civilmente responsável ,mas nunca o R, enquanto senhorio.

Termos em que esta situação em análise traduz um puro caso de responsabilidade civil extracontratual, inexistindo qualquer relação de consunção com a responsabilidade contratual.

Consequentemente, há lugar à prescrição nos termos definidos na sentença impugnada.

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Improcedem as conclusões.

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Síntese: inexistindo qualquer violação do contrato de arrendamento, tanto nas prestações principais, como nos deveres acessórios, por bando do R , apenas haverá lugar à responsabilidade civil extracontratual.

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão impugnada.
Custas pelo apelante.



Lisboa, 24/9/2015


Teresa Prazeres Pais
Octávia Viegas
Rui da Ponte Gomes


[1]cf ANTUNES VARELA, RLJ ano 132, pág.46, Ac do STJ de 22/2/94, C.J. ano II, tomo I, pág.126, de 20/2/2001, C.J. ano IX, tomo I, pág. 126, de 24/10/2002, C.J. ano X, tomo III, pág.104 ).
[2]cf., por ex., Ac do STJ de 8/6/95, BMJ 448, pág.363, de 6/7/93, C.J. ano I, tomo II, pág. 180, de 22/2/94, C.J. ano II, tomo I, pág.126 ).
[3]Cf Ac STJ de 25-10-2012 ,in DGSI
[4]Cf” Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual”,in BMJ nº 85,pag 208 e segs
[5]Cf  Direito das Obrigações ,5ªed.,1991,pag 440 e 441
[6]cf. Cons. Álvaro Rodrigues Reflexões Em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos in Revista da Faculdade de Direito da UCP 191 – 198 -
[7]Publicado in Dgsi