ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário

- O enriquecimento sem causa é uma fonte de obrigações que se caracteriza por uma especificidade que a distingue das demais, a sua natureza subsidiária, expressamente consagrada no art.º 474º do Código Civil.
- Do n.º 1 do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) consta o elenco dos litígios que podem ser objecto de apreciação por parte destes tribunais.
- Numa acção em que os factos alegados são susceptíveis de subsunção ao instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado, a competência para julgar a causa é dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos da sua alínea h).
- Sendo certo que o art.º 4º não permite a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais, à partida, com fundamento no enriquecimento sem causa, também não constitui obstáculo ao seu conhecimento, a título subsidiário, se soçobrar o pedido fundado em qualquer das alíneas do n.º 1, desde que estejam alegados factos que permitam aquilatar da verificação dos seus requisitos legais.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

Acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.



I - Relatório:


Autora/recorrente:
A…, residente na Rua ....

Réu/recorrido:
O Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira, com domicílio na Rua da Alfândega, n.º 5 R/C, em Lisboa, representado pelo Ministério Público.

Pedidos:

A condenação da Ré ao cumprimento da obrigação de restituir tudo quanto tenha obtido à custa da A., com fundamento no seu enriquecimento sem causa, correspondente às importâncias já penhoradas sobre o seu crédito, equivalentes à totalidade da quantia exequenda no montante de 13.314,27 €, acrescida de juros legais vencidos desde 4 de Janeiro de 2011 e vincendos até integral pagamento.

Fundamentos:

No âmbito dum processo de execução fiscal instaurado pelo pai da A., foi ordenada a penhora dum crédito de rendas fundado no contrato de arrendamento comercial dum prédio.
À data o executado havia doado à filha a sua quota, correspondente a ¼ indiviso do imóvel; e, apesar do acto de doação se encontrar registado a favor da A., mesmo assim a Autoridade Tributária promoveu a penhora das rendas, sem prévia notificação dos proprietários, tendo a arrendatária cumprido o despacho.
Apesar da A. ter dado conhecimento da alteração da titularidade do prédio às finanças, solicitando o cancelamento da penhora e a restituição das quantias indevidamente recebidas, a Autoridade Tributária nada fez, permitindo a liquidação integral da quantia exequenda, no montante de 13.314,27 €.
A A. reagiu mediante embargos de terceiro, mas o tribunal administrativo e fiscal julgou procedente a excepção de intempestividade e considerou caducado o direito de acção da embargante.
Pretende a A. e ora recorrente a restituição da indicada quantia e juros de mora com fundamento no enriquecimento sem causa, por entender que, no caso concreto, a lei não lhe faculta outro meio de ser indemnizada ou restituída.

Sentença:

Julgou “verificada a exceção da incompetência (absoluta) em razão da matéria dos juízos de instância local cível da comarca de Lisboa, sediados no tribunal da Moita, estabelecendo essa competência no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) sediado em Almada”.

Conclusões da apelação:

1-A apelante instaurou Acção Declarativa Cível sob a forma de Processo Comum contra o Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira, fundada no Instituto do Enriquecimento Sem Causa;
2-Citado em representação do Réu, Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira, o Ministério Público pugnou no sentido de a factualidade descrita (causa de pedir) não se coadunar com tal instituto mas antes, eventualmente e em abstracto, com uma situação de responsabilidade cível extracontratual, geradora do dever de indemnizar, pugnando pela competência material dos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal - por aplicação do disposto no Art.º 4.º, n.º 1, alínea g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF);
3-Arguiu, com esse fundamento, a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal (Jurisdição Civil) para o conhecimento do mérito da acção e pedindo a absolvição do R., da instância, – Cfr. Art.ºs 96.º, alínea a); 99.º, n.º 1; 278.º, n.º 1, alínea a); 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do CPC de 2013;
4-Foi proferida Sentença Judicial datada de 04/02/2015, em que o Tribunal a quo julgou verificada a excepção da incompetência (absoluta) em razão da matéria dos Juízos de Instância Local Cível da Comarca de Lisboa, sediados no Tribunal da Moita, estabelecendo essa competência no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) sediado em Almada e, consequentemente, julgou improcedente a acção interposta pela A. Andou mal a decisão em crise;
5-Não estamos perante uma situação de Responsabilidade Civil Extracontratual da Autoridade Tributária, mas sim de uma situação de Enriquecimento Sem Causa, cuja apreciação cabe aos Tribunais Civis e não aos Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF);
Senão, vejamos,
6-No âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º 2160200301518666, a correr termos nos Serviços de Finanças do Barreiro, contra o executado B… (por reversão), foi ordenada, em 06/12/2010, a penhora de créditos do executado decorrentes num contrato de arrendamento comercial celebrado entre aquele e a Sociedade D... Limitada, que tem por objecto o prédio urbano destinado a comércio, sito na Rua Miguel Bombarda n.º 153 – União das freguesias de Alto do Seixalinho – Santo André e Verderena (anteriormente freguesia do Alto do Seixalinho), concelho do Barreiro, descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreiro sob o n.º 4641, do Livro B-14 e inscrito na respectiva matriz sob o n.º 1448 (anterior 203) – imóvel locado, de que aquele era co-arrendatário e co-proprietário;
7-Sucede que, por escritura pública de Doação, datada de 03/01/2008 e por conta da sua quota disponível, o B… doou a sua filha, a apelante, a totalidade da sua quota, correspondente a ¼ indiviso do referido prédio, registada a favor desta e inserido na Caderneta Predial Urbana à data da penhora, - Cfr. Doc. n.º 1 a n.º 3 e Certidão Predial Permanente com o Código de Acesso: PP-0870-88118-150406-001171, carreados para os autos com a Petição Inicial (PI), para os quais se remete;
8-A Autoridade Tributária e Aduaneira promoveu a penhora dos referidos créditos, sem que tivesse acautelado a prévia notificação dos proprietários e mesmo depois de, em 2008, ter tido conhecimento da transmissão da propriedade;
9-A penhora realizada pela Autoridade Tributária e Aduaneira incidiu sobre um crédito que já não se encontrava na titularidade do executado, mas de terceiro (a ora recorrente), e ocorreu quase três anos depois do registo matricial do prédio a favor da Sr.ª A…, - Vide Doc. n.º 4 a n.º 8, juntos com a PI.
10- Extravasa do fim do processo de execução fiscal a agressão do património de terceiro, como aconteceu, mediante a captação de “rendimentos ou bens por dívida fiscal que apenas era da responsabilidade do executado satisfazer”, não sendo, por tal, o meio lícito de a administração tributária satisfazer o crédito da “Fazenda Pública”, não sendo a apelante uma contribuinte relapsa.
11-Não é de aceitar o entendimento do Tribunal de Comarca, vertido no seguinte excerto da decisão recorrida: «(…) a AT pugnou pela cobrança de uma dívida que lhe era lícito obter em execução fiscal, só que ao atuar (hipoteticamente) não o fez com a diligência devida, causando assim um dano no património de outrem (a Autora) que (em abstrato) não tinha qualquer responsabilidade no pagamento dessa dívida. Continuando com o devido respeito por opinião contrária, parece-nos evidente o ato ilícito (captação coerciva de um rendimento que não poderia encontra-se afeto ao pagamento da dívida) que neste enfoque é praticado pelo exequente (AT), que assim o levará a incorrer perante esse terceiro nos parâmetros da responsabilidade civil extracontratual (por prática de facto ilícito).».
12-Não pode afirmar-se a existência da causa de cobrança; esta existia na relação tributária entre a AT e o executado, B…, não entre a primeira e a apelante!
13-Entre A. e R., não existia uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justificasse a deslocação patrimonial ocorrida, carecendo, por isso, a penhora de fundamento legal.
14-Nesse sentido, o Ac. TRC, de 11/02/2010 (Proc. 1867/08.0TBVIS.C1; Relator: Isaías Pádua), disponível in www.dgsi.pt/ e o Ac. TRC, de 11/05/2004: CJ, 2004, 3.º-8.
15-Não estamos perante o recebimento ilícito dos montantes reclamados nos autos mas perante a sua cobrança, não só ilegal, mas também, no que ao caso releva, infundada/sem causa!
16-Admitindo-se, por hipótese, que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) era credora da quantia aludida, daí não se pode concluir que não obteve acréscimo ou incremento patrimonial.
17-Ao actuar como actuou, conhecendo ou não podendo ignorar que a execução promovida atacaria o património de um terceiro e optando por nada fazer para sustar a penhora que prosseguiu até liquidação integral da quantia exequenda, no montante de 13.314,27 € (Treze mil trezentos e catorze euros e vinte e sete
cêntimos) - Cfr. Doc. n.º 8, junto com a PI, a Autoridade Tributária (AT) actuou de má-fé e, ao fazê-lo, obteve uma vantagem patrimonial injustificada (sem causa), com o consequente empobrecimento de outra pessoa, a recorrente.
18-O rendimento/quantia deste modo embolsado não era devido por A… e, por isso, a AT não tinha o direito de obter o pagamento coercivo da dívida tributária à custa do património daquela, o que claramente constitui uma vantagem patrimonial injustificada do recorrido.
19-Não procede a afirmação de que “estamos somente perante uma penhora ilegal por ilicitude do acto determinativo da penhora, directamente causadora de um prejuízo e, nessa medida, geradora da obrigação de a indemnizar em sede de responsabilidade extracontratual”. (Itálico e sublinhado nossos)
20-A situação em a preço não se reconduz a uma simples alegada ilicitude do acto determinativo da penhora, que terá causado directamente um prejuízo à A., e, consequentemente, a obrigação de indemnizar.
21-O facto de os rendimentos penhorados no processo de execução fiscal serem da titularidade de outrem que não o executado, configura uma situação de enriquecimento sem causa por parte da AT, e o consequente empobrecimento da A., sem causa justificativa.
22-A Autoridade Tributária enriqueceu com a sua acção executiva, criou para si riqueza, não existindo dúvidas no espírito da recorrente que a sua conduta da AT preencheu os requisitos legais cumulativos exigidos pelo regime jurídico ínsito ao n.º 1 do Art.º 473.º do Código Civil (CC.), a saber:
23-1.º Requisito: existência de um enriquecimento; – Com a captação de rendas, coercivamente realizada pela Autoridade Tributária, esta enriqueceu;
24-2.º Requisito: que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; – Inexistência de uma relação jurídica (creditícia ou de qualquer outra natureza) entre A. e R., que justifique a cobrança coerciva da dívida à custa do património da primeira;
25-3.º Requisito: que o enriquecimento ocorrido na esfera jurídica da AT ocorra à custa do empobrecido, – o que é incontestável, considerando que a penhora prosseguiu até liquidação integral da quantia exequenda, no montante de 13.314,27 € (Treze mil trezentos e catorze euros e vinte e sete cêntimos) - Cfr. Doc. n.º 8, junto com a PI, acrescida de juros legais vencidos, desde, pelo menos 4 de Janeiro de 2011, data em que a R., sem margem para dúvidas, teve conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento, e vincendos até integral pagamento.
26-4.º Requisito: que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negue o direito à restituição ou atribua outros efeitos ao enriquecimento, – No caso concreto, a lei não faculta à empobrecida outro meio de ser indemnizada ou restituída; como resulta da sentença judicial proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada no Processo n.º 391/11.8BEALM e já transitada em julgado, o seu direito de acção judicial extinguiu-se por caducidade, - Cfr. Doc. n.º 9, junto com a PI.
27-Assim, não estamos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual do Estado, como o Ministério Público defende, não sendo exequível à A., ver os seus direitos acautelados por essa via.
28-Não havendo lugar à responsabilidade civil extracontratual não haverá qualquer outro mecanismo que ultrapasse a aplicação do sistema do enriquecimento sem causa.
29-O Art.º 474.º do CC., relativo à natureza subsidiária do Instituto do Enriquecimento Sem Causa, depende de uma interpretação restritiva, por contrário ao espírito geral do Direito Civil.
30-Não estamos perante uma “questão relativa a imposto que se prend[a] com a respetiva cobrança”, como se tem afirmado nesta sede. Logo, não procede o argumento contemplado na decisão recorrida de que «(…) se sem mais, a acção pudesse ser tramitada com base no enriquecimento sem causa do Estado segundo os factos que alega, então pela mesma razão poderia defender-se que qualquer questão relativa a imposto que se prendesse com a respectiva cobrança, poderia sempre ser defendida através de uma ação tramitada
segundo o instituto do enriquecimento sem causa, o que é frontalmente impedido pelo próprio regime que consagra a responsabilidade civil extracontratual do Estado e de outras pessoas coletivas de direito público, conforme deixamos referido.»
31-A situação descrita cai no âmbito de aplicação da norma constante do Art.º 473.º do CC., que no n.º 1 enuncia o seguinte princípio geral: «Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.».
32-«Compete os tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais.», - Cfr. Art.º 88.º, n.º 1 da LOSJ – Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/08);
33-Competindo às Secções de Competência Genérica da Instância Local (desdobradas ou não em Secções Cíveis e em Secções Criminais) preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da Instância Central ou Tribunal de Competência Territorial Alargada, - Cfr. Art.º 130.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e Art.º 117.º da LOSJ.
34-Conclui-se, assim, pela competência material do Tribunal da Comarca de Lisboa – Moita – Instância Local – Secção Cível para conhecer do presente litígio, e, consequentemente, pela improcedência da invocada excepção dilatória de incompetência material do Tribunal.
35-Atento o acima explanado, andou mal a Sentença recorrida ao decidir em detrimento do prosseguimento dos autos e no sentido da absolvição da instância.
36- Face ao supra exposto foi violado o disposto no Art.º 22.º da CRP; nos Art.ºs 473.º, 474.º e 479.º do CC.; nos Art.ºs 96.º, alínea a); 98.º; 99.º, n.º 1; 278.º, n.º 1, alínea a); 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) e 578.º do CPC 2013, no Art.º 4.º, Alínea g) do ETAF, – e o RRCEE; e nos Art.ºs 88.º, n.º 1; 130.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e Art.º 117.º da LOSJ.

Deve, pois, a douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pela improcedência da invocada excepção dilatória de incompetência material e, consequentemente, determine o prosseguimento dos presentes autos junto do Tribunal Comarca de Lisboa – Moita – Instância Local – Secção Cível, o qual se tem por materialmente competente para conhecer do presente litígio.

Conclusões das contra-alegações.

O recorrente pugnou pela manutenção da sentença recorrida, concluindo, em resumo:

- É forçoso considerar que a demanda, do modo como foi configurada pela autora, conforma a apreciação de uma situação de eventual responsabilidade civil extracontratual do Estado Português e não uma situação de enriquecimento sem causa relativamente à qual não estão preenchidos os requisitos, nomeadamente a falta de causa do enriquecimento e o próprio enriquecimento.
Nos termos do disposto no artigo 4.º nº 1 do ETAF compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa h) a responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos.
- Assim, devia a Autora ter instaurado a presente acção junto dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
- Estamos pois, perante uma excepção dilatória que importa a absolvição da instância do Réu (96.º al. a), 99.º nº 1, 278.º nº 1 al. a), 576.º nºs 1 e 2 e 577.º al. a) do Código de Processo Civil todos do Código de Processo Civil e e 4.º nº 1 al. g) do ETAF), motivo pelo qual se considera que bem andou o Mmo. Juiz a quo quando assim decidiu não se vislumbrando que tenha violado nenhuma das regras elencadas pela Autora nas suas alegações de recurso.
- Atendendo ao exposto, entende não assistir razão ao recorrente.

Questões a decidir na apelação:

A única questão a dirimir é a determinação do tribunal competente: a Instância Local Cível do Barreiro e Moita ou o Tribunal Administrativo de Círculo, sediado em Almada”.

II - Apreciação do recurso:

Factos provados:
A factualidade a atender coincide com o que consta do relatório acerca dos fundamentos da acção.

Enquadramento jurídico:

Da leitura das alegações e contra-alegações conclui-se que há consenso entre as partes no sentido de que a questão de saber qual é o tribunal competente, em razão da matéria, para resolver o presente litígio, depende do enquadramento normativo que hipoteticamente possa ser dado aos factos alegados e sujeitos à apreciação do tribunal.
Diverge a recorrente ao sustentar que a factualidade por si articulada na petição inicial – que se resume à penhora, pela Autoridade Tributária, dum crédito sobre rendas dum imóvel que já não se encontrava na titularidade do executado, porquanto este doara o seu ¼ indiviso à A., sua filha - só pode ser subsumida ao instituto do enriquecimento sem causa, com a consequente atribuição da competência residual a um tribunal judicial (art.º 80º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), no caso a instância local cível do Barreiro e Moita.
O Réu, por seu lado, entende que tais factos se reconduzem à eventual responsabilidade civil extracontratual do Estado, geradora do dever de indemnizar, competindo a decisão do pleito a um tribunal administrativo nos termos da alínea g) do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O tribunal recorrido reconduziu os eventos, em abstracto, a uma questão a resolver em sede de responsabilidade civil extracontratual, concluindo pela competência do Tribunal Administrativo de Círculo de Almada.
*
A decisão do presente recurso exige que se tenha presente que as partes alegam os factos que consideram pertinentes, mas o tribunal é sempre livre na aplicação do direito; e que a via preconizada pela recorrente assenta numa fonte de obrigações dotada duma particularidade que a distingue das demais: a sua natureza subsidiária, expressamente consagrada no art.º 474º do Código Civil.

Esta particularidade condiciona o conhecimento do enriquecimento sem causa pelos tribunais, no sentido de que só se pode recorrer a este instituto quando a lei não faculta ao empobrecido outro meio de reacção, estando assim vedado quando a parte tem à sua disposição outros institutos; ou, como se refere em acórdão do STJ de 02-12-2014 (processo n.º 287531/09.9YIPRT.P1.S1 da 1.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt) “a subsidiariedade da obrigação de restituição, por enriquecimento sem causa, pressupõe que a lei não faculte ao empobrecido algum outro meio específico de desfazer a deslocação patrimonial, ou seja, a não exclusividade do meio do instituto do enriquecimento sem causa”.

Trata-se de assunto em que a interpretação da lei não deixa margem para dúvidas acerca do significado da subsidiariedade, quer na jurisprudência quer na doutrina, o que retira qualquer viabilidade à interpretação restritiva preconizada pela recorrente na conclusão 29.

O tribunal recorrido apoiou-se precisamente no carácter subsidiário desta fonte de obrigações e procurou demonstrar que se verificava a ressalva do art.º 474º: o ressarcimento por via indemnizatória, com fundamento na responsabilidade civil extracontratual do Estado.

Pronunciou-se de forma esclarecida, completa e convincente, nos seguintes termos:

Voltando ao caso sob análise, dúvidas não existirão que a relação administrativa fiscal que se estabeleceu em sede de execução entre o executado B…, não derivou da formulação de qualquer contrato, mas de uma dívida fiscal perante a AT (não pagamento de imposto), suscitando assim uma atuação judicial de modo a obter a sua cobrança coerciva.
Nesta precisa atuação, a ilegalidade da liquidação de imposto (obtido de modo coercivo através da execução) resultará da violação das normas e princípios que conformam a relação jurídica tributária subjacente ao imposto liquidado.
Com efeito, a relação jurídica tributária, também designada por relação jurídica fiscal ou por relação jurídica de imposto, reconduz-se à relação, regulada pelo Direito, existente entre “o Estado ou outro ente público que tem o direito de exigir, a título de imposto (ou sua cobrança coerciva), uma certa quantia, a um sujeito dotado de capacidade contributiva” in “Campos, Diogo Leite e Campos, Mónica Horta - Direito Tributário pág. 261”.
Nestes termos, aquando da liquidação de imposto, exige-se à Administração Tributária o estrito cumprimento da lei, sob pena de violação quer das normas conformadoras da relação jurídica tributária em causa, quer, em última análise, do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
Constata-se, portanto, que todos os danos decorrentes de atos de liquidação ou cobrança coerciva de imposto praticados pela Administração Tributária, que não sejam especificamente ressarcíveis ao abrigo dos artigos 43.º e 53.º da LGT, serão necessariamente exigíveis ao abrigo do regime geral da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas públicas, em virtude da imposição constitucional consagrada no artigo 22.º da CRP e através do regime da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública, ao qual se aplica o RRCEE (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008 de 17/07).
A situação de ter ser agredido património de outrem na cobrança coerciva da dívida fiscal, não tem potencialidade de mudar as características da responsabilidade subjacente ao ato.
Na verdade (e com todo o respeito por diferente entendimento), a AT pugnou pela cobrança de uma dívida que lhe era lícito obter em execução fiscal, só que ao atuar (hipoteticamente) não o fez com a diligência devida, causando assim um dano no património de outrem (a Autora) que (em abstrato) não tinha qualquer responsabilidade no pagamento dessa dívida.
Continuando com o devido respeito por opinião contrária, parece-nos evidente o ato ilícito (captação coerciva de um rendimento que não poderia encontra-se afeto ao pagamento da dívida) que neste enfoque é praticado pelo exequente (AT), que assim o levará a incorrer perante esse terceiro nos parâmetros da responsabilidade civil extracontratual (por prática de facto ilícito).

Perante uma decisão judicial desfavorável e devidamente fundamentada, demonstrativa da plena viabilidade dum pedido de indemnização fundado na responsabilidade extracontratual, o sucesso da tese da recorrente passava por demonstrar e convencer, em sede de alegações de recurso, de que não dispunha de outro meio para fazer valer o seu direito que não fosse o instituto do enriquecimento sem causa, “desmontando” a argumentação transcrita por forma a excluir de forma concludente a hipótese de ressarcimento por via indemnizatória.

Tentou fazê-lo na conclusão 26ª (em que resume, sem perda de conteúdo útil, o que exarara no corpo das alegações), ao enunciar como 4º requisito para o enriquecimento sem causa aquele que é o cerne da questão, o seu carácter subsidiário: “que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído”.

Como argumento a seu favor utilizou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, proferida no processo n.º 391/11.8BEALM, que considerara extinto o seu direito por caducidade.

Deve-se questionar, porém, que direito é que aí foi julgado extinto.

A leitura dessa sentença, reproduzida a fls. 25 destes autos, não deixa dúvidas de que se tratava do direito de reagir contra a penhora do crédito de rendas, através de embargos de terceiro, que caducou por terem sido deduzidos depois de ultrapassado o prazo legal de 30 dias.

A conclusão, a nosso ver inevitável, é de que se extinguiu um direito de cariz meramente processual, permanecendo intocados os direitos substantivos ao ressarcimento do prejuízo resultante da penhora (na perspectiva do recorrido e do tribunal de primeira instância) ou à restituição da totalidade da importância indevidamente penhorada (na perspectiva da recorrente).

Para a procedência da apelação era essencial a verificação do 4º requisito enunciado pela recorrente ou, se quisermos retomar a expressão empregue no sumário do acórdão atrás transcrito, a exclusividade do instituto como meio decisório do caso concreto; mas, com o devido respeito, o argumento utilizado não foi apto a contrariar e deixou intocada a argumentação desenvolvida pelo tribunal recorrido, que se nos afigura a correcta.

Importa ainda salientar que a atribuição de competência a um tribunal administrativo não é de forma alguma limitativa do exercício de direitos, legais ou constitucionais, por parte da autora.

Do art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19-02) consta o elenco dos litígios que podem ser objecto da apreciação dos tribunais administrativos e fiscais mas, uma vez fixada a sua competência, não há qualquer preceito legal que afaste a possibilidade do enquadramento jurídico que o caso concreto justifique, bem pelo contrário, como deixa antever a utilização do vocábulo “nomeadamente”.

O que esta norma não permite é a atribuição de competência àqueles tribunais com fundamento, à partida, no enriquecimento sem causa; mas não veda o seu conhecimento, a título subsidiário, se soçobrar o pedido fundado em qualquer das alíneas do n.º 1 do art.º 4º, desde que estejam alegados factos que permitam aquilatar da verificação dos seus requisitos legais.

Tanto assim é que a jurisprudência dos tribunais administrativos versa frequentemente sobre esta fonte de obrigações, conforme permite constatar a consulta da base de dados do IGFEJ, disponível em www.dgsi.pt, designadamente dos seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 10-07-2014 (questão do início do prazo de prescrição da obrigação de indemnizar emergente do enriquecimento sem causa), processo n.º 0591/14; de 17-04-2013, processo n.º 0235/13; 14-07-2008, processo n.º 0386/07; de 04-04-2006, processo n.º 0626/05; 01-03-2005, processo n.º 0923/04; e de 22-04-2004, processo n.º 062/04; 22-09-1999, processo n.º 023280.

Ou seja, enquanto na presente acção a A. só poderia obter vencimento através do enriquecimento sem causa, num tribunal administrativo teria à sua disposição a via da responsabilidade civil extracontratual do Estado e, se não resultasse, ainda teria subsidiariamente ao seu dispor o enriquecimento sem causa.
Conclui-se, assim, que não merece censura a sentença proferida em 1.ª instância atribuindo competência ao Tribunal Administrativo de Círculo de Almada.

III – Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 3 de Dezembro de 2015
                                                                      

Nuno Sampaio (relator)                
Maria Teresa Pardal
Carlos Marinho