PRESCRIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Sumário

Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC

Tendo a autora deduzido pedido de indemnização emergente de responsabilidade civil, alegando razões de facto e de direito que abarcam tanto a responsabilidade por factos ilícitos como a responsabilidade contratual, e havendo a ré arguido a prescrição do direito prevista no art.º 498.º n.º 1 do Código Civil ou o prazo prescricional de cinco anos previsto nos artigos 80.º e 174.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, a que a autora contrapôs a aplicabilidade do prazo ordinário de prescrição de 20 anos, haverá, existindo controvérsia relevante ao nível da matéria de facto, que relegar para final a apreciação da exceção de prescrição.

(JL)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 10.11.2011 Construções, Lda, intentou na Comarca de Cascais ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Gina, pedindo a condenação desta na quantia de € 104 360,55 (capital mais juros vencidos), a título de indemnização pela apropriação de quantias que pertenciam à A..
A R. contestou, impugnando a invocada apropriação de verbas e arguindo a falta de capacidade judiciária da A. para esta ação e ainda a prescrição do direito de acionar a R..
A A. replicou, pugnando pela improcedência das exceções.
Em 31.10.2012 foi proferido despacho saneador em que se julgou improcedente a exceção da falta de capacidade judiciária da A. e relegou-se para final a apreciação da exceção perentória de prescrição, por carecer da produção ulterior de prova.
Empreenderam-se diligências tendo em vista a produção de prova pericial até que, em 03.6.2014, foi emitido despacho que julgou inviável a realização da perícia e se ordenou a abertura de conclusão à Mma Juíza de Círculo.
Em virtude da reorganização judiciária o processo foi redistribuído à Comarca de Lisboa Oeste, Instância Central de Cascais, 2.ª Secção Cível, J1.
Em 27.10.2014 foi proferido despacho convidando as partes a dizerem o que tivessem por conveniente, na medida em que se afigurava possível conhecer desde já da exceção de prescrição invocada pela R., por os autos conterem os elementos de facto necessários para tal.
Ambas as partes se pronunciaram, a A. no sentido de os autos não estarem em condições de se conhecer da aludida exceção e a R. manifestando a sua concordância com a apreciação imediata da exceção.
Em 10.01.2015 foi proferido saneador-sentença em que se julgou procedente a exceção de prescrição do direito invocado pela A. e, consequentemente, absolveu-se a R. do pedido.
A A. apelou desta decisão, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A. O saneador-sentença sob recurso julgou procedente a excepção de prescrição do direito de indemnização fundado na prática de facto ilícito e em consequência absolveu a Ré do pedido contra si formulado.
B. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, não se pode concordar com esta decisão.
C. Desde logo, a sentença não considerou provada a autoria do facto constante do ponto 6.º da matéria de facto, o que se impugna.
D. Com efeito, conforme dispõe o n.º 3 do art.º 574.º do C.P.C. “se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.“
E. Por outro lado, o Tribunal a quo também não considerou provado que a Ré, em acto contínuo ao da transferência mencionada no referido ponto 6.º da matéria provada, tivesse transferido dessa conta co-titulada com o outro sócio e gerente da Autora, a quantia ali existente para uma outra conta de que ela era a única titular.
F. O que também se impugna, na medida em que existe prova documental nos autos a sustentar esse facto ( doc. n.º 7 da p.i. ), além de que foi requerida a produção de prova pericial e testemunhal.
G. Por outro lado, salvo o devido respeito, é manifesta a ausência de matéria de facto provada que pudesse suportar uma decisão fundada na responsabilidade por facto ilícito.
H. Com efeito, não tendo sido dada por provada a prática de qualquer facto ilícito, ou sequer o seu autor, é manifesto que não é possível concluir-se pela prescrição do direito de indemnização fundado na prática desse facto… não provado, ainda que esse regime jurídico tivesse sido invocado pela Autora. Que, aliás, também invocou o regime do mandato.
I. De facto, o Tribunal não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, conforme dispõe o n.º 3 do art.º 5.º do C.P.C.
J. Em suma, para além das normas supra referidas, foram ainda violados os artºs 309º.,798º. e 1158º. e sgs. do Código Civil.
A apelante terminou pedindo que a sentença do tribunal a quo fosse anulada, substituindo-se aquela decisão por outra que ordenasse a produção de novos meios de prova que permitissem a alteração e ampliação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tudo nos termos previstos na alínea c) do nº. 2 do artº. 662º. do NCPC, qualificando-se os novos factos e aplicando-se as normas jurídicas adequadas, concretamente o art.º 798.º, n.º 1 e 309.º do C.C.
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: reuniam os autos os elementos bastantes para o tribunal ter conhecido da exceção de prescrição do direito do A. que havia sido arguida? Se sim, deve confirmar-se o juízo de que a exceção ocorrera?
Primeira questão (cognoscibilidade da exceção de prescrição)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1º-A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a compra e venda de imóveis e a construção civil.
2º-Em Fevereiro de 1998 a autora tinha como sócios representativos da totalidade do seu capital social, a Ré Gina, o seu, à data, marido, Joaquim, e os 2 filhos menores de ambos, Cristina e Ricardo.
3º-Nessa data a autora obrigava-se em todos os seus actos com a assinatura do seu sócio e gerente Joaquim.
4º-Joaquim casou com a ré, em regime de comunhão de adquiridos, em 10-07-1980, vindo o casamento a ser dissolvido por sentença que decretou o divórcio, transitada em julgado a 19-2-2001.
5º-Em 28-01-1988, na secretaria notarial de Cascais, a sociedade autora representada no acto por Joaquim, emitiu uma procuração a favor da ré, pela qual lhe conferiu, além do mais, os seguintes poderes:
Para junto de qualquer banco, Caixa Geral de Depósitos ou qualquer instituição bancária, movimentar contas bancárias, depositando e levantando dinheiros, assinando cheques, pedir os saldos e extractos das contas (…)”.
6º-No dia 6-02-1998 foi efectuada uma transferência bancária da conta da autora com o n.º (…) do Banco Espirito Santo a favor de Joaquim, no montante de 12.000.000$00 (doze milhões de escudos).
7º-A referida transferência bancária foi desde logo do conhecimento da A. na pessoa do seu sócio maioritário e único gerente, Joaquim.
O Direito
Nos termos do art.º 510.º, n.º 1, alínea b) do CPC de 1961, em vigor aquando do termo da fase dos articulados nos autos, findos os articulados o juiz poderá, em audiência preliminar ou não, “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.”
Regime esse que está reproduzido na alínea b) do n.º 1 do art.º 595.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.6.
Sendo certo que, tanto à luz do CPC de 1961 como do atual, “não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matéria que lhe cumpra conhecer” (n.º 4 do art.º 510.º do CPC de 1961, n.º 4 do art.º 595.º do CPC de 2013).
No despacho saneador proferido em 31.10.2012, supra mencionado no Relatório, exarou-se o seguinte:
Veio a R. invocar excepção peremptória de prescrição, tendo o A. pugnado pela inexistência de prescrição.
O conhecimento de tal excepção carece de produção ulterior de prova, termos em que remeto o seu conhecimento para final.”
Tal despacho era insuscetível de recurso, pelo que transitou imediatamente em julgado, vinculando, por conseguinte, as partes e, também, dir-se-ia, o tribunal.
Porém, conforme também se relatou supra, em 24.10.2014, foi proferido o seguinte despacho:
Os autos encontram-se na fase processual de marcação de julgamento.
Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, entende-se que os autos contêm desde já todos os elementos de facto necessários ao conhecimento da excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré.
O despacho tabelar, vago e genérico, proferido aquando do saneamento dos autos, que relegou para final o conhecimento da excepção, não constitui caso julgado, sendo certo que o aludido despacho não é, sequer, passível de recurso (art. 595º, n.º 4 do NCPC).
Por outro lado, do conhecimento da excepção de prescrição poderá resultar a desnecessidade de se realizar audiência de julgamento, assinalando-se, tal como decorre claramente do art. 130º do NCPC, que a prática de actos inúteis no processo é ilícita e ilegal.
Nestes termos, e apenas com vista a evitar a prolação de decisão surpresa, uma vez que as partes já se pronunciaram sobre a excepção de prescrição, notifique-se A. e R. para, querendo, dizerem o que entenderem por conveniente.
Decorrido o prazo legal, conclua os autos.”
Ou seja, as partes foram confrontadas com a intenção de o tribunal, sem a realização de audiência final, “dando o dito por não dito”, proferir de imediato decisão de mérito, sobre a questão da prescrição, por considerar que, afinal, os autos continham todos os elementos de facto necessários para esse efeito.
E, tendo-o sido, a R. deu expressamente a sua concordância e a A. não suscitou a questão da eventual existência de caso julgado formal acerca da necessidade de produção de prova, aliás mencionada no despacho, tão só defendendo que não havia ainda matéria de facto suficiente para o conhecimento da exceção.
Afigura-se-nos, assim, que ficou assente no processo a admissibilidade de o tribunal a quo poder pronunciar-se acerca da verificação da aludida exceção sem estar vinculado ao despacho que anteriormente decidira em contrário, sem prejuízo de o juízo final consequentemente proferido poder vir a ser reapreciado em sede de recurso.
Na decisão recorrida ajuizou-se que a ação configurava, nos termos definidos pela A., um caso de responsabilidade civil extracontratual, pelo que o direito da A. estava sujeito ao prazo prescricional de três anos previsto no art.º 498.º n.º 1 do Código Civil. Por conseguinte, tendo o facto ilícito em causa ocorrido, segundo a A., em 06.02.1998, e não podendo a A. ter deixado de tomar conhecimento desse facto nessa ocasião, por o aludido facto ter alegadamente consistido numa transferência bancária efetuada da conta da A. para uma conta da R. e também do seu marido, o qual era o único gerente da A., o invocado direito teria prescrito em fevereiro de 2001.
A isto responde a apelante alegando, no que mais releva, que:
Não está provada a prática de facto ilícito nem identificado o seu agente, pelo que não é possível declarar a prescrição do direito que dele seria emergente;
A A. alegou factos geradores de responsabilidade contratual, no âmbito de um contrato de mandato, aos quais é aplicável o prazo ordinário de prescrição de 20 anos, nos termos do art.º 309.º do Código Civil.
A apelada sustenta a tese do tribunal a quo, de que o litígio se reporta a uma questão de responsabilidade por facto ilícito, sujeito ao prazo prescricional de três anos, previsto no art.º 498.º n.º 1 do Código Civil ou, como a R. logo alegara na contestação e o tribunal a quo apreciou em termos secundários, ao prazo de cinco anos previsto nos artigos 80.º e 174.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais – pelo que, de uma forma ou outra, o direito da A. estaria prescrito.
Vejamos, pois.
Segundo a A., a declaração de prescrição de um direito emergente de responsabilidade civil extracontratual pressupõe a prova da ocorrência do facto ilícito do qual emerge o aludido direito.
Nesta parte, pensamos que a apelante não tem razão.
A prescrição constitui uma exceção perentória de tipo preclusivo, ou seja, a sua verificação preclude a indagação sobre a situação jurídica controvertida apresentada pelo autor, in casu sobre o facto constitutivo do direito prescrito. É certo que logicamente se pressupõe a ocorrência daquele facto, mas trata-se de uma operação intelectual cujo desenlace não carece da prova desse facto (neste sentido, vide Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 106, nota 60, pág. 113, nota 78 e “A Confissão no Direito Probatório”, 2.ª edição, Coimbra Editora, páginas 457 a 459).
Assim, se o autor afirmar ter sido vítima de um determinado facto lesivo, ocorrido em data que ficaria além do prazo prescricional legalmente previsto, o tribunal poderá e deverá julgar verificada a prescrição e consequentemente absolver do pedido o réu que a tenha invocado (art.º 303.º do Código Civil), sem necessidade de produção de prova sobre a concreta ocorrência do facto lesivo.
Questão diversa será se houver dúvidas ou controvérsia acerca de qual o prazo prescricional aplicável.
É que, contrariamente ao expendido pelo tribunal a quo, nesta matéria o quadro legal aplicável, tal como alegado pelas partes, não se cingiu ao regime da responsabilidade civil por factos ilícitos ou extracontratual, sujeito ao prazo prescricional previsto no art.º 498.º n.º 1 do Código Civil (três anos), ou ao regime da responsabilidade civil das figuras societárias referidas nos artigos 80.º e 174.º do Código das Sociedades Comerciais (com o prazo de prescrição de cinco anos), mas também foi invocada, pela A., matéria atinente à responsabilidade contratual, a que se aplica o prazo ordinário de prescrição, de 20 anos (art.º 309.º do Código Civil).
Se bem que na petição inicial a A. tenha invocado o regime legal e os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (vide artigos 18.º e 19.º da petição inicial), também qualificou como de mandato o relacionamento jurídico em que se enquadrou a atuação da R. (vide artigos 14.º a 16.º da petição inicial) e invocou expressamente em seu benefício a presunção legal de culpa do lesante, própria da responsabilidade contratual, decorrente do art.º 799.º do Código Civil (cfr. art.º 23.º da petição inicial). Remissão essa para o regime da responsabilidade contratual que a A. reiterou e reforçou, na réplica (artigos 4.º a 12.º da réplica).
Em situações de concurso das regras da responsabilidade civil contratual e das regras da responsabilidade extracontratual, há quem entenda que caberá ao credor optar pelo regime que julga mais lhe convir (v.g., António Silva Henriques Gaspar, “A responsabilidade civil do médico”, Col. de Jur. 1978, t.º I, pág. 345; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, “Responsabilidade médica em Portugal”, BMJ 332, 1984, pág. 40; Carlos Alberto da Mota Pinto, “Cessão da posição contratual”, Almedina, 1982, pág. 411 e nota 2; António Pinto Monteiro, “Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade”, separata do volume XXVIII do suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1985, página 425 e seguintes; acórdão da Relação de Coimbra, 4.4.1995, CJ XX, t. II, pág. 31 e ss; STJ, 5.7.2001, CJ STJ, IX, t. II, pág. 166; STJ, 19.6.2001, 01A1008, Internet, dgsi-itij; Relação de Lisboa, 20.4.2006, CJ XXXI, t.II, pág. 110; STJ; 07.10.2010, 1364/05.5TBBCL.G1), enquanto outros defendem que o regime da responsabilidade contratual prevalecerá, consumindo-o, sobre o regime da responsabilidade extracontratual (v.g., Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12.ª edição, Almedina, pág. 546 e seguintes; Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, in “Direito e Justiça”, Universidade Católica, vol XIV, tomo 3, 2000, páginas 194 a 198; acórdão da Relação de Lisboa, 24.4.2007, 10328/2006-1; STJ, 27.11.2007, 07A3426; STJ, 17.12.2009, 544/09.9YFLSB; Relação de Lisboa, 9.3.2010, 1384/08.8TVLSB.L1-7; STJ, 1.7.2010, 398/1999.E1.S1).
In casu, qualquer dos critérios aponta para a aplicação do regime da responsabilidade contratual, regime esse que, de resto, se tem por mais favorável ao lesado, em especial porque sobre o devedor recai o ónus da prova da não verificação de culpa no incumprimento da obrigação ou no seu cumprimento defeituoso, ou seja, o ónus de ilidir a presunção de culpa prevista no art.º 799.º n.º 1 do Código Civil (doutrina e jurisprudência supra citadas), além do que já supra se expôs quanto ao prazo de prescrição; mas haverá ainda que apurar se a ligação entre a A. e a R. assumiu as características pressupostas pelo art.º 80.º do CSC, caso em que prevalecerá o prazo de prescrição de cinco anos, invocado pela R..
De todo o exposto se conclui que a decisão recorrida foi prematura, havendo que, conforme já fora ajuizado em 31.10.2012, fazer prosseguir os autos a fim de que, em audiência final, se colha uma visão completa do factualismo pertinente e do direito aplicável.
Termos em que ficam prejudicadas as questões suscitadas nas alíneas C. a F. do recurso e, bem assim, a segunda questão supra enunciada no topo da fundamentação.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se a decisão recorrida e em sua substituição determina-se que os autos prossigam os seus termos tendo em vista que o litígio seja dirimido na sequência de audiência final, se nada a tal vier a obstar.
As custas da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu.

Lisboa, 29.10.2015

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Olindo dos Santos Geraldes