1.- Para que o princípio do contraditório possa ser respeitado (arts.18º e 32º, da C.R.P.), necessário se torna que o arguido manifeste, expressa e oportunamente, concordância ou não concordância com a suspensão provisória do processo, permitindo assim o exercício do seu direito de defesa da forma que entender oportuna.
2.- A ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física mas também a ausência processual no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, sendo que as garantias que a lei prevê só se podem tornar efetivas com a sua audição, tornando nulo, de forma insanável, o ato em que essas garantias não tenham sido respeitadas. O que significa que em casos tais se comete a nulidade prevista no art.119º, al.c), do 1. - 3. -A consequência é a prevista no art.122º, nº1, do mesmo diploma, ou seja, a invalidade do ato praticado bem como dos que dele dependerem.C.P.P..
Pelo Mmº Juiz de Instrução foi, em 11 de Março de 2015, a fls.244 a 244 verso, proferido o seguinte despacho:
“ Fls.237/ 240
Efetivamente o despacho proferido a fls.221 não se pronunciou sobre a pretensão deduzida pelo arguido a título principal no seu req. de 5/09/2014.
Esta pretensão consiste no seguinte: “ (…) declarando-se a nulidade de todo o processado desde o momento da prolação do requerimento de aplicação de sanção em processo sumaríssimo, e em consequência, seja ordenada a devolução dos autos para inquérito, para notificação ao Arguido do despacho de fls.103 a fim de este mediante ato pessoal e tempestivo, manifestar a sua concordância à suspensão provisória do processo.
E funda-se a referida pretensão no facto de o arguido não ter sido notificado ou convocado para declarar se concordava com a eventual suspensão provisória do processo, como ordenado no despacho de fls.103.
O vício invocado pelo arguido não constitui qualquer nulidade pois não se enquadra no elenco das nulidades insanáveis previstas no art.119º do CPP nem das nulidades dependentes de arguição prevista no art.120º do CPP.
Trata-se, sim, de uma irregularidade processual nos termos do art.123º/1 do CPP, cuja reparação urge efetuar nos termos do nº2.
Assim sendo, determino a invalidade do processado nos autos após a prolação do despacho de fls.103, determinando a imediata notificação de tal despacho ao arguido para os efeitos aí determinados.
Notifique.”
*
Inconformado com tal decisão, recorreu o Ministério Público extraindo da motivação as seguintes conclusões:
I- A Mmª Juiz de Instrução, por despacho proferido em 11 de Março de 2015, pronunciou-se sobre o ato praticado pela funcionária do Ministério Público, declarando o facto de o arguido não ter sido notificado ou convocado para declarar se concordava com a suspensão provisória do processo, conforme determinado no despacho de fls.103, como sendo uma irregularidade processual e determinou, em consequência, a invalidade de todo o processado a partir desse despacho.
II- Ora, nos termos do art.263º, nº1, do C.P.Penal, a direção do inquérito compete exclusivamente ao Ministério Público,
III- Enquanto autoridade judiciária (art.1º, al.b) do C.P.P.) e de acordo com os artigos 1º e 2º, nº2 do seu Estatuto (aprovado pela lei nº47/86, de 15-10), o Ministério Público dirige o inquérito norteado pelos princípios da legalidade, objetividade e imparcialidade, sendo uma verdadeira magistratura sujeita a um rigoroso dever de objetividade.
IV- Os artigos 268º e 269º, ambos do C.P.P. – que prevêm os atos a praticar e a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução em inquérito – não atribuem a este qualquer poder para, durante o inquérito, decidir se determinado ato processual praticado nesta fase é, ou não, nulo ou irregular ou se certa prova é, ou não, proibida.
V- Como tal, a Mmª Juiz de Instrução não tinha qualquer competência para se pronunciar sobre uma irregularidade praticada durante o inquérito, fase presidida pelo Ministério Público, sendo certo que os autos apenas lhe foram remetidos porque foi apresentado um requerimento que lhe estava dirigido e onde se arguia uma nulidade cometida por Juiz.
VI- O facto de não constar do interrogatório do arguido se o mesmo concordava ou não com a suspensão provisória do processo não constitui qualquer irregularidade, pois que não foi violada qualquer disposição da lei do processo penal (cfr. exige o artigo 118º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).
VII- Quando muito, teria apenas sido parcialmente desrespeitado ou deficientemente cumprido o despacho de fls.103, mas caso assim tivesse sido o entendimento do Ministério Público, teria tal ato processual sido repetido ou teria sido determinada a notificação do arguido para colher tal concordância.
VIII- Ainda que se considerasse que tal consubstanciava uma irregularidade processual, para que tal pudesse determinar a invalidade do ato a que se refere e os termos subsequentes que pudesse afetar, tinha a mesma de ser arguida – cfr impõe o artigo 123º, nº1, do Código de Processo Penal -, pelo interessado no próprio ato ou, se a este não tivesse assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tivesse sido notificado para qualquer termo do processo ou interviesse em algum ato nele praticado.
IX- Ora, no dia 7/02/2012, já depois de ter junto aos autos procuração a favor do seu atual Mandatário, o arguido consultou o processo e verificou todos os elementos que constavam do mesmo, entre os quais o despacho de 8/11/2011, onde o Ministério Público determinou que o mesmo fosse questionado quanto à eventual concordância com a suspensão provisória, sendo certo que o mesmo não arguiu, nem nesse dia nem nos três dias seguintes, qualquer vício processual, nem sequer alegou que a Srª Funcionária não o tivesse questionado sobre a possibilidade de, com a sua concordância, suspender provisoriamente o processo.
X- Não o tendo feito, ficaria a irregularidade, a existir, que obviamente não existiu, sanada, pelo que não podia, nem o Ministério Público nem (muito menos) o Juiz, declara-la e repara-la oficiosamente (nos termos do nº2 do artigo 123º), pois que tal pressupõe que o próprio interessado ainda não tenha tomado conhecimento da mesma.
XI- Acresce que, ainda que assim não se entendesse – ou seja, ainda que se considerasse que a hipotética “falha” em questão consubstanciava efetivamente uma irregularidade e que se determinasse a invalidade de todo o processado a partir da mesma – nunca se poderia considerar inválido todo o processado a partir do despacho que determinou o interrogatório, porque todos os atos processuais praticados até ao interrogatório, onde foi cometida – segundo a Mmª Juiz a quo – a “falha” em apreço, foram corretamente praticados e não estão minimamente afetados pela mesma.
XII- Ao entender de modo diferente, violou a Mmª Juiz a quo o disposto nos arts.111º, nºs 1 e 2, 118º, nºs 1 e 2, 123º, nº1, 263º, nº1, 267º, nº1, 268º e269º, todos do Código de Processo Penal.
Face a todo o supra expendido, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo a decisão a quo revogada e substituída por outra que se pronuncie apenas e tão só sobre o requerimento que lhe foi dirigido, sem qualquer referência aos atos praticados na fase de inquérito, para que o processo possa seguir os seus normais trâmites.
*
O arguido respondeu ao recurso interposto, formulando as seguintes conclusões:
A. Nos autos de inquérito que decorrem nestes autos foi proferida a fls.103 ato decisório do Ministério Público que determinava: “Mais, deverá (o Arguido) declarar se concorda com uma eventual suspensão provisória do processo pelo período de 3 meses com a condição de entregar a quantia de €500,00 ao Banco Alimentar, em 15 dias a contar da notificação que receber para o efeito”.
B. O referido despacho foi proferido pelo Ministério Público norteado pelo princípio da legalidade (em comando das intenções de política criminal que subjazem ao instituto da suspensão provisória do processo), tendo força obrigatória dentro do processo.
C. Durante todo o Inquérito, o Arguido nunca foi notificado ou confrontado para declarar se concordava com a eventual suspensão provisória do processo nos termos em que foi fixada, tendo (o cumprimento do despacho aludido, na parte citada) sido omitido.
D. Da omissão daquele ato decisório, o Arguido apenas tomou conhecimento já aquando da notificação do despacho prolatado pelo Mmº Senhor Juiz de Direito em processo sumaríssimo ao abrigo do art.396º nº1 al.b) do CPP (fls.190), ao qual acompanhava um requerimento do Ministério Público que, encerrando o Inquérito, promovia a aplicação de pena em processo sumaríssimo.
E. Em despacho imediatamente anterior e que incorpora o requerimento do Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo, fundamenta o Titular da Ação Penal o encerramento do inquérito e dedução do respetivo requerimento de aplicação de pena em processo sumaríssimo…na não manifestação de concordância do Arguido às condições que lhe foram fixadas para a suspensão provisória (precisamente notificação/convocação essa que o Ministério Público, omitindo-a, vedou ao Arguido).
F. É totalmente que o Arguido tenha sido notificado/convocado para manifestar a concordância à suspensão provisória do processo, ou que do despacho que o determinava tenha tomado conhecimento. Tanto assim é que, contrariamente ao que alega o Recorrente,
G. O auto processual de interrogatório do Arguido, que beneficia de valor probatório autêntico (art.169º ex vide art.99º nº4, ambos do CPP), expressando tudo quanto se passou e ocorreu naquela diligência (conforme não poderia deixar de ser em conformidade com o disposto no art.99 nº1 e 3, do CPP), nada refere a esse propósito.
H. Tendo sido o Arguido confrontado/notificado para o efeito naquele interrogatório, de tal facto teria obrigatoriamente de constar menção no auto, sob pena de o mesmo ser falso;
I. S.d.r., muito menos se poderá considerar que a tese do Recorrente coloca fundamentadamente em causa o valor probatório de tal ato, na medida em que a mesma, se limita a ficcionar, sem mais, que o Arguido haveria de ter conhecido o teor de tal ato (que para o Recorrente nem careceria de constar do Auto em total violação do preceituado nos supra referidos normativos), não porque tenha aferido diretamente que assim teria sido (v.g., pelo contacto com a Srª Funcionária), mas porque ao Arguido foi posteriormente autorizada a consulta dos autos e aquele não se insurgiu…contra o facto de não ter sido notificado/convocado para tal efeito!
J. Esta outra justificação do Ministério Público para a omissão de um despacho que ainda persevera ( e que na sinonímia do Recorrente se resume a alegada “falha” da Srª Funcionária) não pode colher porquanto:
a. O Arguido, ainda em inquérito, quando consultou os autos, não consultou a sua totalidade (não tendo, entre outros que desconhece, consultado o despacho de fls.103).
b. A notificação/Convocação para manifestar concordância à suspensão provisória poderia ser realizada a qualquer momento pelo Ministério Público, desde que, antes de encerrado o inquérito (o que, in casu, sucedeu pelo menos por mais dois anos após a prolação do despacho de fls.103).
c. A invalidade em causa nunca se poderia considerar sanada, antes de o Arguido ser notificado do despacho de fls.190, configurando este para os efeitos do art.123º nº1, última parte do CPP, a notificação subsequente (ao Arguido) para qualquer termo do processo ( o que é dizer que até lá não poderia o Ministério Público depreender que, caso tivesse o Arguido tomado conhecimento do despacho de fls.103, que não tomou, estivesse o Arguido conformado com o mesmo).
K. Estando encerrado o inquérito e sendo expressamente manifesto pelo Digno Recorrente que pretende perseverar a omissão do despacho de fls.103 (na parte em causa), na impossibilidade de o Arguido requerer a abertura de instrução (art.286º nº3 do CPP) perante a forma processual dada aos autos pelo próprio Recorrente.
L. Afigura-se, s.m.o., que o Juiz de Instrução, enquanto Juiz das Garantias e último arrimo da tutela e respeito pelos direitos, liberdades e garantias do Arguido em fases pré-judiciais para implementação do art.32º nº1 da CRP, tem competência para prolatar o despacho prolatado em 11.03.2015 (a fls..), o qual não merece censura.
M. Para mais, quando em função da concreta fase processual em que o Arguido tomou conhecimento do requerimento de fls.280 a 285 (ou seja, quando notificado do despacho de fls.190) já não poderia sequer suscitar a reapreciação e controlo da omissão junto do imediato superior hierárquico do Digníssimo Procurador da República.
N. A não se entender assim – i.e., caso dê abrigo a ser possível que, em prejuízo do Arguido, o despacho que promove a aplicação da suspensão provisória fique vedado ad aeternum à declaração de concordância do Arguido.
O. Tal entendimento violará de forma expressa os direitos e garantias de defesa do Arguido em processo penal, v.g., o direito ao contraditório e o direito a processo justo e equitativo (arts.32º 1 e 5º e 20º, ambos da CRP) – inconstitucionalidade essa de que sempre eivará decisão que não mantenha o despacho do Mmº. Senhor Juiz de Instrução Criminal.
P. Termos em que improcedem in totum as alegações e conclusões do Digno Recorrente, pelo que Justiça se fará julgando improcedente o Recurso em apreço.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice o recorrente limita o recurso à questão da violação do “ disposto nos arts.111º, nºs 1 e 2, 118º, nºs 1 e 2, 123º, nº1, 263º, nº1, 267º, nº1, 268º e269º, todos do Código de Processo Penal.”
Dispõe o art.118º do C,P.P. que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (nº1); nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular (nº2).
Os vícios dos atos processuais, podem assumir três graus:
1) vício mínimo: mera irregularidade;
2) vício intermédio: nulidade, que pode ser absoluta ou insanável e relativa ou sanável;
3) vício máximo: inexistência jurídica .
A arguição das nulidades sanáveis tem de ser feita de acordo com o disposto no nº3 do art.120º do CPP, variando o prazo em que tal deve suceder em função do ato originário da nulidade processual. Se não for cumprido o prazo legalmente estipulado, a nulidade considera-se sanada.
A declaração da nulidade insanável pode ter lugar em qualquer fase do processo, mas apenas enquanto a decisão final não transita em julgado.
Efetivamente, a nulidade absoluta não pode ser declarada após a formação do caso julgado da decisão final que, neste aspeto, atua como meio de sanação (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, Rei Dos Livros, 3ª Edição, 2008, pág.731, Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol.II, Editorial Verbo, 2008, pág.93, e Acórdão do Tribunal Constitucional nº146/2001, de 28/03/2001).
Nos termos do disposto no art.122º, nº1, do CPP as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.
E preceitua o art.123º, nº1 do CPP que qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
O art.118º do C.P.P. estabelece, assim, que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (nº1); quando assim não suceder, o ato ilegal é irregular (nº2).
A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respetivo ato, sendo razões de economia processual e boa fé processual as que baseiam tal diferenciação.
Dentro das nulidades, o C.P.P. distingue as nulidades insanáveis, a que se refere o art.119º, e as nulidades dependentes de arguição, a que se referem os arts.120º e 121º, regulando o art.122º os efeitos de declaração de nulidade.
O art. 123º estabelece o regime das irregularidades.
As nulidades insanáveis são as que constam do art.119º do C.P.P. e ainda as que forem, como tal, identificadas em outras disposições desse Código.
Nos termos do disposto no art.120º, nº1, do C.P.P., qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
Rege o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que tem como epígrafe “Garantias de processo criminal”:
“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”
E, relativamente ao princípio do contraditório, o juiz penal, no desenvolvimento da atividade processual deve ouvir quer a acusação, quer a defesa, sendo que nenhum arguido poderá ser condenado sem que lhe tenha sido dada a possibilidade de se fazer ouvir, de se defender.
Este princípio do contraditório está diretamente relacionado com o princípio da audiência, a oportunidade que é conferida a todo o participante no processo de influir através da sua audição na decisão do caso concreto.
O arguido, como qualquer outro sujeito processual, é um sujeito ativo, é um sujeito participativo em todo o processo. Por conseguinte, deve ser ouvido porque através das suas declarações ele contribui para a decisão do caso concreto.
“O princípio do contraditório tem consagração constitucional (art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa) e significa que “nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”( cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/03/2009).
Vejamos.
Compulsados os autos verifica-se que:
- em 8 de Novembro de 2011, a fls.103 a 103 verso, foi pelo Ministério Público determinado: “ (…) Agende, em 30 dias, a constituição e interrogatório, como arguido, do denunciado”
(…) Mais deverá declarar se concorda com uma eventual suspensão provisória do processo, por um período de 3 meses, com a condição de entregar a quantia de 500,00€ a favor do Banco Alimentar de Lisboa, no prazo de 15 dias, a contar da notificação que vier a receber para o efeito, devendo posteriormente juntar aos autos o documento comprovativo desse pagamento”;
- a fls.114 a 115 está inserto o interrogatório do arguido, onde consta que “perguntado se queria responder sobre estes e sobre a matéria dos autos, disse: Que não pretende prestar declarações sobre os factos denunciados. E mais não disse. Lidas as suas declarações, as achou conformes e assina”, daqui resultando inequivocamente o não cumprimento do determinado na última parte do ordenado a fls.103 a 103 verso;
- a fls.117, com data de 15 de Janeiro de 2012, consta um requerimento do arguido para consulta do processo, o que foi deferido em 18 de Janeiro de 2012, como resulta de fls.118;
- a fls.122 mostra-se junta Procuração forense;
- a fls.124, com data de 7 de Fevereiro de 2012 consta um Termo “Nesta data foram os autos consultados”;
- a fls.180, consta “Atendendo a que o arguido não manifestou a sua concordância com as condições que lhe foram fixadas para a suspensão provisória dos presentes autos, está legalmente vedada a possibilidade de aplicação de tal instituto aos presentes autos – cfr. artigo 281º, nº1, al.a), do Código de Processo Penal -, pelo que se passará, de seguida, a deduzir o respetivo requerimento de aplicação de pena de multa, em processo sumaríssimo”, o que o Ministério Público faz ao abrigo do disposto no artigo 392º, nº1, do C.P.Penal, como resulta de fls.180 a 185, em 8 de Abril de 2014;
- a fls. 190, com data de 12 de Maio de 2014, consta o despacho do deferimento do “requerimento apresentado pelo Ministério Público a fls.180 a 185 dos presentes autos, para aplicação da pena relativa a José Arquimínio das Neves Rosa processo sumaríssimo”;
- a fls.194 , com data de 8 de Agosto de 2014, consta o ofício para notificação do arguido do “conteúdo do requerimento do Ministério Público e do despacho que o recebeu”;
- em 8 de Setembro de 2014 vem o arguido arguir a nulidade do processado e manifestar oposição, como resulta de fls.202 a 208;
- a fls.223, em 31 de Outubro de 2014, o Ministério Público promoveu “Uma vez que o arguido deduziu oposição nos termos e para os efeitos previstos no art.396º, nº1, alínea b) e nº2 do Código de Processo Penal, mostra-se inviabilizado o prosseguimento dos autos em processo especial sumaríssimo, pelo que promovo se determine ao reenvio dos autos ao DIAP desta comarca para tramitação sob outra forma de processo, ao abrigo do disposto no art.398º, nº1 do Código de Processo Penal;
- a fls.224 está inserto um despacho onde consta “O arguido deduziu oposição ao requerimento do Ministério Público para aplicação de pena em processo sumaríssimo, conforme fls.209 e segs. Assim, determino a remessa dos autos ao M.P. para tramitação sob outra forma processual – art..398 nº 1 do Código de Processo Penal. D.n.”;
- a fls.231, em 20 de Novembro de 2014, o Ministério Público determinou: “Face ao teor de fls.202 a 208, notifique o arguido e o seu Mandatário para, no prazo de 10 dias, declararem expressamente se o arguido concorda com uma eventual suspensão provisória do processo, por um período de 3 meses, com a condição de entregar a quantia de 500,00€ ao Banco Alimentar contra a fome, no prazo de 15 dias, a contar da notificação que vier a receber para esse efeito, devendo posteriormente juntar aos autos documento comprovativo desse pagamento”;
- a fls.234 a 236, com data de 24 de Novembro de 2011, conta requerimento do arguido de declaração de nulidade de todo o processado desde o momento da prolação do requerimento de aplicação da sanção em processo sumaríssimo, e de declaração de nulidade por omissão de pronúncia do despacho proferido a fls.224-225 dos autos;
- a fls.242, em 15 de Dezembro de 2014 os autos foram conclusos ao Ministério Público “com a informação de que não foi dado cumprimento ao despacho de fls.231 em virtude de ter dado entrada o expediente que antecede”, tendo sido proferido o seguinte despacho” Fls.233 a 240: Conclua os autos à Mmº J.I.C., para apreciação”.ks3
- a fls.244 a 244 verso, em 11 de Março de 2015, foi proferido o seguinte despacho, já supra transcrito:
“ Fls.237/ 240
Efetivamente o despacho proferido a fls.221 não se pronunciou sobre a pretensão deduzida pelo arguido a título principal no seu req. de 5/09/2014.
Esta pretensão consiste no seguinte: “ (…) declarando-se a nulidade de todo o processado desde o momento da prolação do requerimento de aplicação de sanção em processo sumaríssimo, e em consequência, seja ordenada a devolução dos autos para inquérito, para notificação ao Arguido do despacho de fls.103 a fim de este mediante ato pessoal e tempestivo, manifestar a sua concordância à suspensão provisória do processo.
E funda-se a referida pretensão no facto de o arguido não ter sido notificado ou convocado para declarar se concordava com a eventual suspensão provisória do processo, como ordenado no despacho de fls.103.
O vício invocado pelo arguido não constitui qualquer nulidade pois não se enquadra no elenco das nulidades insanáveis previstas no art.119º do CPP nem das nulidades dependentes de arguição prevista no art.120º do CPP.
Trata-se, sim, de uma irregularidade processual nos termos do art.123º/1 do CPP, cuja reparação urge efetuar nos termos do nº2.
Assim sendo, determino a invalidade do processado nos autos após a prolação do despacho de fls.103, determinando a imediata notificação de tal despacho ao arguido para os efeitos aí determinados.
Notifique.”
Ora, nos termos do art.281º do CPP, sob a epígrafe “suspensão provisória do processo”;
1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
(…) E nos termos do art.392º do CPP, sob a epígrafe “Do processo sumaríssimo:
1 - Em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou só com pena de multa, o Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois de o ter ouvido e quando entender que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade, requer ao tribunal que a aplicação tenha lugar em processo sumaríssimo.
(…).
Verifica-se assim que, apresentada pelo Ministério Público proposta de decisão de suspensão provisória do processo, compete ao Juiz de instrução proferir o despacho a que alude o art.º 384º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, em ato decisório, fundamentado, nos termos do disposto nos artºs 205º da CRP e 97º, nº5 do CPP, verificando se se mostram preenchidos os pressupostos do artº 281º, nº1 do CPP, sendo que, após a concordância do JIC, quer o MP, quer o arguido, ficam vinculados à decisão de suspensão, pelo que o MP não pode, em ato seguido à concordância do JIC, sem que nada o justifique senão uma nova ponderação dos factos, requerer a aplicação de pena de multa em processo sumaríssimo.
Pressuposto essencial para aplicação do instituto da suspensão provisória do processo é, assim a concordância do arguido, que, para o efeito, tem, obviamente, que ser ouvido.
É que “o estatuto de arguido – tal como está definido no artigo 61.º do Código hoje vigente – é uma universalidade de direito e de deveres processuais (artigo 60.º), tudo enquadrado numa situação jurídica com contornos específicos. Tal estatuto é enformado por várias manifestações típicas de um único direito, o de defesa e por uma situação processual específica, a decorrente da presunção de inocência (artigo 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição” (cfr. José António Barreiros, I Congresso de Processo Penal).
Com efeito, a CRP impõe no já citado art. 32.º, que o processo penal assegure todas as garantias de defesa ao arguido, a quem a lei confere um estatuto de direitos e obrigações enformados pela ideia nuclear de permitir a efetividade da sua defesa no processo em que é chamado a responder.
O direito de audiência constitui, efetivamente, um dos direitos decorrentes do estatuto de arguido (art. 61º, nº1, al.b) do CPP). Traduz-se, além do mais, no direito de ser ouvido pelo tribunal ou o juiz de instrução sempre que deva ser tomada decisão que pessoalmente o afete.
Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/10/11, in www.dgsi.jtrc.pt “ (…) Nos termos do art. 32º, nº 5, da Constituição «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.
Posto isto, face à pretensão do arguido vertida nas conclusões do recurso interposto e atentando na tramitação dos autos, supra exposta, é inquestionável ser o Juiz de Instrução o competente para decidir da invocada, a fls.202 a 208, nulidade do processado. E isto porque se é ao Juiz de instrução que compete proferir o despacho a que alude o art.º 384º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, verificando se se mostram preenchidos os pressupostos do artº 281º, nº1 do CPP, obviamente é também ao Juiz de instrução que cabe apreciar e decidir em caso de inexistência de concordância do arguido e questões com a mesma conexas.
Com efeito, o artigo 202.º da CRP cuja epígrafe é "Função jurisdicional", consagra uma das modalidades de "separação dos órgãos de soberania estabelecidas na Constituição" mais significativas para caracterizarmos o Estado como um Estado de Direito. Segundo aquele, "os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo", cabendo-lhes "assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados" (nºs 1 e 2 daquela disposição).
“A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa “composição de conflitos de interesses”, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito ou da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra (cfr. os Acórdãos deste Tribunal nºs 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º Vol., p. 575 e segs.)” (cfr. Ac. do tribunal Constitucional de 19/1271995, acessível in www.dgsi.pt).
E no despacho sob recurso verificaram-se três momentos fundamentais de caracterização material da função jurisdicional: foi dirigido à resolução de uma questão jurídica pela via da extrinsecação e da declaração do direito que é; foi praticado segundo perspetiva estrita e exclusivamente jurídica; prosseguiu o interesse público da realização da justiça (cfr. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Atos do Estado, Lisboa, 1990, pág. 43).
Vejamos, agora, se se verifica ou não nulidade de processado.
Ora, dúvidas não restam que se está na presença de um processado anómalo, sendo que com o não cumprimento do determinado na parte final do despacho de fls.103 a 103 verso, e atos subsequentes, foi omitido ato legalmente obrigatório e claramente violado o direito de defesa do arguido, consagrado nos arts.60º, 61º e 113º, nº9, do C.P.P. e 32º da C.R.P., verificando-se a nulidade insanável da ausência do arguido em caso em que a lei exige a respetiva comparência prevista no art.119º, al.c), do C.P.P., entendendo-se que o texto legal, ao aludir à ausência do arguido, tem em vista não só a sua ausência física mas também a sua ausência processual.
É relevante para a sua defesa que o arguido conheça os factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável, sob pena de se permitir que o arguido seja surpreendido, como no caso "sub judice", com um requerimento para aplicação de sanção de processo sumaríssimo com o fundamento de que “Atendendo a que o arguido não manifestou a sua concordância com as condições que lhe foram fixadas para a suspensão provisória dos presentes autos, está legalmente vedada a possibilidade de aplicação de tal instituto aos presentes autos – cfr. artigo 281º, nº1, al.a), do Código de Processo Penal -, pelo que se passará, de seguida, a deduzir o respetivo requerimento de aplicação de pena de multa, em processo sumaríssimo”, o que não é seguramente intenção do legislador.
Tinha o arguido de manifestar expressa e oportunamente concordância, ou não concordância, com a suspensão provisória do processo, sendo inequívoca tal exigência, não sendo uma mera consulta dos autos, que não é manifestamente um ato processual, suscetível de colmatar tal omissão, em nome do respeito pelas garantias de defesa.
Para que o princípio do contraditório possa ser respeitado (arts.18º e 32º, da C.R.P.), necessário se torna que o arguido manifeste, expressa e oportunamente, concordância ou não concordância com a suspensão provisória do processo, permitindo assim o exercício do seu direito de defesa da forma que entender oportuna.
Como acima se mencionou e a jurisprudência tem assinalado, a ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física mas também a ausência processual no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, sendo que as garantias que a lei prevê só se podem tornar efetivas com a sua audição, tornando nulo, de forma insanável, o ato em que essas garantias não tenham sido respeitadas. O que significa que em casos tais se comete a nulidade prevista no art.119º, al.c), do C.P.P..
Com efeito, é inquestionável que não foram observados os formalismos legais, verificando-se omissão e atropelo dos direitos do arguido, sendo manifesta a existência de violação das garantias de defesa do mesmo.
A consequência é a prevista no art.122º, nº1, do mesmo diploma, ou seja, a invalidade do ato praticado bem como dos que dele dependerem.
Assim sendo, e face ao disposto no art.122º do C.P.P., impõe-se declarar a nulidade do despacho de fls.180 a 185 e dos atos subsequentes, que passam a considerar-se inválidos.
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DECISÃO
Pelo exposto e com os fundamentos supra referidos, acordam os juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar verificada a nulidade do despacho de fls.180 a 185 e dos atos subsequentes, que passam a considerar-se inválidos, determinando a remessa dos autos à 1.ª instância com vista à respetiva sanação, seguindo-se, em conformidade, os ulteriores termos do processo.
Sem tributação.
Lisboa, 14 de Outubro de 2015
Laura Goulart Maurício
Maria da Conceição Simão Gomes