CASO JULGADO
NE BIS IN IDEM
Sumário

I-Embora o actual C. P. Penal não regulamente nem descreva, expressa e directamente o instituto do caso julgado, tal não invalida que lei penal objectiva não o consagre enquanto pressuposto processual, como resulta do preceituado nos arts. 396º, 4, 399º, 400º, 411º, 427º, 432º, 438º, 477º, 1, 449, 1, 467º, 487º, 492º, 498, 3, entre outros, do C. P. Pen., para além da consagração constitucional de uma das suas vertentes, no art. 29º, 5, C.R.Port..
II-No que diz respeito ao denominado efeito negativo do caso julgado, recondutível ao princípio ne bis in idem, o mesmo assume dignidade constitucional – art. 29º, 5, CRP – para além de se encontrar consagrado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – art. 14º, 7 – e no art. 4º do Protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III-Entende-se doutrinaria e jurisprudencialmente que só há lugar ao funcionamento do caso julgado quando existe identidade do facto e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, quando estamos perante o mesmo objecto processual. O conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos porque determinados pelo objecto do processo.
IV-Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, não podem ser posteriormente apreciados.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I-Relatório:


No âmbito do Processo Comum Colectivo supra id., que corre termos pela Comarca de Lisboa Norte, Loures – Instância ... – Secção Criminal – J..., foi o arguido Levi, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. b), nº 3 e nº 4 do Código Penal na pena de catorze (14) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Inconformado com o teor de tal decisão interpôs aquele arguido o presente recurso pedindo a sua absolvição do crime que lhe vem imputado.

Apresentou para tal as seguintes conclusões:

a)O arguido encontra-se a aguardar até há data, de decisão sobre reclamação pela não admissão do Tribunal “a quo” de recurso sobre um despacho por este proferido a fis. 1918 e ss dos autos;
b)Despacho esse que, no entender do arguido, viola os seus direitos, porquanto submeteu-o duas vezes a julgamento pelos mesmos factos de que vinha acusado, mantendo interesse na sua apreciação nos termos do disposto no n.° 5 do art.° 412.° do CPP;
c)O tribunal “a quo” ao ter proferido despacho de alteração não substancial dos factos, não se encontrando reunido o tribunal colectivo, incorreu na nulidade insanável prevista no arL° 119.°, al. do Código de Processo Penal;
d) Não pode o arguido a ser julgado novamente por crimes de que foi absolvido por decisão transitada em julgado;
e)Apenas o arguido tem legitimidade para recorrer das decisões contra ele proferidas e que lhe sejam adversas;
f)O arguido inconformado com a decisão condenatória, interpôs recurso;
g)O arguido limitou o objecto do recurso à decisão que o condenou;
h)Não interpôs qualquer recurso da decisão absolutória, em face de não ter legitimidade nem interesse para tal;
i)Nem o Ministério Público, nem a parte civil, únicos com interesse e legitimidade para recorrer de tal decisão absolutória, o fizeram;
j)A decisão absolutória, em face da ausência de interposição de recurso, por quem de direito, transitou em julgado;
k)Não pode o arguido ser julgado por crimes cuja absolvição foi legalmente proferida pelo Tribunal e cuja decisão transitou em julgado;
l)A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Por isso, o caso julgado é considerado como uma causa de extinção da acção penal;
m)O arguido não pode ser condenado por crime do qual já fora absolvido;
n)Inconformado com o duplo julgamento, o arguido recorreu, encontrando-se tal recurso retido.
o)O arguido mantém o interesse no recurso apresentado a fis (...) de 26/05/2014, devendo o mesmo subir com o presente recurso;
p)O arguido não poderá ser julgado pelo único crime de que vinha acusado, já que, do mesmo foi absolvido no presente acórdão recorrido;
q)E caso assim não se entenda, deverá o arguido ser absolvido, à luz do princípio “in dubio pro reu”, do crime de que foi condenado; e ainda pelo facto de no anterior julgamento ter sido absolvido.
r)Porquanto, não foram provados os pontos 12, 13, 15, 16 e 17, do acórdão ora recorrido, a saber:
s)Não ficou provado que o arguido tivesse a intenção de praticar qualquer crime;
t)E bem assim de que, com a sua conduta, tenha causado prejuízo ou benefício, para si ou para outrém ou ao Estado;
u)Não deveriam os depoimentos das referidas testemunhas terem sido valorados, quanto aos factos, nos termos em que o foram, tratando-se de meras suposições, baseadas em faltas de lembrança;
v)Por outro lado o tribunal “a quo” desvalorizou o depoimento das mesmas testemunhas que demonstraram a irrelevância da informação prestado pelo arguido para efeitos de emissão de licença de habitabilidade, não configurando assim tal informação o valor de documento para efeitos penais, não se encontrando assim preenchido o tipo do crime.

Respondeu o MP, pugnando pela improcedência do recurso, tendo para tal formulado as seguintes conclusões:

A reclamação já foi decidida.

Não houve trânsito em julgado relativamente ao 1º Acórdão e portando não há violação de caso julgado, realizando o colectivo novo julgamento, em obediência estrita ao deliberado pela Relação.

Com a prova produzida outra não podia ser a deliberação que não a condenação.

Não padece de qualquer nulidade, nem violou qualquer preceito do C. P. Penal.

Deverá pois manter-se o douto acórdão.

É o seguinte o teor do acórdão recorrido, na parte que ora releva:

II-Fundamentação.

A-Fundamentação de facto.

Realizada a audiência estão provados os seguintes factos:

1.O arguido iniciou funções como fiscal municipal especialista na Câmara Municipal do Cadaval em 13-8-2001.

2.No exercício de tais funções incumbia ao arguido proceder à fiscalização de obras licenciadas pela Câmara Municipal do Cadaval, verificando a conformidade das mesmas, ao nível do projecto de arquitectura e aspectos exteriores da obra, com os projectos que haviam sido aprovados.

3.No ano de 2002 José decidiu efectuar obras num anexo da sua casa na Rua dos Combatentes..., em M... Cadaval.

4.O José contactou o arguido perguntando-lhe o que deveria fazer e o que seria necessário para a realização das obras.

5.Na Câmara Municipal do Cadaval correu termos um processo de licenciamento com o nº 461/2002 no qual figura como requerente José e tem por objecto a recuperação e ampliação de um anexo.

6.As obras efectuadas traduziram-se na recuperação do anexo da habitação do requerente com aproveitamento das paredes exteriores e estrutura do mesmo.

7.No referido processo o arguido fez em 13-3-2003 constar uma informação que a obra a que se referia o processo não havia sido executada.

8.José emitiu e entregou ao arguido o cheque nº 1505229078 no montante de 400,00€ sacado sobre conta de depósito no BPI.

9.Nos serviços da Câmara Municipal do Cadaval correu termos processo de licenciamento de obra com nº 1679/2002 no qual foi requerente Ricardo.

10.Em 16-8-2005, no exercício das suas funções de fiscal municipal o arguido fez constar no referido processo declaração que a obra se encontrava concluída em conformidade com o projecto aprovado.

11.Em posterior vistoria efectuada à mencionada obra foi verificado que o estacionamento público e parte do muro não se encontravam implantados no local correcto.

12.E ainda que as escadarias exteriores e interiores não possuíam guarda corpos/gradeamento.

13.Factos que determinaram a não emissão de licença de utilização em 6-9-2005.

14.A determinação da correcção da implantação do muro e dos locais e estacionamento não integrava as competências do arguido enquanto fiscal municipal.

15.Contudo o arguido sabia que ao declarar que a obra estava concluída em conformidade com o projecto estava a prestar uma informação errada e desconforme com a realidade, omitido designadamente, a falta de guarda corpos/gradeamentos nas escadas exteriores e interiores.

16.Abalando dessa forma a confiança e verdade intrínseca da declaração que emitia.

17.E assim permitindo ao Ricardo, seu amigo, obter a licença utilização necessária ao desbloqueamento de tranche de empréstimo bancário.

18.Não obstante, de forma consciente e deliberada, emitiu a declaração de conformidade da obra com o projecto.

19.Na Câmara Municipal do Cadaval correu termos um processo de licenciamento de obra com o nº 439/2000 no qual foi requerente Carla S.S....

20.Em 29-8-2005 o arguido efectuou no referido processo declaração que a obra estava concluída em conformidade com o projecto aprovado.

21.Em vistoria efectuada à mesma obra em 6-9-2005 foi detectado que a ligação ao esgoto não estava conforme com o projecto aprovado e que o piso do estacionamento público também não se encontrava conforme com o projecto aprovado.

22.O que determinou a não emissão de licença de utilização em 6-9-2005.

23.A correcção da ligação de esgoto e do piso de estacionamento não integram as funções do arguido enquanto fiscal municipal.

24.Na Câmara Municipal do Cadaval correu termos processo de licenciamento de obras com o nº 709/2001 no qual era requerente Armando e posteriormente Ana Maria.

25.No referido processo foi em 1-10-2003 elaborada uma informação pelo fiscal municipal Manuel consignando que a obra se encontrava concluída em conformidade com o projecto.

26.Sendo que na referida data faltava o certificado de projecto acústico.

27.À data em que o arguido consignou nos processos de obras referidos as informações de conformidade das mesmas com os projectos aprovados existia no município do Cadaval uma prática de tolerância na emissão de declarações de conformidade e de emissão de licenças de utilização que abstraindo do facto de alguns aspectos finais das obras, designadamente as pinturas, não estarem concluídas, prática esta que decorrida da necessidade que era imposta aos proprietários de exibir a licença para obter parte do empréstimo bancário.

28.O arguido na data dos factos pelos quais foi pronunciado tinha como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.

29.Posteriormente conclui licenciatura (Bolonha) e mestrado em arquitectura.

30.Aufere mensalmente cerca de 800,00€ pelo seu trabalho como fiscal municipal.

31.Vive em casa própria.

32.Do seu certificado de registo criminal nada consta.

Não se provaram os seguintes factos:

1.Que no exercício das funções de fiscal municipal pelo arguido se compreendesse a realização de vistorias às obras licenciadas pela Câmara Municipal do Cadaval.

2.Que o arguido, quando abordado pelo José lhe tenha dito que podia começar as obras e que ele se encarregaria dos projectos e licenças camarárias.

3.Que posteriormente o arguido tenha dito ao José para continuar as obras e lhe entregar 400,00€.

4.Que ao entregar o cheque de 400,00€ ao arguido o José pensasse que as obras que concluíra estavam devidamente licenciadas.

5.Que ao receber o cheque do José o arguido tenha agido com o propósito concretizado de obter dinheiro deste sabendo que o mesmo lhe não era devido ou que actuava contra os deveres do seu cargo de fiscal municipal.

6.Que ao efectuar a declaração que efectuou no processo de obras de José em 13-3-2003 o arguido estivesse a efectuar declaração desconforme com a realidade que então observou.

7.Que o arguido tenha solicitado a Silva, também fiscal municipal da Câmara Municipal do Cadaval, que elaborasse declaração no sentido da obra do processo de licenciamento 709/2001 estar concluída de acordo com o projecto, sem que aquele tivesse fiscalizado a obra e sem que esta tivesse certificado relativo ao projecto acústico.

8.Qualquer outro facto em oposição com os dados como provados.
A convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados e como não provados resultou da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum.

Quanto ao início de funções do arguido como fiscal municipal o tribunal relevou os documentos de fls. 160 a 171 (nomeação em Diário da República e termos de aceitação).

No que concerne às funções que o arguido desempenhava enquanto fiscal municipal de obras particulares o tribunal relevou as declarações deste quanto às suas funções conjugadas com o depoimento da testemunha ...(presidente da Câmara Municipal do Cadaval na data dos factos), ...(arquitecto e técnico superior do município que até 2007 foi chefe de divisão de obras particulares) e ...(arquitecta na Câmara Municipal do Cadaval desde 2000).

Dos seus depoimentos resulta que aos fiscais municipais era pedido que prestassem nos processos de obras informações sobre a conformidade ou não da obra com o projecto, sendo essa conformidade relativa aos aspectos visíveis das obras ao nível do projecto de arquitectura.

Era esse o objectivo da fiscalização que era entregue aos fiscais de obras quando dava entrada um pedido de atribuição de licença de utilização. Os fiscais de obras não possuíam conhecimentos para aferir da conformidade dos aspectos relativos a projectos de especialidade (acústica, esgotos, etc..) não integrando tal verificação as suas funções.

A testemunha ...referiu que a questão dos estacionamentos era matéria cuja competência não se encontrava definida, designadamente sobre qual a parte a quem incumbia, ao proprietário da obra e/ou ao município, sendo que do seu depoimento resulta que se tratava de matéria específica (e controvertida) que excedia as competências de um fiscal municipal. Depoimento este que se relevou dada a função que exercia na Câmara Municipal do Cadaval.

Quer a testemunha ..., quer a testemunha ...admitiram que, à data dos factos, existia alguma tolerância, não expressamente assumida, relativamente a alguns aspectos da conclusão das obras, como era o caso das pinturas, no sentido da sua falta não obstar à emissão das licenças de utilização.

Relativamente à obra da testemunha José o tribunal considerou a certidão do processo de obra de fls. 745 e ss dos autos, conjugadas com o teor das declarações do arguido e do José.

O processo alude a uma obra de recuperação e ampliação, porém, quer o arguido, quer a testemunha e demandante civil, são claros no seu depoimento quanto à inexistência de qualquer ampliação.

Como refere o demandante tudo o que foi feito no anexo foi uma recuperação com aproveitamento das paredes e estrutura que nela já existiam. Aproveitou integralmente as paredes e colocou placa no telhado.

Quando o arguido lavra (fls. 782) a informação de a obra realizada não ser aquela que constava do processo e do projecto aprovado alude à realidade de uma recuperação e à não existência de qualquer ampliação. A sua declaração é sucinta e poderia eventualmente ser mais explícita mas não se afigura que seja desconforme com a realidade a qual não envolvia qualquer ampliação.

O José referiu que contactou o arguido indagando sobre o que teria de fazer para realizar as obras, tendo-lhe este indicado sujeito que lhe poderia efectuar o projecto. A testemunha contactou o sujeito indicado – sujeito este que a testemunha ... Reis, então proprietário de empresa que realizava projectos de construção civil, veio assumir ser o indicado e ter elaborado o projecto.

Não resulta do depoimento que o arguido lhe tenha dito para efectuar as obras sem projecto ou licença, ou que delas trataria, nem que o mesmo lhe tenha solicitado 400,00€ para as realizar.

O que resulta do depoimento do José é que os 400,00€ foram entregues ao arguido para pagamento do trabalho do projecto, sendo que a testemunha ... Reis referiu ter, por diversas vezes, recebido dinheiro de clientes através do arguido, ainda que não possa precisar ter sido o caso do José.

A entrega do dinheiro foi pelo José efectuada ciente que era para pagamento do trabalho e não como imposição do arguido para conclusão ou realização de qualquer obra ou obtenção de licença.
Nenhuma prova foi feita de qualquer propósito de apropriação por parte do arguido de vantagem indevida sobre o José.

Relativamente à obra do Ricardo ... o tribunal considerou a certidão do processo de obra de fls. 1704 e ss dos autos conjugada com as declarações do arguido e os depoimentos do Ricardo ... e ... Santos.

O arguido argumentou que faltavam alguns pormenores que não considerou relevantes pelo que consignou que a obra estava em conformidade com o projecto assim permitindo que o dono da obra obtivesse a licença de utilização de que necessitava para obter a última tranche de empréstimo bancário.

Ainda que o arguido se mostre vago na identificação dos pormenores e os desvalorize com menção que não colocavam em causa a segurança da obra as duas outras testemunhas são mais precisas.

A testemunha ... Santos, que este presente na vistoria que consta de fls 1706 refere claramente a falta de corrimãos e guarda corpos/gradeamentos nas escadarias exteriores e interiores da casa. Refere igualmente a questão do estacionamento e do muro, mas também que tais aspectos (estacionamento e muro) não integravam as funções do arguido.

Por sua vez o Ricardo ..., refutando qualquer irregularidade quanto ao muro ou ao estacionamento, referiu que casa não estava pintada e que as escadas não possuíam os gradeamentos pois haviam sido retirados para serem corrigidos. Referiu ainda que solicitou a vistoria por necessitar da licença de utilização para obter a última tranche do empréstimo bancário que contaria e com a qual concluiria as obras.

No seu depoimento foi claro quanto ao facto do arguido se ter apercebido da falta dos guarda corpos/gradeamentos das escadas já que o mesmo lhe chamou atenção para tal facto, tendo a testemunha dada a sua palavra ao arguido, seu amigo de infância, que iam ser colocados e que não haveria problemas de segurança.
 Posteriormente à visita do arguido enquanto fiscal teve lugar uma vistoria e a licença foi-lhe negada – tudo conforme documentado na certidão do processo de obra.

Da conjugação do seu depoimento, com o presenciado pelo testemunha ...quando da vistoria, ponderadas as atribuições funcionais do arguido e o seu relacionamento de amizade como o dono da obra em questão resulta que o arguido, ao declarar a conformidade da obra com o projecto aprovado não podia desconhecer que tal não correspondia à realidade e que ao fazê-lo estava a facilitar a obtenção da licença de utilização com base em informação falsa e assim possibilitar a seu amigo a obtenção da última tranche do empréstimo bancário.

É certo que, em momento temporalmente posterior a testemunha em questão alterou a sua versão dos factos porém tal alteração não se mostra convincente ou sustentada.

Com efeito a testemunha prestou depoimento por duas vezes, sendo que da segunda vez o foi exclusivamente a pedido da defesa e na sequência de comunicação de alteração não substancial dos factos.

No seu primeiro depoimento mostrou-se espontâneo e claro na exposição dos factos e nas respostas às questões colocadas, enquanto no segundo momento se escudou em deficiente formulação das questões ou deficiente entendimento das mesmas no seu primeiro depoimento para justificar alteração do seu depoimento.

A sua versão posterior no sentido que os guarda corpos e corrimãos haviam sido retirados entre a fiscalização efectuada pelo arguido e a vistoria efectuada pelos três técnicos camarários (entre os quais a testemunha ... Santos) mostra-se absolutamente incompatível com a sua afirmação, efectuada no primeiro depoimento, que o arguido lhe ter chamado a atenção para a falta de gradeamento nas escadas e para ter dado a sua palavra ao arguido que os mesmos iam ser colocados para não haver problemas.

Tal afirmação no seu primeiro depoimento foi prestada de forma espontânea, precisa e clara sem que as questões sobre a mesma formuladas lhe tenham causado qualquer dúvida ou pedido de esclarecimento.

Acresce ainda que a testemunha foi igualmente peremptória no seu depoimento inicial quanto ao facto de aquando da deslocação da vistoria “as coisas estavam na mesma”, isto é, tal como se encontravam quando o arguido efectuou a fiscalização.

O espaço de tempo que mediou entre os dois momentos do seu depoimento (não mais de dois meses e a justificação invocada pela testemunha para sua alteração são manifestamente insuficientes para justificar uma tão profunda e substancial alteração do conteúdo do depoimento.

O facto de se tratar de questão (factos que determinaram a não emissão de licença de utilização) relacionada com a construção da sua casa de habitação (conforme referiu a única que construiu ao longo da sua vida e na qual habita) e de essa questão ter obstado à libertação da última tranche de empréstimo bancário obrigando-o a entrar com capitais próprios para conclusão da obra, conforme também admitiu, reforçam a insustentabilidade da sua alteração de depoimento quanto ao facto dos guarda corpos e corrimãos se encontrarem no local (as escadas exteriores e interiores) quando o arguido aí se deslocou em fiscalização.

Na valoração do comportamento da testemunha o tribunal não pode deixar de ponderar a assumida relação de amizade com o arguido – a testemunha assumiu-se amigo de infância – e o contexto do segundo momento da sua inquirição – depois de comunicados ao arguido os factos em relação aos quais o tribunal entendia ter lugar alteração não substancial dos factos.

Por todo o exposto entendeu o tribunal que o segundo momento do depoimento da testemunha foi condicionado pelo seu relacionamento com o arguido, mostra-se incoerente e insustentado no seu confronto com o depoimento inicial – este, repete-se, espontâneo, claro e preciso sem suscitar à testemunha qualquer dúvida ou necessidade de esclarecimento – pelo que se desconsiderou o volte face das suas declarações prestadas a instâncias da defesa na sequência da comunicação de alteração dos factos relevando apenas o seu depoimento inicial.

Relativamente à obra de Carla ... o tribunal considerou a certidão do referido processo de obra que consta de fls. 1012 e ss o depoimento do arguido e as declarações da testemunha ... Santos.
O arguido refuta que as questões dos esgotos ou do estacionamento se incluíssem nas suas atribuições como fiscal – o que é corroborado pelo depoimento da testemunha ... Santos.

É neste contexto que se valora a sua declaração no processo efectuada a fls 1183 e o seu confronto com as desconformidades assinaladas nos autos de vistoria de fls. 1184 e 1186 como extravasando as suas competências.

No que concerne aos actos efectuados pela fiscalização no processo de obra em nome de Ana ... o tribunal relevou a certidão de fls. 793  e ss dos autos, sendo que nenhuma prova foi feita que permita afirmar que a actuação do fiscal que nele teve intervenção (Silva), o qual o arguido reconheceu ser seu colega de trabalho e ter com ele vistoriado inúmeras obras, tenha de alguma forma sido condicionada pelo arguido. Isto sem prejuízo do projecto acústico, como referido pela testemunha ... Santos, ser um projecto de especialidade cuja verificação excedia as competências do arguido enquanto fiscal de obras.

As declarações do arguido foram consideradas quanto às suas condições pessoais e habilitações literárias, passadas e actuais.

O certificado de registo criminal de fls. 1408 foi considerado quanto à ausência de antecedentes criminais.

B-Fundamentação de direito.

B1-O crime de corrupção.
Ao arguido é imputada prática de um crime de corrupção p. e p. pelo art. 372º do Código Penal na sua redacção da Lei 108/2001 segundo o qual “1- O funcionário que por si, ou por interposta pessoal, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. 2 - Se o agente, antes da prática do facto, voluntariamente repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir a vantagem, ou, tratando-se de coisa fungível, o seu valor, é dispensado de pena. 3 - A pena é especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis.”.

Ora, com respeito por entendimento diverso, afigura-se manifesto que nada se apurou em termos de actuação do arguido que possa configurar a prática de qualquer elemento típico deste ilícito.
Seja por si, seja por interposta pessoa, nada se apurou que permita afirmar que o arguido solicitou ou aceitou vantagem, patrimonial o não patrimonial, indevida.

Não existe qualquer substrato facto que permita a afirmação dos elementos objectivos do tipo de ilícito em causa pelo que nesta parte a pronúncia tem, necessariamente, de improceder.

B2–Os crimes de falsificação.
Ao arguido é ainda imputada a prática de três, sendo um deles em co-autoria material, crimes de falsificação de documento previstos no art. 256º nº 1 al. a) nº 3 e nº 4 do Código Penal segundo o qual “1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:  a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa; é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.  2 - A tentativa é punível.  3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. 4 - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.”.

Em causa na incriminação está a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental – Helena Moniz in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II em anotação ao art. 256º a pag 680.

Documento é, nos termos do art. 255º al. a) “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.

O nº 1 do art. 256º citado compreende as seguintes condutas típicas que constituem modalidades de falsificação: 1) fabricar documento falso; 2) falsificar ou alterar documento; 3) abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; 4) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e 5) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou alterado por outra pessoa.

As três primeiras condutas integram a previsão da alínea a) do preceito enquanto as duas últimas integram, respectivamente, as alíneas b) e c).

Relativamente às condutas que envolviam actos praticados pelo arguido nos processos de obras de José H.S., Ana ... e Carla ... face aos factos que foram apurados não se afigura que possa ser imputada ao arguido qualquer conduta que conduza ao seu enquadramento no tipo legal em causa, o que terá de conduzir à sua absolvição pelos ilícitos a elas referidos.

Já quanto à obra do Ricardo ... a questão se afigura distinta.

Com efeito, apurou-se que o arguido, no exercício das suas funções de fiscal municipal, consignou em informação lavrada no processo de obras 1679/2002 que a obra se encontrava executada e concluída em conformidade com o projecto aprovado, quando tal, tanto quanto era do âmbito das suas competências, não correspondia à verdade.

Com efeito, considerado as competências do arguido enquanto fiscal municipal o mesmo não podia desconhecer que a obra não tinha guarda corpos ou gradeamentos nas escadarias da habitação, quer nas exteriores, quer nas interiores, e que ao declarar a mesma concluída em conformidade com o projecto aprovado tal declaração não traduzia a verdade dos factos que observava.

Sabia o arguido que a declaração era relevante para obtenção, pelo dono da obra, da licença de utilização da mesma.

Tal conduta do arguido é subsumível na previsão do art. 256º nº 1 al. b) – fazer constar falsamente facto jurídico relevante – do Código Penal e por praticado no exercício das suas funções enquanto funcionário municipal – fiscal municipal – na sua forma qualificada do nº 4.

A responsabilização do arguido exige que conduta lhe seja imputável no plano subjectivo, no plano da sua vontade de acção, o que atenta a configuração do tipo legal há-de ocorrer sob a forma de dolo – arts. 13º e 14º do Código Penal.

O arguido agiu de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta lhe não era permitida por contrária à lei e por esta punida.

Determinou a sua conduta com vista à realização da falsidade da informação e pelo que a conduta é-lhe imputável sob a forma de dolo – art. 14º do Código Penal.

B3--A medida da pena.
Na escolha e determinação da pena a aplicar haverá que considerar três vectores fundamentais: as necessidades de prevenção geral, as de prevenção especial e a culpa do arguido – arts. 40º e 70º do Código Penal.

Pelas necessidades de prevenção geral refere-se a necessidade de reafirmação no quadro e contexto de valores comunitários da validade da norma violada, da tutela do bem jurídico nele consagrado.

Tais necessidades, no caso concreto, prendem-se com a necessidade de reafirmar através da medida da pena a validade e importância dos bens jurídicos violados pela conduta do arguido.

Pelas necessidades de prevenção especial pretende-se referir a necessidade de conformação do arguido com o quadro de valores comunitários vigentes, em particular com aqueles que tutelam os bens jurídicos atingidos pela sua conduta.

A falsificação de documento prevista no art. 256º nº 1 al. a) e nº 4 do Código Penal é sancionada com pena de um a cinco anos de prisão.

No caso do arguido, ainda não seja conhecido o seu envolvimento em situações similares ou noutras que envolvam desrespeito pelos bens jurídicos violados, importa atender ao facto de exercer funções de fiscal municipal e ao seu potencial confronto, enquanto funcionário, com situações que envolvam a emissão de declarações como a que deu origem à verificação do ilícito, realidade que reforça as necessidades de prevenção especial.

Actuou o arguido com dolo cuja intensidade não pode ser descurada, revelando na ponderação entre os interesses do seu amigo e os seus deveres enquanto funcionário indiferença pelos valores tutelados na norma incriminadora.

Por outro lado não se pode deixar de ter presente o facto de, à data dos factos e até à sua verificação nas vistorias efectuadas, ser uma prática dos serviços do município em questão uma postura de alguma tolerância em relação à conclusão dos acabamentos das obras com vista a facilitar a obtenção pelos proprietários de prestações de empréstimos bancários. Este laxismo, não autorizado expressamente mas de alguma forma tolerado, não pode deixar de ser ponderado na medida da censura ao arguido expressa na medida concreta da pena.

Neste contexto, ponderada aquela medida abstracta entende-se dever a medida concreta ser fixada em catorze meses, medida que se julga adequada e bastante para o fazer sentir a censura comunitária da sua conduta.

Considerando a ausência de antecedentes criminais, ponderado o tempo decorrido e os princípios de integração das penas afigura-se que simples censura do facto e da ameaça da prisão serão bastantes para a realização das finalidades punitivas supra mencionadas.

Por tal motivo se entende dever ser suspensa a execução da pena de prisão nos termos do art. 50º do Código Penal.

No que à duração da suspensão da execução da pena afigura-se que a mesma deverá ter lugar por um período de dois anos.

B4--A sucessão de leis penais no tempo.
Em conformidade com o princípio da irretroactividade da lei penal consagrado no art. 29º nº 1 da Constituição da República Portuguesa o art. 2º nº 1 do Código Penal determina que “As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”.

Porém, no seu nº 4, ressalva a possibilidade de aplicação de lei posterior à vigente na data da prática dos factos sempre que a mesma se mostre, em concreto, mais favorável ao arguido.

Os factos que ao arguido eram imputados e que se apuraram após realização de audiência de julgamento tiveram lugar em Agosto de 2005.

Com a Lei 59/2007 de 4-9 o Código Penal foi objecto de revisão passando o art. 256º do Código Penal a ter a seguinte redacção “1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram; c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento; d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. 3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias. 4 - Se os factos referidos nos n.os 1 e 3 forem praticados por funcionário, no exercício das suas funções, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”.
Relativamente ao crime de falsificação de documento o n.º 1 do art. 256º do Código Penal, na sua actual redacção e por confronto com a redacção vigente na data da prática dos factos, foi alterado na sua sistematização com o alargamento ou concretização descritiva das condutas nele compreendidas.

Onde antes se tipificava a conduta de “Quem com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo” acrescenta-se, agora, “ ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

Onde antes se referia na alínea a) “Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborara documento falso” refere-se agora na alínea a) “Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo”, na alínea b) “Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram” e na alínea c) “Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento”.

Por outro lado onde anteriormente se referia na alínea b) “Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” refere-se agora na alínea d) “Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante”.

Enquanto na anterior alínea c) se referia “Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa” refere-se agora na aliena e) “Usar documento a que se referem as alíneas anteriores” e na alínea f) “Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito”.

A medida da pena mantém-se inalterada.

Confrontando ambas as redacções verifica-se que a conduta do arguido antes integrada na previsão da alínea b) se encontra agora prevista na alínea d).

Ou seja, os factos continuam a ser puníveis e a medida da pena mantem-se igual pelo que atento disposto no art. 2º n.º 1 do Código Penal, o arguido deva ser sancionado de acordo com a redacção do art. 256º do Código Penal vigente na data da prática dos factos.

Diferenças verificam-se ao nível da execução da pena porquanto a actual redacção do art. 50º nº 5 do Código Penal determina que a suspensão não pode ser superior à medida concreta da pena de prisão aplicada.

Daí que, por determinar um menor período de suspensão de execução da pena, logo menos gravoso para o arguido, o actual regime do art. 50º se revele mais favorável e como tal, atento o citado art. 2º nº 4, deva ser aplicado.
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III-Dispositivo.

Termos em que, com a fundamentação de facto e de direito acima exposta, acordam os juízes que integram o tribunal colectivo julgar a pronúncia contra o arguido Levi parcialmente procedente por provada e em consequência:

a)Absolver o arguido da prática de um crime de corrupção p. e p. pelo art. 372º nº do Código Penal que nela lhe era imputado.
b)Absolver o arguido da prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. b), nº 3 e nº 4 do Código Penal que nela lhe era imputado.
c)Absolver o arguido da prática, em co-autoria material, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. b), nº 3 e nº 4 do Código Penal que nela lhe era imputado.
d)Condená-lo pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 al. b), nº 3 e nº 4 do Código Penal na pena de catorze (14) meses de prisão.
e)Nos termos do disposto no art. 50º nº 1 e 5 do Código Penal considerando que a mera ameaça de execução da pena se mostra suficiente para a satisfação das exigências punitivas da conduta do arguido decide-se suspender a execução da pena por um período de catorze (14) meses.

A Digna PGA junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Respondeu o recorrente mantendo a posição anteriormente definida.

Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é saber se: existe caso julgado relativamente ao crime pelo qual o recorrente vem condenado; se se verifica nulidade insanável por a alteração não substancial dos factos ter sido comunicada apenas pelo juiz presidente; a reapreciação da matéria de facto relativamente à factualidade impugnada; a pretensa violação do princípio in dubio pro reo.
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Antes de mais, importa salientar, tal como o fez já o MP, que a reclamação do arguido contra a não admissão do recurso do despacho proferido a fls. 1918 foi desatendida por decisão do Exmº. Vice-Presidente deste Tribunal, em face do que não se impõe a apreciação do recurso intercalar interposto pelo arguido.

Relativamente ao recurso referente à decisão final proferidas nos autos há em primeiro lugar que apreciar se existe ou não caso julgado formal no que tange ao crime pelo qual o recorrente vem agora condenado.

Efectivamente, o recorrente vem invocar o caso julgado formal, na medida em que, no anterior recurso, apenas recorreu do crime pelo qual foi condenado em 1ª instância, vindo agora a ser condenado por outro crime, relativamente ao qual ninguém havia interposto recurso.

Vejamos:

Nos presentes autos, o arguido foi pronunciado, em concurso real, para além de um crime de corrupção passiva (do qual voltou a ser absolvido), da prática de três crimes (sendo um em co-autoria) de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, 1, b), 3 e 4, do C. Pen., na versão anterior à Lei nº 23/2010, de 2-9.

Sucede que, aquando do primeiro julgamento, o ora recorrente foi absolvido da prática de todos aqueles crimes, com excepção de um dos crimes de falsificação de documento, do que recorreu isoladamente para este Tribunal. Porém, o tribunal ad quem considerou nula a produção probatória uma vez que a inquirição de uma das testemunhas, em sede de audiência de julgamento, havia tido lugar somente perante o Mmº. juiz presidente e não ante o tribunal colectivo que se encontrava a julgar a causa, pelo que declarou a nulidade de tal inquirição e determinou a repetição da audiência de julgamento.

Ora, o tribunal que ora procedeu à repetição do julgamento entendeu que tal abarcava a totalidade dos crimes pelos quais o arguido se encontrava pronunciado, pelo que voltou a julgar integralmente a causa. Contudo, desta vez, decidiu condenar o recorrente não pelo crime de falsificação de documento pelo qual aquele havia sido condenado da primeira vez, mas antes por um outro do qual anteriormente havia sido absolvido. Contra tal asserção insurge-se o arguido, considerando existir caso julgado perlustrada a situação em apreço, pelos motivos supra apontados.

Existe caso julgado formal quando se produz uma decisão que tem força obrigatória dentro do próprio processo em que é proferida – art. 672º, C.P.Civ. (actualmente, art. 620º). Já no caso julgado material tal força estende a sua obrigatoriedade fora do próprio processo (art. 671º, C. P. Civ. (hoje, art. 619º) – v. G. Marques da Silva, Curso de Direito Penal, III, 1994, pg. 30 (e vol. I, 6ª ed. pg.  106 a 107).

Embora o actual C. P. Pen. não regulamente nem descreva, expressa e directamente o instituto do caso julgado, tal não invalida que lei penal objectiva não o consagre enquanto pressuposto processual, como resulta do preceituado nos arts. 396º, 4, 399º, 400º, 411º, 427º, 432º, 438º, 477º, 1, 449, 1, 467º, 487º, 492º, 498, 3, entre outros, do C. P. Pen. (cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e a Sua Relevância no Processo Penal Português, 1995, pgs. 226 e 227), para além da consagração constitucional de uma das suas vertentes, no art. 29º, 5, C.R.Port..

Paradigmaticamente escreveu-se no Ac. STJ, de 20-10-10, Proc. nº 3554/02.3TDLSB.S2, in www.dgsi.pt, que “ o caso julgado enquanto pressuposto processual conforma um efeito negativo, que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio ne bis in idem….Com os conceitos de caso julgado formal e material descrevem-se os diferentes efeitos da sentença. Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de uma decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno, o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado. No que concerne à extensão do caso julgado pode distinguir-se entre caso julgado em sentido absoluto e relativo: no primeiro caso a decisão não pode ser impugnada em nenhuma das suas partes. O caso julgado relativo é objectivamente relativo quando só uma parte da decisão se fixou e será subjectivamente relativo quando só pode ser impugnada por um dos sujeitos processuais. Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução….No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imitabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual”.

Como sublinha o prof. G. Marques da Silva (ob. cit., pg. 31) “o caso julgado tende a subtrair a pessoa suspeita da prática de um crime a uma teoricamente possibilidade de perseguição penal e, por isso, ao arbítrio incondicionado dos órgãos do poder punitivo do Estado”. Daí que, nas palavras do il. autor, “para além do efeito positivo do caso julgado, consistente na relevância da decisão em qualquer outro processo, costuma distinguir-se o efeito negativo do caso julgado, traduzido no principio  constitucional do ne bis in idem (art. 29º, 5, da CRP), ou seja, no impedimento de qualquer novo julgamento da mesma questão – (ob. cit.,pg. 34.) (cfr. tb. Frederico Isasca, ob. cit., pg. 226 a 229).

No que diz respeito ao denominado efeito negativo do caso julgado, recondutível ao princípio ne bis in idem, vimos já que o mesmo assume dignidade constitucional – art. 29º, 5, CRP – para ale de se encontrar consagrado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – art. 14º, 7 – e no art. 4º do Protocolo nº 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No que concerne a esta vertente processual do aludido princípio, é-lhe atribuída  uma dulpla dimensão – como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo). Por outro lado, como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental) obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto” - Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, pg. 497 -.

Importa agora abordar o problema dos limites da eficácia do caso julgado em matéria penal. Efectivamente, entende-se doutrinaria e jurisprudencialmente que só há lugar ao funcionamento do caso julgado quando existe identidade do facto e de sujeitos constantes de uma decisão irrevogável sobre a mesma questão ou, por outras palavras, quando estamos perante o mesmo objecto processual. O conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos porque determinados pelo objecto do processo. Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, não podem ser posteriormente apreciados – cfr. Frederico Isasca, ob. cit., pgs. 228-229; G. Marques da Silva, ob. cit., pg. 35 a 38;  e Ac. STJ, de 15-3-06, Proc. nº 4403/05-3ª, in  www.pgdlisboa.pt).

Tornado ao caso em apreço (afora o crime de corrupção do qual o arguido tornou a ser absolvido), constata-se que ao ora recorrente vinha imputada a prática de quatro crimes de falsificação de documento, no âmbito da sua actividade de fiscal de obras da C. M. Cadaval. Destes, o arguido havia sido absolvido do cometimento de três deles e condenado apenas por um, relativo à sua actuação no processo de licenciamento de uma obra de José H. S., estando em causa a construção de um anexo à sua moradia. O arguido recorreu isoladamente e apenas desta condenação, tendo o tribunal ad quem proferido a decisão supra mencionada. Acontece que o tribunal a quo, em novo julgamento determinado, voltou a julgar o arguido por todos os crimes pelos quais tinha sido pronunciado e, desta vez, mantendo a absolvição do crime de corrupção e por três dos quatros crimes de falsificação de documento em causa, tornou a condenar o arguido por um crime de falsificação de documento. Porém, esta condenação não versou a factualidade antes impugnada, mas antes uma situação que não tinha sido objecto anterior de recurso. Concretizando, o arguido vem agora condenado por ter falsificado um documento, no exercício da sua actividade de fiscal municipal de obras, praticado do âmbito do processo de licenciamento de obra nº 1679/2002, no qual era requerente Ricardo..., supostamente por ter feito constar que a obra se encontrava concluída de acordo com o projecto aprovado, sendo que na mesma não se encontravam ainda instaladas as escadarias exteriores e interiores e as mesmas não dispunham de guarda corpos/gradeamento, actuando de forma consciente e deliberada, visando o benefício do requerente.

Ora, o pretenso crime de falsificação de documento atinente ao processo de licenciamento em que é requerente o Ricardo ..., foi objecto de decisão absolutória aquando do primeiro julgamento, sendo que nenhum dos sujeitos processuais recorreu do mesmo. Como tal (recordando que estamos perante um suposto concurso real de crimes e tendo em conta o princípio da cindibilidade do recurso – arts. 402º e 403º, C. P. Pen.), aquela decisão transitou em julgado, ou seja, deixou de ser susceptível de recurso ordinário ou de reclamação – art. 628º, C. P. Civ. -, na medida em que firmou caso julgado formal relativamente a tal questão (v. Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, 2001).

Consequentemente, visando o anterior recurso somente a condenação do recorrente por crime de falsificação de documento supostamente praticado no âmbito do processo de licenciamento de obra nº 461/2002, em que era requerente José H.S., não podia o acórdão ora em crise extravasar o âmbito dos factos atinentes e condenar agora o arguido por factos enformadores de um pretenso crime do qual havia sido absolvido.

Assim, a primeira decisão do tribunal ad quem ao mandar repetir o julgamento estava obviamente a reportar-se ao pretenso crime pelo qual o arguido havia sido condenado e que consubstanciava o objecto do recurso e não qualquer dos restantes crimes imputados os quais, por ninguém deles ter recorrido, transitaram em julgado, formando-se sobre eles caso julgado formal.

Como tal, este Tribunal esgotou o seu poder jurisdicional antes o excepcionado caso julgado, não podendo ora analisar a decisão em causa na medida em que ressuscitada objecto processual insusceptível de reapreciação.

Consequentemente, ficam prejudicadas as restantes questões suscitadas no recurso.
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Pelo exposto:

Acordam, em conferência, os juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em não conhecer do mérito da causa, por esgotamento do seu poder jurisdicional, uma vez que se havia formado caso julgado formal acerca do objecto processual sobre que ora recaiu a condenação do arguido.
Sem custas.

Lisboa, 3-11-2015


Carlos Espírito Santo
Alda Tomé Casimiro