INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
CRÉDITO LITIGIOSO
Sumário

O titular de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu devedor, ex vi art. 20/1 CIRE;
A legitimidade em questão não se confunde com a questão de mérito relativa à existência ou inexistência do crédito invocado.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.



I-Relatório:



1. “Massa Insolvente Adlis – Projectos e Construções, Lda.”, representada pelo administrador judicial, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 20.º e 25.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pedir a declaração de insolvência de Carlos Fernando Pedrosa Fernandes, alegando para tanto, e, em síntese, que:

O requerido foi sócio gerente da sociedade Adlis – Projectos e Construções, Lda., desde a sua constituição até à sua insolvência. Nessa qualidade, pagou despesas e dívidas próprias utilizando fundos da sociedade, desta forma, pondo em causa a viabilidade da empresa.
Em consequência desta atuação, em 2008, o requerido devia à sociedade EUR 3.086.603,61. Para pagamento desta dívida, o requerido prometeu vender à sociedade determinados imóveis. Contudo, não só não honrou a sua promessa, como, pelo contrário, acabou por celebrar escrituras de compra e venda dos prédios prometidos vender à sociedade com terceiras pessoas.
O requerido deve à requerente a quantia de EUR 3.086.603,03, cujo pagamento esta reclamou na acção judicial que instaurou contra o requerido e que se encontra pendente.
Sucede que o requerido tem outros credores e não dispõe de património próprio suficiente para honrar os seus compromissos, pelo que, neste contexto, deve ser declarado insolvente.

2. Foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o requerimento inicial.

3. Inconformada com esta decisão, dela apelou a requerente e, em conclusão, disse:

1.A Requerente instaurou ação declarativa de condenação contra o Requerido, pedindo o pagamento de EUR 3 086 603 03 com fundamento em responsabilidade pré-contratual e enriquecimento sem causa, a correr termos na Instância Central de Loures.
2.O Requerido citado para a ação identificada no número anterior não contestou;
3.A Requerente /Recorrente pediu na referida ação a realização da perícia a fim de se confirmar nos supra referidos autos a exata dimensão do seu crédito;
4.Entretanto, a Requerente/Recorrente veio requerer a insolvência do devedor/Requerido;
5.A Mª Juíza decidiu pelo indeferimento liminar do requerimento inicial porquanto sendo o crédito, que está na génese do pedido de insolvência, ilíquido é um crédito controvertido e portanto ainda não exigível;
6.Sendo que só tem legitimidade substantiva os credores de créditos vencidos e exigíveis;
7.Confundindo a legitimidade substantiva com a legitimidade ad causam;
8.A questão de saber se a Requerente/Recorrente é ou não credora do Requerido, prende-se com a questão de mérito e não com a questão da legitimidade processual/ad causam para requerer o pedido;
9.Entendimento diverso acarretaria um tratamento discriminatório em desfavor do titular de um crédito litigioso relativamente aos credores condicionais sem qualquer razão que o justificasse;
10.Além do mais este entendimento traduz desprezo por um dos princípios enformadores do Processo Civil e também do próprio processo de insolvência, o princípio da auto suficiência do processo de insolvência, quer quanto à tutela aparente do direito, quer na sua competência para o conhecimento de todas as questões que nele se levantem;
11.Negar legitimidade ao titular de crédito litigioso representaria um grave afunilar do acesso à tutela jurisdicional dos direitos de crédito prosseguido pelo processo de insolvência.
12.Pelo que se conclui que a Requerida/recorrente não é sequer titular de um crédito litigioso pois não foi sequer contestado.
13.Ainda que se entenda tratar-se de um crédito controvertido sempre será de concluir que o titular do crédito tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu devedor de acordo com os arts. 3.º e 20.º/1 do CIRE;
14.A legitimidade é uma questão processual /ad causam e não se confunde com a questão de mérito correspondente à existência do crédito.
Pelo exposto, deve julgar-se procedente a presente apelação e consequentemente, revogar-se a decisão de que ora se recorre e determinar-se a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos ulteriores e regulares termos do processo de insolvência, por ser de inteira, Justiça!

4.Cumpre apreciar e decidir se a requerente detém legitimidade para requerer a insolvência do requerido, sendo os factos a considerar na decisão deste recurso os que constam do relatório.

5.Vejamos, pois.
Segundo estabelece o art. 20º, nº1 do CIRE, a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos factos elencados nas respectivas alíneas.

Na falta de concreta previsão no texto legal, tem sido discutido se os titulares de créditos litigiosos podem instaurar acção de insolvência contra o pretenso devedor.

Sobre esta matéria, escreve Menezes Leitão:[1]

"A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, e muito menos que o credor possua título executivo, devendo o credor justificar na petição inicial a natureza, origem e montante do crédito (art. 25.º/1), tendo que fazer a prova do mesmo (art. 25.º/2). A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente."

Também João Labareda[2] considera não haver motivo substantivo para excluir liminarmente a legitimidade ao credor litigioso, para promover acção de insolvência.

No mesmo sentido, se pronuncia Catarina Serra[3], dizendo:

"Em ponto algum do regime se exige que, para pedir a declaração de insolvência, o credor seja titular de um crédito lesado ou sequer vencido" e que "um dos efeitos da declaração de falência é tornar exigíveis todos os créditos. Os credores têm, no processo de insolvência, dois poderes de acção judicial fundamentais: o poder de propor a abertura do processo/requerer a declaração de insolvência (cfr. art. 20º, nº 1, do CIRE) e, uma vez aberto o processo/ declarada a insolvência, o poder de reclamar o(s) seu(s) crédito(s) (cfr. art. 128º do CIRE. Quanto ao primeiro poder (poder de propor a abertura do processo/requerer a declaração de insolvência), deve observar-se que ele é independente da natureza ou da qualidade do crédito. Isto significa que qualquer credor, comercial ou civil, comum ou preferente, pode exercê-lo, devendo entender-se ainda, embora a norma não o refira expressamente, que tão-pouco são relevantes o objeto (prestação de coisa ou prestação de facto) e o montante do crédito.”

Na jurisprudência, por sua vez, afigura-se-nos consolidada a orientação que reconhece legitimidade aos titulares de créditos litigiosos.[4]

Aliás, como se escreve no acórdão do STJ de 29/3/2012; “o entendimento contrário traduziria um tratamento discriminatório em desfavor do titular de crédito litigioso relativamente aos credores condicionais (mesmo tendo em conta as especificidades da correspondente previsão legal), sem que qualquer atendível razão material o justificasse. Com efeito, em tal tese, o titular de crédito litigioso seria sempre desprovido de legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu invocado devedor apenas em consequência da verificada litigiosidade do crédito cuja existência real não se poderia ter por excluída, enquanto que ao titular de um crédito sujeito a condição suspensiva que acabasse por não se verificar ou ao titular de um crédito sujeito a condição resolutiva que viesse a verificar-se (pese, embora, o constante do art. 94º) assistiria, sempre, tal legitimidade. O que, além do mais, violaria o princípio da "par conditio creditorum" (cfr. art. 194º), conquanto na antecâmara do processo de insolvência.”

Pela nossa parte, não vemos quaisquer razões que nos levam a afastar-nos da tese dominante, pelo que, sufragando a mesma orientação, entendemos dever atribuir-se à requerente, enquanto titular de um crédito litigioso, legitimidade para requerer a declaração de insolvência do respectivo devedor, devendo, portanto, os autos prosseguir os seus termos.

6. Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e em revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 12/01/2016



Maria do Rosário Morgado
Rosa Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro



[1] Direito da Insolvência, 5.ª ed., p. 124.
[2]CIRE anotado, 3ª edição, pag. 198-199.
[3]A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, p. 230 e ss.
[4]Cf. entre outros, os ac. do STJ de 29/3/2012, proferido no proc. 1024/10.5TYVNG.P1.S1 e, mais recentemente, os acs. da Rel. Porto de 13 Mar. 2014, Processo 219/13 e da Rel. de Lisboa de 16 Jan. 2014, Processo 1499/13, todos disponíveis em www.itij.pt.