É da competência do Cartório Notarial o processo de separação de bens na sequência de penhora de um bem comum do casal em execução fiscal movida contra apenas um dos cônjuges, citado que foi o outro para, querendo, requerer a “separação judicial de bens”.
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I – Em 23-6-2014, no Juízo de Média Instância Cível do Tribunal Judicial da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste, ZFE requereu contra CME separação judicial de bens.
Alegou, em resumo, que fora notificada para os termos de execução fiscal no âmbito da qual fora penhorado um imóvel, bem comum do casal, em virtude de dívida da exclusiva responsabilidade do cônjuge ora requerido, com quem a requerente havia casado no regime de comunhão de adquiridos.
Pediu a requerente que «seja determinada a separação de bens, convolando-se o regime de bens de comunhão de bens adquiridos para o regime da separação de bens, compondo-se as respectivas meações e procedendo à respectiva divisão e adjudicação, por forma a poder prosseguir a acção executiva em curso cuja divida é da exclusiva responsabilidade do Requerido».
Na sequência foi proferido o seguinte despacho:
«Nos termos conjugados do art. 3.º, n.º 6 e art. 81.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, que entrou em vigor no dia 02.09.2013 e aprovou o novo regime do processo de inventário, pretendendo-se a separação judicial de bens na sequência de penhora sobre os bens comuns do casal, será o cartório notarial do lugar da situação do bem imóvel penhorado, o serviço competente para a tramitação do presente inventário.
Por conseguinte, o presente tribunal é incompetente em razão da matéria, ocorrendo incompetência absoluta (art. 96.º do CPC) vício que é do conhecimento oficioso.
Pelo supra exposto, nos termos do art. 99.º, n.º 1 CPC indefiro liminarmente o requerimento de inventário para separação de bens».
Deste despacho apelou a requerente, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
I. A Douta Sentença em apreço indefere liminarmente o requerimento da Apelante para separação de bens na sequência de penhora de bens comuns;
II. Como consequência necessária da presente acção é promovida a convolação do regime de bens do casal, que está casado e assim vai continuar;
III. O Cartório Notarial não tem competência para alterar o regime de bens do casal na vigência do casamento, e nem tão pouco a Conservatória do Registo Civil, continuando a separação de bens na vigência do casamento a ser uma separação judicial de bens.
IV. O processo de separação judicial de bens segue os termos do RJPI, porque assim o determina o Art.º 81.º que remete para o Art.º 79.º do mesmo diploma;
V. Da mesma forma o Art.º 3.º/6 do RJPI não atribui competência aos Cartórios Notariais para o inventário na sequencia de penhora de bens comuns, nem para a mera separação de bens.
VI. Pelo contrário, o Art.º 740.º do CPC continua a atribuir competência aos tribunais para esse efeito exigindo que tal acção de separação de bens na sequência da penhora de bens comuns corra por apenso;
VII. Uma vez que os Tribunais fiscais não podem apreciar questões cíveis, manda a lei que esta acção quando na sequência de penhora no âmbito de execução fiscal corra nos tribunais cíveis, e não nos Tribunais Fiscais e nem nos Tribunais de Família e Menores.
VIII. Pelo que a presente acção foi correctamente apresentada perante o órgão competente para o efeito, o Tribunal Cível, devendo em consequência ser revogado o Douto Despacho aqui posto em crise, por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Não foram apresentadas contra alegações.
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II – São as conclusões da alegação de recurso que delimitam o objecto da apelação. Deste modo, no caso em apreço, a única questão que se nos coloca é a de a quem cabe a competência em razão da matéria para a separação de bens na sequência de penhora de um bem comum do casal em execução fiscal movida contra apenas um dos cônjuges – se apenas ao tribunal cível, se ao notário.
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III – Destaca-se a seguinte factualidade para alicerçar a decisão:
1 - Foi dado conhecimento à requerente de que no âmbito da Execução Fiscal n.º 3549200601092006, que corre os seus termos no Serviço de Finanças de Sintra, foi penhorado o bem comum do casal, descrito como fracção autónoma “B” destinada a estabelecimento coberto e fechado composto por uma divisão ampla com 36 m2 de área bruta privativa, sita na cave B, Garagem 2, do n.º 75 da Av. .... Sintra inscrita na matriz predial urbana da União das Freguesias do Cacém e São Marcos, sob o Art.º 1709-B com o valor patrimonial de 10.080,00€ e descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva Cacém sob a descrição 355/20030411-B …
2 - … Sendo a requerente citada para no prazo de 30 dias a contar da data da citação requerer, querendo, a «separação judicial de bens em conformidade e nos termos previstos no artigo 220º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)».
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IV - Dispõe o art. 220 do CPPT:
«Na execução para cobrança de coima fiscal ou com fundamento em responsabilidade tributária exclusiva de um dos cônjuges, podem ser imediatamente penhorados bens comuns, devendo, neste caso, citar-se o outro cônjuge para requerer a separação judicial de bens, prosseguindo a execução sobre os bens penhorados se a separação não for requerida no prazo de 30 dias ou se se suspender a instância por inércia ou negligência do requerente em promover os seus termos processuais».
Trata-se de preceito equivalente ao constante do art. 740 do CPC nos termos do qual quando em execução movida contra um só dos cônjuges forem penhorados bens comuns do casal - por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado - é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns.
Em termos semelhantes dispunha o art. 825 do antigo CPC cujo art. 1406, em consonância, preceituava no seu nº 1:
«Requerendo-se a separação de bens nos termos do artigo 825.º, ou tendo de proceder-se a separação por virtude da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, constante de lei especial, com as seguintes especialidades:
a) O inventário corre por apenso ao processo de execução ou ao processo de insolvência (…)»
Explicava, a propósito, Lopes Cardoso ([1]) que citado o cônjuge não executado, nos termos do art. 825 do CPC, o meio competente para ele requerer a separação é o processo de inventário.
Sucede que o NCPC não contém preceito equivalente ao art. 1406 do antigo Código, dele não constando quaisquer disposições específicas referentes a um processo judicial de separação de bens.
A lei 23/2013, de 5 de Março, aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, revogando aquele art. 1426 do CPC.
O nº 3 do art. 2 deste Regime Jurídico refere que «pode ainda o inventário destinar-se, nos termos previstos nos artigos 79.º a 81.º, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges».
Estabelecendo o nº 1 do art. 81 do RJPI que requerendo-se «a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, nos termos do Código de Processo Civil, ou tendo de proceder-se a separação por virtude da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento», com as especificidades naquele mesmo artigo enunciadas.
Deste modo, o processo para separação de bens segue hoje as normas adjectivas constantes do RJPI com as especificidades constantes dos arts. 79/80 e do art. 81 que para estes remete.
No art. 3 do aludido Regime é definida a competência territorial do Cartório Notarial e do Tribunal, referindo-se no nº 6 daquele artigo qual o cartório notarial competente em caso de inventário em consequência de «separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento». Atento o art. 66.º do mesmo Regime, ao juiz atribui-se competência exclusiva para homologação da decisão da partilha.
Não oferece dúvida que o legislador quis atribuir aos cartórios notariais a competência para a tramitação do inventário - sem prejuízo da competência exclusivamente atribuída ao juiz especificamente prevista – não havendo razões para que assim não seja relativamente ao processo de inventário para separação de meações.
Assim, o já mencionado art. 81 do RJPI – que se reporta à separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal - expressamente menciona no seu nº 2 que se julgar atendível a reclamação, o notário ordena avaliação dos bens que lhe pareçam mal avaliados.
Tudo isto nos leva a considerar que a competência para o inventário em causa nos autos pertence ao cartório notarial, nos termos gerais.
A propósito anotam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ([2]): «Por força do disposto nos arts. 3º, nºs 4, 6 e 7, e 81º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, a competência para o processo de inventário destinado à separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, pertence ao cartório notarial. Impõe-se pois, uma interpretação corretiva da disposição legal comentada [o nº 2 do art. 740 do NCPC], no sentido de apenas admitir a possibilidade de apresentação de certidão comprovativa da pendência do processo de separação, perante cartório notarial, nos termos previstos no Regime Jurídico do Processo de Inventário». Bem como que «qualquer outra solução obriga a uma interpretação corretiva bastante mais vasta das normas contidas nos arts. 3º, nºs 4, 6 e 7, e 81 do Regime Jurídico do Processo de Inventário, agravado por, contrariando o sentido geral do regime contido na Lei nº 23/2013, de 5 de Março, brigar com a unidade do sistema jurídico (art. 9º, nº 1)».
Saliente-se que não estamos aqui perante um pedido de separação judicial de bens com o fundamento de um dos cônjuges estar em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro, nos termos do art. 1767 e seguintes do CC, mas sim perante o direito de o cônjuge pedir a separação de bens em consequência da penhora de um bem comum, nos termos supra aludidos – sendo o meio competente para a separação de bens ora em causa o processo de inventário, com as referidas especialidades.
Como nos dizem Pires de Lima e Antunes Varela ([3]) há, «paredes meias com a separação judicial fundada na má administração dos bens, que constitui objecto imediato de acção própria, casos paralelos de separação previstos na lei, como pura consequência de outros procedimentos judiciais». Acrescentam ([4]) que a separação referida no art. 1768 do CC terá de seguir a forma do processo comum ordinário e explicam ([5]) que a separação judicial de bens regulada nos arts. 1767 e seguintes é a que assenta numa causa intrínseca da sociedade conjugal, tratando-se da separação a que alguns autores chamam de autónoma. Já o art. 1772 do CC refere-se aos casos de separação não autónoma, «assim chamada por a separação não constituir objecto de uma acção especialmente destinada a obtê-la, mas sim a consequência indirecta de um procedimento judicial instaurado com outro fim», sendo que aquele artigo «manda aplicar os princípios da partilha do património comum (como se o casamento tivesse sido dissolvido) e da irrevogabilidade da separação de bens na vigência da sociedade conjugal».
Neste contexto afigura-se não vingar a argumentação da apelante no sentido de o processo de separação de bens a que nos reportamos não ser da competência do Notário, continuando a ser uma separação judicial de bens, da competência do Tribunal Cível, porque no âmbito de penhora no âmbito de execução fiscal
Quanto à questão de ordem informática a que a apelante alude no corpo da alegação de recurso:
Tal circunstância poderia conturbar o nosso raciocínio; todavia, essa perturbação seria, tão só, aparente, transpondo-se a dificuldade através da utilização do formulário relativo à partilha nos casos do art. 79 do RJPI, face à remissão constante do art. 81 do mesmo Regime ([6]).
Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 15 de Outubro de 2015
Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
Sousa Pinto
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[1] Em «Partilhas Judiciais», Almedina, 1980, vol. III, pag. 413.
[2] Em «Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», vol. II, Almedina, 2014, pags. 265-266, incluindo a nota 587.
[3] No «Código Civil Anotado», Coimbra Editora, 1992, vol. IV, pag. 503.
[4] Na pag. 505.
[5] Nas pags. 512-513.
[6] Ver, a propósito os acórdãos da Relação do Porto de 26-6-2014 e da Relação de Lisboa de 11-12-2014, aos quais se poderá aceder, respectivamente, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, proc. 3671/12.1TJVNF-B.P1 e em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, proc. 658/10.2PDFUN-E.L1-2.