USUCAPIÃO
TRANSACÇÃO JUDICIAL
HOMOLOGAÇÃO
Sumário

Não deve ser homologada uma transação judicial em que as partes, por sua única e exclusiva vontade, subtraem à apreciação jurisdicional os requisitos da usucapião, obtendo validação judicial quanto à aquisição ex novo de determinadas parcelas de terreno, eliminando, assim, por via indireta, o acatamento de condicionalismos legais e administrativos que impediam a divisibilidade do prédio.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.



IRELATÓRIO:



WW.-Sociedade de Construção e Turismo, S.A. (WW.), YY.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. (YY.) e ZZ. RR.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. (ZZ. RR.), em 07/10/2011, intentaram ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo ordinário, contra Quinta da AA., S.G.P.S., S.A. (QMSGPS), formulando os seguintes pedidos:

a) No referente ao pedido da Autora WW.:

a)1)-reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse – 16/09/1985 -, sobre as parcelas “A-Um” e “A-Dois”, bem como sobre o prédio urbano e respetivo logradouro situado na parcela “A-Dois”, com a identificação física e matricial e registral referida no art. 72.º da p.i., com exclusão do estabelecimento de restauração instalado no citado prédio e que gira sob o nome “Restaurante Monte BB.”;
a)2)- inerente e simultânea aquisição de legitimidade para praticar atos de disposição e decorrente revalidação das cedências de parte das parcelas referidas, à Câmara Municipal de Cascais por escritura de 01/07/2006, na hipótese de se entenderem serem nulas por falta de legitimidade da cedente;
a)3)- correspondente alteração da composição física, situação matricial e registral dessas parcelas, nos termos alegados nos arts. 78.º da p.i. e assinalada nas plantas juntas àquela escritura e na junta como doc. n.º 29;

b) No referente ao pedido da Autora YY.:

- reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do inicio da posse - 16/09/1985 -, sobre as parcelas “B-Um” e “B-Dois”, bem como sobre o prédio urbano e respetivo logradouro situado na parcela “B-Dois”, com a identificação física e matricial e registral referida no art. 73.º da p.i., com exclusão do estabelecimento de restauração instalado no citado prédio e que gira sob o nome “Restaurante Y. do G.” (anteriormente e na vigência das canceladas licenças de uso privativo, denominado “Y. Lagosteiras”);

c) No referente ao pedido da Autora ZZ. RR.:

- reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse - 16/09/1985 -, sobre as parcelas “D-Um” e “D-Dois”, bem como sobre o prédio urbano e respetivo logradouro situado na parcela “D-Um”, com a identificação física e matricial e registral referida no art. 74.º da p.i., com exclusão do estabelecimento de restauração instalado no citado prédio e que gira sob o nome “Restaurante R. V.”, atualmente encerrado para remodelação; e

d) No referente a todos os pedidos:

-reconhecida a extinção da relação de compropriedade, reconstituída em consequência do julgado no Ac. STJ, de 16/03/2010, e suas implicações jurídicas nas esferas dos consortes; e

e) a Ré condenada assim ver julgado:

Na réplica, as autoras YY. e ZZ. RR. ampliaram o pedido (fls. 195), o que foi admitido por despacho de fls. 217.

A ampliação do pedido foi formulada nos seguintes termos:

Nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre a ré QMSGPS e Quinta da AA., Imobiliária, S.A., celebrado em 29/12/2006, referente às parcelas “C-UM” e “C-Dois”, bem como o cancelamento do registo de aquisição.

No decurso da audiência preliminar realizada em 25/01/2013, e por iniciativa do tribunal, com vista à assegurar a legitimidade da ré, foram as autoras convidadas a requerer a intervenção principal provocada da Quinta da AA. Imobiliária, S.A, atualmente denominada Quinta da AA., Serviços, S.A. (QMS) e Quinta da AA.-Restauração e Serviços, S.A. (QMRS), o que foi requerido e diferido, tendo as chamadas sido citadas (fls. 223 e 224), oferecendo o merecimento dos autos (fls. 227).

Para fundamentarem a sua pretensão, as autoras alegaram, em suma, que, tal como a ré (na altura denominada Euronova – Sociedade Agro-Turística, S.A.), foram criadas na sequência da cisão e dissolução da sociedade TurBB.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. (TURBB.), ocorrida por escritura pública de 19/11/1976, tendo o ativo e o passivo desta última sido transmitido para as mesmas, aí se incluindo o prédio rústico denominado Quinta da AA..

Todavia, nessa data, encontrava-se em litígio se a denominada “orla marítima” da Quinta da AA. pertencia ou não ao domínio público, não tendo sido contemplada, por essa razão, na repartição do património acima referido, embora tivesse ficado a constar que “No activo existe também um crédito litigioso sobre o Estado e outros, correspondente à orla marítima, o qual é dividido em 4 partes iguais…”

Por sentença transitada em julgado em 14/11/1979, foi reconhecido que a orla BB.ítima da Quinta da AA. era propriedade privada da autora da ação (a referida TURBB., então denominada Sociedade Comercial Financeira, Ld.ª).

A referida orla BB.ítima foi desanexada do prédio-mãe “Quinta da AA.” (atualmente descrito sob o n.º 2085/200187) e deu origem ao prédio rústico descrito sob o n.º 8176/040800, da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais, inscrito, em comum e parte iguais, a favor das quatro referidas sociedades.

Em 16 de Setembro de 1985, as autoras e ré celebraram uma “PROMESSA DE DIVISÃO DE COISA COMUM” (doc. fls. 77-88), onde acordaram e prometeram dividir em parcelas (nos termos abaixo referidos) o prédio rústico orla marítima da Quinta da AA., aí declarando que: “Na pressuposição de a prometida divisão de coisa comum ser efectuada, estas sociedades concordam em meter desde já marcos com a sua denominação nas extremas das parcelas que lhe serão adjudicadas e a tomar imediatamente posse das mesmas.”

Em 29/10/2002, no 1.º Cartório Notarial de Cascais, autoras e ré celebraram uma escritura pública de divisão de coisa comum mediante a qual o imóvel supra referido foi dividido em quatro parcelas, tendo estas sido adjudicadas, em propriedade singular, às várias sociedades outorgantes, da seguinte forma:

-À WW.-Sociedade de Construção e Turismo, S.A. a fração “A”, constituída pelas parcelas “A-Um” e “A-Dois”;
-À YY.-YY.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. a fração “B” constituída pelas parcelas “B-Um”, “B-Dois” e “B-Três”;
-À Quinta da Quinta da AA., S.G.P.S., S.A. a fração “C”, constituída pelas parcelas “C-Um” e “C-Dois”;
-À ZZ. RR.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. a fração “D”, constituída pelas parcelas “D-Um2 e “D-Dois”.

Porém, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 16/03/2010, proferido no âmbito do processo n.º 6457/05.6 TBCSC, foi declarada a nulidade da aludida escritura de divisão de coisa comum e ordenado o cancelamento de todos os registos efetuados com base nessa escritura, por a mesma violar normas de ordem pública que proíbem loteamentos ilegais, previstas no Decreto-Lei n.º 555/99, de 12/12, na redação pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 04 de Junho (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE).

Não obstante, nesta ação, alegaram as autoras que pretendem pôr termo à referida indivisão, por se encontrarem preenchidos os requisitos da aquisição presuntiva, pedindo que lhes seja reconhecido a constituição da propriedade singular sobre cada uma das parcelas da coisa dividida.

Invocam, para o efeito, a posse, em seu entender pública e de boa-fé, que, desde 16/09/1985, que, por si ou por intermédio de terceiros, têm exercido sobre as parcelas adjudicadas a cada uma delas.

Mais alegaram que em relação às parcelas “A-Um” e “A-Dois”, a autora WW. cedeu parte das mesmas à Câmara Municipal de Cascais, por escritura pública datada de 01/06/2006, para serem destinadas a pedovia e equipamentos de apoio, tendo sido desanexadas e inscritas a favor da Câmara.

Nos artigos 73.º e seguintes da pi. descreveram a identificação física, matricial e registral de cada uma das parcelas e as descrições a que deram origem.

Contestou a ré, excecionando a sua legitimidade por não ter interesse em contradizer (vendeu as parcelas “C-Um” e C-Dois” a Quinta da AA., Imobiliária, S.A.), impugnando ademais os fundamentos da ação por não preenchimentos dos requisitos da usucapião, pedindo, a final, a absolvição da instância ou, em alternativa, que a ação seja julgada improcedente.

Foi apresentada réplica pela autora WW. (fls. 177-183) e pela autora YY. (fls. 185-199), tendo sido ampliado o pedido, como supra referido.

Foi apresentada tréplica (fls. 201-202).

Seguiu-se a realização da audiência preliminar e a elaboração de despacho saneador, que julgou as partes legítimas, atenta a regularização da instância por via da intervenção principal provocada, fixou o objeto do litígio e elencou os temas da prova (cfr. fls. 232).

Por requerimento datado de 29/01/2015, autoras, ré e intervenientes fizeram chegar aos autos a “TRANSACÇÃO” que consta de fls. 383 a 387, que foi homologada por sentença datada de 30/01/2015 (fls. 393).

A referida transação tem o seguinte teor (integralmente transcrito):

TRANSACÇÃO.

1ª-WW.-Sociedade de Construções e Turismo S.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matricula e pessoa colectiva 500..., com sede na Casa Nº..., Quinta da AA., 2750-424 Cascais (1ª A.)
2ª-YY.-Sociedade de Empreendimentos Turisticos S.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 500..., com sede Rua das ..., Nº..., Quinta da AA., 2750-006 Cascais (2ª A.)
3ª-ZZ. RR.-Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A„ matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 500..., com sede na Rua ..., nº..., 2° Dto., 1250-068 Lisboa (3ª A)
4ª-Quinta da AA., S.G.P.S., S.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 500..., com sede na Casa ..., Quinta da AA., 2750-004 Cascais (Ré ou QMSGPS)
5ª-Quinta da AA. - Restauração e Serviços, S.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 504..., com sede na Casa nº..., Quinta da AA., 2750-004 Cascais (la Interveniente ou QMRS)
-Quinta da AA.-Serviços, S.A. (anteriormente denominada Quinta da AA. - Imobiliária, SA), matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 504..., com sede na Casa nº..., Quinta da AA., 2750-004 Cascais, doravante designada 2ª Interveniente ou QMS)

1.-Tendo em vista,
a aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade, singular e exclusivo, sobre as parcelas de terreno provenientes da promessa de divisão do prédio comum, designadas por "A-UM" e "A-DOIS", "B-UM" e "8-Dois", "C-UM" e "C-Dois", "D-Um" e "D-Dois", titulada pela escritura outorgada em 16 de Setembro de 1985, e da divisão concretizada pela escritura de 29 de Outubro de 2002, aquela repristinada por efeito da declaração de nulidade da divisão decorrente do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de BB.ço de 2010,

2.-Considerando, como as AA. e a R. sempre têm reconhecido, que;

2.1.-por força da outorga da referida escritura pública de promessa de divisão de coisa comum, de 16 de Setembro de 1985, as aqui Autoras e Ré, individualmente e de imediato, toBB.am posse das respectivas parcelas de terreno, conforme artigo 72º da Contestação-­Reconvenção apresentada em 28 de Novembro de 2006 na acção de anulação da escritura de divisão de coisa comum proposta pelo Ministério Público contra as ora Autoras e Ré e distribuída ao ...° Juízo Cível da CoBB.ca de Cascais que correu termos sob o n.º 6457/05.6TBCSC;
2.1.-a divisão do prédio descrito na 1a Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n° .../0..., titulada pela escritura pública de 29 de Outubro de 2002 apenas configurou a formalização de uma realidade que, há muitos anos, estava materializada correspondente ao direito de propriedade singular, acompanhada da intenção de actuação enquanto propriedade singular;
2.2.-as Rés naquela acção, ora Autoras e Ré, invocaram a usucapião como modo de manutenção da situação de propriedade singular, caso procedesse a tese da nulidade do negócio de divisão de coisa comum, como veio a proceder;
2.3.-estando o terreno, há dezenas de anos, após a celebração do contrato-promessa de 16 de Setembro de 1985, materialmente dividido entre as ora Autoras e Ré, qualquer uma delas podia, por força da usucapião, obter a divisão da coisa, à BB.gem do alvará de loteamento ou de operação de destaque, decorrido o respectivo prazo;

3.- Considerando, ainda, que a 1ª A. (WW.) e a Ré (QMSGPS), alienaram onerosamente a terceiros - respectivamente, ao Município de Cascais, parcialmente, e à 2a Interveniente (QMS), totalmente -, as respectivas parcelas de terreno, materializadas em prédios autonomamente descritos e inscritos no registo e na matriz predial, a saber:
a) a WW., parte dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nºs 0.../1... (parcela "A-Um") e 0.../1... (parcela "A-Dois");
b) a QMSGPS, os prédios descritos na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nos 0.../0... (parcela "C-Um") e 0.../0... (parcela "C-Dois"),
e que, por sua vez, a 2ª interveniente (QMS) vendeu à 1ª Interveniente (QMRS), o prédio descrito sob a ficha nº 0.../0... (Parcela "C-Um").

4.-Autoras, Ré e Intervenientes concordam em pôr termo à presente acção nas seguintes condições:

4.1.-Autoras, Ré e Intervenientes acordam em alterar o pedido formulado na Petição Inicial, ao abrigo do disposto no art. 264° do CPC, e tendo em consideração a causa de pedir feita constar pelas Autoras na P.I. quanto aos actos de posse correspondentes ao direito de propriedade, e respectivas datas, praticados quanto às parcelas de terreno respectivas ("A-UM", "A-Dois", "B-Um", "B-Dois", "C-UM", "C-Dois", "D-Um" e "D-Dois"), designadamente por força do alegado no artigo 1000 da P.I., que refere expressamente actos de posse praticados pela Ré relativamente às parcelas "C-UM" e "C-Dois", alteração do pedido que se formaliza nos termos adiante enunciados nos nos 4.3., pontos iv., v, e vi..
4.2.-A Ré (QMSGPS) desiste da sua excepcionada "ilegitimidade parcial";
4.3.-A Ré (QMSGPS) e as Intervenientes confessam o pedido nos precisos termos em que as Autoras o formularam e, aquelas e estas, reconhecem reciprocamente o seguinte:

i. no referente à WW. - Sociedade de Construções e Turismo, S.A. (1ª A.):
a) reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse - 16 de Setembro de 1985 -, sobre as designadas parcelas "A-Um" e "A-Dois", descritas na la Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nºs 0.../1... (parcela "A-Um") e 0.../1... (parcela "A-Dois"), bem corno sobre o prédio urbano ali existente e respectivo logradouro situado na parcela "A-Dois", hoje com a área coberta de 450m2 e um logradouro de 7.000m2 e inscrito no artigo nº... da matriz predial urbana da freguesia de Cascais;
b) inerente e simultânea aquisição de legitimidade para praticar actos de disposição e decorrente revalidação das cedências de parte das mencionadas parcelas feitas ao Município de Cascais por escritura de 1 de Junho de 2006;
c) correspondente alteração da composição física, situação matricial e registrai dessas parcelas, assinalada nas plantas juntas à mencionada escritura de 1 de Junho de 2006 e na planta que constitui o Doc. 29 nos presentes autos;

ii. no referente à YY. - Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. (2ª A.):
reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse - 16 de Setembro de 1985 -, sobre as designadas parcelas "B-Um" e "B-Dois", descritas na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nos 08810/021230 (parcela "B-Um") e 08811/021230 (parcela "B-Dois"), bem como sobre o prédio urbano ali existente e respectivo logradouro situado na parcela "B-Dois", hoje com a área coberta de 457m2 e um logradouro de 1,921m2 e inscrito no artigo 12,503 da matriz predial urbana da freguesia de Cascais;

iii. no referente à ZZ. RR. - Sociedade de Empreendimentos Turísticos, S.A. (3ª A.):
reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse - 16 de Setembro de 1985 -, sobre as designadas parcelas "D-Um" e "D-Dois", descritas na lo Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nºs 0.../0... (parcela "D-Um") e 0.../0... (parcela "D-Dois"), bem como sobre o prédio urbano ali existente e respectivo logradouro situado na parcela "D-Um", hoje com a área coberta de 102m2 e um anexo com 16m2 e inscrito no artigo ... da matriz predial urbana da freguesia de Cascais;

iv. no referente à Quinta da AA., S.G.P.S., S.A. (R.):
a) reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por usucapião, com eficácia a partir do início da posse - 16 de Setembro de 1985 -, sobre as designadas parcelas "C-Um" e "C-Dois", descritas na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob as fichas nºs 0.../0... (parcela "C-Um") e 0.../0... (parcela "C-Dois"), com tudo o que nelas se inclui;
b) inerente e simultânea aquisição de legitimidade para praticar actos de administração e disposição, incluindo as que se operaram a favor da 2ª Interveniente (QMS) e desta, no que respeita à parcela "C-Um", para a 1ª interveniente (QMRS), por escrituras de 29 de Dezembro de 2006 (outorgada no Cartório Notarial de Oeiras de Isabel BB.ia L.C.B. e lavrada a fls. 103-105v0 do Livro de Notas para Escritura Diversas n° 27), e de 21 de Junho de 2010 (outorgada perante o Notário Sr. Dr...., em Cascais e lavrada a fls. 89-90v0 do Livro de Notas para Escritura Diversas no 383);

v. no referente à Quinta da AA. - Restauração e Serviços, S.A. (1ª Interveniente):
reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por força da mencionada escritura de 21 de Junho de 2010, ou por usucapião, com eficácia a partir do início da posse da QMSGPS - 16 de Setembro de 1985 -, por acessão da posse, sobre a designada parcela "C-Um", descrita na ...ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n.º 0.../0... (parcela "C-Um"), com tudo o que nela se inclui;

vi. no referente à Quinta da AA. – Serviços, S.A. (2ª Interveniente):
reconhecido o seu direito de propriedade, singular e exclusivo, adquirido por força da escritura de 29 de Dezembro de 2006, ou por usucapião, com eficácia a partir do início da posse da QMSGPS - 16 de Setembro de 1985 -, por acessão na posse, sobre a designada parcela "C-Dois", descrita na ...ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n° 0.../0... (parcela "C-Dois"), com tudo o que nela se inclui.

4.3.-No referente a todos os pedidos:
reconhecida a extinção da relação de compropriedade entre as AA. e a R. sobre o prédio descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n° 0.../0..., relação esta reconstituída em consequência do julgado no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de BB.ço de 2010, e suas implicações na esfera jurídica dos consortes.

4.4.-As custas processuais e legais acréscimos eventualmente devidos a final serão suportados, pelas AA. e Ré, em partes iguais, 1/4 (um quarto) para cada uma delas, prescindindo reciprocamente de custas de parte e procuradoria.
Cascais, 27 de Janeiro de 2015.

O Ministério Público interpôs recurso de apelação, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1, alínea o), do EMP e 631.º, n.º 2 do CPC, que foi admitido por despacho de fls. 451.
As conclusões da apelação encontram-se infra transcritas.
Responderam as autoras ZZ. RR. e YY. conforme consta de fls. 411 a 425, bem como a autora WW. conforme consta de fls. 229 a 432.

Conclusões da apelação:

1. Pretendem as AA que o tribunal reconheça os respectivos direitos de propriedade, adquiridos por usucapião, com eficácia reportada a 16/09/1985, sobre as várias parcelas por si detidas no imóvel a que respeita a ficha n.0 1.../2010.09.16 da ...ª Conservatória do Registo Predial de Cascais.
2. Em 29/01/2015 foi requerida a homologação de um acordo de transacção, subscrito por todas as sociedades partes na presente acção, no qual, além do mais, as RR. confessam o pedido nos exactos termos em que as AA. o formularam e, entre si, reconhecem os respectivos direitos de propriedade sobre as várias parcelas por si detidas e, ainda, sobre os "prédios urbanos" aí existentes;
3. Bem como é reconhecida entre todas a "legitimidade para praticar actos de " alteração da composição física, situação
"alteração da composição física, situação matricial e registral dessas parcelas".
4. O referido acordo foi homologado por douta decisão proferida a fls. 393.
5. É desta decisão que, com o devido respeito que é muito, ora se recorre, porquanto, a transitar em julgado, ir-se-ia consolidar, juridicamente, um loteamento ilegal.
6. O acordo apresentado nos autos constitui uma clara fraude à lei porquanto resulta das cláusulas da transacção apresentada pelas várias partes da presente acção, que, além de se reconhecer a propriedade individual sobre as várias parcelas do prédio rústico a que respeita a ficha n.° 1.../2010.09.16 da ...ª Conservatória do Registo Predial de Cascais, se reconhece que no mesmo se encontram implantados três "prédios urbanos" bem como é reconhecida entre todas a "legitimidade para praticar actos de "alteração da composição física, situação matricial e registral dessas parcelas".
7. Ainda que não expressamente confessada, a intenção das partes é, assim, precisamente, proceder á divisão do prédio, alterar a sua natureza de rústica para mista e proceder à legalização das construções aí existentes.
8. Tais acções integram, na prática, uma operação de loteamento a qual, por carecer da necessária licença caBB.ária, que não foi obtida nem apresentada, é absolutamente ilegal e não pode ser sancionada judicialmente.
9. As regras que disciplinam as operações de loteamento visam interesses de ordem pública, a nível do urbanismo, ordenamento do território e da salubridade pública e, por isso, são de natureza imperativa.
10. Como se refere no douto Ac. da Rel. de Lisboa de 30/04/2002 "não é permitida a aquisição por usucapião de parcela de terreno de um prédio rústico ilicitamente loteado, por isso contrariar disposições legais imperativas".
11. Nestes termos, encontrava-se vedado às autoras bem como às rés, através da presente acção e por via de actuação concertada, pretender contornar a lei e alcançar, deste modo, um fim proibido, nos moldes enunciados, simulando um litígio e um conflito de interesses inexistente.
12. Resulta, assim, claro, que a presente acção não tem como suporte um conflito de interesses, pretendendo as partes atingir com ela uma finalidade diversa da função processual como meio de tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos.
13. E decorre do art.° 1249° do Código Civil que "as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos".
14. Nestes termos, a transacção apresentada nos presentes autos não devia ter sido homologada, por se encontrar ferida de nulidade (cf. Art.° 294° do Código Civil) pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que não homologue a transacção apresentada nos autos.
 
II- FUNDAMENTAÇÃO.

A- Objeto do Recurso.
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC 2013), a questão essencial a decidir é se estão reunidos os pressupostos para homologação da transação apresentada pelas partes.

B- De Facto
Os fatos e incidências processuais relevantes para a apreciação do recurso constam do antecedente Relatório.

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO.

A questão essencial a decidir é se estão preenchidos os pressupostos jurídicos para a homologação da transação.

O apelante opõe-se a que, por via da mesma, se consolide na ordem jurídica um loteamento ilegal na zona da orla BB.ítima da Quinta da BB.ina. Objetivo que tinha sido impedido pelo acórdão do STJ de 16/03/2010, quando decidiu que a divisão do imóvel violava o artigo 49.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 12/12, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 04/06, por no prédio existirem três construções e a lei proibir a divisão do prédio misto sem loteamento.

Acrescenta ainda o apelante que a divisão do prédio levada a ZZ. por escritura pública de 29/10/2002, anulada pelo STJ, tal como o acordo agora submetido a homologação, defrauda a lei, constituindo uma forma de contornar o decidido naquele aresto, visando as partes alcançar um fim proibido, simulando um litígio e um conflito inexistentes.

As recorridas defendem a validade da transação, assente na aquisição originária (usucapião) de cada uma das parcelas, já que, após a promessa celebrada em 16/09/1985, cessou a compropriedade que exerciam em comum, e cada uma das partes e em relação às respetivas parcelas, passou a exercer posse suscetível de conduzir à alegada aquisição presuntiva, singular e exclusiva.

Pelo que, no seu entender, quaisquer vícios anteriormente apontados à referida divisão da coisa comum deixaram de poder ser invocados.

Vejamos, então, se estão preenchidos os requisitos legais para homologar a transação.

O artigo 1248.º, n.º 1, do Código Civil define transação como “o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”, esclarecendo o n.º 2 do mesmo preceito que essas concessões “podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.

As partes, porém, conforme prescreve o artigo 1249.º do Código Civil “não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos.”

As partes não podem, pois, transigir sobre direitos indisponíveis, conforme também acentua o artigo 289.º, n.º 1, do CPC 2013 (“Não é permitida (…) transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”), cabendo às normas de direito substantivo determinar quais as situações jurídicas objetivamente indisponíveis, absoluta ou relativamente.[1]

Por sua vez, a ilicitude do objeto negocial relacionada com os limites objetivos da transação, reporta-se à idoneidade negocial da mesma, v.g., se é violadora da lei ou de preceitos legais de caráter imperativo (artigos 280.º, 281.º e 294.º do Código Civil).

No que concerne à operacionalização desta forma de auto composição do litígio, prescreve o artigo 283.º, n.º 2, do CPC, que é lícito às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa, tendo como efeito a modificação ou cessão da causa nos precisos termos em que se efetua a transação (artigo 284.º do CPC).

Realizada a transação em sede judicial, estipula o n.º 3 do artigo 290.º do CPC, que o juiz examina o seu objeto e a qualidade das partes que nela intervieram, verificando se a transação é válida, e, no caso afirmativo, assim, é declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos.

No caso vertente, as partes fizeram chegar aos autos os termos em que transacionaram, submetendo-os à apreciação do tribunal, que homologou a transação.

Analisados os termos da transação e feita uma leitura compreensiva dos articulados e dos documentos juntos aos autos, constata-se que em relação à qualidade das partes nenhuma questão se coloca, não estando em causa igualmente direitos indisponíveis, já que a causa de pedir e os pedidos formulados versam sobre direitos reais: reconhecimento do direito de propriedade, por via da usucapião, sobre determinadas parcelas de um imóvel rústico[2] (orla BB.ítima da Quinta da AA.) e declaração de nulidade da alienação de duas das parcelas (“C-Um” e “C-Dois”) pela ré à 2.ª interveniente QMS, que, por sua vez, vendeu uma delas (“C-UM”) à 2.ª interveniente QMRS.

A questão coloca-se apenas em relação ao objeto da transação.

Decorre dos termos da transação que acordaram reconhecer que, cada uma delas, autoras e ré, adquiriram, singular e exclusivamente, as parcelas que identificam, por usucapião, bem como o prédio urbano e logradouro existente nas parcelas “A-Dois”, “B-Dois” e “D-Um” (cfr. pontos i.a), ii e iii) da transação), daí decorrendo a validade e legalidade dos atos de disposição já praticados e que justificam a alteração da composição física, situação matricial e registral das parcelas (cfr. pontos i. b), c), iv. b), v. e vi. da transação).

Fizeram-no decidindo alterar o pedido ao abrigo do artigo 264.º do CPC, para assim estenderem os efeitos da transação às parcelas “D-Um” e “D-Dois”, que na divisão material do prédio realizada na promessa de 16/9/1985 foram adjudicadas à ré.

Já em relação à ampliação do pedido formulada na réplica, não se pronunciaram as partes expressamente sobre o destino processual do mesmo. Contudo, como acordaram no ponto iv. a) e b) reconhecer e legitiBB. os atos de administração e alineação levados a ZZ. pela ré em relação às ditas parcelas, reconhecendo, ainda, o direito de propriedade das intervenientes em relação às mesmas, por via do usucapião ou da acessão da posse (cfr. pontos v. e v. da transação), entende-se que a alteração do pedido inclui implicitamente a desistência do pedido ampliado.

Por conseguinte, a questão a decidir é se a transação é nula por as partes pretenderem consolidar na ordem jurídica um loteamento ilegal, utilizando este meio processual para defraudarem a lei e obterem um resultante jurídico já antes negado pelo Supremo Tribunal de Justiça quando considerou nula a escritura de divisão de coisa comum.

Importa, em primeiro lugar, afastar o entendimento sintetizado pelo recorrente na conclusão de recurso sob o n.º 10, quando ali se refere que não é permitida a aquisição por usucapião de parcela de terreno de um prédio ilicitamente loteado, por isso contrariar disposições legais imperativas.

Não suscita dúvidas que os consortes têm o direito potestativo de porem termo à compropriedade (indivisão) através da usucapião, desde que aleguem e provem que exerceram posse sobre partes determinadas da parte comum, em nome próprio, invertendo o título de posse, de forma pública e pacífica, durante o tempo previsto na lei (artigos 1406.º, n.º 2, 1258.º a 1262.º do Código Civil).[3]

Uma vez invocada, a usucapião atua retroativamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse (artigos 1288.º e 1317.º, alínea c), do Código Civil).

Havendo composse, a usucapião operada por um dos compossuidores quanto ao objeto da posse comum, aproveita aos demais (artigo 1291.º do Código Civil).

Por outro lado, tem sido entendimento seguido de forma bastante expressiva pela jurisprudência, conforme foi sobejamente referenciado pelas apeladas nas contra-alegações, que não existem obstáculos legais a que a usucapião sirva para legitiBB. uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos, mormente no que respeita à violação das regras imperativas relativas ao fracionamento de prédios e respetivo loteamento.[4]

Ainda que o loteamento seja nulo, a não ser que exista norma que obste à aquisição presuntiva, a aquisição originária (ex novo) do direito de propriedade sobre as parcelas fracionadas, não afeta os direitos adquiridos por usucapião.[5]

Temos, contudo, que considerar que a jurisprudência acima citada se reporta sempre a situações em que as partes levaram o litígio até à fase da decisão judicial e não a situações em que por via da transação puseram termo ao litígio.

Compreende-se que, estando probatoriamente demonstrado em juízo os pressupostos da aquisição originária, o que “passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse”, havendo que reconhecer que o “sistema jurídico atendendo a interesses de natureza social e económica que tem por relevantes, admit[a] que certas situações de facto obtenham tutela jurídica e possa dar lugar ao reconhecimento de direitos.”[6]

Já assim não será quando está em causa obter esse efeito apenas por via da vontade das partes plasmada numa transação.

Ainda que o traço caraterizador da transação judicial seja a sua finalidade e o seu efeito principal a modificação ou extinção de uma situação processual, como reflexo da autonomia das partes em processo civil[7], nem sempre a vontade das partes pode relevar para esse efeito.

Como reconhecido no acórdão da Relação de Coimbra de 18/11/2008[8], “a vontade das partes não basta sempre para superar sem mais na transacção certos óbices de natureza legal. É o que se passa desde logo com as normas referentes à urbanização e edificação com sede presentemente no DL 555/99 de 16 de Dezembro e também com as normas de fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos a que se reportam os artigos 1376º ss do Código civil e DLs 103/90 de 22 de BB.ço e 384/88, de 25 de Outubro.”

Na verdade, se não é facultado às partes, por via convencional ou judicial, procederem à divisão de coisa comum por existirem condicionalismos administrativos e legais em matéria de urbanismo e de ordenamento do território, que obstam à divisão/fracionamento do imóvel, também não se pode homologar uma transação em que as partes, a pretexto de se terem entendido sobre os pressupostos da usucapião, obtêm uma tutela judicial que lhes estava vedada, obtendo, dessa forma, o fracionamento do imóvel sem acatarem as referidas regras urbanísticas, de natureza pública e imperativa, vinculativas quer para o Estado quer para particulares.[9]

É que a assinalada natureza sanativa da usucapião, como é dito no citado acórdão da Relação de Coimbra de 18/11/2008, “ abriria a porta para uma situação de fraude à Lei colocando as autoridades administrativas perante um facto consumado ao arrepio das normas de direito que regulam o fracionamento dos prédios.”

Cremos que é neste contexto que devemos interpretar as objeções do apelante em relação à homologação da transação, mormente quando refere a possibilidade de existir fraude à lei, invocando que as autoras e rés concertaram uma atuação para contornar a lei e alcançar, desse modo, um fim proibido, simulando a existência de um conflito inexistente.

Não cremos, contudo, que a questão se coloque em termos de simulação de conflito, bastando ter em conta que a ré impugna a factualidade referente à usucapião e que as autoras invocam o domínio exclusivo sobre as parcelas de acordo com a divisão material das mesmas, embora, de modo aparentemente contraditório, questionem a validade da venda das parcelas adjudicadas à ré com o argumento de se tratar de venda de coisa alheia, na pressuposição, pois, que não ocorreu relevantemente a alegada prescrição aquisitiva.

Mas o que na verdade está em causa na aferição do objeto da transação e da sua consequente homologação é o facto de não assistir às partes o direito de, por sua única e exclusiva vontade, subtraírem à apreciação jurisdicional os requisitos da usucapião, obtendo a confirmação judicial que assim adquiriram o domínio sobre determinadas parcelas, eliminando por via indireta os condicionalismos legais e administrativos que impediam a divisibilidade do prédio.

É que esses impedimentos foram judicialmente reconhecidos, uma vez que o decidido no acórdão do STJ de 16/03/2010, ainda que não faça caso julgado neste processo, como invocam as apeladas, vincula-as, já que foram demandas naquela ação e condenadas no pedido, tendo sido decretada a nulidade do negócio jurídico de divisão de coisa comum, titulado pela escritura pública de 29/10/2010 e ordenado o cancelamento de todos os registos efetuados com base nessa escritura.

Ora, nesse aresto lê-se que as então rés (autoras e ré nesta ação) “iludiram a proibição de dividir um prédio misto, sem loteamento, aproveitando do facto de a descrição dele não estar actualizada ou não estar correcta, para após essa divisão vir a actualizá-lo ou rectificá-lo, frustrando a finalidade da lei ao proibir a divisão do prédio misto sem loteamento”, concluindo o mesmo aresto que “O negócio em fraude à lei é nulo…”

É certo que na presente ação, a causa de pedir e os pedidos não são os mesmos que os daquela outra (artigos 581.º n.ºs 3 e 4, do CPC).

Porém, o objeto deste recurso não visa a reapreciação do mérito da pretensão formulada em juízo (pelo que não está em causa aferir da verificação dos requisitos da usucapião), nem pronunciar-se no sentido de saber se a divisão material do imóvel consubstancia apenas uma divisão/transformação fundiária ou operações de loteamento com violação das regras previstas no Decreto-Lei n.º 555/99, e alterações subsequentes; questão, aliás, que já se encontra decidida no citado acórdão do STJ, vinculando as partes.

Contudo, decorre inquestionavelmente das cláusulas insertas na transação que as partes visam obter a validação judicial da divisão do prédio e dos atos de administração e disposição que já praticaram relativamente a algumas das parcelas (sintomaticamente, vejam-se os pontos i. b) e c), iv. b), v. e v.), sem que tenham sido sujeitas a prévio controlo administrativo em termos de acatamento das regras vigentes em matéria de loteamento previstas no citado Decreto-Lei n.º 555/99.

Ora, o interesse público e o caráter imperativo desse regime, não podem ser postos em causa por meio de uma transação, que, por via indireta, tem a potencialidade de violar tais regras ou, pelo menos, obter um resultado que as neutraliza.

Donde é imperioso concluir que a transação alcançada pelas partes não pode ser homologada por, em última instância e de modo indireto, o seu objeto dispor sobre um negócio jurídico ilícito (operações de loteamento sem cumprimento sem prévia licença ou autorização administrativa – cfr., v.g., artigos 2.º, alínea i), 4.º, n.º 1 e 2, alínea a), e 41.º, do RJUE), logo, por consequência nulo (artigos 1249.º, 294.º, 280.º, 281.º e 294.º do Código Civil, e artigo 299.º, n.º 3, do CPC).

Procede, pois, a apelação, revogando-se a sentença homologatória.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo das apeladas (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.


IV- DECISÃO.

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a sentença homologatória.
Custas nos termos sobreditos.


Lisboa, 08 de Março de 2016


(Maria Adelaide Domingos - Relatora)
(Eurico José Marques dos Reis - 1.º Adjunto)
(Ana Grácio – 1.º Adjunto)

[1]LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª ed., 2014, p. 568 (2).
[2]Todas as parcelas referidas na escritura pública de 29/10/2002, com exceção da parcela “B-Três”, por as autoras alegarem que a parcela foi vendida a Raúl BelBB. da Costa, encontrando-se a aquisição registada pela Ap. 2 de 1926/02/12 a favor do mesmo, encontrando-se a parcela descrita na ficha n.º 11032/20100916 (doc. 24, a fls, 138)- cfr. artigos 7.º, 48.º, 52.º, 58.º, 59.º e 61.º da p.i.
[3]Cfr., neste sentido, AC. STJ, de 19.09.2013, proc. 433/2001. C1.S1, www.dgsi.pt.
[4]Exemplificativamente vejam-se os seguintes acórdãos: Ac. RC, de 13.05.2014, proc. 315/08.0TBAVR.C1 (onde são citados vários outros arestos no mesmo sentido); Ac. RC, de 26.09.2006, proc. 435/05.0TBANS.C1; Ac. Ac. RC, de 31.05.2005, proc. 3997/04 e Ac. RP, de 04.07.2002, proc. 0230334, todos em www.dgsi.pt.
[5]Cfr. CARVALHO FERNANDES, “Lições de Direitos Reais”, Quid Juris, 5.ª ed., 2007, p. 243, quando escreve “…sendo o direito adquirido ex novo, ele é imune aos vícios que afectasem o direito antes incidente sobre a coisa”, justificando-se, assim, segundo o autor, que o registo da usucapião tenha a função de mera publicidade - registo enunciativo (artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Registo Predial.
[6]Cfr. Ac. STJ, de 27.06.2006, proc.06A1471, www.dgsi.pt.
[7]Cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 193.
[8]Ac. RC, de 18.11.2008, proc. 3686/06.9TBVIS, www.dgsi.pt (onde se discutiu precisamente se deveria ser homologada uma transação num processo em que também era invocada a usucapião como forma de pôr fim à indivisão, numa situação em que também se colocava a questão do loteamento ilegal), bem como Ac. RC, de 13.11.2007, proc. 539/2002.C2, www.dgsi.pt (onde igual questão foi colocada).
[9]ALVES CORREIA, “Manual de Direito do Urbanismo”, Vol. I, Almedina, 4. ª ed., 2010, p. 89, e Vol. III, p. 248 e ss, bem como artigos 68.º, 93.º, 102.º a 109.º do RJUE e artigo 103.º do RJIGT.