HOMICÍDIO CONJUGAL
ESPECIAL PERVERSIDADE
CENSURABILIDADE DO AGENTE
LEI DAS ARMAS
Sumário

I. Pela natureza e qualidade do bem jurídico ofendido, o crime de homicídio acarreta uma noção de gravidade, pelo que, a sua prática na forma qualificada, impõe que a culpa do agente seja agravada – é a isso que a lei designa como especial censurabilidade ou perversidade do agente.
II. Esta noção terá de ser preenchida por uma averiguação a realizar em que se tenha em atenção a integração da conduta do agente em alguma das circunstâncias vertidas nas diversas alíneas do nº2 do artº 132 do C.Penal , que permita concluir que a culpa do agente se mostra agravada face ao modo e ao resultado típico do crime que cometeu
III. As circunstâncias a atender e sopesar, para alcançar tal valoração jurídica, serão as relativas e/ou ao modo de execução do facto e/ou ao agente que demonstrem a ocorrência de tal especial censurabilidade ou perversidade.
IV. Basta o preenchimento de uma única circunstância demonstrativa da existência de especial censurabilidade ou perversidade para que a conduta do agente seja integrada no tipo qualificado de homicídio.
V. A existir mais do que uma circunstância preenchedora de tal requisito, as restantes manterão relevância já não para fins de qualificação do ilícito, mas como circunstâncias agravantes comuns, para efeitos de graduação da pena.
V. Numa relação de características tão próximas e tão privadas como é a de um relacionamento afectivo prolongado, em que se constituiu uma família, a decisão de magoar e matar alguém com quem se teve tal tipo de relação íntima e próxima, ultrapassa e renega todos os deveres de lealdade e protecção que daí decorreriam (mesmo após o termo do relacionamento), é comportamento que se mostra fortemente censurável e revelador de especial perversidade, pois que demonstra uma actuação com culpa agravada, por parte do agente.
VI. Reflexão sobre os meios empregues significa, planear, decidir e executar. Sendo que o tempo necessário para tal propósito se pode reconduzir a alguns minutos, pois apenas no que concerne ao conceito de premeditação a lei impõe um tempo mínimo de ponderação.
VII. A metodologia empregue pelo arguido para o fim que pretendeu alcançar – esconder-se e disparar sem que a vítima sequer se apercebesse da sua presença ou do perigo eminente que ali se apresentava, pondo-a numa posição de especial desprotecção – revela-nos que estamos perante o uso de um evidente ardil, que apresenta uma carga de perfídia agravada, indiciadora de uma culpa grave na forma como o arguido actuou
VIII. No que se refere à aplicabilidade da circunstância qualificativa agravante prevista no art.º. 86º da Lei nº. 05/2006, de 23/02, com as alterações introduzidas pela Lei nº. 17/2009, de 06/05 e Lei nº. 12/2011, de 27/04, decorre de um maior grau de ilicitude, sendo uma agravação de natureza geral que dimana de razões de prevenção geral distintas das que se referem ao crime de homicídio e que radicam na necessidade de conter o recurso às armas na prática de ilícitos.

Texto Integral

TEXTO

               Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

                                       *

I – relatório

1. Por acórdão de 8 de Junho de 2015, foi o arguido R.J.M.S. condenado pela prática, em concurso real e em autoria material, de:

a.  um crime de homicídio qualificado, p. e p., pelo art° 132°, n° 1 e 2, alíneas b), i) e j) do Cód.Penal e 86°, n° 3 da Lei n° 5/2006 de 23 de Fevereiro com as alterações que lhe foram conferidas pela Lei n.° 59/2007, de 04.09, Lei n.° 17/2009, de 06.05, Lei n.° 26/2010, de 30.08, Lei n.° 12/2011, de 27.04 e Lei n.° 50/2013, de 24.07, na pena de vinte e um anos (21) anos de prisão;

b.  um crime de detenção ilegal de arma, p. e p., pelas disposições conjugadas dos artigos 3°, n° 2, alínea l) e 86°, n° 1, alínea c) da Lei n° 5/2006 de 23.02, com as alterações que lhe foram conferidas pela Lei n.° 59/2007, de 04.09, Lei n.° 17/2009, de 06.05, Lei n.° 26/2010, de 30.08, Lei n.° 12/2011, de 27.04 e Lei n.° 50/2013, de 24.07, na pena de um (1) ano e seis (6) meses de prisão;

c. Em cúmulo jurídico, na pena única de vinte e um (21) anos e seis (6) meses de prisão.

Foi ainda condenado no pagamento de indemnização cível.

2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, nos seguintes termos:

i. Invoca padecer a decisão de todos os vícios consignados no artº 410 nº2 do C.P. Penal, bem como de violação do princípio in dubio pro reo;

ii.  No que se reporta ao enquadramento jurídico, o arguido discorda da decisão quanto a esta matéria, entendendo que o homicídio foi cometido na forma simples e não qualificada; entende ainda que, a existir qualificação, não deve haver lugar à aplicação da agravante prevista no nº3 do artº 86 da Lei das Armas.

iii.  Discorda igualmente da pena imposta pela prática do crime de homicídio, face ao reenquadramento jurídico que propugna e ainda à verificação de circunstâncias atenuantes não atendidas pelo tribunal “a quo”.

iv. Termina pedindo a revogação do acórdão proferido, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples, ou caso assim não se entenda, a norma jurídica a aplicar deve ser unicamente a vertida no artigo 132°, n.° 2, alínea i) do C. Penal, devendo o arguido ora recorrente ser condenado unicamente pela prática de um crime de homicídio qualificado, não devendo tal condenação em qualquer dos casos ser agravada nos termos do artigo 86° n.° 3 da referida Lei 5/2006, pugnando por uma pena não superior a 16 anos de prisão.

3. O recurso foi admitido.

4. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada pelo arguido, defendendo a improcedência do seu recurso e suscitando a questão da eventual necessidade de proferimento de despacho de aperfeiçoamento.

5. Neste tribunal, a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

 

II – questões a decidir.

A. das deficiências do recurso

B. vícios da decisão (Contradição insanável de fundamentação; erro notório na apreciação da prova; erro quanto à valoração da prova e violação do princípio do "in dúbio pro reo").

C. Alteração do enquadramento jurídico.

D. Alteração da pena imposta.

 

III – fundamentação.

A. das deficiências do recurso.

1. Entende o Mº Pº a este propósito, com bons argumentos, o seguinte:

Dispõe o artigo 412 n.ºs 1 e 2 do C. Penal que: "A motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

-   As normas jurídicas violadas;

-   O sentido em que no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que devia ela ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

-   Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada"

Ora, no caso das alegações apresentadas pelo arguido/recorrente, afigura-se-nos que não foi observado o referido preceito legal, porquanto a especificação dos fundamentos e as conclusões são uma e a mesma coisa, ou seja, existem várias questões suscitadas pelo arguido/recorrente na motivação propriamente dita e que, depois, nas alegadas conclusões (artigo 30.e e seguintes), não têm qualquer correspondência, em termos de remate conclusivo com o que foi alegado.

Entendemos, assim, que o arguido/recorrente deveria ser convidado a aperfeiçoar a referidas motivações de recurso nos termos estabelecidos no referido preceito penal.

2. Apreciando.

O recurso apresentado mostra-se, de facto, muito deficientemente elaborado, no que toca ao cumprimento dos requisitos acima enunciados, sendo certo que, parcialmente, roça a rejeição (pela manifesta confusão, expressa em sede de motivação, entre institutos, designadamente a fundamentação da ocorrência de vícios em segmentos da decisão que se não reportam à matéria factual nem à fundamentação da convicção do tribunal, mas antes ao enquadramento jurídico que este realizou, como adiante mais detalhadamente referiremos).

Não obstante, é ainda marginalmente possível compreender o que o recorrente pretende – mesmo perante conclusões tão sintéticas – socorrendo-nos do que consta na motivação e, assim sendo, atendendo-se igualmente à natureza do crime em discussão e à gravidade da pena, bem como ao facto de estarmos perante processo de natureza urgente, entendemos ser possível o conhecimento do recurso sem necessidade de prolação de despacho de aperfeiçoamento.

B. vícios da decisão (Contradição insanável de fundamentação; erro notório na apreciação da prova; erro quanto à valoração da prova e violação do princípio do "in dubio pro reo").

1. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo”:

 1. O arguido e A.R.P.L.S.D. viveram como se fossem marido e mulher, durante cerca de sete anos, até Novembro de 2013, altura em que se separaram, passando A.R.P.L.S.D. a residir em casa dos seus pais, sita na Rua ………., em Alcochete, enquanto o arguido se manteve a viver na residência comum do casal, sita no lugar da P…….., também Alcochete.

2.  Do relacionamento em comum entre o arguido e A.R.P.L.S.D., nasceu em 1 de Dezembro de 2008, L.D.M.S., sendo que o arguido é pai de uma outra criança, com sete anos de idade que viveu com o casal e, mesmo após a separação do casal, ficou a viver com a A.R.P.L.S.D..

3.  No dia 19 de Novembro de 2013, o arguido dirigiu-se à Rua ……, em Alcochete, onde se situava a casa dos pais de A.R.P.L.S.D., local onde a surpreendeu e a quem se dirigiu.

4.  O arguido nessa altura e de modo a forçar A.R.P.L.S.D. a regressar para a casa do casal, munido de um isqueiro, partiu os vidros laterais do lado do condutor e ainda o vidro da frente, bem como danificou o capot, riscando-o, e amolgando-o, andando por cima do mesmo.

5.  No dia 12 de Janeiro de 2014, a hora não concretamente apurada mas próxima das 22.40 horas, após ter mantido, pelo telefone, horas antes, uma discussão com A.R.P.L.S.D., e na qual exigia ver as filhas, o arguido dirigiu-se novamente à Rua ………, munido de uma espingarda caçadeira, de características não concretamente apuradas, arma que adquirira em data não concretamente apurada.

6.  O arguido transportou a referida arma desmontada para aquele local.

7.  Após escondeu-se num terreno sito em frente à habitação dos pais de A.R.P.L.S.D., montou a arma e municiou-a com cartuchos de bala do tipo “Balle Fleche” e ali esperou que A.R.P.L.S.D. chegasse a casa.

8.  A.R.P.L.S.D. conduzindo o seu veículo automóvel e na companhia da sua mãe e da filha L.D.M.S., à data com cinco anos, chegou pelas 22.40 horas à Rua …….., e após passar pela frente da casa dos seus pais e certificar-se que o arguido ali não se encontrava, inverteu a marcha do veículo e estacionou o mesmo em frente à porta da residência dos seus pais.

9.  À data A.R.P.L.S.D. tinha 27 anos de idade, media 1,75 m e pesava 109 Kg.

10.           Assim que A.R.P.L.S.D. saiu do veículo o arguido, bem sabendo que se tratava de A.R.P.L.S.D., apontou a arma que havia municiado na direcção de A.R.P.L.S.D., disparando-a a uma distância de cerca 48,42 metros de distância, atingindo-a na região orbitária esquerda, contiguamente à pálpebra superior ao centro, provocando-lhe ferimentos que lhe causaram a morte ainda no local.

11.           A.R.P.L.S.D., na sequência do disparo efectuado pelo arguido, sofreu na região orbitária e peri-orbitária esquerda, ferida perfuro-contundente transfixiva, de bordos lacerados, em forma de estrela, com 4 cm de maior eixo horizontal e 5 cm de maior eixo vertical. Tais lesões conduziram à ausência da totalidade do globo ocular, com abertura para a cavidade craniana. e exposição de massa encefálica. Sofreu ainda lesões na região parieto-occipital direita, ferida perfuro-contudente transfixiva, em forma de T, de bordos lacerados e exposição da cavidade craniana e de massa encefálica e múltiplas escoriações na região frontal direita.

12.           As lesões acima descritas constituíram causa directa e necessária da morte de A.R.P.L.S.D...

13.           Após efectuar o disparo e bem sabendo que havia atingido A.R.P.L.S.D. o arguido abandonou o local, tendo-se desfeito da arma num terreno próximo, desmontando- a e atirando as respectivas peças para o ar, bem como algumas munições que trazia no bolso.

14.           O arguido ao agir da forma descrita, deslocando-se ao local onde sabia que a A.R.P.L.S.D. se dirigiria, ali a esperando, de noite, munido de uma arma de fogo e escondendo a sua presença, fê-lo para dessa forma surpreender a vítima e impedir que esta desse pela sua presença e dessa forma disparar sobre esta e lhe causar a morte.

15.           Bem sabia o arguido que ao agir da forma descrita, durante a noite, estando escondido, atingiria A.R.P.L.S.D. de forma súbita e de surpresa, assim a impedindo de se refugiar e tentar evitar ser atingida pelo arguido.

16.           Bem sabia o arguido que a arma que utilizava era instrumento idóneo a causar a morte, e que apontando ao corpo de A.R.P.L.S.D. do modo como apontou que podia atingir órgãos vitais e desse modo causar a morte, resultado que previu e quis.

17.           Bem sabia o arguido que não era titular de licença de uso e porte de arma e que por essa razão não podia deter a arma e as munições supra referidas.

18.           Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade das suas condutas.

19.           À data dos factos o arguido mantinha uma relação de conflito com o pai de A.R.P.L.S.D., a quem responsabilizava pela ruptura do casal.

20.           Em data não concretamente apurada mas cerca de três/quatro dias antes da morte de A.R.P.L.S.D. o arguido e o pai desta envolveram-se em confronto físico após uma discussão entre ambos.

21.           O casal já em data anterior havia se separava reatando A.R.P.L.S.D. a relação com o arguido devido às filhas.

22.           O arguido à data dos factos trabalhava esporadicamente na área da construção civil e na apanha da amêijoa.

23.           O arguido denota inabilidade de gestão dos impulsos internos, nomeadamente quando associados a emoções negativas, como a frustração, perante a qual apresenta baixa tolerância, tendendo a agir de forma imponderada.

24.           Apresenta ainda fragilidades ao nível da habilidade para realizar uma autoavaliação/autocensura adequada, proporcionar os seus problemas e limites e em compreender, aceitar e respeitar as opiniões e sentimentos de terceiros.

25.           Actualmente revela a presença de sentimentos de isolamento, incompreensão e desconfiança face a terceiros, o que parece promover a existência de estados de alienação pessoal e social, quadro que poderá ser condicionado pela vivência da situação reclusão associada a características de índole paranóide de personalidade.

26.           O arguido foi condenado:

a.  Em 2008 pela prática em 2011 de um crime de furto e um crime de condução de veículo sem habilitação legal em pena de multa;

b.  Em 2009 pela prática em 2006 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal;

c.  Em 2009 pela prática em 2005 de um crime de furto em pena de multa;

d.  Em 2010 pela prática em 2006 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal em pena de multa;

e.  Em 2010 pela prática em 2008 e 2009 de dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal

27.           A menor L.D.M.S. é filha de A.R.P.L.S.D. e do arguido, tendo nascido em 1 de Dezembro de 2008.

28.           Aquando da morte de A.R.P.L.S.D., a menor L.D.M.S. encontrava-se no local, apercebendo-se de que algo tinha sucedido.

29.           Era A.R.P.L.S.D. quem acautelava o sustento da menor.

2. O Tribunal fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:

À parte os casos de prova vinculada, o artigo 127° do Código de Processo Penal confere ao julgador poderes de livre apreciação da prova, o que quer dizer que esta é avaliada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção de quem decide.

Quanto ao que se deva entender por livre apreciação da prova a chamar à colação os ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias: “ Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável e portanto arbitrária - da prova produzida. (...)

(...) a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material” - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e ao controlo efectivos.

(...) Do mesmo modo, a “livre” ou “íntima” convicção do juiz, de que se fala a este propósito, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.

(...) Se a verdade que se procura é, como já o dissemos, uma verdade prático- jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (máxime da pena) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente inexplicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros;

Uma tal convicção existirá quando e só quando - parece-nos adequado este um critério prático, de se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americA.R.P.L.S.D. - o tribunal tiver logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. ” 

No mesmo sentido de pronunciou o Tribunal Constitucional (ac tc 1166/96 de 19-11¬1996, in D.R., II, 06-02-97, debruçando-se sobre o artigo 127 do Código de Processo Penal, concluiu que "a regra da livre apreciação de prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle".

Por último a chamar ainda à colação o princípio do in dúbio pró réu, nos termos do qual sempre que o tribunal tenha dúvidas sobre o facto que seja desfavorável ao arguido, tal dúvida deve reverter em benefício do arguido, dando-se como não provado.

Ora, feito este breve enquadramento sobre os princípios que regem a prova e sua apreciação em processo penal, importa referir que serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise crítica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo discriminados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art° 127° do Cód. de Proc. Penal, excepto quanto aos exames periciais, cujo juízo científico se presume subtraído àquela livre convicção, nos termos do art° 163° n° 1 do último diploma legal citado, sendo certo que não vemos razões, no caso concreto, para divergir daquele juízo científico.

Posto este considerando prévio analisemos então os meios de prova produzidos e valorados pelo Tribunal, a saber:

-   Declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento;

-   depoimentos do assistente e das testemunhas;

-   inspecção ao local, documentada no auto de fls. 1159 a 1161;

-   relatórios periciais, designadamente: relatório de autópsia de fls. 302 a 307; relatório pericial aos cartuchos apreendidos de fls. 322 a 324; relatório da perícia sobre a personalidade do arguido de fls. 743 a 755;

-   reconstituição do facto e respectiva reportagem fotográfica de fls. 268 a 277 elaborada pela Policia Judiciária;

-   prova documental: auto de notícia e respectiva reportagem fotográfica de fls. 2 a 6; reportagem fotográfica elaborada pela PJ de fls. 33 a 39; auto de diligência externa e respectiva reportagem fotográfica e auto de apreensão dos cartuchos localizado nesta diligência pela Policia judiciária de 73 a 49; informação de serviço elaborada pela GNR de fls. 1031/1032998/999; autos de denúncia por violência doméstica apresentado por A.R.P.L.S.D. contra o arguido de fls. 1005 a 1011 e certidão de fls. 1034 a 137, do despacho de arquivamento na sequência da primeira denúncia por crime de violência doméstica; auto de ocorrência lavrado pela GNR de fls. 1152 a 1157

-   relatório social de fls. 757 a 761.

-   certificado de registo criminal de fls. 513 a 526.

                                                    *

Passando então à análise crítica dos meios de prova supra mencionados:

Não resultaram dúvidas ao Tribunal que a relação entre o arguido e a falecida A.R.P.L.S.D., pelo menos nos últimos anos de convivência em comum se pautou pelo mau relacionamento entre ambos. Tal resultou não só do próprio depoimento do arguido, bem como e sobretudo do depoimento da mãe da falecida, C.D., não sendo ainda de desconsiderar a circunstância de já em 2009 a falecida A.R.P.L.S.D. ter apresentado queixa por violência doméstica contra o arguido e que é por si reveladora do desentendimento já existente entre ambos, conclusão que não é abalada pelo facto do inquérito ter sido arquivado dando A.R.P.L.S.D. por não existentes os factos denunciados, pois bem sabemos as razões pelas quais muitas das vítimas denunciantes de violência doméstica acabam por voltar atrás e desmentir as queixas apresentadas, sendo que a mãe de A.R.P.L.S.D. referiu que as razões que levaram a sua filha a regressar para o arguido das vezes em que se separou dele se prendiam com as filhas, nomeadamente as ameaças do arguido de que ela não ficaria com a filha que era apenas do arguido e que foi criada desde os seis meses pela falecida, sendo tratada por esta como sua filha, o que ressaltou não só dos depoimentos dos pais de A.R.P.L.S.D. mas até do próprio arguido, pelo que se mostra perfeitamente plausível que sendo a filha mais velha do arguido, apenas filha deste este ameaçasse A.R.P.L.S.D. que esta nunca mais veria e estaria com a menina.

Dúvidas também não ficaram ao Tribunal que para o arguido os verdadeiros responsáveis pela separação de A.R.P.L.S.D. eram os pais desta e em particular o pai de A.R.P.L.S.D., o ora assistente R.L.D.. Tal resultou clarividente do depoimento do arguido, relatando o conflito existente entre ele e o ora assistente, relatando também alguns episódios de conflito, um dos quais até envolvendo confronto físico entre ambos, nomeadamente após a última separação do casal, episódio esse que ocorreu três/quatro dias antes do falecimento de A.R.P.L.S.D. e que melhor aludiremos adiante. Para justificar tal animosidade referiu o arguido que o pai de A.R.P.L.S.D. se dedicava ao tráfico de estupefacientes, contando com a conivência de um elemento da PSP local, e que havia discutido com A.R.P.L.S.D. porque não queria que ela andasse a colaborar com o pai nesta actividade, inclusive com o carro em que esta se fazia transportar. No entanto, se como referimos o mau relacionamento entre o arguido e o pai de A.R.P.L.S.D. foi facto em relação ao qual ao Tribunal não ficaram dúvidas, tal como não ficaram dúvidas de que o arguido não gostava do “sogro”, responsabilizando-o pela separação, também não ficaram dúvidas ao Tribunal de que esta animosidade era recíproca, pese embora o depoimento do assistente. De igual modo não ficaram dúvidas de que a animosidade não se traduziu apenas em conflitos verbais, chegando, como já referimos, a envolver confronto físico entre o arguido e o assistente, conflito que ocorreu três/quatro dias antes da morte do A.R.P.L.S.D., convicção que se fundou nos depoimentos do arguido e bem assim da testemunha V.S. proprietário do estabelecimento onde ocorreu tal confronto, tendo presenciado o mesmo, bem como no depoimento da testemunha A.C., o qual também foi interveniente nesse confronto físico, sendo esta uma das pessoas que pelo arguido foi apontado como sendo uma das pessoas que agiria em conluio com o assistente para o agredir.

Mas o que já não logrou o Tribunal ficar convicto foi que a razão desse conflito entre o arguido e o assistente se prendesse com a denunciada actividade ilícita por parte do assistente. Com efeito, do depoimento até do próprio arguido resultou que este não via com “bons olhos” que os pais de A.R.P.L.S.D. “se metessem na vida do casal”, dando conta no seu depoimento que havia dito a A.R.P.L.S.D. que não queria os pais dela na casa do casal e que não achava bem ela andar sempre com os pais, pois cada um tinha a sua vida, mais referindo o arguido que após esta conversa, quando regressou da apanha do marisco já A.R.P.L.S.D. não estava em casa, tendo ido morar com as filhas para casa dos pais dela. De igual modo quer do depoimento do assistente, quer do depoimento da mãe de A.R.P.L.S.D. resultou que a presença dos pais de A.R.P.L.S.D. em casa desta não era bem aceite pelo arguido, apesar da ajuda destes ao casal.

Mais relatou o arguido que após a separação do casal em Novembro de 2013, as discussões entre ele e A.R.P.L.S.D. se prenderam com o facto de este querer estar com as filhas e a A.R.P.L.S.D., segundo referiu não o deixar estar com as filhas e da conjugação da prova, ficou o Tribunal convicto que as discussões entre o casal se relacionaram com a separação, com o exercício do direito de visitas, com a alegada influência que os pais exerceriam sobre A.R.P.L.S.D., afastando-se esta do arguido e mais ficou convicto que sentido que A.R.P.L.S.D. estava mesmo disposto a não voltar para o arguido, tais discussões foram num crescendo, passando a envolver directamente o pai de A.R.P.L.S.D...

Assim e relativamente ao ocorrido em Novembro, o arguido assumiu ter riscado o carro de A.R.P.L.S.D. com um isqueiro, mais assumindo que partiu o vidro dos carros, o que fez porque havia discutido com A.R.P.L.S.D. porque não queria que esta entregasse droga com o carro a mando do pai. Mas como já referimos não resultou prova bastante que tenha sido efectivamente esta a motivação do arguido, resultando sim, nomeadamente do depoimento da mãe de A.R.P.L.S.D., que o que o arguido queria era que A.R.P.L.S.D. voltasse para a casa do casal Negou o arguido que tivesse usado uma faca, negando a ameaça mencionada na acusação. Do depoimento do assistente resultou que o mesmo nada presenciou, pelo que o seu depoimento nesta parte é fruto do que lhe foi contado. Mas referiu a mãe de A.R.P.L.S.D. que já estava em casa com a filha, a A.R.P.L.S.D., quando ouviram barulho de vidros partidos e vêm à janela vendo o arguido a riscar o carro. Do depoimento da mãe de A.R.P.L.S.D. resultou, contrariamente ao referido no despacho de pronúncia, que A.R.P.L.S.D. não estava na rua, já estava em casa quando deu pela presença do arguido. De igual modo, não resultou do depoimento da mãe de A.R.P.L.S.D. que esta se tivesse refugiando no interior do veículo, o que até mal se compreendia a que propósito o faria, pois tendo A.R.P.L.S.D. medo do arguido, estando este já enfurecido a partir o carro, a que propósito A.R.P.L.S.D. iria para junto dele? Também não resultou do depoimento da mãe de A.R.P.L.S.D. com segurança que esta efectivamente tivesse visto uma faca na mão do arguido, facto que este que foi negado pelo arguido, razão pela qual ante a insuficiência da prova se firmou por não provado que o arguido tivesse munido de uma faca. De igual modo não resultou provado que o arguido nesta noite dirigindo-se a A.R.P.L.S.D. tivesse proferido a expressão: “limpo-te o sebo”. O arguido negou-o e C.D. o que referiu foi que o arguido quando esta lhe disse que ia chamar a GNR se voltou para ela e disse para que ela estivesse calada se não “vais tu e vai ela”. Em suma, existem fortes indícios no sentido de que o arguido proferiu alguma expressão ameaçadora o que se mostra plausível ante todo o contexto dos factos, mas não se logrou com segurança apurar qual.

Quanto aos factos inerentes ao crime de homicídio:

No que tange às causas de morte de A.R.P.L.S.D. relevou o relatório da autópsia, resultando também ante o depoimento quer de C.D. e até pelas lesões sofridas por A.R.P.L.S.D. claramente percepcionáveis nas fotos tiradas no local e discriminadas no relatório da autópsia e bem assim do depoimento da testemunha J.O., inspector da Policia Judiciária que A.R.P.L.S.D. teve morte imediata. Mais resulta inquestionável da prova produzida que A.R.P.L.S.D. morreu na sequência de disparo de caçadeira feito pelo arguido. O arguido assumiu a autoria do disparo, sendo incontroverso que a A.R.P.L.S.D. foi atingida com um projéctil perfurante tal como resulta da autópsia, e como referiu o inspector J.O., foram apreendidos três cartuchos, na sequência das indicações do arguido, no local e como consta do auto de apreensão documentados a fls. 73 a 79. Um dos cartuchos apreendidos não era constituído por bagos de chumbo, mas por uma bala - era um cartucho Belle Fleche (cfr. relatório pericial de fls. 322 a 324), sendo que como foi referido pelo perito de balística tal como o relatado pelo Inspector J.O., as lesões apresentadas por A.R.P.L.S.D. eram compatíveis com o disparo com uma munição desta natureza a 48,42 m de distância (cfr. ainda a cota de fls. 334). Como já dissemos o arguido assumiu ter efectuado o disparo no local por ele assinalado no auto de reconstituição do crime e que se vê nas fotos 7 e 8 de fls. 273 (registando que contrariamente ao que se vê em tais fotos e tal como o tribunal percepcionou directamente, do local onde está posicionado o arguido se tem plena visibilidade de toda a casa), local que reiterou em sede de inspecção ao local, embora nesta diligência, embora inicialmente referisse tal local, quando confrontado com a visibilidade do mesmo, referiu que afinal já era outro local, mas a este respeito falaremos adiante.

Mais declarou o arguido que dias antes discutira com o pai de A.R.P.L.S.D., andaram envolvidos, tendo ele (arguido) desferido uma chapada no pai da A.R.P.L.S.D., mais relatando que havia pedido à A.R.P.L.S.D. para que o pai dela o deixasse em paz, declarando também que havia sido alertado que o sogro lhe queria dar um tiro e que no sábado à noite (véspera do homicídio) o senhorio fez-lhe sinal que o “S.” ( o agente da PSP que seria amigo do sogro e conivente com ele na actividade do tráfico de estupefacientes) estava nas proximidades. Prosseguindo no seu relato, declarou o arguido que no domingo, quando regressou da pesca, foi almoçar sendo alertado que o “S.” andaria à procura dele. Acabou por ir à sede do Benfica ver o futebol nessa tarde, depois começou a pensar nas filhas, no sogro, abalou sozinho pelas dez horas, foi buscar a arma a casa, sendo dez para as onze quando chegou ao terreno em frente da casa dos sogros, montou a arma e passados cerca de dez minutos depois de estar naquele local, “viu um vulto”, apenas queria pregar um susto, disparou mas não viu ninguém, apenas pretendia, repetiu à saciedade pregar um susto ao “sogro”. Após, sem saber que tinha acertado em A.R.P.L.S.D. , desmontou novamente a arma e desfez-se das diversas partes para que não o incriminassem pela ameaça.

As declarações do arguido, na parte em que referiu que apenas pretendia assustar o sogro e que antes de disparar apenas viu um vulto não mereceram credibilidade e foram claramente contraditadas pela demais prova produzida. Desde logo a questão que se nos coloca é a seguinte: a que propósito querendo apenas assustar o sogro o arguido aponta na direcção da casa onde sabe que está “um vulto’”? Com efeito, o arguido acabou por reconhecer que apontou na direcção do vulto, mas para cima do mesmo julgando que o projéctil passaria por cima da cabeça do mesmo. Ora veja-se a foto de reconstituição do facto, onde é se alcança que o arguido aponta na direcção do portão, com a arma quase na horizontal e não apontada para cima como referiu, sendo que J.O. da Policia Judiciária foi bem claro e assertivo ao afirmar que ninguém induziu o arguido nem a posicionar-se no local do disparo, nem quanto ao modo como apontou a arma, não sendo despiciendo referir que o arguido estava assistido por defensor nesta diligência. Não desconsidera o Tribunal a circunstância de as lesões na vítima apresentarem uma trajectória de projéctil em sentido ascendente, mas de tal não resulta que o arguido tenha apontado a caçadeira para cima, como pretendeu dar a entender, mas deveu-se sim ao facto de o local onde se posicionou tal como se mostra nas fotos de reconstituição do facto e tal como o directamente percepcionado pelo Tribunal em sede de inspecção ao local se situar ligeiramente abaixo da cota onde se encontrava a vítima. E posto isto mais uma vez nos questionamos: como pode alguém apenas querer assustar outrem apontando na sua direção e não apontando para o descampado que se situa ao lado da casa dos pais de A.R.P.L.S.D.? Não faz em si mesmo sentido. Mas nem é por esta ausência de sentido que temos por infirmadas e contraditadas as declarações do arguido nesta parte. Admitiu o arguido que chegou ao local cerca de dez minutos antes. O arguido ficou naquele local, não sendo a sua presença perceptível por quem estivesse no lugar de A.R.P.L.S.D., desde logo porque estava num terreno desprovido de qualquer iluminação, com árvores e demais vegetação, com o muro que é visível nas fotos, sendo que tudo ocorre às próximo das 22.30 horas, numa noite de Janeiro e numa noite de chuva como o referiu o arguido e é visível nas fotos do local tiradas nessa noite. O arguido escondeu-se e estava ali à espera. Estando à espera não podia deixar de ter visibilidade para a porta da casa dos pais de A.R.P.L.S.D.. Com efeito, se não tivesse visibilidade como podia aperceber-se da sua chegada? Quem espera alguém necessariamente que se coloca num local onde possa ver a chegada de quem espera, esta uma conclusão que decorre das mais elementares regras da experiência comum, não fazendo assim qualquer sentido quando já em sede de inspecção ao local indicou um segundo local como sendo aquele onde estava e ao invés do primeiro, de onde não tinha plena visibilidade da casa e do portão, segundo local esse que implicaria que o arguido tivesse que ficar curvado para o lado esquerdo para poder ver o que se passava e assim disparar, o que repetimos não faz qualquer sentido, ficando o Tribunal absolutamente convicto que o primeiro local indicado pelo arguido em sede inspecção judicial e que coincide com o local por ele assinalado em sede de reconstituição do facto, corresponde ao local onde o arguido se encontrava posicionado, quando apontou a espingarda caçadeira e efectuou o único disparo que veio atingir a cabeça de A.R.P.L.S.D., mais propriamente na região peri-orbitária. Como dissemos, referiu o arguido apenas ter visto um vulto, não se apercebendo que se tratava de A.R.P.L.S.D. a qual julgava que nessa noite dormiria em casa da avó, assim pretendendo reforçar a sua alegada intenção de apenas assustar o sogro. Mas também aqui o depoimento do arguido foi contraditado pela demais prova. Declarou C.D. que quando chegaram ao local passaram pela casa e fizeram inversão de marcha após o que A.R.P.L.S.D. estacionou em frente à residência e tal como se demonstra na foto 2 de fls. 33. Como foi directamente percepcionado em sede de inspecção ao local do local onde o arguido estava este tinha plena visibilidade dos veículos que entravam na rua no sentido por onde entrou A.R.P.L.S.D. que assim passou em frente ao arguido, bem como tinha plena visibilidade do local onde posteriormente estacionou o carro, local esse bem iluminado e que pese embora a distância a que o arguido se encontrava, pouco mais de 48 metros, mesmo de noite, quem está no local onde estava escondido o arguido, consegue claramente distinguir pessoas, a sua compleição física, muito para além de uma mera silhueta, permitindo de igual modo distinguir o tipo de veículos automóveis. A vítima conduzia um Fiat Punto, facto que o arguido bem sabia, como ele próprio o referiu. Em momento algum no seu depoimento declarou o arguido ter visto o pai de A.R.P.L.S.D.. a conduzir este Fiat Punto, sendo que pai de A.R.P.L.S.D. tinha um Renault Laguna, cuja morfologia não é confundível com um Fiat Punto. Do local onde o arguido se encontrava necessariamente que viu o veículo chegar à rua, vindo do seu lado esquerdo e tomando por referência que o arguido está de frente para a casa e vê o veículo a estacionar em frente à porta de casa. E mais, do local onde estava necessariamente que o arguido viu A.R.P.L.S.D. sair do veículo. Tendo em conta o local onde esta se encontrava quando foi atingida esta saiu do veículo (vd. fotos 2 a 4 de fls. 33/34) A.R.P.L.S.D. predispunha-se a entrar em casa, passando pela frente do veículo, sendo que quando foi atingida tinha andado pouco mais de um metro da direita para a esquerda do arguido, precisamente avançado em frente deste e em local de visibilidade plena, já que o muro tapava apenas o que estava para a direita do arguido. A.R.P.L.S.D. tinha um metro e setenta e cinco de altura e 109 kg de peso, cabelo comprido. O pai de A.R.P.L.S.D. embora de estatura idêntica tinha menos peso do que A.R.P.L.S.D. e cabelo curto. Ainda que estivesse a chover, a luz do candeeiro existente junto à porta, ilumina claramente o local, sendo que quanto mais escura é a noite, maior intensidade assume a iluminação do local. A.R.P.L.S.D. vivia com o arguido havia sete anos. Se para o Tribunal do local onde estava era claramente perceptível quem era a pessoa que estava posicionada no local onde estava A.R.P.L.S.D. quando foi atingida, vendo-se a sua cara, ainda que sem poder distinguir os respectivos traços fisionómicos, como pôde o arguido confundir a sua mulher, com o seu sogro? Não podia, não só pela cara e dando até por assente que a mesma nunca esteve voltada de frente para o arguido (o que não se mostra possível, porque a porta do carro está precisamente na frente do arguido e este viu-a abrir a porta e sair por ela de frente para o arguido) mas sobretudo pelo corpo, onde infelizmente os seus 109 kg a tornariam inconfundível e muito mais para quem com ela convivia intimamente havia sete anos, não se mostrando também confundível o facto de A.R.P.L.S.D. ter cabelos compridos e R.L.D., seu pai, ter cabelos curtos. E neste aspecto urge um pequeno parêntesis. Por diversas vezes invocou a defesa que A.R.P.L.S.D. trazia o cabelo apanhado. Ora tal não resulta das fotos onde se vê que a vítima está de cabelo solto (cfr. fotos de fls. 36 a 38), não sendo minimamente credível tendo até em consideração a manifesta perda de massa encefálica que alguém lhe tivesse soltado o cabelo, nem mesmo a pretexto de qualquer manobra de reanimação. Mas mesmo que A.R.P.L.S.D. tivesse o cabelo apanhado, do local onde o arguido se encontrava com aquela luminosidade o mesmo necessariamente que se apercebia que a pessoa que estava à sua frente, “tinha um rabo-de-cavalo”, logo, nunca poderia confundir com o sogro. Não ficaram, pelas razões sobreditas dúvidas ao Tribunal que o arguido viu e tinha pleno conhecimento que a pessoa que conduzia o veículo e saiu do carro e para a qual apontou a arma era a sua companheira, mãe da sua filha L.D.M.S., A.R.P.L.S.D..

E dúvidas também não ficaram ao Tribunal de que ao disparar do modo como fez, era intenção do arguido, não apenas assustar, mas sim matar A.R.P.L.S.D.. Se ia predisposto a matar R.L.D. se este ali estivesse, pois não sabemos e até admitimos que sim. Mas do que não temos dúvidas é de que ao ver A.R.P.L.S.D.., bem sabendo que era ela, atirando do modo como atirou, quis matar A.R.P.L.S.D... O arguido tomou uma decisão, planificou-a e executou-a. Não estamos perante uma situação em que no calor de uma discussão, alguém pega no primeiro objecto que possa servir de arma que lhe aparece pela frente. Não! O arguido não estava só em confronto aberto com o sogro, mas também com a própria A.R.P.L.S.D. e por questões relacionadas com o facto de esta ter saído do lar conjugal e desta não o deixar ver as filhas. É o próprio quem o afirma, reconhecendo que no dia da morte dos factos tinha falado com A.R.P.L.S.D.. A mãe de A.R.P.L.S.D., declarou que nesse dia ouviu a filha a falar ao telemóvel com o arguido, dizendo que não queria ir, mais relatando que quando se dirigiam para casa, A.R.P.L.S.D. lhe disse que estava com medo, que o arguido a havia ameaçado dizendo-lhe que “ia meter toda a família de luto” e neste particular não podemos deixar de anotar que o próprio arguido, embora referindo ter sido noutra altura, assumiu que numa das discussões que travou com A.R.P.L.S.D. lhe disse que “tudo aquilo tinha de acabar, ou a minha família fica de luto ou fica a tua”, o que nos leva a concluir que A.R.P.L.S.D. efectivamente transmitiu os receios à mãe e travou com ela a conversa por ela relatada e nos termos relatados. A testemunha L.M. que explorava o snack-bar frequentado pelo arguido, no seu depoimento deu nota que o arguido se queixava de A.R.P.L.S.D. (e não do sogro) e pelo facto de A.R.P.L.S.D. não o deixar ver as filhas, mais relatando que no dia em que os factos ocorreram apercebeu-se que o arguido falava ao telemóvel e que o assunto tinha a ver com as filhas, pelo que deduziu que falava com A.R.P.L.S.D.., sendo que, aquando da sua inquirição pela Policia Judiciária (declarações com as quais foi confrontada em audiência de julgamento), esclareceu que o arguido argumentava de forma violenta e que ele estava violento, sendo que a justificação dada pela testemunha, ter sido a policia que colocou que o arguido estava violento sem que a testemunha o tivesse dito, não se mostrou credível. A testemunha J.B., com quem o arguido habitualmente ia para a apanha da amêijoa, referiu que conhecia o arguido havia cerca de um ano e que os problemas que este referenciava eram com a A.R.P.L.S.D. e porque esta não o deixava estar com as filhas. M.J.B., que explorava a casa do Benfica, e onde o arguido assistiu ao jogo na tarde do homicídio também referiu que as queixas que o arguido manifestava se prendiam com A.R.P.L.S.D. A e porque ela não o deixava ver as filhas, mais referindo que o arguido lhe disse nessa tarde que “estava farto” e também esta testemunha confrontada com as declarações prestadas na Polícia Judiciária negou de forma não credível que ali tinha declarado ter ouvido o arguido dizer “qualquer matava muita gente”. Mas nestes três últimos depoimentos referenciados, o que temos de comum é a circunstância de as queixas do arguido não versarem o sogro, mas sim a própria A.R.P.L.S.D.., sendo que o normal seria que se queixasse do sogro. V.S. dono da pastelaria/padaria onde o arguido se confrontou fisicamente com o pai de A.R.P.L.S.D. deu nota que num dia, em que após uma matança de um carneiro, feita pelo arguido, a testemunha o levou a casa, este lhe mostrou uma arma caçadeira e lhe disse “avisa o teu amigo (referindo-se ao assistente) que isto é para o matar a ele e à filha”. O arguido ao ouvir este depoimento ia abanando a cabeça negando-o, mas o Tribunal teve por credível este depoimento, mais esclarecendo V.S. que esta conversa ocorreu antes da briga entre ambos no seu estabelecimento. Poder-se-á questionar a que propósito o arguido diria perante terceiros o que disse dando assim nota das suas intenções. Pois neste aspecto não podemos deixar de ressaltar a personalidade do arguido que ressalta não só da perícia à sua personalidade, como do relatório social, bem como das suas reacções e comportamentos em audiência de julgamento. O arguido é pessoa impulsiva, reagindo mal à contrariedade, reagindo até de forma não calculada quanto às consequências das suas afirmações.

Mas retornando ao dia dos factos: o arguido andava nervoso, revoltado não só com a separação de A.R.P.L.S.D. mas pelo facto de as visitas às filhas não decorrerem da forma por ele pretendida e estamos convictos revoltado por sentir que A.R.P.L.S.D. estava mesmo resolvida a desta vez não voltar para ele, atribuindo grande parte da responsabilidade de tudo, à A.R.P.L.S.D. e ao pai dela, daí que toda a sua revolta se centrasse quer na A.R.P.L.S.D.., quer no pai dela. Mas neste dia, ante os depoimentos supra mencionados, não foi a presença de qualquer pessoa a mando do pai de A.R.P.L.S.D.., nem qualquer pretensa intenção de terceiro a mando do pai da A.R.P.L.S.D. de o atingir, que motivou a conduta do arguido, mas as conversas que nesse dia travou com A.R.P.L.S.D.. E esta nossa convicção alicerça-se além do já referido, nas próprias declarações do arguido, quando referiu que “nesse dia falou com a A.R.P.L.S.D.”, “comecei a pensar”, “cheguei ao meu limite” e decidiu ir a casa, buscar a arma que segundo declarou tinha há cerca de oito anos e estamos em crer que levou a arma desmontada, pois só isso impediria ser surpreendido na rua por alguém, o que seguramente não aconteceria se tivesse levado a arma “embrulhada num lençol", como a dada altura do seu depoimento referiu. O arguido não pretendeu dar apenas um susto limitando-se a mostrar a arma ou a dispará-la para o ar, ou até a disparar contra o carro, assim o danificando como já o fizera anteriormente. Não! O arguido, pensou em tudo o que estava a acontecer, sentindo “que tinha chegado ao seu limite”, vai a casa, traz a arma e pelo menos quatro cartuchos, vai para um local onde vê claramente a casa e quem chega, mas onde não é possível para quem está junto dessa casa, vê-lo (não o fazendo à queima roupa como o sustentado pela defesa), monta a arma e municia-a com uma munição Balle Fleche, munição de bala e não de bago de chumbo, que pela sua configuração permite uma maior estabilidade na sua trajectória e é especialmente vocacionada para caça “grossa”, aponta na direcção de A.R.P.L.S.D. não para o lado, não para cima, mas na direcção do corpo de A.R.P.L.S.D.., assim concretizando as suas ameaças anteriores. Matar a A.R.P.L.S.D.., foi a forma que neste dia, o arguido decidiu, “porque tinha chegado ao seu limite” de por fim ao litígio.

E dúvidas não ficaram ao Tribunal que contrariamente ao referido pelo arguido, ele apercebeu-se logo que atingira A.R.P.L.S.D.. C.D. referiu ter ouvido um estrondo e ao ver a filha caída no chão, apercebeu-se do que se passava e tentou evitar que a neta L.D.M.S. (a filha comum de A.R.P.L.S.D. e do arguido, com cinco anos) se apercebesse do que havia acontecido, levando-a para casa. E esta conclusão não é infirmada pelas declarações do arguido que só soube que tinha matado A.R.P.L.S.D. no dia seguinte e por isso decidiu entregar-se. De facto mal se estranha este desconhecimento ante o apurado comportamento do arguido quando se entregou na GNR. Quem descobre que matou alguém, não tendo sido essa a sua intenção, a sua reacção natural é a de ficar desorientado com a gravidade do que fez, tanto mais, quando se tratava da mãe da sua filha. Aliás mal se estranha ante toda a impulsividade manifestada pelo arguido no decurso da audiência de julgamento, que após saber que sem querer tinha matado a mãe da sua filha, se tivesse entregado na GNR “cabisbaixo”, “não querendo falar” como o referiu F., militar da GNR que conhecia o arguido e por isso quando este se entregou o confrontou com o sucedido, sendo ainda de relevar o depoimento de I.X., militar da GNR e que viu a chegada do arguido ao posto para se entregar, relatando que este disse apenas que se vinha entregar, não disse mais nada, referindo que o arguido “vinha calmo”. Por último e neste particular é ainda de chamar à colação o depoimento de J.B. que referiu que quando foi visitar o arguido ao Estabelecimento Prisional e o questionou sobre o sucedido, o comentário do arguido foi: “já está, já está", reacção que cremos nada compatível com um resultado que não se queria.

Por todo o exposto, reiteramos ficou o Tribunal convicto que o arguido agiu com a intenção de matar A.R.P.L.S.D..

Da prova produzida já não resultou seguro que o arguido se tivesse efectivamente apercebido que a filha de ambos seguia no carro.

Para prova dos factos respeitante ao pedido de indemnização relevou o depoimento do assistente e C.D..

Para prova dos factos inerentes à personalidade e condições pessoais do arguido relevaram as declarações deste e em particular a perícia à personalidade e o relatório social e que contraditaram a personalidade calma descrita pelas testemunhas V.R., M.A.P., R.P. e A.M.E..

Por último e quanto aos antecedentes criminais relevou o c.r.c. de fls. 513 a 562.

3. Nas suas conclusões, e a este propósito, avança o recorrente as seguintes razões de discórdia:

30° No entendimento do recorrente (alíneas a), b), c) do n.° 2 do artigo 412° do CPP), e em face do supra alegado, as normas jurídicas violadas são as que se encontram vertidas nos artigos 131°, 132°, n.°s 1 e 2 alíneas b), i), j), 40°, 42°, 70°, 71°, 77° todos do CP, 86°, n.° 3, da Lei n.° 5/2006 de 23/02, artigos 8°, n.° 2, 13°, 18°, n.° 2, 27°, n.° 2, 30°, n.° 1, todos da Constituição da República Portuguesa, e artigo 49°, n.° 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e princípio in dubio pro reo.

 

4. Apreciando.

Antes de iniciarmos a apreciação dos vícios imputados à decisão, façamos uma breve resenha dos fundamentos para a verificação dos mesmos, nos termos previstos no artº 410 nº2 do C.P.Penal.

Para verificação da sua ocorrência, o tribunal de recurso deverá apreciar se do texto da decisão recorrida (ou seja, sem recurso a qualquer outro elemento externo – declarações, depoimentos, etc.), por si só ou conjugada com as regras de experiência comum e de uma forma tão patente que não escape à observação do homem médio, decorre alguma das seguintes situações:

i) Insuficiência da matéria de facto para a decisão:

Que se verifica quando os factos dados como assentes na primitiva decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição; ou seja, quando os factos provados são insuficientes para poderem sustentar a decisão recorrida ou quando o tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso. Tal insuficiência – definida por Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos Penais, 8.ª Edição 2011, Rei dos Livros, página 74, como uma ‘lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito’ – tem de existir internamente, no âmbito da decisão.

ii) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão:

Que ocorre quando, de acordo com um raciocínio lógico, se tenha de concluir que a decisão não fica suficientemente esclarecida, por existir irremediável contradição entre os próprios elementos fundamentadores invocados ou quando essa fundamentação determina uma decisão precisamente oposta à que foi proferida;

A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos” - vide Ac. do STJ de 3/10/2007, Pº07P1779, relator Cons. Henriques Gaspar, www.igfej.pt .

iii) erro notório na apreciação da prova:

Quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável; quando se dá como assente algo notoriamente errado; quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as legis artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.

 

5. Face ao que consta na motivação apresentada pelo recorrente, é manifesta a sua sem razão, no que se reporta à ocorrência dos acima mencionados vícios, por uma razão simples – os argumentos que usa fundam-se, não na ocorrência desses vícios, nos termos acima enunciados, mas tão-somente na procura de substituição da sua convicção pela alcançada pelo tribunal “a quo”, bem como, nalguns casos, em questões que se subsumem a apreciação jurídica e não factual.

6. Senão, vejamos.

O recorrente entende que os depoimentos prestados pelas testemunhas L.M. e C.D. não podem ser valorados, por não se mostrarem seguros e isentos e que, portanto, o tribunal “a quo” deveria ter credibilizado o por si atestado, em detrimento do que pelas mesmas foi dito, designadamente no que se refere ao conteúdo de uma conversa telefónica prévia (horas antes) ao crime, bem como quanto a quem era a pessoa que visava e a sua falta de intenção em acertar-lhe (o arguido negou ter tido a discussão a que se alude no ponto 5 e afirmou que pretendia apenas visar o pai da vítima, sem intenção de lhe acertar).

i. Sucede todavia que se limita a renovar a sua versão, pretendendo assim descredibilizar as restantes sem que se dê ao incómodo de discutir e rebater os argumentos que o tribunal “a quo” aduz, em sede de fundamentação da sua convicção, para se ter convencido da verificação do que deu como assente.

Discordar da decisão alcançada é, sem dúvida, um direito do arguido mas, para que possa ter alguma relevância, para efeitos de recurso, necessário seria uma de duas:

 – ou que resultasse da fundamentação que o tribunal “a quo” manifestamente errou ao dar crédito a determinados depoimentos em detrimento de outros, o que, de todo, não resulta da leitura da fundamentação da convicção realizada, em que se mostram objectivamente explicitadas e de acordo com a lógica e as regras de experiência comum, as razões que levaram o tribunal a dar credibilidade a tais depoimentos:

- ou que o recorrente explicasse, debatesse e rebatesse essas razões, demonstrando o erro ou a violação do princípio in dubio pro reo, concretizando, face ao aí exposto, os fundamentos da sua discórdia.

ii. Nada disto se mostra realizado neste recurso, mesmo em sede de motivações, como já acima se referiu, sendo certo que nenhum dos vícios acima descritos se mostra aqui patentemente existente. 

iii. E, de igual modo, no que se reporta à tese do recorrente de que, em última análise, deveria o tribunal “a quo” ter aplicado o princípio “in dubio pro reo”, o que não fez, também aqui haverá que concluir que lhe não assiste razão.

iv. Este princípio tem o seu campo de aplicação limitado, precisamente, às situações em que, no decurso da formação da convicção do julgador, este chegue a um ponto de indecisão inultrapassável quanto à circunstância de o arguido ter ou não praticado um determinado facto. Nesse caso – e apenas nesse caso – deverá o tribunal fazer a aplicação de tal princípio. Não basta para tanto que a prova produzida seja contraditória ou não uniforme ou que o arguido negue a prática dos factos (se assim fosse, salvo nos casos de confissão, qualquer acusação estaria inevitavelmente votada ao insucesso).

v. Ora, no caso vertente, a mera circunstância de existirem duas teses opostas não conduz, forçosamente, à conclusão de ocorrência de dúvida. Ela só se verificará se o julgador não puder, em termos de convicção, dar prevalência a uma das versões, por nenhum dos elementos probatórios se demonstrar credível.

Mas tal não sucede aqui, já que o tribunal “a quo” entendeu – e sem razões objectivas de censura – que quer o depoimento prestado pelas testemunhas que enunciou se mostrava coeso, coerente e corroborado por outros elementos probatórios, quer as circunstâncias do caso (dadas as características do local em termos de visibilidade e de distância e as características físicas específicas da vítima), em conjugação com as regras de experiência comum, ditavam a certeza quanto à ocorrência daqueles factos, o que desmentia a versão apresentada pelo arguido.

vi. Isto significa, muito simplesmente, que o tribunal não chegou a nenhuma situação de dúvida inultrapassável, insuperável, antes alcançou certeza jurídica com base naqueles elementos probatórios conjugados. E se assim é, e se o fez de acordo com os poderes que a lei lhe confere, haverá que daí extrair que não houve violação do acima referido princípio, por não se verificarem, in casu, os requisitos de que depende a sua aplicação.

Improcede, pois, também esta crítica do recorrente.

7. Prosseguindo.

No ponto 18 da sua motivação, o recorrente afirma: Quanto ao “meio insidioso”, artigo 132°, n° 2, alínea i) do Código Penal, entende o arguido haver erro notório na apreciação e valoração da prova.

Segue-se depois uma transcrição do acórdão, retirada do segmento que o tribunal “a quo” dedicou ao enquadramento jurídico.

i. Como resulta de tudo o que já antes se afirmou, o erro notório é vício que se reporta ao apuramento da matéria de facto e não à aplicação do direito. Assim, os argumentos que o recorrente avança a este título terão de ser apreciados em sede própria, que não é, manifestamente, esta (vide infra).

ii. Diga-se, para além do mais, que não ocorre, de igual modo, o vício de contradição previsto no nº 2 al. b) do C.P. Penal, pois este não se verifica quando o resultado a que o juiz chegou na sentença advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu corresponder aos factos provados. Se o tribunal a quo entende que os factos provados corporizam todos os elementos do tipo legal de crime imputado ao agente, não está em causa uma questão de facto – contradição insanável da fundamentação - mas sim uma questão de direito: eventual erro de subsunção dos factos ao direito (Sobre este tema e no sentido apontado, cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.10.2012, no proc. 165/10.3GDCNT.C1, do Supremo Tribunal de Justiça de 22.2.2007, no proc. 07P147 e do Tribunal Central Administrativo Norte de 20.4.2012, no proc. 00916/08.6BEPRT, todos em www.dgsi.pt.)

É esta a situação dos autos: o que o Recorrente pretende e importa indagar é se ao proceder à análise factual o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, errou na indagação da norma aplicável ou na sua interpretação, proferindo decisão que não é conforme ao direito substantivo aplicável.

E essa, repete-se, é questão a ser resolvida em sede própria, infra.

8. Finalmente, haverá que fazer um último reparo.

i. No ponto 15º da sua motivação, o recorrente deixa vertido o seguinte: Tendo em conta o depoimento do arguido que contradiz o depoimento da testemunha C.D. Duarte, o Tribunal terá forçosamente de ficar com dúvidas em relação a estes dois depoimentos que não se mostram seguros e isentos e restando dúvidas, o Tribunal deveria ter lançado mão e aplicar efectivamente o principio in dubio pro reo, dando-se como não provada a reflexão.

ii. Sucede, todavia, que a dita reflexão, como conclusão jurídica que é, mostra-se consignada, em sede de acórdão, na parte relativa ao enquadramento jurídico (Com efeito, dos factos provados conclui-se que o arguido agiu de modo reflectido. Com efeito tal reflexão leva-o a ir buscar a arma que tinha em sua casa, a esconder-se num local, esperando pela vitima.) e, como se comprova pela mera leitura dos factos dados assentes, não se mostra aí referido que o arguido agiu com reflexão. Assim sendo, é manifesto que a pretensão do recorrente – de eliminação de algo (ainda por cima conclusivo e não factual) que não consta do rol da matéria dada como provada – está votada ao insucesso, por não ter qualquer conteúdo útil.

C. Alteração do enquadramento jurídico.

1. O tribunal “a quo” pronunciou-se a propósito desta questão nos seguintes termos:

3.2. Homicídio Qualificado

Ante a factualidade que resultou provada, temos que esta integra, pelo preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo típicos, e ressalvada melhor opinião em contrário, a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio.

O cometimento deste crime, pelo preenchimento dos seus elementos típicos, resulta de o arguido ter efectuado um disparo com uma espingarda caçadeira dirigida na direcção do corpo de A.R.P.L.S.D., causando-lhe as lesões descritas no elenco dos factos provados e que foram causa directa e necessária da morte de A.R.P.L.S.D.

Temos assim, por parte do arguido a prática de actos de execução (o atingir com um disparo de arma de fogo uma zona do corpo - a cabeça que aloja órgãos vitais da vitima), actos idóneos a produzir o resultado típico, ou seja a morte de uma pessoa, morte esta que se veio a verificar, em consequência directa e necessária de tais actos.

O arguido, no que tange ao elemento subjectivo do tipo, actuou com dolo directo, pois decidiu atingir daquela forma atingir A.R.P.L.S.D., com o propósito de causar a morte desta e, não obstante saber que tal comportamento era proibido e punido por lei, não se demoveu de o realizar, antes o levou a cabo de forma voluntária e consciente (v. art° 14° n° 3 do C.Penal).

E concluindo-se como se conclui pela actuação dolosa do arguido, afastada está como é manifesto a ocorrência de uma actuação negligente e nomeadamente de crime preterintencional.

Importa agora aferir se os factos provados revelam especial perversidade ou especial censurabilidade do agente e consequentemente subsumíveis na previsão do art° 132° do Cód.Penal tal como o sustentado na acusação.

Nas palavras de Teresa Serra, a propósito do crime de homicídio qualificado, mas que têm plena validade também para o crime de ofensa à integridade física qualificada que haverá especial censurabilidade quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”, podendo afirmar-se que a especial censurabilidade se refere “às componentes da culpa relativas ao facto”, fundando-se, pois, “naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude”. E especial perversidade quando se esteja perante “uma atitude profundamente rejeitável”, no sentido de “constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, estando aqui em causa “as componentes da culpa relativas ao agente” .

Também o Prof. Figueiredo Dias, depois de referir que, face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxitividade, as circunstâncias enumeradas no n° 2 do art° 132° só podem ser compreendidas como elementos da culpa, conclui: “Sendo, assim, o especial grau de culpa subjacente à «especial censurabilidade ou perversidade» que o agente manifesta em tais circunstâncias aquilo que motiva a agravação, esta tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples” .”

Na acusação tem-se por preenchida a alínea b) do n° 2 do artigo 132° do Cód.Penal.

No presente caso objectivamente ocorre uma situação que integra um dos exemplos- padrão - o da alínea b) do n.° 2 do art. 132.° do CP: praticar o facto contra que vivia em condições análogas às dos cônjuges. Porém, daí não se segue, sem mais que tenha praticado o crime de homicídio qualificado. A coincidência com o exemplo-padrão é apenas indiciante de maior censurabilidade ou perversidade por parte do agente. Torna-se necessário verificar se, em concreto, se pode concluir pela existência do maior grau de culpa em que assenta o tipo qualificado. Conforme acentua Fernando Silva: “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. ... Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contra-motivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge.”

Consequentemente e no caso em apreço o passado de relacionamento afectivo entre o arguido e a vítima, que perdurou durante sete anos, tendo gerado uma filha em comum, deveria ter constituído um travão para quaisquer impulsos agressivos, o que não ocorreu e que revela uma atitude especialmente censurável e uma personalidade especialmente perversa.

Mas nem é por esta circunstância que só por si que temos por verificada a especial perversidade e especial censurabilidade da conduta do arguido.

Com efeito, dos factos provados conclui-se que o arguido agiu de modo reflectido. Com efeito tal reflexão leva-o a ir buscar a arma que tinha em sua casa, a esconder-se num local, esperando pela vítima.

Mas não temos só uma reflexão dos meios empregues. O arguido escondeu-se num local que não permitiu a A.R.P.L.S.D. aperceber-se da sua presença e desse modo impediu-a de qualquer acto para se eximir a actuação do arguido.

Concluímos que o arguido não só reflectiu sobre os meios empregues para concretizar a morte de A.R.P.L.S.D.., como actuou de modo insidioso.

Para Nelson Hungria, o meio insidioso é o meio fraudulento, sub-reptício por si mesmo, que inclui traição, ataque súbito e sorrateiro à vítima descuidada e confiante, emboscada dissimulada, espera da vítima em lugar onde há-de passar ou simulação, ocultação da intenção hostil para acometer a vítima de surpresa. No mesmo sentido, se extrai o ensinamento de Figueiredo Dias reconduzindo-o a meio oculto, dissimulado, enganador e sub-reptício Também para Teresa Serra, o meio insidioso abrange não apenas os meios especialmente perigosos, mas também a eleição de condições em que o facto pode ser praticado de modo mais eficaz dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor, como o disparo com a arma emboscado. Igual entendimento se extrai a nível jurisprudencial, como aquele em que por exemplo o uso mortífero da arma mostra-se oculto; a vítima não o apreende, apercebendo-se do gesto criminoso quando do mesmo já não se pode defender, e bem assim aquele em que o agente elege as condições para encontrar a vítima desprevenida, como se decidiu no AC. do STJ de 20.2. 2004  .

Ora foi precisamente o que sucedeu no caso em apreço.

Acresce que no caso concreto o mero uso de uma arma de fogo não constitui de per si uma circunstância qualificativa sem mais, já que a arma de fogo mais não traduz do que o uso de um meio idóneo a causar o resultado morte, não constituindo assim o uso da arma de fogo circunstância qualificativa por especialmente censurável e reveladora de especial perversidade por parte do arguido. Foi o meio apto à concretização do resultado nos termos delineados pelo arguido.

O modo de actuação do arguido revelou um grau de reflexão, que sem demonstrar a premeditação superior a 24 horas, foi premeditado, a insidia e frieza de ânimo, que se mostra particularmente censurável e uma personalidade especialmente perversa do arguido traduzida no seu modo de actuação, tirando a vida daquela que tinha vivido consigo em condições análogas às dos cônjuge e era a mãe da sua filha, para tanto lhe montando uma emboscada.

Afastado o uso de arma enquanto circunstância reveladora de especial perversidade ou de censurabilidade é de equacionar a aplicabilidade da agravante inerente ao uso de arma proibida.

A Lei n.° 5/2006, de 23.02 (com as alterações entretanto introduzidas — Lei n.° 59/2007, de 04.09, Lei n.° 17/2009, de 06.05, Lei n.° 26/2010, de 30.08, Lei n.° 12/2011, de 27.04 e Lei n.° 50/2013, de 24.07) pune no art. 86.° a detenção de arma proibida, assim como a prática de crime com utilização de arma. Assim, nos termos do n.° 3 do citado preceito “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.”. E, nos termos do art. 86.°, n.° 4, da Lei n.° 5/2006, entende-se que “Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.° 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.” Ou seja, a partir do n.° 4 do art. 86.° verificamos que a agravação prevista no número anterior (n.° 3) ocorrerá sempre que não haja agravação para o crime em função do uso e porte de arma, e a agravação aqui prevista (na Lei n.° 5/2006) ocorrerá, quer se trate de uso e porte de arma proibida ou quer se trate de arma não proibida. Ora, no caso dos autos a conduta do arguido subsume-se na previsão do artigo 132° do Cód.Penal e, tanto integra este crime aquele que realiza condutas lesivas da vida através de arma de fogo, ou de qualquer outra arma ou meio, e quer se trate de arma legalizada ou não, arma permitida ou proibida, sendo que no caso em apreço, a circunstância de ter sido usada arma de fogo, não foi considerada como reveladora de especial censurabilidade ou perversidade do agente.

A circunstância de o arguido estar também acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida, devendo ser punido por tal crime, pelas razões já aduzidas, não obsta ao funcionamento desta agravação, não traduzindo uma dupla incriminação. Com efeito, para além da agravação da ilicitude do crime de homicídio, ainda acresce uma outra ilicitude decorrente da detenção e transporte de arma sem autorização e fora das condições legais. Trata-se de um outro crime, um crime de perigo abstracto, em que os bens jurídicos “protegidos pela norma são primacialmente a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, mas também a vida, a integridade física e bens patrimoniais dos membros da comunidade, face aos riscos sérios que derivam da livre (ou seja, sem controlo) circulação e detenção, uso e porte de armas (...) proibidas”(Artur Vargues, Comentário das Leis Penas Extravagantes, vol. I, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Lisboa: UCP, 2010, p. 240).

Em suma é de aplicar ao homicídio qualificado a agravante inerente ao uso de arma de fogo, proibida, em concurso real com o crime de detenção de arma de fogo.

3.2. Crime de detenção de arma proibida

Como já referimos, resulta dos autos que o arguido usou no cometimento dos factos uma espingarda caçadeira sem que fosse titular de licença de uso e porte de arma. Apesar de a detenção da arma para a qual não tinha licença de uso e porte de arma, ter constituído um meio - um crime meio, para a execução do crime de homicídio, não está tal crime consumido pela prática do crime de homicídio qualificado e agravado pelo uso de arma de fogo, pelas razões já sobreditas.

Assim constitui-se, em concurso real autor de um crime de detenção de arma proibida, p. e p., pelo art° 86°, n° 1, alínea c) da Lei n° 5/2006 de 23 de Fevereiro, com as alterações que lhe foram conferidas pela Lei n.° 59/2007, de 04.09, Lei n.° 17/2009, de 06.05, Lei n.° 26/2010, de 30.08, Lei n.° 12/2011, de 27.04 e Lei n.° 50/2013, de 24.07.

2. São as seguintes as conclusões que o recorrente apresenta, no que a esta matéria se reporta:

31° No entendimento do recorrente, o Tribunal recorrido interpretou as referidas normas jurídicas invocadas no sentido de aplicar as mesmas, mas ao existir erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis, entende o recorrente que a norma jurídica a aplicar deve ser unicamente a vertida no artigo 131° do CP, devendo o arguido ora recorrente, a ser condenado, unicamente pela prática de um só crime de homicídio simples, com aplicação dos artigos 40°, 42°, 70°, 71°, 77° do CP, proporcionalmente à sua concreta conduta, ponderada a sua real intervenção nos factos em apreço, ou caso assim não se entenda a norma jurídica a aplicar deve ser unicamente a vertida no artigo 132°, n.° 2, alínea i) do CP, devendo o arguido ora recorrente, a ser condenado, unicamente pela prática de um crime de homicídio qualificado, não devendo tal condenação em qualquer dos casos ser agravada nos termos do artigo 86° n.° 3 da referida Lei 5/2006.

3. Apreciando.

Essencialmente, o recorrente entende que não deve haver lugar à agravação do crime de homicídio, por considerar que não existiu reflexão e o meio utilizado não é insidioso.

 

4. Vejamos então.

i. Caberá começar por frisar que o crime de homicídio acarreta desde logo, pela natureza e qualidade do bem jurídico ofendido, uma noção de gravidade. Tirar a vida a alguém corresponde à violação do direito mais fortemente preservado pela lei e pelos cidadãos em geral.

Significa isso pois que, para que se possa entender que o crime de homicídio foi praticado na sua forma qualificada, necessário se mostra que a culpa com que o agente actuou seja agravada – é a isso que a nossa lei designa como especial censurabilidade ou perversidade do agente.

ii. Por seu turno, esta noção – de certo modo indeterminada – terá de ser preenchida por uma averiguação a realizar em que se tenha em atenção a integração da conduta do agente em alguma das circunstâncias vertidas nas diversas alíneas do nº2 do artº 132 do C.Penal, os chamados exemplos-padrão. Não obstante, esses exemplos não são em si taxativos, como aliás resulta desde logo da redacção do corpo do artigo que é clara ao referir que tais circunstâncias são susceptíveis de revelar tal especial censura, entre outras.

iii. Isto significa que a primeira operação a realizar, para averiguação da existência ou não de tal juízo de especial censura (que decorre de se poder concluir que a culpa do agente se mostra agravada face ao modo e ao resultado típico do crime que cometeu), reconduzir-se-á a proceder ao enquadramento e apreciação de todas as circunstâncias que rodearam a perpetração desse facto. Do resultado de tal avaliação haverá então que apurar – caso se entenda que se verifica uma situação especialmente censurável ou perversa – se esta é enquadrável em algum dos exemplos padrão ou não (É que, ainda que o não seja – e pese embora a muito exaustiva enunciação constante nas alíneas do nº 2 do mencionado artigo, tal pode suceder – o julgador poderá chegar à conclusão de que, atenta a análise realizada às circunstâncias do acto, este merece especial censura, naqueles termos, ainda que se não mostre parametrizada a específica conjuntura resultante do caso concreto numa das ditas alíneas. E, mesmo nesses casos, é possível enquadrar uma determinada acção homicida dentro desse juízo de censura previsto no nº1 do artº 132 do C.Penal).

iv. E que circunstâncias são essas que o julgador terá de atender e sopesar, para alcançar tal valoração jurídica? Serão, muito concretamente, as relativas e/ou ao modo de execução do facto e/ou ao agente que, no contexto em que se verificaram, demonstrem a ocorrência de tal especial censurabilidade ou perversidade.

5. E foi precisamente este o caminho que o tribunal “a quo” seguiu, começando a sua análise pelas circunstâncias relativas ao agente.

i. Concretamente, entendeu que essa especial censurabilidade ou perversidade resultava da circunstância de a vítima do acto praticado pelo arguido ter sido a sua companheira de vida, com quem tivera um relacionamento afectivo durante anos e de quem tinha uma filha em comum. Entendeu assim que, que face a tal ligação, a mesma deveria ter constituído não um incentivo para a acção mas, ao invés, um travão no sentido da sua contenção, conclusão que não nos merece qualquer censura.

ii. Na verdade, existindo uma relação de características tão próximas e tão privadas como é a de um relacionamento afectivo prolongado, em que se constituiu uma família, com os decorrentes laços afectivos de dependência e entreajuda que a caracterizam, relação esta em que, para além de ter resultado o nascimento de uma criança em comum, o casal se dedicou ainda à educação de uma filha do arguido – que a vítima aceitou e criou desde os 6 meses de idade, como se sua fosse, o que bem demonstra a seriedade com que abraçou as responsabilidades inerentes à vida em comum que a ligavam àquele - a decisão de magoar e matar alguém com quem se teve tal tipo de relação íntima e próxima, que perdurou no tempo durante 7 anos e que havia terminado há escassos meses, ultrapassando e renegando todos os deveres de lealdade e protecção que daí decorreriam (mesmo após o termo do relacionamento), é comportamento que se mostra fortemente censurável e revelador de especial perversidade, pois que demonstra uma actuação com culpa agravada, por parte do agente.

 

iii. Temos, pois, que face a tal análise, se terá de concluir que, atentas as circunstâncias do agente, se mostram preenchidos todos os requisitos previstos na al. b) do nº2 do artº 132 do C. Penal.

iv. E se assim é, daqui decorre, inelutavelmente, que ainda que se verifiquem outras circunstâncias que, de igual modo, preencham os elementos constitutivos previstos em qualquer outra das alíneas do citado nº2 do artº 132 do C. Penal, uma coisa é certa: bastando o preenchimento de uma única circunstância demonstrativa da existência de especial censurabilidade ou perversidade, o enquadramento jurídico a realizar terá forçosamente de concluir que o agente praticou um crime de homicídio qualificado.

6. Ora, como se constata pela leitura do recurso (quer das motivações, quer das conclusões), não só o recorrente não avança um único argumento ou faz a mais remota alusão crítica ao entendimento de que a sua conduta integra a circunstância qualificativa consignada no nº2 da al. b) do artº 132 do C. Penal (“praticar o facto contra (…) pessoa (…) com quem o agente (…) tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges”), defendendo o seu afastamento, como a verdade é que, face à análise que acabámos de realizar, se constata que se verificam efectivamente os elementos integradores acima expostos.

i. Do dito decorre, que a pretensão do recorrente quanto à desqualificação do ilícito pelo qual foi condenado, se mostra inelutavelmente arredada, o que em bom rigor determina que os argumentos que apresenta quanto à não verificação das demais circunstâncias qualificativas a que o acórdão alude, não têm já, para efeitos de tal preenchimento do tipo, qualquer interesse prático. Não obstante, a existirem ainda as restantes circunstâncias, entende-se que as mesmas manterão relevância para outros efeitos (designadamente como circunstâncias agravantes comuns, para efeitos de ponderação da graduação da pena), pelo que, ainda que algo sumariamente, lhes faremos de seguida referência.

7. Entende o recorrente que não actuou com reflexão sobre os meios empregados, bem como que não utilizou qualquer meio insidioso.

Caberá desde já afirmar que lhe não assiste razão.

i. Na verdade, a tese do recorrente pressupõe que a reflexão é algo que terá de ultrapassar os meros minutos (quantos, ignora-se), uma vez que entende que não se mostra possível retirar tal conclusão jurídica dos elementos provados nos autos, já que tal implicaria que, em muito pouco tempo (pois tudo se terá passado próximo das 22 h. 40 m.), o arguido terá tomado uma decisão, tê-la-á planificado e executado.

ii. Salvo o devido respeito, mostra-se incompreensível este argumento. Efectivamente, demonstrado se mostra, pela mera análise dos factos provados, que foi isso, precisamente, o que sucedeu. Só assim se explica que, depois das 22 horas, o arguido se tenha dirigido para perto do local onde a vítima residia, transportando consigo uma arma que estava desmontada, se tenha escondido num terreno fronteiro a essa mesma habitação, tenha montado a arma, a tenha municiado e tenha esperado pela chegada de A.R.P.L.S.D. a casa. De igual modo, carece obviamente de reflexão prévia a decisão de se esconder e aguardar dissimuladamente enquanto a vítima realizou algumas manobras com a viatura e só quando esta saiu do carro, proceder então ao disparo, atingindo-a na zona da cabeça.

iii. O que daqui decorre é que o arguido, ao dirigir-se àquele local, tomando o cuidado de levar consigo uma arma de fogo e as respectivas munições, que só no local montou e municiou, tomando precauções para não ser visto pela vítima, teve forçosamente de ter tomado uma decisão prévia a toda essa actuação, planeando-a e executando-a (a arma não estava ali por acaso, as munições também não, o seu esconderijo foi procurado e querido). Reflexão sobre os meios empregues significa precisamente o que o arguido fez – planear, decidir e executar – sendo certo que o tempo necessário para tal propósito se pode reconduzir a alguns minutos (note-se que apenas no que concerne ao conceito de premeditação é que a lei impõe um tempo mínimo de ponderação).  

iv. Mas mais – não só ponderou e decidiu matar a sua ex-companheira, como decidiu fazê-lo através de emboscada, isto é, escondendo-se da vista da vítima e surpreendendo-a sem que à mesma fosse sequer dada a possibilidade de tentativa de fuga (note-se que provado se mostra que, ao chegar a casa, A.R.P.L.S.D. A.R.P.L.S.D. fez diversas manobras com a sua viatura, tentando certificar-se que o arguido não se encontrava no local e somente estacionou e saiu quando se convenceu que assim seria).

v. Ora, a metodologia empregue para o fim que prendeu alcançar – esconder-se e disparar sem que a vítima sequer se apercebesse da sua presença ou do perigo eminente que ali se apresentava, pondo-a numa posição de especial desprotecção – revela-nos que estamos perante o uso de um evidente ardil, que apresenta uma carga de perfídia agravada, indiciadora de uma culpa grave na forma como o arguido actuou (diga-se, aliás, que o próprio recorrente, na sua motivação, cita dezenas de acórdãos precisamente sobre o preenchimento dos conceitos de reflexão, e principalmente, de meio insidioso que, basicamente, afirmam em síntese o que acaba de se enunciar).

  

8. Assim, teremos de concluir que, ainda que pela vertente da apreciação da verificação da existência de especial censurabilidade ou perversidade, através do modo de execução e o que este revela de culpa agravada por parte do agente, chegaríamos a idêntica conclusão da alcançada pelo tribunal “a quo” – isto é, que no caso se verificam de igual modo as circunstâncias qualificativas agravantes consignadas nas als. i) (meio insidioso) e j) (reflexão sobre os meios empregues) do nº2 do artº 132 do C. Penal.

Não obstante, e como já atrás se referiu, estas duas circunstâncias - porque desnecessárias para proceder à qualificação do ilícito - degradam-se em circunstâncias agravantes comuns, não delimitando pois, a moldura penal aplicável, mas passando a ter efeitos em sede de dosimetria da pena.

9. Resta agora pronunciarmo-nos sobre a questão da arma.

i. É patente, ao longo da motivação, que o recorrente parece querer que se entenda que o meio insidioso a que a decisão da 1ª instância alude se terá de reportar ao uso de uma arma de fogo, numa miscelânea de conceitos e de situações (decorrentes de uma série de acórdãos que previamente citou) que se mostram inaplicáveis ao caso que nos cumpre apreciar. De facto, consta o seguinte nos pontos 21 a 23 da motivação:

21° Tendo em consideração o conceito amplo e elástico do “meio insidioso” mas aplicado ao caso em concreto e aos factos provados, resulta pois que, terá que se concluir que a actuação insidiosa que se pretende atribuir ao Arguido, terá que incluir não apenas o modo como actuou mas abranger também o meio (instrumento) que utilizou, a espingarda caçadeira e a forma como é utilizada “(.. .)monta a arma e municia-a com uma munição Balle Fleche, munição de bala e não de bago de chumbo, que pela sua configuração permite uma maior estabilidade na sua trajectória e é especialmente vocacionada para caça “grossa”, aponta na direcção de A.R.P.L.S.D.., não para o lado, não para cima, mas na direcção do corpo de A.R.P.L.S.D.,(...)” fls. 18 do douto Acórdão recorrido e dos factos provados :

“5. No dia 12 de Janeiro de 2014, (...), munido de uma espingarda caçadeira, de características não concretamente apuradas, arma que adquirira em data não concretamente apurada.

7.  Após escondeu-se num terreno sito em frente à habitação dos pais de A.R.P.L.S.D., montou a arma e municiou-a com cartuchos de bala do tipo “Balle Fleche” (...).

10.           (...) apontou a arma que havia municiado na direcção de A.R.P.L.S.D.., disparando-a a uma distância de cerca 48,42 metros de distância, atingindo-a na região orbitária esquerda, contiguamente à pálpebra superior ao centro, provocando-lhe ferimentos que lhe causaram a morte ainda no local.”

22° Assim, tendo em conta os factos provados e a jurisprudência e doutrina supra citadas, resulta que o meio (instrumento) utilizado, espingarda caçadeira terá que se considerar e tendo em conta a situação concreta como meio insidioso e factor de agravação do homicídio, fazendo assim parte do tipo do crime de homicídio qualificado agravado pela alínea i) do artigo 132° do CP, pelo que o uso de arma é um factor a ter em consideração como meio insidioso e a ser utilizada efectivamente para a agravação do crime de homicídio.

23° Tendo o Tribunal a quo aplicado e utilizado, uma vez que o arguido foi condenado pela prática de homicídio qualificado P.P. pelo artigo 132°, n° 2, alínea i) do C.P, o factor de agravação “meio insidioso” que terá obrigatoriamente de incluir o instrumento utilizado, não poderá novamente agravar pela aplicação do artigo 86° n.° 3, da Lei 5/2006. (…)

Por seu turno, num entendimento em que exclui já a inclusão da arma no meio insidioso, consta o seguinte no ponto 25 da motivação:

25° Porém, caso não se entenda que o meio utilizado (espingarda caçadeira municiava com “balle fleche”) se insere dentro do conceito “meio insidioso”, deverá dentro do entendimento do Acórdão da Relação de Évora de 07/01/2014, entender-se que não é de aplicar a agravação da Lei das Armas pelo artigo 86°, n° 3, uma vez que os factos integram o tipo de crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 132°, n° 1 e/ou n° 2 do C.P.

ii. Como se vê, o recorrente parece começar por interpretar “meio insidioso” de forma restritiva pois, no seu entendimento, meio reconduzir-se-á a objecto (leia-se uso de uma arma). E é com tal fundamento que defende que, tendo já o tribunal “a quo” integrado a conduta do agente na agravante qualificativa da al. i), não pode agora agravar novamente pela aplicação do artº 86 nº3 da Lei nº 5/2006. Subsidiariamente, entende que ainda que não se mostre englobado o uso de arma em tal expressão, de igual modo não deve haver lugar à aplicação da acima referida qualificativa agravante, consignada na Lei das Armas.

iii. Vejamos então.

Como já acima se referiu, o meio insidioso reporta-se ao recurso ao método de emboscada pelo qual o arguido optou e não ao uso da arma, sendo que a qualificação do ilícito ficou a dever-se ao preenchimento do exemplo-padrão previsto na al. b) do nº2 do artº 132 do C. Penal.  

10. No que se refere à aplicabilidade da circunstância qualificativa agravante prevista no art.º. 86º da Lei nº. 05/2006, de 23/02, com as alterações introduzidas pela Lei nº. 17/2009, de 06/05 e Lei nº. 12/2011, de 27/04, cabe referir o seguinte:

i. Determina esse artigo que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com armas são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”. Por seu turno, estabelece o nº4 do mesmo artigo que “para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº. 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.

ii. Assim, a questão que aqui se põe é a de saber se, sendo o ilícito de homicídio já qualificado, ainda poderá haver lugar a essa nova qualificação; isto é, no caso que ora nos ocupa, resta apurar se existe ou não colisão entre circunstâncias qualificativas, sendo uma delas inibidora da aplicação da outra.

 

iii. Cremos que o acórdão do STJ de 31 de Março de 2011, proc. 361/10.3GBLLE responde de forma cabal a tal questão, ao afirmar que “II - O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP; pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não. III - O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.     

  

iv. Ora, no caso que nos ocupa, a agravação do ilícito não resultou do preenchimento da alínea h) do nº 2 do artº 132 do C. Penal, pelo que não existe qualquer razão legal que justifique o afastamento da agravação prevista no art.º. 86º, nº. 3 acima mencionado, já que não existe impedimento legal à existência de uma dupla agravação.

Por outro lado, sintetizando o pensamento ínsito no acórdão que acima acabámos de citar, a agravante qualificativa do crime de homicídio, prevista no artº 132 do C. Penal (especial censurabilidade ou perversidade do agente) é aferida ao nível da culpa, enquanto que a agravante consignada na Lei das Armas decorre de um maior grau de ilicitude, sendo uma agravação de natureza geral que dimA.R.P.L.S.D. de razões de prevenção geral distintas das que se referem ao crime de homicídio e que radicam na necessidade de conter o recurso às armas na prática de ilícitos. Mostra-se, portanto, correcta a aplicação ao caso da circunstância qualificativa agravante prevista no nº3 do artº 86 da Lei das Armas, não merecendo tal decisão a crítica que o recorrente lhe dirige.

 

11. Em conclusão:

Do que se deixa exposto, facilmente se conclui que a pretensão do arguido, no que se reporta à alteração do enquadramento jurídico do crime de homicídio qualificado para homicídio simples, se mostra votada ao insucesso, face à agravação resultante da al. b) do nº2 do artº 132 do C. Penal, tendo igual destino o pedido subsidiário de não imposição da circunstância qualificativa agravante prevista no nº3 do artº 86 da Lei das Armas.

D. Alteração da pena imposta.

1. O tribunal fundamentou a dosimetria da pena com base nos seguintes considerandos:

Nos termos do n.° 1 do artigo 71° do Código Penal a “determinação da medida da pena, dentro dos limites legais definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção’, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40° n.° 2 do Código Penal).

Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo a culpa concreta do agente, o que implica, por um lado que não há pena sem culpa, e por outro, que esta decide da medida daquela, afirmando-se como seu limite máximo, havendo que ter presente as razões de prevenção geral (protecção dos bens jurídicos) quanto aos fins das penas (artigo 40° n.° 1 do Código Penal), e os fins de prevenção especial. Assim, o afirma nomeadamente, Américo Taipa de Carvalho, ao dizer resultar do actual artigo 40.° que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Está subjacente ao artigo 40.° uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.° 2 do artigo 71° do Código Penal.

Como se refere no acórdão do STJ de 28-09-2005 , na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.° do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Assim, há que ponderar:

- As exigências de prevenção geral, que constituirão o limiar abaixo do qual não será possível ir, sob pena de ser posta em risco a função tutelar do direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada. Segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias, “primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena”

-   As exigências de culpa do agente, limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito do princípio politico-criminal da necessidade da pena, e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humA.R.P.L.S.D. (artigos 1° e 18° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa);

-   E, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo, e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena.   “Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança” 

                                                    *

Ainda a considerar que nos termos do art° 70° do Cód.Penal se ao crime forem aplicáveis em alternativa pena privativa de liberdade e pena não privativa o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada as finalidades da punição a que já fizemos referência.

Fornece este normativo, observa o Cons. Maia Gonçalves: "O critério de orientação para a escolha, quando ao crime são aplicáveis pena privativa ou pena não privativa de liberdade, e traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam atingir-se por outra via.

                                                    *

Postos estes considerandos prévios quanto aos princípios que regem a determinação da pena concreta a aplicar, reportemo-nos ao caso concreto.

Ao crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma proibida corresponde em abstracto pena de prisão de 16 anos a 25 anos.

Ao crime de detenção de arma proibida corresponde em abstracto pena de prisão de um a cinco anos ou multa até 600 dias.

Em ambos os crimes agiu o arguido com dolo directo e intenso. Não se desconsidera todo o contexto de conflito com a vítima e até com o pai desta, mas nem mesmo este clima de conflito atenua a sua culpa.

O grau de culpa e o grau de ilicitude mostram-se elevados sendo de salientar que para a qualificação do crime de homicídio concorrem mais de duas circunstâncias qualificativas.

Também não nos podemos esquecer que o arguido pôs termo à vida de uma jovem, mãe da sua filha e que além disso, era a única pessoa que a filha mais velha do arguido, reconhecia como mãe, sendo por esta tratada e cuidada como filha.

Não obstante tenha assumido parcialmente os factos, o arguido não demonstrou valoração critica da sua conduta e verdadeiro arrependimento, refugiando-se num discurso de vítima, como se tivesse sido forçado a cometer os factos que cometeu e que no fundo mais não reflectem do que a sua personalidade impulsiva, de baixa tolerância à frustração. As exigências de prevenção especial ante a personalidade do arguido são elevadas.

E elevadas se demonstram as exigências de prevenção geral quanto ao crime de homicídio cometido no decurso da ruptura de uma relação de natureza conjugal. Com efeito, é sobejamente conhecido o índice dos crimes de violência doméstica e a criminalidade com ele conexa, nomeadamente, os crimes cometidos a pretexto de rupturas de relações conjugais ou análogas ou de simples namoro, onde o agente, não aceita a decisão legitima do seu ex-cônjuge, companheira/o ou namorada/o não querer manter a relação, ou ainda quando os conflitos envolvem os filhos. São comportamentos inaceitáveis num Estado de Direito e sobretudo numa sociedade onde os valores da vida, da integridade física, da liberdade de autodeterminação, estão constitucionalmente consagrados, não podendo tais bens, ser violados a pretexto de uma pretensa paixão, amor ou desejo ou pretenso amor pelos filhos. Este tipo de condutas merecem a forte repulsa social e exigem uma resposta firme no sentido da reposição da confiança da comunidade na norma jurídica violada, e que terá necessariamente de se reflectir na medida da pena.

De igual modo são elevadíssimas as exigências de prevenção geral no que tange ao crime de detenção de arma proibida e em particular quando em causa estão armas usadas no efectivo cometimento de crimes graves. São tais exigências de prevenção geral que se mostram incompatíveis com a aplicação de uma pena de multa para este crime, sendo assim de optar pela pena de prisão.

Sopesando todo o descrito temos por adequado à culpa ao grau de ilicitude, às exigências de prevenção geral e especial aplicar as seguintes penas parcelares:

-   Vinte e um anos de prisão para o crime de homicídio;

-   um ano e seis meses de prisão para o crime de detenção ilegal de arma.

Estas penas encontram-se numa relação de concurso pelo que há que aplicar uma pena única nos termos do art° 77° do Cód.Penal a qual tem como limite mínimo - vinte e um anos de prisão e como limite máximo, vinte e três anos de prisão. Na determinação da pena única a considerar a personalidade do arguido, nomeadamente o especial reforço das exigências de prevenção especial, a que acresce em desabono o seu comportamento anterior traduzido nas condenações sofridas e a gravidade dos factos globalmente considerados, factos sobre os quais já nos pronunciamos supra. Temos assim por adequado fixar a pena única em vinte e um anos e seis meses de prisão.

 

2. O recorrente apresenta a sua discórdia, com os seguintes fundamentos, em sede de motivação:

28° Ora, atendendo a que a favor do Arguido temos:

-   a idade do Arguido, 29 anos de idade à data da prática dos factos;

-   é pai de duas crianças menores de idade;

-   a sua inserção familiar, profissional e social, com casa própria;

-   o Arguido foi condenado em penas de multa pela prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal e furto;

-   entregou-se no dia seguinte à prática dos factos na GNR;

-   a sua personalidade como evidencia o Relatório à Personalidade, no qual se expressa que o arguido admite arrependimento;

-   a cooperação com as autoridades policiais e judiciais;

-   a admissão e reconhecimento do arguido na morte da mulher, A.R.P.L.S.D. A.R.P.L.S.D., não admitindo porém a intenção no cometimento do crime contra a mesma.

29° Entendendo-se que a pena adequada a aplicar ao arguido deve ser uma pena de prisão não superior a 16 anos.

3. Apreciando.

i. No que se refere à questão do enquadramento jurídico, já se mostra anteriormente decidido que o realizado pelo tribunal “a quo” se mostra correcto, razão pela qual a consequente alteração de moldura penal, na qual se funda, em grande medida, o pedido do recorrente, manifestamente soçobra.

Na verdade, e em bom rigor, tendo em atenção o limite mínimo da moldura penal aplicável (16 anos de prisão), não se vislumbra (nem isso resulta sequer do pedido e dos fundamentos invocados pelo arguido) que a pena a impor se pudesse cingir ao mínimo legal, pois não só existem circunstâncias agravantes que situam o dolo num limiar bem superior (a opção pela emboscada e a reflexão anterior à prática do crime), como as circunstâncias atenuantes existentes não são de molde a permitirem tal dosimetria.

ii. De igual modo e no que se refere à confissão e colaboração, o que se retira dos autos é que, pese embora o arguido tenha admitido parcialmente os factos, essa postura não denota nem arrependimento nem verdadeira vontade de colaborar com a acção da justiça.

É isso o que resulta da matéria factual provada (como acima já deixámos mencionado) e o tribunal “a quo” refere, em sede de dosimetria penal, designadamente a ausência de valoração crítica da sua conduta e verdadeiro arrependimento, antes se refugiando num discurso de vítima, como se tivesse sido forçado a cometer os factos, e que reflectem a sua personalidade impulsiva, de baixa tolerância à frustração.

Assim, a admissão parcial – apesar de ter carácter atenuante, que foi atendido em sede de determinação da medida da pena – terá valor e peso muito pouco significativo, seguramente não superior (ao inverso do pretendido pelo recorrente) ao que lhe foi atribuído pelo tribunal de 1ª instância.

iii- De igual modo, a idade do arguido e a sua entrega voluntária às autoridades policiais (note-se que no dia seguinte ao dos factos), circunstâncias atenuantes de carácter comum, foram atendidas pelo tribunal “a quo”, sendo que das mesmas não decorre extraordinário relevo atenuativo que justifique que a pena a impor, face a todos os restantes condicionalismos, se situe em limite inferior ao determinado.

iv. Finalmente, e no que se refere à sua inserção familiar e profissional, dir-se-á que, no que à primeira se reporta, que a mesma tem características meramente formais. De facto, pese embora seja pai de duas crianças (uma delas em comum com a vítima), não se coibiu de, matando a mãe da sua filha, a tornar órfã, o que, convenhamos, demonstra precisamente o inverso de inserção social ou familiar.

 

v. Face ao que se deixa dito e atento todo o circunstancialismo que o tribunal “a quo” aponta, constata-se que a pena encontrada se afigura correcta, ajustando-se quer à culpa do agente (elevada), quer às necessidades de prevenção geral e especial que o acórdão invoca.

Para além do mais, há que notar que, a nível de prevenção geral, se mostra especialmente relevante que a pena a impor ao arguido sirva de advertência para os cidadãos em geral de que as questões relacionadas com este tipo de matérias e nestes contextos (conflitos afectivos e familiares) não podem, de forma alguma, ser decididas ou servirem de justificação, para um comportamento idêntico ao por si protagonizado.

vi. As necessidades de prevenção especial, neste caso, situam-se igualmente numa escala superior, pois o arguido mantém uma situação de não interiorização do desvalor do acto cometido, antes se tomando como vítima.

Daqui decorre que, não conseguindo o arguido fazer um juízo de censura sobre a sua actuação, esta sua posição não augura grandes expectativas de refreamento comportamental num futuro próximo. E um dos grandes objectivos da pena é, sem dúvida, no que ao cidadão infractor se refere, a capacidade de lhe fazer sentir o desvalor do seu acto, que interiorize a censura do mesmo e que não volte a repeti-lo.

vii. Entende-se, pois, ser de manter a pena imposta ao arguido, pela prática de crime de homicídio qualificado.

viii. Nada mais tendo sido pedido pelo arguido, designadamente no que se reporta à pena imposta pelo crime de detenção de arma ilegal, nem quanto à pena única alcançada, nada mais resta a este tribunal decidir.

 

iv – decisão.

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido R.J.M.S., mantendo-se a decisão recorrida.

Condena-se o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 5 UC.

                                                   

 Lisboa, 28 de Outubro de 2015

(Margarida Ramos de Almeida-relatora)

(Ana Paramés)